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As marcas do racismo institucional na trajetória de trabalhadoras negras em uma universidade federal

Institutional racism marks in black female workers at a federal university trajectory

Resumo:

Este artigo objetiva analisar as manifestações do racismo institucional no cotidiano de trabalho de servidoras públicas negras da carreira técnica em uma universidade federal brasileira. O pano de fundo da pesquisa foi a implementação da Lei n. 12.990/2014, que determinou as cotas para negros/as nos concursos públicos. Percebemos que as trabalhadoras negras são atravessadas de diversas formas pelo racismo institucional, sobretudo porque as suas presenças são invisibilizadas na universidade.

Palavras-chave:
Racismo institucional; Mulheres negras; Lei n. 12.990/2014; Cotas raciais

Abstract:

This article aims to analyze the manifestations of institutional racism in the daily work of black women civil servants in the technical career at a Brazilian federal university. The background of the research was the implementation of Law n. 12,990/2014, which determined racial quotas for black people in public tenders. We realize that black working women are crossed in different ways by institutional racism, especially because their presences are made invisible in the university.

Keywords:
Institutional racism; Black women; Law n. 12,990/2014; Racial quotas

Introdução

Este artigo tem como pano de fundo a Lei Federal n. 12.990, de 9 de junho de 2014, que dispõe sobre a reserva de vagas para pessoas negras em concursos para postos laborais na administração pública federal. A referida lei, logo em seu artigo 1o, determina a reserva, às pessoas autodeclaradas negras (pretas e pardas), de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos (Brasil, 2014BRASIL. Lei n. 12.990, de 9 de junho de 2014. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, n. 109, 10 jun. 2014.). O objetivo das cotas raciais, em linhas gerais, é permitir uma presença maior de pessoas negras em espaços de poder e de agência na vida social, de modo a termos elementos que possibilitem combates efetivos e sistemáticos ao racismo (Gomes; Silva; Brito, 2021GOMES, N. L.; SILVA, P. V. B.; BRITO, J. E. Ações afirmativas de promoção da igualdade racial na educação: lutas, conquistas e desafios. Educação & Sociedade, Campinas, v. 42, p. 1-14, 2021.).

A lei de cotas raciais em concursos, como política pública de ação afirmativa, é fruto de uma luta coletiva e histórica do Movimento Negro, que se tornou o maior responsável pela produção, coordenação e disseminação de saberes contra-hegemônicos e emancipatórios. Essa dinâmica faz com que o Movimento Negro assuma o papel de educador na sociedade brasileira, criando práticas, estratégias e sociabilidades que permitam o enfrentamento ao racismo, que subalterniza e invisibiliza - inclusive na dimensão do trabalho e do serviço público - os corpos e as subjetividades negras (Gomes, 2017GOMES, N. L. O movimento negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis: Vozes, 2017.).

O racismo, em linhas gerais, é um dos pilares que sustentam a sociedade capitalista. Isso faz com que sua lógica, dentro da relação entre capital e trabalho, seja tomada como algo normalizado, resultando na naturalização das práticas racistas (Souza, 2022SOUZA, M. L. Capitalismo e racismo: uma relação essencial para se entender o predomínio do racismo na sociedade brasileira. Katálysis, Florianópolis, v. 25, n. 2, p. 202-211, 2022.). Partindo dessa premissa, o racismo, como uma das manifestações do colonialismo, legitimou o processo de conquista dos países capitalistas centrais, por meio da extração das riquezas locais, da exploração, da escravização da força de trabalho e da expropriação de terras das colônias que, após os processos tardios de independência, tornaram-se, em sua imensa maioria, países capitalistas periféricos (Fanon, 2008FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.; Kilomba, 2019KILOMBA, G. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.).

Silvio Almeida (2019ALMEIDA, S. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.) propõe que o racismo apresenta: (i) uma dimensão estrutural, calcada nos processos políticos, econômicos e ideológicos que resultam na subalternização da população negra; e (ii) uma dimensão institucional, que se desdobra no âmbito de alguma organização específica, revelando processos de tratamento diferenciado e violências aos corpos negros que tentam acessar esses espaços. Em suma, o racismo institucional (re)produz, em contextos específicos, um quadro que faz com que os corpos negros sejam persistentemente colocados em posições de inferioridade em relação à supremacia branca, que historicamente monopolizou os espaços de poder e de agência na sociedade brasileira (Eurico; Gonçalves; Fornazier, 2021EURICO, M.; GONÇALVES, R.; FORNAZIER, T. Racismo e novo pacto da branquitude em tempos de pandemia: desafios para o Serviço Social. Serviço Social & Sociedade, São Paulo: Cortez, n. 140, p. 84-100, 2021.).

