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Deficiência como expressão da questão social

Disability as an expression of the social issues

Resumo:

Este artigo traz reflexões a respeito da deficiência como uma das expressões da questão social, de forma a considerar que as desvantagens sociais são geradas como consequência das noções de quais são os corpos produtivos e úteis à produção capitalista. Refletiu-se sobre como o processo da contradição das Políticas Sociais garante direitos sociais, permite a reprodução desse sistema e cria o sujeito ideal beneficiário.

Palavras-chave:
Questão social; Deficiência; Participação social; Docialização dos corpos

Abstract:

This article brings reflections on disability as one of the expressions of the social issue, in order to consider that social disadvantages are generated as a consequence of the notions of which are the productive and useful bodies of capitalist production. It reflected on how the process of contradiction of Social Policies guarantees social rights, allows the reproduction of this system and creates the ideal beneficiary subject.

Keywords:
Social issues; Disability; Social participation; Docilization of bodies

Introdução

Os Disability Studies, também conhecidos como estudos sobre deficiência, trouxeram novas teorias como forma de abordagem da deficiência, colocando esta como um corpo com impedimento que em interação com as barreiras sociais sofre restrição de participação social. Assim, a deficiência passa a ser compreendida como resultado dos arranjos sociais. As barreiras sociais, consequência da pobreza e de outros processos sociais resultantes da relação capital e trabalho, tornam a experiência da deficiência desigual ao ser relacionada com as pessoas sem deficiência e, consequentemente, pode ser considerada como expressão da questão social.

A deficiência compreendida como expressão da questão social ocorre, pois ela em muitos momentos é vista como uma questão de desvantagem social. É importante refletir que a docialização dos corpos os molda para lógicas produtivas, e as pessoas com deficiência acabam sendo excluídas do mercado de trabalho e da sociedade em si. A exclusão não ocorre apenas pelo fato de as estruturas sociais serem desiguais, mas também porque os corpos não são considerados úteis à inclusão no sistema capitalista.

Aqueles corpos que são identificados como desviantes são segregados ou inseridos em uma lógica que busca a correção de seus desvios. É importante frisar que, por mais que atualmente exista uma compreensão progressista da deficiência, nunca houve consensos entre os discursos produzidos nesse campo. Os debates se desenvolvem no campo da individualização relacionando com a tragédia pessoal, o campo médico e social. Dentro dessas perspectivas, as políticas sociais atuais podem contribuir para a maior inclusão das pessoas com deficiência na sociedade e contestar, em alguma medida, os discursos discriminatórios. Mas é importante refletir se elas são suficientes para incluir as pessoas com deficiência, garantindo o reconhecido do status de cidadãs das pessoas com deficiência, ou se elas reafirmam as definições de sujeito ideal.

Dentro deste debate, este artigo se divide em três tópicos: o primeiro traz o debate sobre as concepções de deficiência, pois identifica a necessidade de se qualificar como as compreensões sobre deficiência foram construídas. O segundo tópico reflete sobre a emergência da questão social e como a deficiência pode ser compreendida como uma expressão desse fenômeno. O terceiro e último tópico debate sobre a consolidação da Proteção Social devido às tentativas de instituições dos Estados Sociais e ao acesso aos direitos como forma de assegurar que as pessoas com deficiência tenham sua participação social assegurada.

Concepções de deficiência

Para iniciar uma reflexão a respeito da deficiência como expressão da questão social, faz necessário qualificar o que se entende por deficiência. Parte-se da compreensão de que a sociedade capitalista apresenta um padrão que define a normalidade dos corpos, sua utilidade. Contudo, os discursos produzidos a respeito dessa temática não são homogêneos, na verdade, as concepções sobre deficiência são construídas a partir de contextos históricos que são fundamentais na determinação da sua experiência. É a organização da sociedade que colabora para a produção dos discursos no campo da deficiência (Abberley, 2002ABBERLEY, Paul. Work, disability, disabled people and European social theory. In: BARNES, Colin; OLIVER, Mike; BARTON, Len. (ed.). Disability studies today. Cambridge: Polity Press, 2002.).

Contudo, antes de se qualificar o que é deficiência, é preciso refletir sobre como os corpos se constituem na sociedade capitalista e quais poderes exercem sobre ele para definir sua utilidade. Antes de iniciar essa análise, é importante colocar que não há compreensões homogêneas a respeito do corpo, mas existem perspectivas diversas que enfatizam a composição orgânica. Breton (2013)BRETON, David le. A antropologia do corpo e modernidade. Tradução: Fábio Santos Creder Lopes. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2013. afirma que os corpos são construções simbólicas em que suas representações buscam encontrar um sentido. Contudo, os corpos não têm sentido apenas pelas suas características anatômicas, mas também a partir da sua participação na sociedade, pois a cultura, a interação com as dimensões sociais da vida, também tem o papel de conferir sentidos aos corpos.

