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Sistemas algorítmicos, lucratividade do capital e implicações nas políticas sociais

Algorithmic systems, capital profitability and implications to social policies

Resumo:

Os sistemas algorítmicos são instrumentos utilizados nas políticas sociais para acesso aos serviços. Essa ferramenta tecnológica invade as instituições públicas, controlando os processos de trabalho e o acesso de usuários. O pressuposto é o de que a utilização dos sistemas algorítmicos modifica não apenas a rotina institucional, como também é instrumento de poder pela quantidade gigantesca de dados armazenados, contribuindo à lucratividade do capital. O artigo reflete sobre essa dinâmica com base no estudo bibliográfico.

Palavras-chave:
Tecnologia; Sistemas algorítmicos; Políticas sociais

Abstract:

Algorithmic systems are instruments used in social policies to access services. This technological tool invades public institutions controlling work processes and user access. The assumption is that algorithmic management not only modifies institutional routine but is also an instrument of power due to the gigantic amount of stored data which contributes to the profitability of capital. The article reflects on this dynamic by means of bibliographical study.

Keywords:
Technology; Algorithmic systems; Social Policies

Introdução

O presente artigo é resultado de estudo bibliográfico e discussões desenvolvidas no espaço acadêmico, no Núcleo de Estudos e Pesquisa: Trabalho e Profissão (NeTrab),1 1 O tema do semestre 2021-1 do NeTrab foi “O trabalho de assistentes sociais no contexto da pandemia e as tecnologias digitais”. O texto em questão são algumas das reflexões apresentadas no seminário temático promovido pelo núcleo com o tema “Políticas públicas, condições de trabalho e TIC no capitalismo pandêmico”. do Programa de Pós-Graduados em Serviço Social da PUC-SP, e tem como objetivo contribuir para o debate sobre tecnologias de informação e de comunicação (TIC) e sistemas algorítmicos, relacionado à lucratividade do capital e às implicações nas políticas sociais. O argumento esboçado na reflexão foi desenvolvido em dois tópicos.

O ponto de partida da discussão, desenvolvida no primeiro tópico, é a noção de valor e a forma mercadoria em Marx, para fundamentar a argumentação sobre a tecnologia, os sistemas algorítmicos, a TIC e a forma de vida constituída pelas relações estabelecidas nesses parâmetros. Sobre a tecnologia, são apresentados aspectos que indicam a sua composição na base da organização material da sociabilidade burguesa, englobando a cooperação, a manufatura e a maquinaria. A discussão abrange reflexões sobre os sistemas algorítmicos, intermediando as relações sociais de produção e reprodução social do tempo presente.

O segundo item apresenta reflexão sobre a substituição da lógica burocrática pela lógica algorítmica na execução das políticas sociais brasileiras, intermediada pelas TIC e caracterizada pela dataficação. As estratégias governamentais, incluindo governo eletrônico e plataformização da prestação de serviços sociais, são objeto de discussão, enfocando o atual contexto de desmonte e regressão de direitos.

1. Tecnologia, valor e sistemas algorítmicos

Para Marx (2004MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. 22. ed. Rio de Janeiro, 2004. Livro I., p. 428), “a tecnologia revela o modo de proceder do homem para a natureza, o processo imediato de produção de sua vida, e, assim, elucida as condições de sua vida social e as concepções mentais que delas decorrem”. A tecnologia é expressão do desenvolvimento das forças produtivas da humanidade e revela a relação sociometabólica entre homem e natureza. Condensa acúmulo de conhecimentos, capacidade humana de gestar novas alternativas na dinâmica da produção social e também expressa, na vigência do capital como relação social, na sua combinação com a ciência, contradições imanentes que são dadas pelo caráter dinâmico, desigual e combinado do capitalismo, em que a célula fundamental dessa sociabilidade é a mercadoria, bem como o seu fetiche para a produção do valor.