Neste ínterim, o presente estudo busca refletir sobre a manifestação do racismo institucional a partir de relatos sobre o cotidiano de trabalhadoras negras que ocupam cargos efetivos da carreira de técnico administrativo em Educação (TAE) de uma universidade pública federal do sudeste brasileiro.

A ênfase na categoria das trabalhadoras TAE decorre da escassez de estudos que evidenciem a realidade desse grupo, uma vez que a maioria das pesquisas que investigam a dinâmica das políticas de ações afirmativas focaliza as atenções nos corpos discente e docente das universidades, contemplando muito pouco dos atravessamentos e das questões que se impõem sobre o conjunto de servidores/as TAE - em especial, quando também considerado o recorte de gênero, no caso das trabalhadoras negras (Gonzaga, 2022GONZAGA, Y. M. A invisibilidade ativamente produzida dos Técnicos Administrativos Negr@s nas universidades - Live, Canal Paralelo 30, YouTube. 2022. Disponível em: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Zn8jXv-FxYU . Acesso em 12 mar. 2022.
https://www.youtube.com/watch?v=Zn8jXv-F...
).

Como as servidoras públicas negras - nomeadamente, as mulheres negras - são tratadas no escopo das relações sociais e de trabalho empreendidas na universidade? Quais os atravessamentos do racismo institucional na trajetória de trabalho dessas servidoras públicas negras que labutam na carreira de TAE de uma universidade federal? Enfim, ao longo deste artigo, pretendemos trazer à baila uma série de elementos que, de alguma forma, nos auxiliem a problematizar essas questões.

1. Aspectos metodológicos da pesquisa

A presente pesquisa, de abordagem qualitativa e exploratória, estruturou-se a partir de interações e diálogos com oito mulheres negras, atualmente trabalhadoras da carreira TAE de uma universidade federal do sudeste brasileiro.

Em suma, as mulheres com as quais interagimos na pesquisa foram provenientes de dois grupos: (i) as trabalhadoras que, à época do concurso público, inscreveram-se para concorrer às vagas destinadas às pessoas negras, ao abrigo do direito preconizado na Lei n. 12.990/2014; e (ii) as trabalhadoras que não se inscreveram no certame para concorrer às vagas reservadas, seja por opção, seja pela inexistência da Lei n. 12.990/2014 no período em que prestaram o concurso público. A opção por dialogarmos com esses dois grupos (trabalhadoras cotistas e não cotistas) decorreu do desejo de problematizarmos os efeitos do racismo institucional nas várias situações e as condições laborais que se impõem no contexto do serviço público.

Seguindo as normas éticas destinadas à pesquisa científica, todas as entrevistadas assinaram um termo de consentimento que prevê a confidencialidade das informações que possam identificá-las. Além disso, tomamos o cuidado de não identificar a universidade em que essas mulheres trabalham. Dessa forma, serão mantidas sob sigilo determinadas informações, como nome, profissão, setor em que estão lotadas, bem como outros dados que possam viabilizar a identificação das nossas interlocutoras. Adotaremos, portanto, codinomes fictícios para nos referirmos às trabalhadoras que aceitaram contribuir com a pesquisa.

Vale frisar que a opção por não identificarmos a universidade em que as nossas interlocutoras trabalham decorreu do desejo de preservar o máximo possível a identidade delas. Como partimos da perspectiva de que o racismo é um sistema de opressão com contornos estruturais, entendemos que as violências decorrentes do racismo vão se desdobrar nos variados contextos organizacionais - logo, a identificação da universidade não traria questões novas nem potentes para as reflexões propostas neste estudo.

Depois de um primeiro momento de interação individual com as nossas interlocutoras, solicitamos a permissão delas para que o diálogo fosse gravado, de modo a possibilitar o adequado registro das informações e as falas das nossas entrevistadas. Em síntese, os diálogos foram livres, de maneira que a nossa preocupação foi compreender, à ótica das nossas interlocutoras, como é o cotidiano de trabalho delas e de que forma o racismo institucional se desdobra em suas rotinas de trabalho no serviço público.