Entre as concepções existentes, há noções de individualismo como estrutura social que produz saberes sobre os corpos, ligados aos discursos no campo da medicina. Os discursos produzidos neste aspecto, tendo como base a medicina clássica, ao falar sobre os corpos separam suas dimensões sociais e políticas da dimensão orgânica (Breton, 2013BRETON, David le. A antropologia do corpo e modernidade. Tradução: Fábio Santos Creder Lopes. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.). Pode-se dizer que há uma separação entre o corpo e as características que definem sua humanidade e sociabilidade. Os corpos possuem fatores de individualização que se distinguem uns dos outros. Contudo, quando é abordado por uma perspectiva do campo social, em que se trabalham aspectos da representação, o corpo passa a ter características do sujeito. No entanto, os planos das representações também colaboram para manipulações que visam aos padrões de normalidade (Breton, 2013).

O corpo, segundo Foucault (1987)FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução: Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes , 1987., é um objeto de poder que é modelado, treinado e obedece a regras. Os corpos escapam dos aspectos meramente biológicos e se constituem também em uma perspectiva do campo social, permeado pelas relações de poder que determinam sua forma, função e o seu modo de existir em sociedade (Foucault, 1987). As relações de poder que perpassam as diversas instituições da sociedade determinam a funcionalidade e a utilidade dos corpos, ligados a fatores econômicos que os sujeitam à submissão e à dominação, para que tenham as forças adequadas ao modo produtivo (Foucault, 1987). Dentro do sistema capitalista, por exemplo, há dominação que ocorre através da disciplina, do controle. As classes são controladas pelo poder exercido sobre os corpos, que moldam sua utilidade para a inserção no modo de produção capitalista (Luz, 2014LUZ, Madel. As instituições médicas no Brasil. Porto Alegre: Rede UNIDA, 2014. p. 31-90.).

O poder atuante sobre os corpos possui uma característica branda, a determinação da utilidade e do padrão não ocorre por meio da força física, mas pela produção de saberes, que Foucault (1987)FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução: Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes , 1987. apresentou em seus estudos como tecnologia política do corpo. Essa relação se constitui como uma microfísica do poder, pois não aparece nos discursos de forma direta, mas as instituições a legitimam em seus funcionamentos e se manifesta como estratégia de poder (Foucault, 1987).

O poder exercido sobre os corpos tem relação forte com a lógica de controle coercitivo, que os transforma em algo mecânico, definindo movimentos, gestos e atitudes. Os métodos de controle nestes casos são conhecidos como disciplina, os quais, durante os séculos XVII e XVIII, tornaram-se medidas de dominação. A disciplina tem como objetivo o aumento das habilidades e da capacidade de obediência, quanto mais obedientes, maior a utilidade dos indivíduos. Logo, a disciplina tem o papel de criar corpos dóceis e submissos a uma lógica que define padrões de normalidade (Foucault, 1987FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução: Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes , 1987.).

O controle disciplinar não define apenas o agir dos corpos, mas também a melhor relação entre o gesto e a atitude dos corpos. Dessa forma, além de fabricar indivíduos, o poder disciplinar também busca adestrar os corpos, dando a eles um caráter de força e utilidade. Uma das características intrínsecas ao poder disciplinar é a busca pela correção do que é considerado desvio, tudo que foge à regra necessita de intervenções que se adéquem ao padrão, inclusive os corpos. Há uma hierarquia que busca estabelecer um critério de comparação, na ideia de tentativa de construção de classes homogêneas. Aqueles que possuem corpos ou comportamentos desviantes devem ser enquadrados nos padrões de normalidade. Por mais que os sistemas de punição tenham sido transformados no decorrer do tempo, por mais que os suplícios estudados por Foucault (1987)FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução: Raquel Ramalhete. Petrópolis: Vozes , 1987. tenham sido eliminados, o corpo ainda se constitui como espaço de punição, pela busca constante pela correção dos padrões desviantes (Foucault, 1987).

Nessa busca por uma docialização dos corpos, foram construídas diversas compreensões a respeito da deficiência. Desde o entendimento como tragédia pessoal, passando pelas práticas biomédicas de correção de desvios, até a ruptura que considera contextos sociais responsáveis pela experiência da deficiência.

As compreensões de deficiência estão presentes na noção de tragédia pessoal ou modelo individual da deficiência, em que os impedimentos físicos eram tratados de maneira individualizada (Oliver, 2008OLIVER, Mike. Políticas sociales y discapacidad. Algunas consideraciones teóricas. In: BARTON, Len (comp.). Superar las barreras de la discapacidad: 18 años de disability and society. Madrid: Morata, 2008.). Nessa concepção, a experiência da deficiência é vista como castigo ou obra do azar. A deficiência como tragédia pessoal abre espaço para o saber biomédico que atua de forma individualizada, intervindo nos impedimentos físicos de modo a consolidar um padrão de normalidade. As discussões no campo biomédico colocam que são os impedimentos do corpo que dificultam a participação na sociedade (Diniz, 2007DINIZ, Débora. O que é deficiência. São Paulo: Brasiliense, 2007.), necessitando assim de intervenção nos campos da habilitação e reabilitação.

