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Tecnologias de informação e de comunicação, políticas sociais e o trabalho de assistentes sociais* * O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001”/”This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Finance Code 001.

Information and communication technologies, social policies and the social workers’ job

Resumo:

A subsunção do trabalho ao capital tornou os trabalhadores autômatos às máquinas-ferramentas. Esse controle e a perda de autoatividade demandaram inovações que se expandiram à reprodução social. Este artigo examina o uso das tecnologias digitais no processo de dataficação das políticas sociais públicas a partir do trabalho profissional de assistentes sociais. O acesso e o trabalho no Benefício de Prestação Continuada estão desafiados com o uso da automação sem transparência no processo decisório.

Palavras-chave:
Tecnologia; Subsunção; Automação; Dataficação; Política social; Trabalho profissional

Abstract:

The subsumption of labor to capital turned workers into automatons to machine tools. This control and loss of self-activity demanded innovations that expanded to social reproduction. This article examines the use of digital technologies in the datafication process of public social policies through the social workers’ professional work. Access and work on the “Benefício de Prestação Continuada” are challenged by the use of automation without transparency in the decision making process.

Keywords:
Techonology; Subsumption; Automation; Datafication; Social policy; Professional work

Introdução

O presente artigo tem como objetivo problematizar os usos das tecnologias digitais nas políticas sociais públicas com base nos processos que compõem o trabalho profissional de assistentes sociais, considerando a importância que as tecnologias de informação e de comunicação (TIC) ganharam nos espaços sócio-ocupacionais a partir da pandemia da covid-19. A crise sanitária global desvelou e acelerou o uso dessas tecnologias para o acesso da população às políticas sociais públicas, bem como para o desenvolvimento das atividades profissionais via internet.

Segundo o Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (CETIC.br), responsável pela produção de indicadores sobre as TIC, a Pesquisa sobre o Uso das Tecnologias de Informação e Comunicação nos Domicílios Brasileiros (CETIC.br, 2020aCENTRO Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (CETIC.br). Pesquisa sobre o uso das tecnologias de informação e comunicação nos domicílios brasileiros: TIC Domicílios 2019. São Paulo: Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br); Comitê Gestor da Internet do Brasil (CGI.br), 2020a. Disponível em: Disponível em: https://cetic.br/media/analises/tic_domicilios_2019_coletiva_imprensa.pdf . Acesso em: 1o out 2020.
https://cetic.br/media/analises/tic_domi...
) demonstrou que 133,8 milhões de brasileiros tinham usado a internet em 2019, véspera da pandemia, sendo o celular a principal forma de acesso. Observou-se, ainda, que a comunicação foi a atividade mais referida, realizada por 73% desse universo, do qual 92% dos entrevistados enviaram mensagens por WhatsApp, Skype ou chat do Facebook e 76% usaram redes sociais, como Facebook, Instagram ou Snapchat. Conquanto, para a requisição de bens e serviços das políticas sociais públicas via internet, somente 36% referiram acesso aos direitos do trabalhador ou previdência social e 28%, a documentos pessoais.

Já com o início da pandemia, o CETIC.br divulgou a Pesquisa Painel TIC Covid-19, cujos resultados indicaram aumento significativo do uso de aplicativos para o acesso às políticas sociais públicas, porém com enormes desafios para se efetivar a conexão on-line da população com menos renda.

A pesquisa investigou ainda o recebimento do auxílio emergencial: entre os usuários entrevistados, 38% receberam, 20% tentaram e não receberam e 39% não solicitaram o benefício. Entre os que tentaram e não receberam, 73% disseram que a solicitação não foi aprovada ou ainda estava em análise. Entre as barreiras relacionadas à tecnologia, 12% dos usuários que solicitaram e não receberam o auxílio disseram que não conseguiram usar o aplicativo da Caixa e 10% não tinham espaço no celular para o aplicativo. Os usuários desse perfil nas classes DE citaram em maiores proporções problemas relacionados com o uso das tecnologias, tais como não conseguir utilizar o aplicativo da Caixa (28%) e limitações na Internet (22%) (CETIC.br, 2020bCENTRO Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (CETIC.br). Painel TIC covid-19 apresenta dados inéditos sobre acesso a serviços públicos on-line e desafios à privacidade durante a pandemia. São Paulo: Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br); Comitê Gestor da Internet do Brasil (CGI.br), 2020b. Disponível em: Disponível em: https://cetic.br/pt/noticia/painel-tic-covid-19-apresenta-dados-ineditos-sobre-acesso-a-servicos-publicos-on-line-e-desafios-a-privacidade-durante-a-pandemia/ . Acesso em: 1o out 2020.
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, n. p.).

Esse quadro repõe barreiras para o acesso às políticas sociais públicas em período de crise estrutural do capital agravada com a crise sanitária atual, cuja resposta do Estado às expressões da questão social, objeto de intervenção das assistentes sociais, atualiza a ofensiva contra o trabalho e a tendência às contrarreformas. No contexto brasileiro, a crise econômica vem facultando a organização de forças de extrema-direita, ultraneoliberal e fascista que chegaram ao poder desde o golpe parlamentar de 2016. Particularmente com o governo Bolsonaro, iniciado em 2019, temos o aprofundamento da seguinte agenda, segundo Boschetti e Behring (2021BOSCHETTI, Ivanete; BEHRING, Elaine Rossetti. Assistência Social na pandemia da covid-19: proteção para quem? Serviço Social & Sociedade, São Paulo: Cortez, n. 140, p. 66-83, jan./abr. 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/sssoc/a/Wbf86mT4vwX6HvnSyRy3kkD/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 1o set 2021.
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, p. 72):

[...] estimular as privatizações, a destruição da natureza com queimadas criminosas, a destruição dos direitos sociais, uma “reforma” fiscal que pretende desvincular todos os gastos sociais do orçamento e intensificar a contrarreforma trabalhista, para tornar o trabalho ainda mais subsumido ao capital.