De posse das gravações dos diálogos, adotamos o expediente de transcrever, de forma literal, as entrevistas. Ao longo das análises e das sistematizações das informações deste estudo, primamos pelo pleno e irrestrito respeito ao lugar de enunciação das nossas interlocutoras. As entrevistas ocorreram ao longo do segundo semestre de 2021, todas de maneira remota, por intermédio da plataforma Google Meet. Essas interações remotas, vale dizer, foram decorrentes do próprio contexto da pandemia de covid-19 que, na circunstância em que a pesquisa foi feita, impediu a ocorrência de contatos mais próximos e presenciais.

As nossas interlocutoras, em linhas gerais, são ocupantes das três classes que compõem a carreira de técnico administrativo em Educação (TAE): classe C, cuja exigência mínima é o ensino fundamental completo; classe D, em que é exigido, no mínimo, ensino médio completo; além da classe E, em que a exigência mínima é o ensino superior completo.

Muito embora o Quadro 1 não aponte o pertencimento racial das nossas interlocutoras, vale frisar que todas se reconhecem como negras. Ao longo dos diálogos que foram estabelecidos durante as entrevistas, percebemos que as nossas interlocutoras possuem letramento racial a ponto de identificar as consequências do racismo em suas trajetórias pessoais e profissionais.

Quadro 1.
Características das trabalhadoras TAE negras que participaram da pesquisa

As ferramentas teórico-conceituais e metodológicas utilizadas neste estudo foram a escrevivência e a interseccionalidade, desenvolvidas pela intelectualidade de mulheres negras, como Conceição Evaristo (2020EVARISTO, C. Escrevivências e seus subtextos. In: DUARTE, C. L.; NUNES, I. R.(org.). Escrevivência, a escrita de nós: reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo. Rio de Janeiro: Mina Comunicação e Arte, 2020. p. 26-46.), Patrícia Hill Collins (2017COLLINS, P. H. Se perdeu na tradução? Feminismo negro, interseccionalidade e política emancipatória. Revista Parágrafo, São Paulo, v. 5, n. 1, p. 6-17, 2017.) e Carla Akotirene (2019AKOTIRENE, C. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen, 2019.). Essas ferramentas são de fundamental importância, pois apresentam à sociedade os conhecimentos e os saberes advindos da realidade que as epistemologias eurocêntricas ignoram.

Segundo a intelectual e escritora Conceição Evaristo (2020EVARISTO, C. Escrevivências e seus subtextos. In: DUARTE, C. L.; NUNES, I. R.(org.). Escrevivência, a escrita de nós: reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo. Rio de Janeiro: Mina Comunicação e Arte, 2020. p. 26-46.), a escrevivência é uma ferramenta em que o ato de escrita das mulheres negras tem como objetivo o desvencilhamento da imagem herdada do processo de escravização e reproduzida pelo racismo e sexismo, na qual nós, mulheres negras, somos associadas ao exótico e à ingenuidade. Nesta ordem de ideias, a escrevivência busca a apresentação de experiências e vivências de mulheres negras diversas, de origem africana ou afrodiaspórica, que buscam afirmação de suas origens usando a escrita como um ato de insubordinação. Portanto, a “escrevivência, antes de qualquer domínio, é interrogação. É uma busca por se inserir no mundo com as nossas histórias, com as nossas vidas, que o mundo desconsidera” (Evaristo, 2020EVARISTO, C. Escrevivências e seus subtextos. In: DUARTE, C. L.; NUNES, I. R.(org.). Escrevivência, a escrita de nós: reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo. Rio de Janeiro: Mina Comunicação e Arte, 2020. p. 26-46., p. 35).

Já a interseccionalidade consiste em um instrumento teórico-metodológico, desenvolvido por mulheres negras, que percebe a indivisibilidade dos marcadores sociais da diferença - como raça, gênero e classe social -, uma vez que se percebe “a inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo e cisheteropartriarcado” (Akotirene, 2019AKOTIRENE, C. Interseccionalidade. São Paulo: Pólen, 2019., p. 19). Esta noção, assim como a de escrevivência, busca conectar saberes produzidos fora e dentro da academia (Collins, 2017COLLINS, P. H. Se perdeu na tradução? Feminismo negro, interseccionalidade e política emancipatória. Revista Parágrafo, São Paulo, v. 5, n. 1, p. 6-17, 2017.).