O modelo biomédico traz uma visão tradicional da deficiência que a coloca de maneira individualizada e propicia os processos de medicalização (Shakespeare, 2006SHAKESPEARE, Tom. Disability rights and wrongs. New York: Routledge, 2006.), representando os corpos a partir das dimensões anatômicas e fisiológicas (Breton, 2013BRETON, David le. A antropologia do corpo e modernidade. Tradução: Fábio Santos Creder Lopes. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.). Essa abordagem acaba levando a deficiência para o caminho da patologização, em que a deficiência é compreendida como doença que carece de cura. Caso os corpos desviantes não fossem adequados pelo poder normalizador, as pessoas com deficiência não poderiam ter sua participação social assegurada (Diniz, 2007DINIZ, Débora. O que é deficiência. São Paulo: Brasiliense, 2007.).

No que se refere à habilitação e à reabilitação como formas de inserção da pessoa com deficiência, Madel Luz (2014)LUZ, Madel. As instituições médicas no Brasil. Porto Alegre: Rede UNIDA, 2014. p. 31-90. faz uma análise interessante que contribui para a construção do sujeito ideal. As Instituições1 1 Instituições são mecanismos ideológicos e formas de intervenção normatizadora na vida de grupos sociais, onde perpassam as atividades da sociedade e contribuem para a manutenção de sua infraestrutura. Por mais que nem todas as instituições sejam aparelhos do Estado, elas reproduzem regras de poder dominantes na sociedade (Luz, 2014). Médicas estão empenhadas nos processos de recuperação dos corpos para o trabalho produtivo. Essas instituições se apresentam para além dos aparelhos ideológicos do Estado, mas também como aparelhos do sistema produtivo. Assim, tanto as ações médicas, como os programas de saúde são fundamentais para garantir a reprodução do sistema capitalista (Luz, 2014). Pode-se analisar a partir dessa reflexão que reabilitar um corpo com deficiência é muito mais do que garantir que este consiga se incluir na sociedade, mas assegurar que ele possa em algum momento ser útil para a lógica de produção.

As ações biomédicas têm o papel de aproximar as pessoas de um padrão de normalidade que está ligado aos processos de industrialização da sociedade. A construção de padrão de corpos que atendam à lógica produtiva contribui para que as pessoas com deficiência não sejam vistas como aptas para venda de sua força de trabalho, colocando-as como dependentes e iniciando o processo de institucionalização. O mercado de trabalho não permitia a entrada das pessoas com deficiência e a institucionalização era o mecanismo de controle daqueles que não eram produtivamente ativos (Oliver, 2008OLIVER, Mike. Políticas sociales y discapacidad. Algunas consideraciones teóricas. In: BARTON, Len (comp.). Superar las barreras de la discapacidad: 18 años de disability and society. Madrid: Morata, 2008.; Thomas, 2002THOMAS, Carol. Disability theory: key ideas, issues and thinkers. In: BARNES, Colin; BARTON, Len; OLIVER, Mike (eds.). Disabilities studies today. Cambridge: Polity Press, 2002.).

Dentro dessa perspectiva de compreensão da deficiência como produtora de desigualdades sociais, surgem outros discursos, que buscam contestar tais definições. Durante a década de 1970, no contexto da Inglaterra, o modelo biomédico da deficiência foi alvo de críticas desenvolvidas através de um forte engajamento político e ativismo do movimento de pessoas com deficiência, que se fortaleceu contra os processos de institucionalização. Teóricos com deficiência física deram origem ao que ficou conhecido como Disability Studies. Esse movimento contribuiu para a compreensão da deficiência pautada no modelo social, que trazia a deficiência a partir de um entendimento de construção social e não apenas médica. A deficiência não era mais vista somente por um viés individual, mas também político e cultural. Este discurso foi fundamental para trazer a concepção de deficiência como opressão social (Barnes, Oliver e Barton, 2002BARNES, Colin; OLIVER, Mike; BARTON, Len (ed.). Disability studies today. Cambridge: Polity Press , 2002.).

O modelo social da deficiência tem como objetivo colocar que não é o impedimento físico, a lesão, que impossibilita a participação social, mas sim a estrutura social que é pouco sensível para a inserção da pessoa com deficiência em par de igualdade (Diniz, 2007DINIZ, Débora. O que é deficiência. São Paulo: Brasiliense, 2007.). Dessa forma, a compreensão da deficiência passa a ser produzida para além das questões corporais, abrangendo também as estruturas da sociedade, que são em grande medida barreiras à participação social. A compreensão da existência das barreiras sociais coloca que a deficiência é experimentada a partir do momento que o indivíduo interage com o meio ambiente, e este não está construído de maneira adaptada (Shakespeare, 2006SHAKESPEARE, Tom. Disability rights and wrongs. New York: Routledge, 2006.). Ou seja, as barreiras sociais existem, pois a estrutura social não foi construída de forma a considerar a diversidade humana (Santos, 2010SANTOS, Wederson. Deficiência, desigualdade e assistência social: o Brasil e o debate internacional. In: DINIZ, D.; SANTOS, W. (org.). Deficiência e discriminação. Brasília: Letras Livres; EdUnB, 2010.).