O uso das TIC requer investigação, na medida em que participa da tendência mais geral de o trabalho ser subsumido ao capital, cuja tendência se afirma através do processo de autonomização dos instrumentos ante o trabalhador e da perda de autoatividade por parte do trabalho (Marx, 1988MARX, Karl. O capital. São Paulo: Nova Cultural, 1988.; 2011MARX, Karl. Grundrisse. São Paulo: Boitempo, 2011.; Romero, 2005ROMERO, Daniel. Marx e a técnica: um estudo dos manuscritos de 1861-1863. São Paulo: Expressão Popular, 2005.).

Embora o uso das tecnologias de ponta seja associado ao ramo produtivo, este artigo parte do suposto de que as TIC são expressões da ciência, produtos do trabalho coletivo, partícipes também do trabalho improdutivo e meios usados para fins paradoxais. De um lado, para a expansão da valorização do capital com toda a sua ofensiva contemporânea contra o trabalho (Abílio, 2020ABÍLIO, Ludmila Costhek. Uberização: gerenciamento e controle do trabalhador just-in-time . In: ANTUNES, Ricardo. Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2020.; Antunes, 2018ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.) e, de outro, para a organização das lutas sociais pelos trabalhadores (Valente; Peschanski, 2021VALENTE, Mariana G.; PESCHANSKI, João A. Colonização da internet e suas resistências. Margem Esquerda, São Paulo: Boitempo, n. 36, 2021.; Veloso, 2011VELOSO, Renato. Serviço Social, tecnologia da informação e trabalho. São Paulo: Cortez, 2011.). Como meios fundamentais para a ampla mercantilização das relações sociais, as tecnologias digitais se capilarizaram por esferas não diretamente produtivas, como as políticas sociais públicas, e, durante a pandemia, seu uso foi intensificado no trabalho profissional de assistentes sociais (Raichelis; Arregui, 2021RAICHELIS, Raquel; ARREGUI, Carola C. O trabalho no fio da navalha: nova morfologia no Serviço Social em tempos de devastação e pandemia. Serviço Social & Sociedade, São Paulo: Cortez, n. 140, p. 134-152, jan./abr. 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/sssoc/a/MVGcWc6sHCP9wFM5GHrpwQR/?format=pdf⟨=pt . Acesso em: 1o set. 2021.
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; Hillesheim; Zanfra, 2021HILLESHEIM, Jaime; ZANFRA, Mary Kazue. Serviço Social e trabalho mediado pelo uso de tecnologias da comunicação e da informação: o que a crise sanitária revelou? In: PAIVA, Beatriz Augusto de; SAMPAIO, Simone Sobral (org.). Serviço Social, questão social e direitos humanos. Florianópolis: Editora da Universidade Federal de Santa Catarina, 2021. v. IV, p. 405-444.). Como consequência, essas tecnologias incidem na atual divisão social e técnica do trabalho, na qual o Serviço Social participa como especialização do trabalho coletivo. Em contraposição, esse fenômeno foi pouco pesquisado pela área do Serviço Social, embora seus primeiros estudos, como teses de doutorado, datem do início dos anos 2000 (Serafim, 2001SERAFIM, Maria do Rosário A. de O. Sociedade em rede e meio rural: um estudo das tecnologias de informação no desenvolvimento local. 2001. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Faculdade de Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2001.; Veloso, 2006VELOSO, Renato dos S. Tecnologia da Informação: contribuição importante para o exercício profissional? 2006. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Escola de Serviço Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.), portanto antes da pandemia. Já o uso das TIC no trabalho coletivo das políticas sociais públicas antecede a produção do conhecimento na área em quase três décadas quando, em 1974, houve a criação da Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência (DATAPREV) (Tapajós, 2003TAPAJÓS, Luziele. Informação e políticas de seguridade social: uma nova arena de realização dos direitos sociais. 2003. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2003.). Portanto, este artigo toma o uso das TIC nas políticas sociais públicas com base nos processos que compõem o trabalho de profissionais do Serviço Social, considerando a tendência de regressão profunda de acesso a meios garantidores de direitos sociais, o deslocamento ocorrido de parte das atividades profissionais para o espaço virtual com a pandemia e as barreiras para o acesso aos meios telemáticos e ao sinal da internet, conforme demonstraram as pesquisas do CETIC.br (2020aCENTRO Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (CETIC.br). Pesquisa sobre o uso das tecnologias de informação e comunicação nos domicílios brasileiros: TIC Domicílios 2019. São Paulo: Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br); Comitê Gestor da Internet do Brasil (CGI.br), 2020a. Disponível em: Disponível em: https://cetic.br/media/analises/tic_domicilios_2019_coletiva_imprensa.pdf . Acesso em: 1o out 2020.
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; 2020bCENTRO Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (CETIC.br). Painel TIC covid-19 apresenta dados inéditos sobre acesso a serviços públicos on-line e desafios à privacidade durante a pandemia. São Paulo: Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br); Comitê Gestor da Internet do Brasil (CGI.br), 2020b. Disponível em: Disponível em: https://cetic.br/pt/noticia/painel-tic-covid-19-apresenta-dados-ineditos-sobre-acesso-a-servicos-publicos-on-line-e-desafios-a-privacidade-durante-a-pandemia/ . Acesso em: 1o out 2020.
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).