A raça, por seu turno, será abordada como categoria social que ampara e valida a dominação de um grupo sobre o outro. Fundamentada pelo pensamento colonialista e imperialista, esta categoria, associada a outros marcadores sociais (como gênero e classe), tem sido usada para ratificar o sistema de poder socioeconômico, a dominação e o extermínio de grupos taxados como inferiores (Munanga, 2004MUNANGA, K. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. In: PROGRAMA de educação sobre o negro na sociedade brasileira. Niterói: EDUFF, 2004.; Hall, 2006HALL, S. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: EDUFMG, 2006.).

É importante destacar ainda que o gênero será entendido, neste trabalho, como uma categoria analítica construída no âmbito histórico, social e político que resulta numa relação dicotômica - entre homem e mulher - para atribuir a lógica construída socialmente de feminino e masculino (Brasil, 2010BRASIL. Mais mulheres no poder - Contribuição à formação política das mulheres. Brasília: Presidência da República, Secretaria da Política para as Mulheres, 2010.). Diante disso, nos discursos ocidentais, o gênero é usado para a construção de hierarquias sociais, nas quais determinadas características do corpo, comportamentais e culturais, determinam privilégios e desvantagens sociais (Oyěwùmí, 2021OYĚWÙMÍ, O. A intervenção das mulheres: construindo um sentido africano para discursos ocidentais de gênero. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.).

Vale dizer, ademais, que a classe social se constrói a partir das relações sociais que são estabelecidas nas condições de (re)produção do capitalismo, fruto da divisão social do trabalho, como consequência da subdivisão da sociedade em dois segmentos: a burguesia e o proletariado (classe trabalhadora). Com efeito, esses grupos possuem interesses antagônicos, distintos e inconciliáveis no processo de (re)produção do capitalismo (Iamamoto; Carvalho, 2011IAMAMOTO, M.; CARVALHO, R. Relações sociais e Serviço Social no Brasil: esboço de uma interpretação histórico-metodológica. São Paulo: Cortez, 2011.).

A presente pesquisa visa também fornecer elementos que contribuam para uma epistemologia contra-hegemônica. Portanto, apresenta como foco a contraposição da “[...] lógica do racismo estrutural e institucional, engendrado nos processos sociais da sociedade brasileira [que] ainda coloca o sujeito negro como um corpo estranho à academia” (Caroline, 2019CAROLINE, J. Epistemologia dos processos sociais nos estudos da negritude. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIA DA COMUNICAÇÃO, 42., 2019, Belém. Anais [...]. Belém: Intercom, 2019., p. 10).

É importante demarcar ainda, por fim, que todo o processo de escrita e reflexões deste artigo também parte de escrevivências e atravessamentos da autora principal deste artigo, também uma mulher negra, servidora pública federal, que acessou o espaço do serviço público por intermédio do direito às cotas raciais.

2. Os atravessamentos do racismo institucional no cotidiano de trabalho das TAEs negras

O racismo institucional decorre da atuação das instituições que reproduzem, mesmo que indiretamente, as desvantagens e os privilégios a partir do marcador racial. Essa reprodução acontece de forma diversificada e aparece rearticulada e camuflada com a desigualdade e as relações de poder presentes nas instituições. Isso restringe oportunidades e inviabiliza a livre circulação da população negra em várias funções na instituição, seja ela pública, seja privada. Assim, o racismo institucional se manifesta em instituições de comunicação culturais, educacionais, religiosas, sociais, entre tantas outras presentes na sociedade (Almeida, 2019ALMEIDA, S. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.; Kilomba, 2019KILOMBA, G. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.).

Gonzaga (2011GONZAGA, Y. M. Trabalhadores e trabalhadoras técnico-administrativos em Educação na UFMG: relações raciais e a invisibilidade ativamente reproduzida. 2011. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2011.) e Silva (2017SILVA, M. A. B. Racismo institucional: pontos para reflexão. Laplage em Revista, v. 3, n. 1, p. 127-136, 2017.) apontam que o racismo institucional vem sendo cada vez mais abordado e aprofundado pela academia e pela sociedade, por influência significativa do Movimento Negro e do Movimento de Mulheres Negras que, por meio de pressão e investigações minuciosas, expõem ao cenário político e acadêmico as manifestações e as consequências do racismo institucional na vida da população negra, em especial das mulheres negras, pobres e periféricas.