O valor para Marx (2004MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. 22. ed. Rio de Janeiro, 2004. Livro I.) é coágulo de energia humana contido nas mercadorias. É o valor que possibilita que mercadorias de naturezas diferentes possam ser trocas, em que o elemento comum é o tempo de trabalho abstrato socialmente necessário à produção de uma merca­doria. O tempo de trabalho necessário para produção de uma mercadoria muda à medida que se transformam as forças produtivas do trabalho, já que “o trabalho que se objetiva em valor é trabalho de qualidade social média, exteriorização de força de trabalho média” (Marx, 2004MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. 22. ed. Rio de Janeiro, 2004. Livro I., p. 375). Isso revela a importância da tecnologia no movimento do capital, sendo, de acordo com Harvey (2018HARVEY, David. A loucura da razão econômica: Marx e o capital no século XXI. São Paulo: Boitempo, 2018., p. 111), uma preocupação central de Marx no decorrer dos livros d’ O capital, expondo “algumas das consequências da transformação tecnológica para o lucro e a renda […]. O seu foco em O capital é o papel da tecnologia e da ciência em relação à valorização do capital e à produção de mercadorias”.

Partindo desse pressuposto analítico, é possível construir uma história crítica da constituição e do desenvolvimento da tecnologia como base de organização material da sociedade nas determinações da sociabilidade burguesa em diferentes fases do processo de trabalho, para a criação e a conservação do valor no processo de produção, a mais-valia. Para tanto, vários foram os métodos utilizados pelos capitalistas (a cooperação, a manufatura e a maquinaria) para o crescente barateamento do valor da força de trabalho e elevar a produtividade do capital.

Marx (2004MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. 22. ed. Rio de Janeiro, 2004. Livro I.) considera que na manufatura o ponto de partida para revolucionar a produção social é a força de trabalho e, na indústria moderna, é o instrumento de trabalho, com a introdução do maquinário que automatiza o processo de trabalho, demonstrando o impulso imanente e a tendência crescente do capital de revolucionar o modo de produzir.

O capitalismo contemporâneo engendra um salto tecnológico inédito no mundo produtivo, até então desconhecido da humanidade, com a utilização da tecnologia de base digital, ou seja, intensamente pautada pela expansão das TIC, que são novas tecnologias que desempenham papel crucial na atual etapa da acumulação capitalista. Para Antunes (2020aANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2020a.; 2020bANTUNES, Ricardo. Trabalho intermitente e uberização do trabalho no limiar da Indústria 4.0. In: ANTUNES, Ricardo (Org.). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo , 2020b.), as TIC são mecanismos centrais à acumulação capitalista contemporânea para a preservação e a ampliação da lei do valor por meio da constituição de novos laboratórios de experimentação do trabalho, como a uberização, o home office e a EAD (Educação a Distância), por intermédio das plataformas digitais e da proliferação dos sistemas algorítmicos que tornam a informação gerada na base digital uma mercadoria.

Convém destacar, de acordo com Harvey (2018HARVEY, David. A loucura da razão econômica: Marx e o capital no século XXI. São Paulo: Boitempo, 2018., p. 126), que:

Ninguém diria que mudanças tecnológicas na esfera da valorização são irrelevantes. Na medida em que Marx demonstra, em seu estudo, que o capital tem de ser tecnologicamente dinâmico a todo custo, isso configura uma afirmação universal a respeito da natureza do capital que vale tanto para a época de Marx quanto para a nossa. A transformação tecnológica e organizacional é endógena e inerente ao capital, e não acidental.

Silveira (2021SILVEIRA, Sergio Amadeu. O mercado de dados e o intelecto geral. Margem Esquerda, São Paulo: Boitempo, n. 36, 2021., p. 34-35) corrobora a análise de que as tecnologias da informação são indispensáveis ao acúmulo de conhecimento e à reprodução do capital e tornam, por exemplo, o setor financeiro mais ágil e volátil, sendo possível constatar que:

As redes informacionais cobriram o planeta e consolidaram a digitalização extrema da economia, dos mercados e das instituições, principalmente dos Estados. Em 2016, as empresas com maior faturamento nos Estados Unidos já eram empresas digitais: Apple, Amazon, Google, Facebook, Poderíamos incluir também Microsoft, IBM, Oracle e Cisco, entre outras.

Com a elevação da capacidade de processamento computacional estavam dadas as condições para que a economia informacional ampliasse a digitalização de bens e produtos simbólicos. Com a elevação intensa da conectividade e da presença massiva da população na internet, estavam dadas as condições para o surgimento das plataformas de relacionamento on-line, nomeadas redes sociais, nos primeiros anos do século XXI.