O estudo desse tema foi inicialmente sistematizado em projeto de pesquisa de pós-doutorado desenvolvido no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Alagoas (PPGSS/UFAL), no período entre abril e setembro de 2021. Entre as ações do projeto, o curso de extensão “Trabalho contemporâneo e as tecnologias de informação e de comunicação: efeitos e desafios ao trabalho profissional das assistentes sociais”1 1 Curso promovido no âmbito do PPGSS da UFAL, organizado pelo grupo de pesquisa Serviço Social, trabalho, profissão e políticas sociais, realizado por via remota no mês de agosto de 2021 e com participantes que qualificaram o debate, por estarem estudando e/ou acompanhando a temática do trabalho profissional: estudantes da iniciação científica e da pós-graduação da área do Serviço Social, docentes desses dois níveis da formação e assistentes sociais estratégicos advindos das Comissões de Orientação e Fiscalização (COFI), seja de dois Conselhos Regionais do Serviço Social, localizados em distintas regiões do país, seja da COFI do Conselho Federal do Serviço Social (CFESS). permitiu ampliar as articulações na área de Serviço Social e contribuir para a demarcação do tema de pesquisa e para a formulação das primeiras análises. Daqui, foram sistematizadas questões e algumas merecem atenção neste artigo: o que é o espaço da internet para o acesso às políticas sociais e para o trabalho profissional? Em que medida as relações sociais de classe, de raça e patriarcais participam da interatividade nas redes sociais e no desenvolvimento dos grandes sistemas de informação das políticas sociais? A partir da pandemia, que dificuldades e possibilidades foram experimentadas para a realização de diferentes atividades profissionais por meio das TIC? Quais são os limites e as possibilidades edificadas pelas assistentes sociais para contribuir para o acesso dos usuários aos bens e aos serviços dessas políticas públicas? No atendimento a pessoas com algum nível de deficiência física, com transtorno mental ou pessoas idosas, por exemplo, há a necessidade de alguma estratégia comunicativa para apoiá-las na compreensão do que seja o acesso das políticas sociais, agora, por via on-line? Houve algum efeito sobre o exercício da autonomia relativa das profissionais mediante a intensificação do uso das TIC com a pandemia? Nessa questão, há alguma alteração do conteúdo e da forma no trabalho profissional quando as políticas sociais públicas passam a contar com grandes sistemas de processamento de dados, do tipo big data, e associados à automação da inteligência artificial?

As questões advindas nesse primeiro momento da investigação do pós-doutorado nortearam o percurso metodológico em direção ao incremento da pesquisa documental e da pesquisa bibliográfica, a fim de se conseguir atingir o objetivo de entender os impactos do uso das TIC nas políticas sociais públicas e no trabalho profissional. Os resultados desse primeiro momento do estudo são apresentados a seguir, com abordagens sobre o debate teórico acerca das TIC, do trabalho e das mudanças societárias recentes. Também será apresentado um exercício de análise sobre um benefício social, cujo acesso já está atravessado pelas TIC, o Benefício de Prestação Continuada (BPC).

1. Breves notas sobre as tecnologias na sociabilidade burguesa

Apreender o uso das TIC na política social pública, segundo o mirante do trabalho profissional de assistentes sociais, requer um diálogo teórico e histórico entre distintas áreas do conhecimento, por exemplo, o Serviço Social e a Ciência da Computação, como imperativo para apreender um fenômeno relevante e complexo presente no cotidiano dos espaços sócio-ocupacionais. A crítica da Economia Política oferece pistas para desvelar a participação das tecnologias digitais na tendência mais geral de o trabalho ser subsumido ao capital.

A ciência e a consequente criação de novas tecnologias se tornaram, desde a divisão do trabalho na manufatura, período da subsunção formal, ocorrida ao longo de meados do século XVI a finais do século XVII, forças produtivas no capitalismo, já que a clássica divisão entre concepção e execução “[...] abriu a possibilidade de o trabalho intelectual tornar-se produtivo e, dessa forma, de a ciência interferir diretamente no processo de produção” (Romero, 2005ROMERO, Daniel. Marx e a técnica: um estudo dos manuscritos de 1861-1863. São Paulo: Expressão Popular, 2005., p. 104). Essa inferência do autor é creditada à obra de Marx, particularmente, em seu estágio maduro (MARX, 1988MARX, Karl. O capital. São Paulo: Nova Cultural, 1988.; 2011MARX, Karl. Grundrisse. São Paulo: Boitempo, 2011.), quando este acrescenta que a criação da riqueza na divisão do trabalho da grande indústria, período da subsunção real, dependeu menos do quantum de trabalho empregado do que dos agentes postos em movimento; ou seja, “[...] não tem nenhuma relação com o tempo de trabalho imediato que custa sua produção, mas que depende, ao contrário, do nível geral da ciência e do progresso da tecnologia, ou da aplicação dessa ciência à produção” (Marx, 2011MARX, Karl. Grundrisse. São Paulo: Boitempo, 2011., p. 587-588). Assim, no capitalismo, a especialização na divisão do trabalho conformou um tipo de trabalho coletivo, no qual o trabalho produtivo não deixou de prescindir do trabalho manual diretamente na produção, mas o vem combinando com qualquer tipo de trabalho que participe do processo de valorização do capital, bem como o submetendo ao saber técnico.