O modelo social como precursor na construção dos Disability Studies foi fundamental para questionar os discursos biomédicos, pois estes eram produções de pessoas sem deficiência a respeito das pessoas com deficiência (Shakespeare, 2006SHAKESPEARE, Tom. Disability rights and wrongs. New York: Routledge, 2006.). Por mais que eles discutam alguns posicionamentos situados no campo da medicina, os Disability Studies, em nenhum momento, têm como objetivo desconsiderar os avanços trazidos por esse campo do saber. A deficiência passou a ser compreendida como um corpo com impedimentos que, em interação com as barreiras sociais, experimenta restrição de participação social (Diniz, 2007DINIZ, Débora. O que é deficiência. São Paulo: Brasiliense, 2007.). Dessa forma, a experiência da deficiência é sempre social, mas também há a relação com as questões corporais, pois é importante reconhecer que, em alguns casos, alguns impedimentos corporais podem causar dor e dificultar a inserção social para além das estruturas sociais (Shakespeare, 2006).

O movimento que deu início à construção do modelo social da deficiência foi muito importante para trazer a compreensão de deficiência a partir da interação dos corpos com as barreiras sociais. Os percussores desse debate ficaram conhecidos como a 1a geração do modelo social. Essa geração discutia deficiência a partir do materialismo histórico. Os argumentos se estruturavam com base na opressão social pela deficiência, relacionada à produtividade no sistema capitalista. As estruturas do mundo do trabalho determinavam quem eram as pessoas produtivas, colocando as pessoas com deficiência em um lugar de inferioridade. A UPIAS[2] 2 A UPIAS (Union of the Physically Impaired Against Segregation), traduzida para Liga dos Lesados Físicos contra a Segregação, foi a primeira organização de pessoas com deficiência formada e gerenciada por pessoas com deficiência (Diniz, 2007). propunha que deveria haver modificações no sistema capitalista para que as pessoas com deficiência pudessem participar de maneira igualitária no mercado de trabalho. Não são os impedimentos físicos que impossibilitam que as pessoas com deficiência sejam improdutivas, mas a estrutura da divisão social do trabalho que não se adequava e não se adéqua para as diversidades corporais (Diniz, 2007DINIZ, Débora. O que é deficiência. São Paulo: Brasiliense, 2007.).

Deficiência e questão social

Agora que se tem definido a construção histórica das formas como a deficiência pode ser compreendida, inicia-se um esforço de demonstrar como ela pode ser considerada expressão da questão social. O porquê da utilização da terminologia expressão da questão social ocorre devido ao fato de se acreditar que não existe uma nova questão social, como defendem alguns teóricos, mas sim que a questão social permanece a mesma. Contudo, devido aos processos históricos de construção da sociedade, esta veio tomando novas formas, adquirindo novas faces. O sistema capitalista é o responsável pela produção da questão social, dessa forma, enquanto esse modo de produção não for suprimido não haverá superação da questão social (Netto, 2001NETTO, José Paulo. Cinco notas a propósito da “questão social”. Temporalis , Rio de Janeiro: ABEPSS , ano II, n. 3, 2001.).

A era das revoluções contribuiu para o rompimento com o feudalismo, constituindo o capitalismo e seu período de propagação pelo mundo. Nesse período, foram estabelecidas rotas comerciais e a ampliação das fronteiras através dos meios de comunicação, como a criação do telégrafo. O modo de produção capitalista foi responsável pelo estabelecimento de uma economia liberal que tinha o objetivo de ser única e padronizada no mundo (Hobsbawm, 2003HOBSBAWM, Eric. A era do capital: 1848-1975. 11. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.). O desenvolvimento do capitalismo trouxe consequência aos trabalhadores, pois a nova forma de desenvolvimento econômico foi marcada pela expansão incansável que refletiu no aumento das jornadas de trabalho em condições precárias. Esse processo gerou o aumento do empobrecimento da população.

O período de revoluções foi fundamental para a consolidação do capitalismo. Assim, os processos de trabalho foram modificados, este continuou com uma dimensão coletiva, mas a apropriação de seus frutos era privada. Com os capitalistas sendo responsáveis pela detenção dos meios de produção e o trabalhador pela venda da sua força de trabalho, fica estabelecida uma relação entre capital e trabalho, cujo objetivo é a produção de mercadorias de forma a obter lucro a partir da mais-valia produzida. Nesse processo, as relações humanas vão sendo transformadas em coisa (Iamamoto, 2001IAMAMOTO, Marilda. A questão social no capitalismo. Temporalis, Rio de Janeiro: ABEPSS, ano II, n. 3, jan./jun. 2001.). Essa transformação das relações humanas é cada vez mais propícia à segregação das pessoas com deficiência, pois a partir do momento em que o objetivo das relações está na determinação das mercadorias, não se enxerga o sujeito que as está produzindo, apenas as potencialidades que este apresenta para que se tenha o produto final.