O racismo institucional é um dos modos de operacionalização do racismo patriarcal heteronormativo - é o modo organizacional - para atingir coletividades a partir da priorização ativa dos interesses dos mais claros, patrocinando também a negligência e a deslegitimação das necessidades dos mais escuros. E mais, [...], restringindo especialmente e de forma ativa as opções e oportunidades das mulheres negras no exercício de seus direitos. Dizendo de outro modo, o racismo institucional é um modo de subordinar o direito e a democracia às necessidades do racismo, fazendo com que os primeiros [negras/os] inexistam ou existam de forma precária, diante de barreiras interpostas na vivência dos grupos e indivíduos aprisionados pelos esquemas de subordinação deste último [racismo] (Werneck, 2013WERNECK, J. Racismo institucional: uma abordagem conceitual. São Paulo: Instituto da Mulher Negra; Centro Feminista de Estudos e Assessoria, 2013., p. 17-18).

Neste prisma, é importante destacar que o racismo institucional acontece em organizações privadas e públicas, tem uma natureza coletiva e é parte integrante das relações desiguais estabelecidas nos âmbitos institucional e estrutural. Ele atua como “o principal responsável pela reprodução ampliada da desigualdade no Brasil” (Theodoro, 2013THEODORO, M. As relações raciais, o racismo e as políticas públicas. In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM CIÊNCIAS SOCIAIS, 37., 2013, São Paulo. Anais [...]. São Paulo: Anpoc, 2013., p. 5).

Para dialogar com os debates expostos nos parágrafos anteriores, apresentaremos, a partir daqui, as narrativas de episódios de discriminação e preconceito que expressam o racismo institucional materializado nas práticas de chefias, por colegas de trabalho (concursados e terceirizados), bem como pelo público atendido pelas trabalhadoras com as quais estabelecemos interações no âmbito da nossa pesquisa. É importante destacar que o racismo institucional afeta tanto trabalhadoras que ingressaram no serviço público por meio das cotas raciais (ao abrigo, portanto, da Lei n. 12.990/2014) quanto as que entraram na autarquia pública sem fazer jus ao direito às cotas raciais.

[...] em reuniões, eu percebo isso até hoje, que é muito comum em qualquer reunião, quando a gente é representante de alguma coisa [...]. Quando está na mesa com muitos professores, a gente vai falar, eu acho que... eles ficam assim [expressão de pensamento, distração e mão no queixo] hurum, hurum... Aí a gente termina de falar eles fazem assim: “Então, mas como é que a gente estava falando...” [virando para o lado] [risos]..., ignoram totalmente o que você falou. Eles até dão espaço para você falar, mas é como se eles estivessem olhando para você... [mão na cabeça, expressão de pensamento] “Nossa, quando chegar em casa, tenho que...”. Aí você termina de falar, eles voltam para falar o que eles estavam falando antes... Como se, enfim... Isso eu percebo muito até hoje. Eu acho que é uma desconfiança no sentido intelectual assim, eu desacredito tanto na sua capacidade que eu não vou nem render o que você está falando, não vou nem render o seu assunto. [...]

Pesquisadora: Essa desconfiança intelectual, que você mencionou, você acha que é atribuída ao quê?

Eu acredito que seja muito uma desconfiança ligada ao racismo mesmo. Neste imaginário onde a gente está para servir, prestar serviços braçais, e não sei o quê, é servir cafezinho, é só fazer isso [...]. Eu tenho a sensação de que a gente precisa estar se provando muito, para conseguir autonomia, muito básica [...] (Entrevista com Tereza, 2021).

Outra forma de manifestação do racismo institucional é por meio de estranhamento, desconfiança e invisibilidade direcionada ao corpo negro, conforme pode ser percebido nos relados que seguem, provenientes da interação com Regina:

Eu não sei se você sente estranhamento, mas nos cargos, assim, de maior, os cargos mais elevados, nem sempre eles ficam muito confortáveis. Não é verbalizado, mas em termos, assim de [...] de comportamento. Eu pelo menos já percebi, já percebi várias vezes, você se acostuma, mas dá para perceber, não exatamente um... eu não sei se a presença do negro mostra, tipo assim, poxa, eu estou no mesmo espaço que um negro? [risos] Entendeu? Vamos supor, alguém está fora, está fora do lugar, né? Preferia que ele não estivesse aqui, pelo menos é o que eu percebo. Não verbalizado, mas em termos comportamentais, entendeu? (Entrevista com Regina, 2021).