[...] toda produção capitalista, à medida que não é apenas processo de trabalho, mas ao mesmo tempo processo de valorização do capital, tem em comum o fato de que não é o trabalhador quem usa as condições de trabalho, mas, ao contrário, são as condições de trabalho que usam o trabalhador: só, porém, com a maquinaria é que essa inversão ganha realidade técnica palpável. Mediante sua transformação em autômato, o próprio meio de trabalho se confronta, durante o processo de trabalho, com o trabalho morto que domina e suga a força de trabalho viva (Marx, 1988MARX, Karl. O capital. São Paulo: Nova Cultural, 1988., I/2, p. 41).

Dessa forma, a subsunção real dependeu da introdução da máquina-autocrática, reificando as relações de produção ao subordinar o trabalho vivo ao trabalho morto no processo de trabalho, mas daquele trabalho não podendo prescindir para a valorização do capital. O processo automatizado da produção, inaugurado com a divisão do trabalho da grande indústria, subordinou e controlou o trabalho vivo ao ritmo repetitivo da máquina-ferramenta que pode passar horas sem ser interrompida nem perder a sua função. Esse fetichismo do processo de produção, que torna o próprio trabalhador autômato no processo de trabalho, aparece como um imperativo tecnológico desde o período industrial, porém vela a expropriação do saber-fazer do operário, através do seu distanciamento do domínio do ritmo da produção e do modo de se produzir.

Nessa direção, as invenções tecnológicas compõem a história humana, mas se particularizam nas relações de produção no capitalismo, menos pelo desenvolvimento do conhecimento científico em si e mais por sua cristalização como capital constante, objetivada nas máquinas-ferramentas. Também se particularizam diante das respostas históricas às crises estruturais do capital, já que, a partir da década de 1970, com a reestruturação produtiva, novas tecnologias foram incorporadas ao processo de produção, tomado como um complexo de relações entre produção, reprodução, distribuição e consumo. O controle dessas relações, de sua interatividade e de sua celeridade conta com o uso das TIC, cuja totalidade do processo de produção não autoriza abstrair as diferenças internas entre a produção e o consumo das mercadorias.

As tecnologias digitais apresentam, desde a sua criação, um longo processo cumulativo (Cury; Capobianco, 2011CURY, Lucilene; CAPOBIANCO, Ligia. Princípios da história das tecnologias da informação e comunicação: grandes invenções. In: ENCONTRO NACIONAL DE HISTÓRIA DA MÍDIA, 8., 2011, Guarapuava. Anais [...]. Guarapuava: Unicentro, 2011. p. 1-13.). Só a partir da reestruturação produtiva, como dito, foi possível torná-las rentáveis como um momento determinante da composição orgânica do capital. As máquinas-ferramentas tiveram suas funções expandidas para além da execução de tarefas, incorporando processos de automação através da gradativa criação de qualidades, tanto de aprendizado como de tomada de decisão.

Automação está relacionada à inteligência em tarefas automatizadas. Significa que além de executar a tarefa, um sistema pode aprender com seu desempenho e tomar decisões sozinho. Além de gerar alertas e se manter funcionando, ele pode acionar outros sistemas, fazer escolhas e mudar a execução da tarefa sem ajuda humana.

Essa citação, extraída de uma empresa de consultoria ao mercado, a Central IT Tecnologia em Negócios,2 2 Citação localizável no seguinte endereço eletrônico: https://centralit.com.br/veja-como-nao-confundir-automacao-e-automatizacao/. Acesso em: 19 dez. 2021. intenciona demonstrar como o debate contemporâneo dos processos de automação via TIC atualiza o fetichismo do processo de produção, embora indique mudanças substantivas nos atributos da máquina-ferramenta.

Assim como uma máquina é trabalho objetivado, os dados armazenados pelos modelos algorítmicos e softwares desenvolvidos pelos trabalhadores e cientistas assalariados são produtos do trabalho humano direto ou indireto. São ativos que podem participar de vários momentos do processo de reprodução do capital no cenário informacional (Silveira, 2021SILVEIRA, Sergio A. de. O mercado de dados e o intelecto geral. Margem Esquerda, São Paulo: Boitempo, n. 36, 2021., p. 37).

Na quadra atual, o uso das TIC foi massificado perante as medidas de distanciamento social recomendadas para a prevenção da covid-19 no plano global, porém, desde 2016, “[...] as empresas com o maior faturamento nos Estados Unidos já eram [...] Apple, Amazon, Google, Facebook. Poderíamos incluir também Microsoft, IBM, Oracle e Cisco, entre outras” (Silveira, 2021SILVEIRA, Sergio A. de. O mercado de dados e o intelecto geral. Margem Esquerda, São Paulo: Boitempo, n. 36, 2021., p. 35).