É importante refletir também que o capitalismo está em constante desenvolvimento e complexificação das suas relações sociais. Os períodos marcados pelas Revoluções Industriais foram importantes para a modificação da composição orgânica do sistema, que inseriu novas tecnologias visando ao aumento do lucro, ocasionando a redução do trabalho vivo e o aumento da produção. Essa nova conjuntura reduziu os postos de trabalho, sobrecarregando alguns trabalhadores, enquanto outros ficavam ociosos e eram descartados. Os trabalhadores ociosos eram supérfluos à produção e constituíam o Exército Industrial de Reserva (Iamamoto, 2001IAMAMOTO, Marilda. A questão social no capitalismo. Temporalis, Rio de Janeiro: ABEPSS, ano II, n. 3, jan./jun. 2001.). A constituição dos postos de trabalho era determinada pela composição orgânica dos corpos, que conseguem operar máquinas que produzem mercadorias com o tempo de trabalho necessário reduzido. Assim, as pessoas com deficiência também constituem o Exército Industrial de Reserva, pois seus corpos, dentro dessa lógica de produção, são considerados ociosos à lucratividade.

Os fatores refletidos anteriormente confirmam a emergência da questão social a partir da relação entre capital e trabalho (Pereira, 2004). Esta, segundo Iamamoto (2001)IAMAMOTO, Marilda. A questão social no capitalismo. Temporalis, Rio de Janeiro: ABEPSS, ano II, n. 3, jan./jun. 2001., refere-se às expressões das desigualdades sociais geradas por um sistema de dominação e exploração. Contudo, a questão social não é apenas relacionada às situações de pauperização. O primordial para a emergência da questão social foi o processo de tomada de consciência da classe trabalhadora (Pereira, 2004PEREIRA, Potyara Amazoneida. Perspectivas teóricas sobre a questão social no Serviço Social. Temporalis , Rio de Janeiro: ABEPSS , ano IV, n. 7, jan./jun. 2004.), dimensão essa que Marx chamou da passagem de classe em si para classe para si.

O processo de consciência e de capacidade de organização foi fundamental para o reconhecimento da questão social e o movimento reivindicatório por mudanças. No caso das pessoas com deficiência, estas sempre foram colocadas em um local de inferioridade. Anterior a esse período de efervescência da questão social, existiram no contexto europeu, por exemplo, medidas de controle da pobreza vinculadas ao trabalho que separavam as pessoas entre capazes e incapazes para vida produtiva. A poor law era responsável pelo controle da desordem social em que havia uma individualização das situações de vulnerabilidades. Para conter os pobres, havia uma separação em que os capazes ao trabalho eram encaminhados às workhouses, que nada mais eram que locais de trabalho e moradia precária. Já os identificados como incapazes ao trabalho eram encaminhados para asilos (Pereira, 2009PEREIRA, Potyara Amazoneida. Política social: temas & questões. São Paulo: Cortez , 2009. 205 p.).

Assim, desde períodos datados do século XV, a Proteção Social destinada às pessoas com deficiências era focada no afastamento da vida em sociedade. Já que as pessoas com deficiência não possuem corpos adequados aos padrões de normalidade do modo de produção, estes não eram úteis. No decorrer da história, foi possível notar as ações destinadas às pessoas com deficiência, com cunho assistencialista, sempre voltando suas práticas para a institucionalização. Esse processo se constituiu como controle daqueles que não são produtivamente ativos, contribuindo para a segregação e a experiência da deficiência como forma de opressão social. A sociedade não mede esforços em controlar os desvios dos padrões de normalidade (Oliver, 2008OLIVER, Mike. Políticas sociales y discapacidad. Algunas consideraciones teóricas. In: BARTON, Len (comp.). Superar las barreras de la discapacidad: 18 años de disability and society. Madrid: Morata, 2008.).

É possível afirmar que houve um processo de tomada de consciência no que se refere aos processos de institucionalização das pessoas com deficiência, mas esse processo só teve força na década de 1970. O movimento britânico de teóricos com deficiência conseguiu reunir forças, por meio da construção de movimentos sociais, para colocar na agenda pública posicionamentos contra os longos e históricos períodos de institucionalização das pessoas com deficiência (Barnes, Oliver e Barton, 2002BARNES, Colin; OLIVER, Mike; BARTON, Len (ed.). Disability studies today. Cambridge: Polity Press , 2002.).

Por mais que as práticas de institucionalização tenham sido questionadas, elas foram por muito tempo constituídas como ações de Proteção Social. As práticas de assistência tiveram diversas formas no decorrer das construções da sociedade. Inicialmente, as ações assistenciais eram regidas por uma sociabilidade primária, em que as ações eram determinadas por práticas de interdependências entre grupos familiares ou de vizinhança que estabeleciam uma série de obrigações, como aponta Castel (2010)CASTEL, Roberto. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Tradução: Iraci D. Poleti. 9. ed. Petrópolis: Vozes , 2010.. Contudo, com a complexificação das sociedades e o aumento da pobreza, esta necessitou de intervenções especializadas, asseguradas por instituições que garantissem ações protetoras.