São recursos tecnológicos impensáveis sem a Indústria 4.0 ou a chamada Quarta Revolução Industrial e a sua expansão. Para Tauile (2001TAUILE, José Ricardo. Para (re)contruir o Brasil contemporâneo: trabalho, tecnologia e acumulação. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001., p. 38), por revolução tecnológica compreende-se um conjunto de novos conhecimentos, procedimentos, instrumentos e técnicas produzidos em determinada época histórica, que promovem alterações qualitativamente distintas em relação a períodos anteriores. Condensam um conjunto de práticas instrumentais e organizacionais que “criam uma espécie de padrão de comportamento produtivo e social aceito em um determinado lugar, em uma determinada época. Implica, consequentemente, um determinado espectro de possibilidades de articulações produtivas”, portanto com repercussões em todas as instâncias da vida social.

A Indústria 4.0 e a sua expansão, a partir de 2011, são marcadas por recursos tecnológicos, como a inteligência artificial, a robótica, a internet das coisas e a computação em nuvem - ferramentas que possibilitam a digitalização e a informatização do mundo produtivo.

A TIC expressa a nova base técnica que potencializa a ofensiva do capital sobre o trabalho e os direitos, dando o suporte necessário para o processamento de uma nova fase de subsunção real do trabalho ao capital, favorecendo a abertura de novos polos de investimento de capitais, especialmente em países periféricos, além da criação de novas modalidades de contratação da força de trabalho, formas de compra de mercadorias e prestação de serviços.

Antunes (2020bANTUNES, Ricardo. Trabalho intermitente e uberização do trabalho no limiar da Indústria 4.0. In: ANTUNES, Ricardo (Org.). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo , 2020b.) chama atenção para as plataformas digitais globais altamente robotizadas e automatizadas, como forma de gerar novos polos de investimentos globais e novas maneiras de exploração do trabalho, redefinindo não apenas o mundo produtivo, como também construindo novos modos de sujeição do trabalhador ao capital, uma vez que as atividades são mediadas por equipamentos conectados a sistemas informacionais que atuam de forma integrada entre si.

É importante lembrar que tudo isso é facilitado pela utilização de tecnologias estruturadas em sistemas ciberfísicos, na internet das coisas e na computação em nuvem -, que devem ser compreendidos em sincronia com as grandes inovações introduzidas pela Indústria 4.0. Os sistemas ciberfísicos têm a função de articular, modelar e controlar, por meio de computadores, o ambiente físico em que incide a produção humana - armazenando no dispositivo eletrônico (hardware) todas as informações necessárias, tal como exige a forma organizacional (software), automatizando as atividades humanas mediante a retenção de um conjunto de informações vitais ao funcionamento da máquina. A internet das coisas aprimora o sistema atual global de redes de computadores interligados (internet), sendo a expressão de uma rede ampla de objetos físicos conectados virtualmente para a transmissão de dados e meio de comunicação, modificando a cotidianidade da vida social. A computação em nuvem estrutura núcleos de dados capazes de armazenar informações sem a necessidade de interação humana com a máquina. São recursos tecnológicos que, agrupados em sistema, podem ser acessados de qualquer lugar. Todas as informações são disponibilizadas em redes amplamente conectadas por sistemas, que, além de proporcionarem a agilidade no acesso, controlam e otimizam os dados e viabilizam vários recursos essenciais à produção.

Na era digital do capitalismo, os sistemas algorítmicos2 2 Define-se por “sistemas algorítmicos um conjunto de rotinas finitas, logicamente encadeadas, não ambíguas, vinculadas à estrutura de dados que podem estar reunidas em softwares ou embarcadas em dispositivos que operam de modo interligado e visam atingir determinados objetivos na administração e na operação de símbolos, coisas ou pessoas” (Silveira; Souza, 2020, p. 17). são vitais para constituir um mercado de dados (Silveira e Souza, 2020SILVEIRA, Sergio Amadeu; SOUZA, Joyce Ariane. Gestão algorítmica e a reprodução do capital no mercado segurador brasileiro. Contracampo, Niterói, v. 39, n. 2, p. 15-27, ago./nov. 2020.) altamente lucrativo ao capital. Os sistemas algorítmicos modificam não apenas a rotina institucional, tornando-se instrumento de poder pela quantidade gigantesca de dados armazenados. Os sistemas algorítmicos estão presentes nas plataformas digitais e assemelhados que utilizamos cotidianamente cada vez que o acesso à internet é realizado para sequestrarem dados que podem ser comercializados. A tendência é criar uma geografia do gênero humano que seja capaz de identificar além de rostos por meio de câmeras de vigilância, mapear gostos e preferências pessoais que possam ser comercializados no mercado global do capitalismo na sua sede infinita de acumulação de capital.