Nessa conjuntura desafiadora quando se aprofunda a resposta ultraneoliberal e fascista à crise do capital ampliada com a crise sanitária, as TIC se tornaram uma mediação substantiva para a nova morfologia do trabalho, orientada por uma precariedade estrutural das condições e das relações de trabalho na reestruturação produtiva (Antunes, 2018ANTUNES, Ricardo. O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo: Boitempo, 2018.), da qual as assistentes sociais participam.

Segundo o Conselho Federal de Serviço Social (2020CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL. Teletrabalho e teleperícia: orientações para assistentes sociais na pandemia. Brasília: CFESS, 2020. Disponível em: Disponível em: http://www.cfess.org.br/arquivos/Nota-teletrabalho-telepericiacfess.pdf . Acesso em: 9 jun. 2021.
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, p. 2), o uso das TIC repercutiu “[...] nos processos de trabalho em que nos inserimos, na relação com outras profissões e trabalhadores/as, na relação com usuários/as e nas condições éticas e técnicas de trabalho”. Nessa direção, destacam-se a relevância e a pertinência de se estudar os impactos das TIC nas políticas sociais, através de processos institucionais que envolvem o trabalho de assistentes sociais, profissionais que se inserem nos fluxos de atendimento à população usuária de serviços sociais. Tal participação se estabelece por ações de orientação social, encaminhamentos para fins de acesso a serviços e benefícios, trabalhos educativos que socializam informações, estudo social para fins de emissão de parecer social que possa compor processos de concessão de benefícios, entre outros. Este cotidiano profissional tem sido crescentemente atravessado e mediado pelo uso de tecnologias digitais, cujos atributos precisam ser mais bem conhecidos.

2. O Benefício de Prestação Continuada (BPC) e seu trabalho coletivo no contexto de dataficação das políticas sociais públicas brasileiras

Para buscar determinações mais precisas sobre o tema em tela, neste item tomaremos o BPC como parte do processo crescente de dataficação das políticas sociais no Brasil, a fim de apreender processos que demandam diretamente (ou não) a intervenção profissional. Com isso, estaremos na trilha que aponta a inserção do Serviço Social, ao lado de outras profissões, na implementação de condições necessárias ao processo de reprodução social, através de variadas formas de intervenção social voltadas para a regulação das relações sociais (Trindade, 2001TRINDADE, Rosa L. P. Desvendando as determinações sócio-históricas do instrumental técnico-operativo do Serviço Social na articulação entre demandas e projetos profissionais. In: Revista Temporalis, n. 4. Rio de Janeiro: ABEPSS, 2000. p. 21-42. Disponível em: Disponível em: http://cressrn.org.br/files/arquivos/65N06Bp3L00eI373q8j6.pdf . Acesso em: 30 mar 2022.
http://cressrn.org.br/files/arquivos/65N...
). Ademais, o debate profissional sobre a dimensão técnico-operativa no Serviço Social aponta que fazem parte do escopo das profissões a discussão sobre o uso de tecnologias e a articulação entre instrumentos e técnicas. Até porque, a consolidação do capitalismo monopolista apontou, desde o final do século XIX e início do século XX, que:

[...] as técnicas deixam de ser utilizadas apenas na confecção dos produtos, pois são incorporadas à organização do processo produtivo (a Gerência Científica é um exemplo emblemático), à gestão dos recursos materiais e humanos nele envolvidos, e nas atividades voltadas à circulação e ao consumo de mercadorias e serviços. Dessa forma, é possível falar de tecnologias sociais (Trindade, 2001TRINDADE, Rosa L. P. Desvendando as determinações sócio-históricas do instrumental técnico-operativo do Serviço Social na articulação entre demandas e projetos profissionais. In: Revista Temporalis, n. 4. Rio de Janeiro: ABEPSS, 2000. p. 21-42. Disponível em: Disponível em: http://cressrn.org.br/files/arquivos/65N06Bp3L00eI373q8j6.pdf . Acesso em: 30 mar 2022.
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, p. 4).

Assim, mudanças significativas operadas na estruturação de benefícios e serviços sociais, quando se incorporam às TIC, precisam ser consideradas parte dos contornos das políticas sociais e componentes das possibilidades de construção das estratégias de intervenção definidas por assistentes sociais ao realizarem seu trabalho. Não se trata apenas de aprimoramento dos meios, de formas neutras e assépticas para melhorar o como fazer, já que “[...] a tecnologia é um fenômeno eminentemente social, pois a mudança tecnológica, desenvolvida através do trabalho, é integralmente configurada pelo modo de produção dominante” (Trindade, 2001TRINDADE, Rosa L. P. Desvendando as determinações sócio-históricas do instrumental técnico-operativo do Serviço Social na articulação entre demandas e projetos profissionais. In: Revista Temporalis, n. 4. Rio de Janeiro: ABEPSS, 2000. p. 21-42. Disponível em: Disponível em: http://cressrn.org.br/files/arquivos/65N06Bp3L00eI373q8j6.pdf . Acesso em: 30 mar 2022.
http://cressrn.org.br/files/arquivos/65N...
, p. 4). Portanto, o artigo segue mostrando algumas problematizações sobre recentes alterações num dos poucos benefícios sociais com garantia constitucional, com impactos na forma e no conteúdo das contribuições profissionais para a sua efetivação como direito social.