No que se refere às ações assistencialistas destinadas aos pobres, como dito anteriormente, havia uma distinção entre capazes e incapazes ao trabalho. A pobreza somente não era o critério de elegibilidade para ações de Proteção Social, mas sim sua aptidão ao trabalho. Dessa forma, havia a determinação de quem era o pobre digno, que apresentava em seu corpo condições que afirmassem a inaptidão ao trabalho. A decadência era justificativa para incapacidade ao trabalho que a colocava como involuntária e digna de Proteção Social (Castel, 2010CASTEL, Roberto. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Tradução: Iraci D. Poleti. 9. ed. Petrópolis: Vozes , 2010.). Dessa forma, tanto as ações de institucionalização como ações filantrópicas caracterizavam a Proteção Social destinada às pessoas com deficiência como práticas relacionadas à desigualdade social e à discriminação pelos corpos (Barbosa, 2017BARBOSA, Lívia Pereira. O Estado como produtor da deficiência: desafios biopolíticos e democráticos para a construção do modelo único de avaliação da deficiência. Brasília, 2017. No prelo.).

A discriminação pelos corpos ocasionada na negação da participação social pode ser também a negação da cidadania das pessoas com deficiência. O status de cidadão é reconhecido a partir da inclusão nas relações de produção. Castel (2010)CASTEL, Roberto. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Tradução: Iraci D. Poleti. 9. ed. Petrópolis: Vozes , 2010. apresenta quem são considerados parte da população ativa, aqueles que são reconhecidos como trabalhadores e compõem a Convenção Coletiva do Contrato de Trabalho. Assim, a participação social era determinada pela constituição de um sujeito ideal que conseguia se inserir na lógica do mercado de trabalho. Considerando o trabalho regular e formal, esse sujeito, em sua grande maioria, era homem, branco, heterossexual e sem deficiência.

Proteção Social destinada às pessoas com deficiência

São inegáveis os avanços adquiridos no que se refere aos direitos das pessoas com deficiência. Em grande medida, esse avanço pode ser justificado pelas concepções adotadas para a compreensão de quem é pessoa com deficiência. Outro ponto é que com o desenvolvimento da sociedade e a complexificação cada vez mais intensa das relações sociais, outras medidas de Proteção Social necessitaram ser desenvolvidas. Com a efervescência da questão social surgiu a necessidade de estruturação de políticas sociais, pois elas podem ser consideradas instrumentos de enfretamento da questão social, ao passo que são garantidoras de direitos sociais.

Por mais que tenham existido diversas ações que podem ser compreendidas como iniciativas de Proteção Social, esta só se estruturou como Política Social com o desenvolvimento dos Estados Sociais no capitalismo. Estado Social, como coloca Ivanete Boschetti (2016)BOSCHETTI, Ivanete. O sentido de Estado social capitalista. In: BOSCHETTI, Ivanete. Assistência social e trabalho no capitalismo . São Paulo: Cortez, 2016., refere-se ao conjunto de políticas que foram instituídas após a crise de 1929. Esse conjunto de políticas faz referências à instauração dos Estados de Bem-estar Social,3 3 Para muitos autores, a utilização da terminologia Welfare State pode definir todas as ações de Estado de Bem-estar Social. No entanto, Welfare State remete ao bem-estar social promovido no contexto da Inglaterra. Assim como outros países também promoveram ações sociais, no contexto da França, onde ficou conhecido como État Providence e Sozialstaat, no contexto da Alemanha. Muitas vezes tais terminologias são utilizadas como sinônimos, mas de maneira equivocada; elas possuem semelhanças, mas não são idênticas nem podem ser aplicadas a todos os contextos (Boschetti, 2016). em que o Estado inicia um processo de interferência em âmbito econômico e social, visando promover condições de vida mais dignas à população.

Dessa forma, a consolidação do Estado Social contribuiu para que houvesse uma estruturação de políticas sociais constituindo um sistema de Proteção Social público, no contexto europeu. Tal sistema possibilitou o acesso da população a direitos sociais através de políticas organizadas e financiadas por um fundo público (Boschetti, 2016BOSCHETTI, Ivanete. O sentido de Estado social capitalista. In: BOSCHETTI, Ivanete. Assistência social e trabalho no capitalismo . São Paulo: Cortez, 2016.). A configuração do Estado Social no capitalismo permite que a população tenha acesso a recursos que garantam condições de vida mínima dentro de um sistema exploratório que coloca a vida humana em condições pauperizantes. Contudo, a promoção do Estado Social é uma forma de conter a manifestação popular, pois ele não modifica a estrutura do sistema para que todos possuam igualdade plena.

No contexto brasileiro, não se pode pensar em um Estado Social aos moldes do contexto europeu. As primeiras iniciativas de políticas sociais podem ser observadas a partir do período de industrialização do Brasil, em que se deu início ao trabalho assalariado. Tais políticas tinham como público-alvo os trabalhadores e suas famílias, e tinham um foco assistencialista. Isso ocorreu, pois, como já analisado por Castel (2010)CASTEL, Roberto. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Tradução: Iraci D. Poleti. 9. ed. Petrópolis: Vozes , 2010., a condição de assalariado define a identidade social, o reconhecimento do indivíduo como trabalhador. Dessa forma, a condição de assalariado promove oportunidades e acesso a bens e serviços, ampliando direitos e garantindo uma Proteção Social (Castel, 2010CASTEL, Roberto. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Tradução: Iraci D. Poleti. 9. ed. Petrópolis: Vozes , 2010.). No Brasil, os direitos começaram a ser, em certa medida, separados da centralidade do trabalho a partir da Constituição Federal de 1988. A Carta Magna foi responsável pela construção de um sistema de Proteção Social que criou um sistema público de Seguridade Social tendo como base as políticas de Saúde, Previdência e Assistência Social.