A entrevistada Aurora relatou que, no ambiente de trabalho, já ouviu comentários racistas por parte de colegas que associavam os traços negroides à feiura e, quando a entrevistada indagou sobre o teor racista do comentário, recebeu o contra-argumento de que se tratava apenas de uma “escolha pessoal”.

Eu já ouvi uma vez comentários de colegas, assim, falando não só de mim, mas falando do nariz, sabe? Dos traços da gente, com um tom pejorativo, falando do cabelo, do jeito do cabelo, de usar o cabelo crespo. Já ouvi falar também, por exemplo, até mesmo de beleza, assim, considerando que [...] uma vez eu ouvi um comentário que eu fiquei superincomodada! Estavam mencionando uma artista de televisão aí, não lembro quem era agora, mas era uma mulher branca, e aí eles estavam comentando que ela era uma pessoa superdesejável e tudo, por conta da pele dela e tal. “Porque quem não vai querer, né, uma mulher branquinha como essa?” Aí eu fui e falei: “Gente, esse é um comentário meio racista, não?”. Aí vieram e falaram assim: “Não, é preferência [...]”. E aí eles falaram: “Não, porque a mulher branca é uma mulher desejável, mesmo, né?” Como se a outra cor não pudesse ser, eles deixaram bem claro como isso é assim... (Entrevista com Aurora, 2021).

O racismo institucional tende a ser evidenciado de forma mais enfática em instituições cuja gestão é pautada em posturas hierarquizantes e até autoritárias que apresentam a meritocracia como essência do projeto institucional. Nesta ordem de ideias, é importante dizer que o racismo institucional também se encontra presente em políticas públicas liberais, pois direta e indiretamente gera padrões excludentes e discriminatórios, além de iniquidades entre grupos sociais, segundo o critério de raça associado a outros marcadores sociais da diferença, como o gênero e a classe (Fonseca, 2015FONSECA, I. F. Inclusão política e racismo institucional: reflexões sobre o Programa de Combate ao Racismo Institucional e o Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial. Planejamento e Políticas Públicas, Brasília, n. 45, p. 329-345, 2015.; Silva, 2017SILVA, M. A. B. Racismo institucional: pontos para reflexão. Laplage em Revista, v. 3, n. 1, p. 127-136, 2017.).

Fato é que o racismo institucional dispõe de um mecanismo velado de flexibilidade, geralmente disfarçado pela ideia de meritocracia e “inserção”, que estabelecem e ao mesmo tempo camuflam barreiras amplas, invisíveis e singulares de teor discriminatório por meio de mecanismos de controle, omissão e subordinação, os quais favorecem a seleção, a exclusão profunda e até o extermínio da população negra que compõe os grupos historicamente oprimidos, de forma a manter o privilégio e o status quo da branquitude e do grupo hegemônico (Werneck, 2013WERNECK, J. Racismo institucional: uma abordagem conceitual. São Paulo: Instituto da Mulher Negra; Centro Feminista de Estudos e Assessoria, 2013.; Silva, 2021SILVA, L. G. Trabalhadoras negras da Universidade Federal de Minas Gerais: o que muda a partir da implementação da Lei 12.990/2014? 2021. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2021.).

[...] se a gente for pensar, a maior parte dos cargos da instituição são ocupados por pessoas brancas, isso não é só coincidência. As pessoas lá todas têm as mesmas capacidades, ou capacidades muito boas, cada um na sua área, mas a maior parte dos cargos sempre foi ocupada por pessoas brancas. A maior parte por homens brancos. E eu não acho que isso seja coincidência, eu acho que todos os cargos, sim, são preferencialmente disputados dentro daquele conclave, daquele acordo, também presente no subconsciente, de homens brancos e de vez em quando abre para uma mulher branca, ocuparem cargos importantes, enfim [...]. Sempre que depende de uma política eu acho que a coisa vai se reverter muito mais para a branquitude, mesmo. A gente geralmente consegue quando depende de um pouco mais de uma oportunidade/competência. Tipo passar num concurso, passar num mestrado, entrar na graduação. Quando a gente tem uma concorrência mais distante, menos política, a gente tem mais chance do que quando tem uma concorrência mais política (Entrevista com Tereza, 2021).

Em relação à hierarquia institucional, pode-se perceber o racismo institucional na baixa proporção de pessoas negras ou, até mesmo, na ausência de pessoas negras, sobretudo mulheres negras, em postos de destaque e liderança da hierarquia organizacional. Fato é que se sentir a única negra, ou o único negro, no ambiente organizacional dificulta o sentimento de pertencimento racial, já que “é importante reconhecer-se nos iguais [...] e que eles estejam representados nos mais diversos ambientes” (Silva, 2021SILVA, L. G. Trabalhadoras negras da Universidade Federal de Minas Gerais: o que muda a partir da implementação da Lei 12.990/2014? 2021. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2021., p. 121).