Recentes mudanças ocorreram na legislação para alterar o critério de renda familiar per capita no acesso ao Benefício de Prestação Continuada (BPC): “[...] para acesso ao benefício de prestação continuada, estipular parâmetros adicionais de caracterização da situação de miserabilidade e de vulnerabilidade social” (Brasil, 2021BRASIL. Lei n. 14.176, de 22 de junho de 2021. Brasília, 2021. Disponível em: Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-14.176-de-22-de-junho-de-2021-327647403 . Acesso em: 1o jul. 2021.
https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n...
, n. p.). Trata-se da Lei n. 14.176, de 22 de junho de 2021, que alterou a Lei Orgânica da Assistência Social, de 1993, anunciando essa mudança sem garantir qualquer transparência sobre que dados serão usados para esse fim na avaliação dos requerimentos. No artigo. 4o, a Lei definiu o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e a DATAPREV, aquela primeira empresa pública do ramo das TIC criada para a gestão dos dados relativos aos segurados da Previdência Social, como as instâncias responsáveis para tomar as medidas operacionais. Assim, além da participação da Perícia Médica Federal e do Serviço Social do INSS na avaliação dos requerimentos, essa alteração legislativa dá o indicativo de que a linguagem da matemática, base do desenvolvimento de software pelos trabalhadores da Ciência da Computação, será acionada para delimitar que dados serão considerados para o “critério de renda familiar”.

O acesso ao BPC já era penoso para seus usuários antes da pandemia (Stopa, 2017STOPA, Roberta. O direito constitucional ao Benefício de Prestação Continuada da assistência social (BPC): o penoso caminho para o acesso. 2017. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2017.). Com a recente alteração da Lei, chama a atenção como a avaliação social aprofunda seu caráter subsidiário, em face de uma possível automação para a definição de um cálculo a ser considerado uma média não só da renda familiar per capita, mas também interferindo no peso atribuído à avaliação social, limitando o alcance e o tratamento de informações qualitativas produzidas pelas assistentes sociais do INSS.

Atendemos diariamente pessoas com deficiência que, para a perícia médica, podem ter impedimentos considerados ‘leves e moderados’, mas que ao somarmos os aspectos sociais que cercam aquele sujeito, como o preconceito, a ausência de equipamentos e serviços públicos, falta de acessibilidade, falta de amparo familiar, sua condição de impedimento passa a ser considerada grave ou, até mesmo, completa (CFESS, 2021CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL. Lei do BPC muda modelo de avaliação e quem perde é a pessoa com deficiência. Brasília: CFESS, 2021. Disponível em: Disponível em: http://www.cfess.org.br/visualizar/noticia/cod/1825 . Acesso em: 1o ago. 2021.
http://www.cfess.org.br/visualizar/notic...
, n. p.).

Como se pode depreender, um conjunto de informações derivadas da avaliação social, relativas aos parâmetros de deficiência definidos pela Classificação Internacional Funcional, Incapacidade e Saúde (CIF), e da interpretação oferecida no parecer social não conseguirá ser decomposto em linguagem matemática, a qual é usada desde a programação dos antigos sistemas de informação até o desenvolvimento atual dos softwares, alguns com algoritmos projetados para a tomada de decisões não supervisionadas.

O cálculo de uma média de renda familiar per capita que subtraia a relevância das informações advindas da avaliação social parece ser um exemplar de automação nas políticas sociais públicas com forte risco para negar o acesso ao BPC, meio fundamental para a reprodução da vida de 4,7 milhões de brasileiros, prescindindo do saber-fazer das assistentes sociais no INSS. Embora o texto da lei tenha mantido os procedimentos da perícia médica e da avaliação social, o Instituto organiza o trabalho de modo que o requerente seja primeiro avaliado pela Perícia Médica Federal e só depois passe pelo Serviço Social, quando a integração de distintos sistemas, entre eles o do Cadastro Único da Assistência Social, integrado ao da Previdência desde 2017, faculta projetar uma pontuação e uma decisão para o pedido do usuário. A grande massa de dados já armazenada em diferentes sistemas de informação na esfera federal do Executivo possibilita que o trabalho dos designers projete uma média, por meio da estatística, para servir como parâmetro nacional da renda familiar per capita a ser atingida pelos requerentes do BPC. O desenvolvimento do sistema de informação para esse fim localizará os dados dos requerentes em diversos big data, os extrair, organizar e, por meio de modelos estatísticos, chegar a uma decisão sem supervisão humana que implicará o deferimento ou o indeferimento da solicitação. Completa-se um circuito de dataficação numa política social pública, primeiro aplicada aos mais pobres, mas possivelmente já experimentada em outras políticas sociais, cujo processo, efetivamente, foi acelerado com a pandemia da covid-19.

A questão não é propriamente a tecnologia, mas as capacidades de integração e de controle social que ela, sem dúvida, facilita porque foi desenhada para servir aos interesses da concorrência e às funções reguladoras do Estado capitalista (Bolaño, 2020BOLAÑO, César R. S. Plataformas digitais e as mudanças na mediação social sob o viés da Economia Política da Comunicação, Informação e Cultura. Revista EPTIC, v. 22, n. 1, jan./abr. 2020. Disponível em: Disponível em: https://seer.ufs.br/index.php/eptic/article/view/12986 . Acesso em: 13 abr. 2021.
https://seer.ufs.br/index.php/eptic/arti...
, p. 100).