Silveira e Souza (2020SILVEIRA, Sergio Amadeu; SOUZA, Joyce Ariane. Gestão algorítmica e a reprodução do capital no mercado segurador brasileiro. Contracampo, Niterói, v. 39, n. 2, p. 15-27, ago./nov. 2020.) destacam que nos últimos dez anos têm proliferado as empresas de dados, como a Big data, data Mining e Machine Learning, cuja finalidade é garantir o máximo volume de informações na forma de dados informacionais de cada pessoa para ser possível extrair:

[...] padrões de consumo de comportamento, e até os humores e os sentimentos de segmentos, microssegmentos sociais e individuais. As ferramentas de modelagem estatísticas operadas por algoritmos rodando em sistemas computacionais proporcionam oportunidades para a captura das atenções e a permanência crescente das pessoas nas atividades em rede, fortalecendo uma microeconomia da interceptação e rastreamento de dados (Silveira, 2021SILVEIRA, Sergio Amadeu. O mercado de dados e o intelecto geral. Margem Esquerda, São Paulo: Boitempo, n. 36, 2021., p. 35).

Trata-se de um mercado de dados potente que atinge o indivíduo social na hora em que supre qualquer necessidade, do estômago ou da fantasia (para lembrar Marx). Os seus dados são sequestrados para saber, conforme destaca Silveira (2021SILVEIRA, Sergio Amadeu. O mercado de dados e o intelecto geral. Margem Esquerda, São Paulo: Boitempo, n. 36, 2021., p. 35), o próximo passo, interesse ou vontade dos consumidores, “mas também querem capacitar para descobrir quando uma pessoa está em um estado emocional específico, a fim de gerar nela certas necessidades e desejos”. Por isso, a competição por dados também é vital ao capitalismo contemporâneo, levando o autor a concluir que: “o capitalismo atual coloniza a vida a partir de sua conversão em fluxo de dados, precariza o trabalhador e extrai valor da ampla modulação social organizada com a plataformização, que pretende capturar o intelecto geral pela dataficação” (Silveira, 2021SILVEIRA, Sergio Amadeu. O mercado de dados e o intelecto geral. Margem Esquerda, São Paulo: Boitempo, n. 36, 2021., p. 35). A dataficação é a colonização da vida com o uso de sistemas algorítmicos. Em concordância com o autor, consideramos que os algorítmicos não são neutros, possuem cunho econômico e político, “visam determinados objetivos e são criados e desenvolvidos para implementá-los” (Silveira; Souza, 2020SILVEIRA, Sergio Amadeu; SOUZA, Joyce Ariane. Gestão algorítmica e a reprodução do capital no mercado segurador brasileiro. Contracampo, Niterói, v. 39, n. 2, p. 15-27, ago./nov. 2020., p. 17), transformando o mercado e as relações de produção por meio das tecnologias digitais.

2. Impactos das novas tecnologias na política social brasileira: estratégias governamentais intermediadas pelas TIC

O sistema possibilitado pelas TIC, inicialmente aplicado ao mundo do trabalho, envolvendo atendimentos via telemarketing e call center, avança nos setores industrial, bancário, de serviço e atinge o modus operandi governamental, configurando-se como indispensável à sociabilidade do capital nesses tempos dominados pelas finanças. Os conceitos de uberização e plataformização, que definem a forma de exploração do trabalho individualizado, precarizado, intensificado, com longas jornadas de trabalho e relações de assalariamento invisíveis, sem direitos trabalhistas, associados ao desgaste da força de trabalho e à necessidade de descanso para recomposição, tornam-se o modelo, o padrão e a condição da prestação de serviços no âmbito governamental. O espraiamento dessa condição alcança o Estado e as estratégias governamentais para operacionalizar as políticas sociais intermediadas pelas TIC.