Foi durante o período de redemocratização do país que o movimento de pessoas com deficiência começou a ganhar força. A Constituição Federal, além de ter sido determinante para a construção das Políticas Sociais brasileiras, também foi espaço de participação e envolvimento das pessoas com deficiência para a construção de formas de garantir que as Políticas Sociais destinadas a esse movimento fossem asseguradas (Cabral Filho e Ferreira, 2013CABRAL FILHO, Adilson Vaz; FERREIRA, Gildete. Movimentos sociais e o protagonismo das pessoas com deficiência. Revista Ser Social, Brasília, v. 15, n. 32, p. 93-116, jan./jun. 2013.). A busca por direitos fez com que esses movimentos ganhassem forças, como mecanismo de resistência frente às desigualdades existentes na sociedade (Cabral Filho e Ferreira, 2013CABRAL FILHO, Adilson Vaz; FERREIRA, Gildete. Movimentos sociais e o protagonismo das pessoas com deficiência. Revista Ser Social, Brasília, v. 15, n. 32, p. 93-116, jan./jun. 2013.).

O atendimento das demandas das pessoas com deficiência por meio das políticas sociais é uma forma de garantir a consolidação dos direitos sociais e, consequentemente, a ampliação da cidadania. Mas é importante refletir sobre como ocorre o reconhecimento da cidadania quando se refere às pessoas com deficiência. Atualmente, vários avanços são reconhecidos, por exemplo, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, resultado dos encontros realizados na Assembleia Geral organizada em 2006 pela Organização das Nações Unidas (ONU). Esse documento foi um marco na garantia de acesso igualitário das pessoas com deficiência a todos os direitos humanos. O Brasil, país signatário da Convenção, fez com que ela tramitasse conforme a Emenda Constitucional n. 45, assegurando a esse documento características constitucionais.

O Brasil, buscando adotar as orientações presentes na Convenção, iniciou o trabalho de reestruturação das Políticas Sociais, a fim de garantir a ampliação e a consolidação dos direitos sociais das pessoas com deficiência. Dentro dessa configuração política, no ano de 2015 foi promulgada a Lei Brasileira de Inclusão - LBI (Lei n. 13.146/2015) -, que também ficou conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência. Essa legislação traz a concepção de cidadania para as pessoas com deficiência, reconhecendo direitos, liberdades e buscando promover condições de igualdade.

A LBI pode ser considerada, em certa medida, o instrumento de conquista de emancipação política das pessoas com deficiência. Seria possível pensar que essa legislação, que apresenta concepções progressistas no que se refere à deficiência, seria um instrumento concreto de reconhecimento de status de cidadão. No sistema capitalista, a emancipação nunca será plena. Ao contrário do que propôs Marshall, os direitos civis, políticos e sociais não foram conquistados de maneira linear do decorrer dos séculos XVIII, XIX e XX por todas as pessoas. Essa conquista não foi igualitária, pois ainda há comunidades e movimentos sociais que buscam e lutam diariamente pelo reconhecimento desses direitos, como é o caso das pessoas com deficiência (Franzoni, 2005FRANZONI, Juliana Martínez. Regímenes de bienestar en América Latina: consideraciones generales e itinerarios regionales. Revista Centroamericana de Ciencias Sociales, v. II, n. 2, p. 52-77, dic. 2005. Disponível em: http://unpan1.un.org/ intradoc/groups/public/documents/ICAP/UNPAN028373.pdf. Acesso em: 15 dez. 2020.
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).

A LBI no Brasil vem tendo força, pois determina que os Entes Federais façam um esforço para criar uma avaliação unificada da deficiência. Essa avaliação deverá ter caráter biopsicossocial de forma a contemplar os aspectos do corpo, ambientais, psicológicos, pessoais, desempenho de atividades e restrição de participação social (Brasil, 2015BRASIL. Lei N. 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Diário Oficial. Brasília, 6 de julho de 2015. Disponível em: 75 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm. Acesso em: 15 dez. 2020
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_at...
). Um dos objetivos de construção dessa avaliação é que esta seja adotada em todas as políticas sociais, de modo a ampliar o acesso das pessoas com deficiência aos direitos sociais e não a submetê-las a diversas avaliações cada vez que necessitem de acesso a um serviço.

A partir dessa conjuntura, é importante pensar que muitas pessoas com deficiência só estão acessando direitos históricos no momento atual. É importante refletir como a emancipação política pode ocorrer tardiamente se o indivíduo fugir aos padrões de sujeito ideal existente na sociedade. O acesso aos direitos dentro do capitalismo se apresenta de forma contraditória, pois ao mesmo tempo que promove bem-estar, ele busca conter as manifestações e assegurar que o sistema continue sendo reproduzido.