Além disso, um número restrito de pessoas negras e de indivíduos comprometidos com pautas antirracistas, em especial nos espaços de decisão e agência no contexto organizacional, não é suficiente para as grandes deliberações que interferem nos cotidianos dos grupos invisibilizados, conforme é observado no seguinte relato:

Ser uma, ser duas ou ser três é muito pouco pensando numa estrutura tão grande, e isso tem impactos reais, assim, nas decisões que não dizem respeito só a programas e atividades próprias de ações afirmativas, [nestes espaços] está se discutindo tudo (entrevista com Ruth, 2021).

Outro ponto que precisa ser destacado é que o racismo institucional tem-se manifestado de novas formas, na medida em que há avanços na luta antirracista e em prol da igualdade racial. Por meio da busca pelo reconhecimento da instituição como não racista - para se ter boa imagem diante da sociedade - e por intermédio da ideia de inserção de pessoas negras no ambiente institucional - como trabalhadoras/es, clientes, estudantes e/ou colaboradoras/es -, há a difusão de pensamentos e discursos de que o racismo foi superado ou de que existe uma efetiva política de inclusão, pois houve a “incorporação” dos grupos historicamente oprimidos, como discurso e prática política (Fonseca, 2015FONSECA, I. F. Inclusão política e racismo institucional: reflexões sobre o Programa de Combate ao Racismo Institucional e o Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial. Planejamento e Políticas Públicas, Brasília, n. 45, p. 329-345, 2015.; Araújo, 2019ARAÚJO, D. P. “Inclusão com mérito” e as acetas do racismo institucional nas universidades estaduais de São Paulo. Direito Práxis, Rio de Janeiro, v. 10, n. 3, p. 2182-2213, 2019.).

O supracitado expediente revela a face da “inclusão forçada”, ou melhor, da inserção de pessoas negras no contexto organizacional como mera estratégia de marketing (Fontes, 2003FONTES, V. Capitalismo, exclusão e inclusão forçada. Revista Electrónica de Estudios Latinoamericanos, v. 1, n. 3, p. 40-57, 2003.). Isso porque quando se observam as relações sociais estabelecidas no contexto institucional, fica patente a desigualdade de acesso, bem como a omissão e a falha para tratar das especificidades baseadas nas categorias alusivas à dimensão racial. Além disso, quando se fala em inclusão, os discursos não fazem menção à mudança nas estruturas, muito menos se observa a erosão das bases institucionais “que mantêm essa maquinaria de moer corpos negros” (Araújo, 2019ARAÚJO, D. P. “Inclusão com mérito” e as acetas do racismo institucional nas universidades estaduais de São Paulo. Direito Práxis, Rio de Janeiro, v. 10, n. 3, p. 2182-2213, 2019., p. 2209).

Quando se deparam com situações de preconceito e discriminação, permeadas por certa ausência e silenciamento da instituição, as interlocutoras da pesquisa narram algumas estratégias que adotam para enfrentar ocorrências que as incomodam. Essas estratégias são tentativas de diálogo e criação de uma rede de apoio mútuo por iniciativa das próprias trabalhadoras, conforme se percebe nos relatos que seguem na sequência deste texto.

Eu estava na copa [...] e não tinha mais copeiro, aí tinham mais pessoas assim, aí as outras pessoas saíram, eu fiquei, aí chegou alguém e pediu para eu servir café na reunião [silêncio] nem perguntou, nem nada, sabe, alguém de fora [do setor onde trabalhava], mas de dentro da universidade [...], chegou e falou: “Aqui, nós temos uma reunião ali, você podia servir um café?”. Entendeu? Ou seja, eu estava sentada tomando meu café, a pessoa vem e me pede para servir o café dele. Será que se fosse outra pessoa, ele pediria? Fiquei com isso na cabeça, mas nesse [caso específico] eu tive a minha reação. Eu falei: “Olha, nós não temos copeiro. O café está aqui disponível se vocês tiverem vontade de tomar um cafezinho, podem vir tomar, fiquem à vontade”. E deixei sozinho. Esse eu já estava meio ciente, né. Já estava consciente do que era, aí eu consegui responder (entrevista com Neuza, 2021).