As plataformas de governo eletrônico ou e-gov (do inglês, electronic government), que consistem no uso das tecnologias de comunicação digital sobre as práticas burocráticas do governo e do Estado, intermediando a entrega de produtos e serviços aos cidadãos e às empresas, compõem a estratégia governamental em todas as instâncias federativas e esferas de governança. Na década de 90 do século XX, o governo eletrônico começou a ser pensado como movimento mundial, após o lançamento do primeiro browser que permitia uma navegação fácil pela internet, em 1993. De acordo com informação divulgada no site Jusbrasi3 3 https://www.jusbrasil.com.br/ Acesso em: 4 maio 2021. l, que cita Chahin (2004), formalmente, a ideia de governo eletrônico é atribuída a Al Gore, quando, na condição de vice-presidente dos Estados Unidos, abriu o primeiro Fórum Mundial de Reinvenção de Governo e “desde então, governos de todo o mundo têm investido em novas ferramentas de comunicação a partir das novas tecnologias eletrônicas”. A construção da esfera do ciberespaço, como novo espaço público, “permeado pela comunicação sem a necessidade da presença do homem, em que todos os indivíduos estão ligados por meio dos seus relacionamentos”, possibilitado pelas estratégias de governo eletrônico para funcionamento da prestação de serviços, passa a compor a realidade fenomênica no século XXI, atualmente utilizada de forma generalizada. O governo aparece, então, como uma entidade imaterial acessível na esfera do ciberespaço.

De acordo com o site oficial do governo brasileiro (gov.br), o Programa de Governo Eletrônico do Estado brasileiro surgiu no ano 2000, quando foi criado o Grupo de Trabalho Interministerial com a finalidade de examinar e propor políticas, diretrizes e normas relacionadas às novas formas eletrônicas de interação, através do Decreto Presidencial de 3 de abril de 2000, que instituiu o citado grupo de trabalho para examinar e propor políticas, diretrizes e normas relacionadas com as novas formas eletrônicas de interação. O referido grupo de trabalho foi extinto pelo Decreto n. 10.087, de 5 de novembro de 2019, que revogou 399 decretos normativos de governos anteriores em um único documento regulatório. Os decretos revogados, em sua maioria, referiam-se à composição de instâncias consultivas, comitês e grupos de trabalho para tratar de assuntos relacionados ao meio ambiente, preservação de mananciais hídricos e biodiversidade do território nacional, criação de fundo para Amazônia, criação de comissões para propor políticas sociais de fortalecimento ao salário mínimo, promoção da igualdade racial, implementação de mecanismos inovadores para o combate à fome e à pobreza, definição de determinantes sociais da saúde, promoção de direitos de cidadania para a população com hanseníase, segurança alimentar e nutricional, reformulação do sistema prisional feminino, elaboração do Plano Nacional de Políticas para Mulheres, entre outros.

Segundo informações contidas na página do Governo Digital, no período de 2000 a 2005 ocorrem os processos de disponibilização do portal da transparência. O modelo de acessibilidade de e-Gov ocorre no período de 2006 a 2010. O marco civil da internet, Lei n. 12.965, e as estratégias compostas pelo Comitê Interministerial Governo Aberto, Lei de Acesso à Informação, Infraestrutura Nacional e Portal de Dados Abertos, Programa Cidades Digitais, Decreto sobre a Política Nacional de Participação Social e Decreto sobre o Processo Eletrônico Nacional, são constituídos no período de 2011 a 2015. Em 2016 e 2017, foram instituídos os decretos referentes ao que se denomina como Simplificação dos Serviços Públicos. Em 2018, a regulamentação da Lei n. 13.709, de Proteção de Dados Pessoais, que articula a Plataforma de Interoperabilidade, denominada ConectaGov, a Estratégia Brasileira para Transformação Digital, E-Digital e a Lei n. 3.460/2017, que dispõe sobre participação, proteção e defesa dos direitos do usuário dos serviços públicos da administração pública. Em 2019, ocorre o lançamento do Portal Único Gov.br, composto dos Decretos sobre unificação de canais digitais federais, sobre governança do compartilhamento de dados, sobre governança da e-Digital e Instrução sobre o novo marco de compras de TIC.