Contudo, pensar o acesso das pessoas com deficiência a um conjunto de direitos é garantir que esse grupo social, que é constantemente excluído devido às condições corponormativas, tenha acesso à emancipação política, ao já assegurado há séculos às pessoas sem deficiência. Marx afirmou a necessidade da superação da emancipação política para o alcance da emancipação humana, reconhecendo a liberdade plena. No entanto, é necessário assegurar que, enquanto não houver forças suficientes para essa ruptura, pessoas que não estão inseridas dentro dessa conjuntura passem a ter uma participação em par de igualdade.

Considerações finais

Analisar a deficiência como expressão da questão social é afirmar que ela também possui uma relação direta com a lógica produtiva determinada pelo sistema capitalista, pois a questão social emerge dentro desse contexto. Dessa forma, é importante pensar que a trajetória de discriminação e opressão experimentada pelas pessoas com deficiência é consequência de um sistema produtivo construído com base na acumulação que visa ao lucro. A sociedade capitalista pressupõe um sujeito ideal que seja útil à lógica de produção. Aqueles que são desviantes do padrão de normalidade são discriminalizados e segregados da sociedade. As intervenções no campo da deficiência, por muito tempo, tiveram um viés filantrópico e de institucionalização. A consolidação das políticas sociais foi responsável pela mudança deste contexto.

As políticas sociais atuais buscam a integração e a garantia da participação social da pessoa com deficiência, de forma que, a partir do momento que essas pessoas conseguem ter acesso a direitos sociais, há garantia do reconhecimento do status de cidadania. Esse reconhecimento ocorreu tardiamente, pois a cidadania está ligada ao acesso às liberdades formais, que em muitos casos se relaciona com a inserção dos indivíduos no mercado de trabalho. Por mais que tenha sido tardio, é inegável que o acesso aos direitos fortaleceu este movimento para continuar reivindicando espaço na sociedade em par de igualdade. Dessa maneira, dentro da lógica do capital e por meio dos mecanismos que estão disponíveis, a Política Social é um meio eficiente para dar espaço e voz a pessoas com deficiência, contribuindo para o aumento do protagonismo deste movimento.

Atualmente, o Brasil vive um processo de reestruturação das Políticas Sociais destinadas às pessoas com deficiência, de maneira a considerar que a experiência da deficiência não está relacionada a um corpo com impedimentos, mas a como ocorre a inserção em sociedade interagindo com barreiras sociais de diversas formas. O intuito é que essa reestruturação elimine as barreiras sociais para que a participação social seja garantida. Contudo, é importante refletir que as Políticas Sociais são contraditórias, e dentre seus aspectos elas são responsáveis pela garantia de direitos sociais, como também pela manutenção das condições de reprodução do capitalismo.

Dessa forma, não é possível pensar em uma eliminação das barreiras sociais, estas podem sem enfrentadas, amenizadas, mas não eliminadas. Outro ponto que não pode ser desconsiderado é que as Políticas Sociais sofrem influências neoliberais que prezam pela sua focalização e seletividade. Com isso, os critérios de elegibilidade para as Políticas Sociais continuarão determinando quem é o sujeito ideal. Porém, neste momento, a ideação de sujeito se refere a reconhecer quem são as pessoas com deficiência que vão acessar os direitos sociais.

  • 1
    Instituições são mecanismos ideológicos e formas de intervenção normatizadora na vida de grupos sociais, onde perpassam as atividades da sociedade e contribuem para a manutenção de sua infraestrutura. Por mais que nem todas as instituições sejam aparelhos do Estado, elas reproduzem regras de poder dominantes na sociedade (Luz, 2014LUZ, Madel. As instituições médicas no Brasil. Porto Alegre: Rede UNIDA, 2014. p. 31-90.).
  • 2
    A UPIAS (Union of the Physically Impaired Against Segregation), traduzida para Liga dos Lesados Físicos contra a Segregação, foi a primeira organização de pessoas com deficiência formada e gerenciada por pessoas com deficiência (Diniz, 2007DINIZ, Débora. O que é deficiência. São Paulo: Brasiliense, 2007.).
  • 3
    Para muitos autores, a utilização da terminologia Welfare State pode definir todas as ações de Estado de Bem-estar Social. No entanto, Welfare State remete ao bem-estar social promovido no contexto da Inglaterra. Assim como outros países também promoveram ações sociais, no contexto da França, onde ficou conhecido como État Providence e Sozialstaat, no contexto da Alemanha. Muitas vezes tais terminologias são utilizadas como sinônimos, mas de maneira equivocada; elas possuem semelhanças, mas não são idênticas nem podem ser aplicadas a todos os contextos (Boschetti, 2016BOSCHETTI, Ivanete. O sentido de Estado social capitalista. In: BOSCHETTI, Ivanete. Assistência social e trabalho no capitalismo . São Paulo: Cortez, 2016.).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Jun 2021
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2021

Histórico

  • Recebido
    23 Jan 2021
  • Aceito
    22 Fev 2021
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