Assim, a dataficação do BPC está acompanhada de uma decisão desenhada sem transparência sobre os critérios usados e sobre um processo de automação que infere um cálculo sem qualquer feedback aos seus usuários e aos trabalhadores, o que implica projetar o aumento do número dos indeferimentos e o declínio final do peso atribuído à avaliação social na análise do requerimento ao BPC. É importante ressaltar que o software para esse fim não terá condições de extrair dos big data existentes o complexo de dados coletados e interpretados durante a avaliação social, porém o objetivo traçado pelo INSS e pela DATAPREV pode ser diminuir o tempo de análise dos pedidos sem ampliar o número de analistas do Seguro Social do Instituto.

O que parte dos profissionais da Ciência da Computação qualificaria como um sistema de informação eficiente, ao usar um modelo estatístico para obter uma tomada de decisão célere e sob um nível de inferência objetiva sobre os dados disponíveis, tem sido denunciado pela capacidade de reproduzir as desigualdades sociais, através do que O’Neil (2020O’NEIL, Cathy. Algoritmos de destruição em massa: como o big data aumenta a desigualdade e ameaça a democracia. Santo André: Editora Rua do Sabão, 2020.) nomeia de Algoritmos de Destruição em Massa (ADM). A autora denuncia que os modelos estatísticos são uma “[...] caixa-preta, cujo conteúdo é segredo corporativo ferozmente protegido” (O’Neil, 2020O’NEIL, Cathy. Algoritmos de destruição em massa: como o big data aumenta a desigualdade e ameaça a democracia. Santo André: Editora Rua do Sabão, 2020., p. 15), e acrescenta:

Eles tendem a punir os pobres. Isto porque, em parte, são projetadas para avaliar grande número de pessoas. São especializadas em volumes massivos e baratos. É parte do seu atrativo. Os ricos, ao contrário, muitas vezes se beneficiam de contribuição pessoal [...], as massas pelas máquinas (O’Neil, 2020O’NEIL, Cathy. Algoritmos de destruição em massa: como o big data aumenta a desigualdade e ameaça a democracia. Santo André: Editora Rua do Sabão, 2020., p. 15).

Novamente as máquinas-ferramentas, agora, também operando no nível virtual, alteram o processo de trabalho e, portanto, incidem sobre a divisão social e técnica do trabalho. No caso do BPC, a combinação entre a expertise dos técnicos da DATAPREV, o temor de fraude (Stopa, 2017STOPA, Roberta. O direito constitucional ao Benefício de Prestação Continuada da assistência social (BPC): o penoso caminho para o acesso. 2017. Tese (Doutorado) - Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2017.) e o acúmulo de dados coletados e processados das famílias pobres brasileiras desde a implantação do Cadastro Único da Assistência Social (CadÚnico), em 2001, impõe ao Serviço Social o alargamento da apreensão de quem compõe o trabalho coletivo nos espaços sócio-ocupacionais. No caso do requerimento do BPC, em face da avaliação biopsicossocial, a percepção mais imediata da categoria se inclina sobre o trabalho profissional do médico perito. Porém, há outros técnicos com poder monumental nesse trabalho coletivo e que, provavelmente, ignoram os riscos de tomar a avaliação social como cálculo de uma média de renda familiar per capita.

Resta acrescentar que os designers dos sistemas de informação já participavam do cotidiano do trabalho profissional em diversos espaços sócio-ocupacionais - empresa, sociojurídico, Previdência Social, educação, saúde, assistência social etc. - antes da pandemia, por vezes, situados em salas identificadas como “Tecnologias de Informação (TI)”, mas pouco são reconhecidos no trabalho coletivo como especialização na divisão social e técnica do trabalho, cujo conhecimento se torna urgente para intervir nos processos de automação das políticas sociais públicas. Como trabalhadores assalariados desenvolvem respostas com base nas requisições que lhes são apresentadas por seus empregadores, eles participam das contradições postas em movimento pelas lutas sociais e também precisam prestar contas dos produtos que desenvolvem.

Igualmente importante, sistemas estatísticos demandam retorno, ou feedback - algo que os diga quando saíram dos trilhos. Estatísticos usam erros para treinar seus modelos e fazê-los mais inteligentes. Se a Amazon.com, por meio de uma correlação defeituosa, começasse a recomendar livros de jardinagem a adolescentes, os cliques desabariam, e o algoritmo seria ajustado até passar a acertar. Sem feedback, no entanto, um mecanismo estatístico pode continuar fazendo análises ruins e danosas sem nunca aprender com seus erros (O’Neil, 2020O’NEIL, Cathy. Algoritmos de destruição em massa: como o big data aumenta a desigualdade e ameaça a democracia. Santo André: Editora Rua do Sabão, 2020., p. 13).

Outro ponto relevante é que o desenvolvimento da inteligência artificial para a automação de certas práticas sociais é tema polêmico e em franco debate, na medida em que a ética vem sendo acionada para discutir os riscos e os danos que essas tecnologias algorítmicas, como o reconhecimento facial, facultam para a reprodução das desigualdades raciais e de gênero (Buolamwini, 2017BUOLAMWINI, Joy Adowaa. Gender shades: intersectional phenotypic and demographic evatuation of face datasets and gender classifiers. 2017. Dissertação (Mestrado) - Program in Media Arts and Sciences, School of Architecture and Planning, Massachusetts Institute of Technology, Cambridge, 2017. Disponível em: Disponível em: https://www.media.mit.edu/publications/full-gender-shades-thesis-17/ . Acesso em: 1o abr. 2021.
https://www.media.mit.edu/publications/f...
).