A noção de governo eletrônico refere-se à prestação de serviços públicos por meio eletrônico, utilizando “recursos de tecnologia da informação, em caráter remoto e disponível no sistema 24/7, ou seja, vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana” (Jusbrasil). Diferentes ferramentas são utilizadas como portais de internet, fóruns, cadastramento e manutenção de banco de dados, aplicativos para telefonia móvel e telefones de serviços, como disque-denúncia, prestação de contas, ouvidoria, cadastro e serviço on-line, emissão de documentos pessoais e de documentos de licenciamento de veículos, comprovante de quitação de impostos, comprovante de quitação eleitoral, preenchimento e entrega da declaração de Imposto de Renda, entre outros. Os serviços possuem também variados modos de acesso e ambientes de interação, por exemplo, a disponibilização no site das formas de acesso à declaração de imposto de renda, que pode ser preenchida on-line no Portal e-CAC (Centro Virtual de Atendimento); no App Meu Imposto de Renda para iPhone e iPad do sistema iOS; no App Meu Imposto de Renda para celulares e tablets do sistema Android; no Programa IRPF, disponível para download em versões compatíveis com os sistemas operacionais Windows, Linux (64-Bits), MacOS e Multiplataforma. Na página inicial do site consta a informação, feita pela Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil (RFB), de “que os programas para preenchimento da Declaração de Ajuste Anual do Imposto sobre a Renda da Pessoa Física, desenvolvidos pelo Serpro para a RFB, são objeto de propriedade intelectual da União e têm seu uso licenciado para o contribuinte, para serem utilizados exclusivamente para os fins a que se destinam. Seu uso indiscriminado para finalidade diversa sujeita o responsável às penas da lei”. A ênfase a esse aspecto explicita que o contribuinte tem acesso ao sistema para fazer a sua declaração, mas não é permitida a apropriação particular nem coletiva para outros usos do sistema. Ou seja, a propriedade intelectual, tecnológica, será sempre do seu desenvolvedor, que permanecerá obtendo lucro com o uso generalizado do invento. A utilização da tecnologia é feita para diversas finalidades por quem pode arcar com os custos dos dispositivos e dos meios para seu funcionamento, como a energia elétrica, e para a obtenção de conectividade em rede, como o pacote de dados de internet móvel ou fixa. Essa é uma das críticas feitas ao uso do governo eletrônico, que se torna uma estratégia excludente, acessível apenas a uma minoria que detém o conhecimento das estruturas governamentais e dos órgãos competentes onde deve buscar o serviço, possui cognição suficiente para o uso da internet, possui domínio de navegação em busca das informações públicas de seu interesse, além dos demais requisitos que possibilitem o êxito na experiência de navegação.

No que se refere à operacionalização das políticas sociais, o governo brasileiro criou estratégias de informatização de serviços, gerenciados por sistema informatizado de dados dos usuários, configurados no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal/CadÚnico, criado pelo Decreto n. 6.135, de 26 de junho de 2007. O CadÚnico constituído como parâmetro para a oferta de serviços dos programas assistenciais, de acordo com o artigo 2o do referido Decreto, “é instrumento de identificação e caracterização socioeconômica das famílias brasileiras de baixa renda, a ser obrigatoriamente utilizado para seleção de beneficiários e integração de programas sociais do Governo Federal voltados ao atendimento desse público”. De acordo com artigo 2, § 3o, é constituído “por sua base de dados, instrumentos, procedimentos e sistemas eletrônicos”. O cadastramento é realizado em cada município, de acordo com os critérios estabelecidos. Para cada indivíduo cadastrado, é atribuído um Número de Identificação Social (NIS), nos termos estabelecidos pelo órgão gestor nacional. São destacadas no cadastramento as definições de família; família de baixa renda; domicílio; renda familiar mensal; renda familiar per capita. Os dados coletados e processados no ambiente de rede nacional visam garantir a unicidade das informações cadastrais; a integração, por meio do cadastro, de programas e políticas públicas que o utilizam; a racionalização do processo de cadastramento pelos diversos órgãos. Dessa forma, esse instrumento possui funcionalidades de otimização das ações das políticas, que se expressam na uniformidade e na padronização dos dados cadastrais em nível nacional, na integração entre os programas que interagem com esse instrumento, na articulação institucional e na racionalização de processos e procedimentos de coleta e sistematização de dados, em ambiente compartilhado e interligado institucionalmente. Por isso, trata-se de um elemento importante que compõe a instrumentalidade da política pública, especificamente da Política de Assistência Social brasileira em sua dimensão técnica e operacional.

No entanto, esse instrumento operacional está sendo desmontado pela estratégia atual de informatização de todo o processo, incluindo a busca do usuário pelo auxílio, diretamente no site ou aplicativo, eliminando o atendimento presencial para o cadastramento e a atualização no CadÚnico, feitos nas unidades dos Centros de Referência da Assistência Social, incluindo a busca e o acesso ao auxílio emergencial e outros repasses, como o Benefício de Prestação Continuada, para os quais o interessado deve solicitar o benefício através do site “Meu INSS” ou do telefone 135. A suspensão da exigência do cadastramento no CadÚnico, feita por decreto, motivada pelas medidas de isolamento para conter a pandemia da covid-19, constitui-se em investida que desmonta também as instâncias instituídas do SUAS (Serviço Único de Assistência Social), desconsidera a condição de pobreza extrema da população-alvo, que não tem acesso aos meios digitais nem ao conhecimento necessário para utilização desses meios, desmonta os serviços e equipamentos sociais instalados e dispensa os recursos humanos envolvidos na operacionalização da política, desferindo golpes fatais contra a institucionalidade até então vigente, e transformando o espaço público do governo em espaço imaterial e inacessível à população que mais precisa dos serviços.