Portanto, embora as tendências das políticas sociais públicas sob a ofensiva neoliberal sejam enfrentadas apenas no nível cotidiano do trabalho profissional, a presença do conhecimento da Ciência da Computação e de seus profissionais no trabalho coletivo das políticas sociais públicas merece ser incluída na agenda dos debates da profissão, seja na formação, seja no trabalho profissional, facilitando a edificação de discussões interdisciplinares e projetos de trabalho integrados com esses profissionais. Seguramente, essa relação interprofissional apresenta importantes barreiras éticas e comunicacionais, a começar pelas diferentes racionalidades que, de um lado, orientam o projeto ético-político do Serviço Social e, de outro, os interesses das forças do mercado subjacentes ao desenvolvimento dos sistemas de informação. A aproximação pode facultar a abertura para esferas de competências profissionais em que o conhecimento das expressões da questão social seja compartilhado com outras profissões e seja avaliado em que medida as novas tecnologias digitais devem ser limitadas e utilizadas nas políticas sociais públicas.

Considerações finais

Do mirante do trabalho profissional de assistentes sociais, o artigo examinou as mudanças recentes no uso das TIC nas políticas sociais, tal como ocorrido no acesso de pessoas idosas e incapacitadas ao trabalho com renda familiar mensal per capita inferior a ¼ do salário mínimo ao Benefício de Prestação Continuada. Buscou-se apreender indícios de dataficação na política social pública e as questões que se colocam na trajetória do acesso dos usuários e no trabalho profissional, a partir da pandemia da covid-19.

O curso de extensão “Trabalho contemporâneo e as tecnologias de informação e de comunicação: efeitos e desafios ao trabalho profissional das assistentes sociais”, ministrado em agosto de 2021, facultou precisar questões que se colocam na trajetória do acesso dos usuários e no trabalho profissional, os quais passam a ocorrer sobre o solo da dataficação expandida da produção de mercadorias às políticas sociais públicas. A coleta de dados implementada pelas grandes empresas de tecnologias a cada navegação realizada na internet cria uma mercantilização dos próprios bancos de dados como ativos na economia. As tecnologias usadas nesse modelo de negócio, com o desenvolvimento de algoritmos que facultam decisões sem supervisão humana, requerem a pesquisa no Serviço Social. Trata-se de um tipo de máquina-ferramenta que integra todo o processo produtivo, como nunca vivido na história, abrindo um novo capítulo na subsunção do trabalho ao capital.

O Serviço Social acumula uma massa crítica para investigar esse fenômeno, embora poucos estudos científicos sobre o uso das tecnologias digitais tenham sido encontrados na área. Conquanto, nas fontes pesquisadas, já compareceu no documento das Diretrizes Curriculares da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (ABEPSS) uma fonte bibliográfica3 3 Nas referências incluídas nas Diretrizes Curriculares da ABEPSS, chama a atenção a de FERRETTI, Celso João et al. Novas tecnologias, trabalho e educação: um debate multidisciplinar. 16. ed. Petrópolis: Vozes, 2013. que reconhecia a expectativa sobre a política da Educação em face do processo de modernização produtiva que se anunciava com suas inovações tecnológicas na estrutura produtiva. Do que tratamos neste artigo é que parte dessas tecnologias foi deslocada para a esfera da reprodução social e para a gestão das expressões da questão social, também intensificada durante a pandemia no trabalho profissional de assistentes sociais, indicando a profundidade das mudanças em curso com a dataficação de políticas sociais públicas, como o BPC. O desenvolvimento de algoritmos está sob amplo debate ético, legislativo e acadêmico no Brasil e no mundo, sendo uma urgência reconhecida com a pandemia, o que propicia ao Serviço Social incidir sobre essa discussão. Que efeitos o uso da inteligência artificial produz para o acesso aos bens e aos serviços e para o trabalho profissional no solo de dataficação expandida para as políticas sociais públicas?

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  • *
    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001”/”This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Finance Code 001.
  • 1
    Curso promovido no âmbito do PPGSS da UFAL, organizado pelo grupo de pesquisa Serviço Social, trabalho, profissão e políticas sociais, realizado por via remota no mês de agosto de 2021 e com participantes que qualificaram o debate, por estarem estudando e/ou acompanhando a temática do trabalho profissional: estudantes da iniciação científica e da pós-graduação da área do Serviço Social, docentes desses dois níveis da formação e assistentes sociais estratégicos advindos das Comissões de Orientação e Fiscalização (COFI), seja de dois Conselhos Regionais do Serviço Social, localizados em distintas regiões do país, seja da COFI do Conselho Federal do Serviço Social (CFESS).
  • 2
    Citação localizável no seguinte endereço eletrônico: https://centralit.com.br/veja-como-nao-confundir-automacao-e-automatizacao/. Acesso em: 19 dez. 2021.
  • 3
    Nas referências incluídas nas Diretrizes Curriculares da ABEPSS, chama a atenção a de FERRETTI, Celso João et al. Novas tecnologias, trabalho e educação: um debate multidisciplinar. 16. ed. Petrópolis: Vozes, 2013.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    May-Sep 2022

Histórico

  • Recebido
    20 Dez 2021
  • Aceito
    08 Fev 2022
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