Dessa maneira, as rotinas operacionais controladas e administradas por sistemas burocráticos passam a ser operacionalizadas por sistemas algorítmicos, afetando profundamente as condições de trabalho e a forma do controle dos processos de trabalho, dispensando ou reduzindo ao máximo o trabalho humano, ao tempo em que promovem o desmonte da seguridade social como lógica que estrutura a prestação de serviços ofertados pelas políticas sociais, que passa a ser institucionalizado como espaço de mercantilização, concretizado na apropriação do fundo público pelo capital, em busca de ampliação de sua lucratividade no espaço virtual, deletério e parasitário da financeirização.

Silveira e Souza (2020SILVEIRA, Sergio Amadeu; SOUZA, Joyce Ariane. Gestão algorítmica e a reprodução do capital no mercado segurador brasileiro. Contracampo, Niterói, v. 39, n. 2, p. 15-27, ago./nov. 2020.) apontam a periculosidade da “dataficação” adotada pelos governos, que consiste na coleta dos dados dos cidadãos para armazenamento em nuvem, administrada pelas grandes corporações internacionais, as quais lucram com a venda de dados, promovendo, com a comercialização da securitização, a discriminação preconceituosa dos usuários e o consequente encaminhamento de suas demandas. Os autores afirmam que a burocracia weberiana que caracteriza a institucionalidade governamental no âmbito do Estado moderno está sendo reinventada pela “algocracia”, cujo funcionamento com lógica reducionista, binária, opaca e direcionada por redes de mercantilização conduz os processos decisórios por parâmetros discriminatórios, distanciando essas decisões do que se conquistou como direito de cidadania. A inteligência artificial, a internet das coisas e as demais tecnologias, como a Big Data, vão conduzir os processos sociais e submeter a humanidade e a complexidade de suas subjetividades aos desígnios das máquinas, ao mesmo tempo confinadas e expandidas na emaranhada rede de relacionamentos. Nesse sentido, Silveira e Souza (2020SILVEIRA, Sergio Amadeu; SOUZA, Joyce Ariane. Gestão algorítmica e a reprodução do capital no mercado segurador brasileiro. Contracampo, Niterói, v. 39, n. 2, p. 15-27, ago./nov. 2020.) articulam a noção de governo, ampliada em Foucault, para quem “governar é conduzir condutas”, exercendo um poder que não se dá necessariamente no confronto, mas no estabelecimento de vínculos. A partir dessa noção, fica mais evidente a compreensão marxiana de que o capital é uma relação social, estabelecida em todas as entranhas do tecido societário, plasmando o éthos capitalista na sua forma correspondente.

A regressão de direitos e o rompimento do pacto federativo da Constituição Federal de 1988 configuram-se como realidade na relação social do capital no mundo “maquínico-informacional-digital”, ao qual o Brasil está submetido, acompanhando a tendência mundial. Nas políticas públicas, os impactos dessa “modernização” estão sendo desenhados em processos massivos expropriadores dos direitos, das condições de trabalho e do estágio civilizatório alcançado como resultante das lutas sociais desenvolvidas.

Acrescente-se ao acelerado processo de desmonte a substituição da lógica da seguridade pela lógica algorítmica, que é reducionista, binária, e interfere sobremaneira nas condições de trabalho, em rotinas e procedimentos e, principalmente, nas decisões tomadas, envolvendo os usuários dos serviços, suas necessidades e a prestação do serviço. A eliminação da triagem humana pela triagem algorítmica implica a desconsideração de aspectos subjetivos e a possibilidade da aplicação discriminatória direcionada ao que está programado e ao que é produzido pela inteligência artificial, articulada no emaranhado mundo das redes de relacionamentos. Essa lógica, que atende aos interesses de cadastramento, rastreamento, mapeamento, interessa à privatização dos serviços, para a obtenção de lucratividade em detrimento da prestação de serviço, direcionada a atender às necessidades sociais.

Conclusão

O debate sobre a regressão de direitos de cidadania, conquistados e reconhecidos no respectivo marco regulatório das políticas sociais, ainda necessita de muitos estudos e pesquisas, principalmente no que se refere aos impactos ocasionados pela intermediação das TIC na prestação dos serviços sociais. O aprofundamento dessa tendência, além de levar a situações ainda não previstas, conduzirá a uma profusão de fenômenos sociais, que advirão da automatização e do consequente distanciamento dos aspectos subjetivos e particulares que compõem as condições de sobrevivência, de luta e de resistência dos segmentos populacionais destinatários das políticas sociais.

A sociedade como um todo também está afetada por esse modo de vida, intermediado pelas TIC, que vem se configurando como nova face do capital, inerente ao atual estágio de desenvolvimento das forças produtivas. A inteligência artificial e a internet das coisas estão se consolidando como aspectos componentes das necessidades sociais, uma vez que o consumo está sendo direcionado para a aquisição de produtos de automação, até mesmo para executar tarefas corriqueiras no âmbito doméstico, por exemplo, acender a luz do ambiente que está sendo utilizado, tocar música, contar piada, ler em voz alta, dar informações diversas e, em resumo, interagir com humanos e executar tarefas comandadas. É expressiva a quantidade de aparelhos utilizados no espaço doméstico que são acionados e executam tarefas a partir de comando de voz. O aprofundamento ao espaço doméstico de tais equipamentos sinaliza a dimensão dessa tendência na sociabilidade constituída pelo capital e aponta para a complexidade da realidade com a virtualização dos processos interacionais que fazem parte da história, da vida do homem em sociedade.

Tal aprofundamento está se configurando de forma acelerada. A replicação da realidade, através de dispositivos digitais, compõe o mundo virtual, denominado metaverso, constituído pela realidade virtual, realidade aumentada e internet, adaptando o mundo virtual algoritmicamente, o que resultará, para quem utiliza, em perda de privacidade, adoecimento, alienação, entre outras consequências.

Portanto, as consequências são previsíveis e danosas para a humanidade, enquanto para o capital significam a criação das condições favoráveis à exploração lucrativa da venda de dados e ao domínio imperialista que configura a sociedade capitalista, imersa na crise estrutural do capital.

Referências

  • ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2020a.
  • ANTUNES, Ricardo. Trabalho intermitente e uberização do trabalho no limiar da Indústria 4.0. In: ANTUNES, Ricardo (Org.). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0 São Paulo: Boitempo , 2020b.
  • HARVEY, David. A loucura da razão econômica: Marx e o capital no século XXI. São Paulo: Boitempo, 2018.
  • MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. 22. ed. Rio de Janeiro, 2004. Livro I.
  • SILVEIRA, Sergio Amadeu. O mercado de dados e o intelecto geral. Margem Esquerda, São Paulo: Boitempo, n. 36, 2021.
  • SILVEIRA, Sergio Amadeu; SOUZA, Joyce Ariane. Gestão algorítmica e a reprodução do capital no mercado segurador brasileiro. Contracampo, Niterói, v. 39, n. 2, p. 15-27, ago./nov. 2020.
  • TAUILE, José Ricardo. Para (re)contruir o Brasil contemporâneo: trabalho, tecnologia e acumulação. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001.
  • 1
    O tema do semestre 2021-1 do NeTrab foi “O trabalho de assistentes sociais no contexto da pandemia e as tecnologias digitais”. O texto em questão são algumas das reflexões apresentadas no seminário temático promovido pelo núcleo com o tema “Políticas públicas, condições de trabalho e TIC no capitalismo pandêmico”.
  • 2
    Define-se por “sistemas algorítmicos um conjunto de rotinas finitas, logicamente encadeadas, não ambíguas, vinculadas à estrutura de dados que podem estar reunidas em softwares ou embarcadas em dispositivos que operam de modo interligado e visam atingir determinados objetivos na administração e na operação de símbolos, coisas ou pessoas” (Silveira; Souza, 2020SILVEIRA, Sergio Amadeu; SOUZA, Joyce Ariane. Gestão algorítmica e a reprodução do capital no mercado segurador brasileiro. Contracampo, Niterói, v. 39, n. 2, p. 15-27, ago./nov. 2020., p. 17).
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    https://www.jusbrasil.com.br/ Acesso em: 4 maio 2021.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    May-Sep 2022

Histórico

  • Recebido
    12 Dez 2021
  • Aceito
    06 Fev 2022
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