A fala de Neuza aponta a importância de se ter um letramento racial crítico como forma de fazer a leitura das relações sociais e de poder, em que a raça se torna uma categoria analítica, já que interfere nas experiências dos âmbitos sociais, políticos, econômicos e culturais. Em face do exposto, a raça é usada como base para questionar o status quo e para favorecer uma ação transformadora, por meio de autoafirmação de identidades, comportamentos e estilos que fogem ao padrão hegemônico (Pereira; Lacerda, 2019PEREIRA, A. L.; LACERDA, S. Letramento racial crítico: uma narrativa autobiográfica. Revista Travessias, v. 13, n. 3, p. 90-106, 2019.).

[...] quando eu entrei tive um embate, assim de uma meia hora, com a minha chefia, porque ela queria que eu providenciasse toda vez um cafezinho para a galera, quando tivesse reunião. Eu falei: “Não trabalho com fazer cafezinho, não faço nem na minha casa, vou fazer para você? Ou vou buscar para vocês, ou vou ficar providenciando café para vocês!” [...]. E aí ficou neste embate, muito tempo, e eu tive que dar “palestrinha”, falar: “Ah, as questões raciais, não sei o quê” [...] (entrevista com Tereza, 2021).

Em outro episódio, a mesma interlocutora relata que presenciou uma situação em que um professor foi racista com uma colega negra e, perante essa circunstância, ela interveio em favor da colega, buscando dar apoio a ela.

[...] Aí eles entraram num conflito muito grande, em algum momento, eu intervim, ele foi para fora, eu tranquei a porta porque essa pessoa [...] A gente é bem parecida, mas ela desabou a chorar, ela começou a chorar muito porque foi um conflito muito, muito racista (entrevista com Tereza, 2021).

Houve também relatos em que as interlocutoras afirmaram que não tiveram reação diante de uma situação de preconceito e discriminação e recorreram ao silenciamento. Um desses casos foi o de Neuza, que narrou um episódio em que foi ignorada por uma colega de outro setor enquanto aguardava atendimento para resolver questões relacionadas às atividades que desempenhava. Segundo Neuza, o tempo de espera para ser atendida foi de aproximadamente 30 minutos e não havia ninguém antes dela para ser atendida. Enquanto aguardava, Neuza observou que a servidora que deveria atendê-la estava conversando e ignorando totalmente sua presença. Essa postura permaneceu mesmo depois de a referida servidora ser alertada por outros colegas de que havia uma pessoa aguardando atendimento. Diante da situação, Neuza relata: “[...] fiquei meio sem ação, sentei lá, esperei e ignorei a pessoa também, né, esperei ela me atender e fui embora, não tive reação a essa última, não” (entrevista com Neuza, 2021).

Segundo Grada Kilomba (2019KILOMBA, G. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.), a experiência do racismo interseccionado com o gênero é traumática, pois coloca as mulheres negras em espaços vazios, marcados pelo apagamento e pela contradição, são microviolações que geram feridas e lesões. Existem vários tipos de resposta a essas feridas e o mais comum é o choque, ou seja, a paralisação, pois há a tentativa de “racionalizar” o que é “irracional” e difícil de ser questionado. Essa tentativa de explicação traz angústia, tristeza, raiva e incômodo, conforme aparece na seguinte narrativa:

Teve alguns que eu fiquei incomodada, até triste vamos dizer assim, né? Você se sente... Sei lá, fica um pouco, com raiva, assim, de ouvir uma coisa dessa, ter que lidar com uma coisa dessa, porque na minha cabeça não existe diferença nenhuma, sabe, assim, eu nunca fui criada assim, de achar que eu sou diferente de alguém, né? E lidar com isso, assim, só por conta do tom da pele, eu acho que é meio revoltante. Você ter que se reafirmar, porque a gente é igual, assim. Já falei uma vez, cheguei a falar no meu trabalho, mesmo. Gente, a gente tem que ter uma autoestima muito boa porque se depender do resto, você sempre vai estar se sentindo mal, né? Então assim, então você tem que ter uma autoestima muito boa, você saber quem você é, ter um autoconhecimento para que possa lidar com essas questões, né? Eu acho que eu fiquei assim, a primeira reação foi essa assim, de ouvir aquilo e ficar incomodada, entristecida, decepcionada de ter ouvido aquilo de passar por esta questão. E internamente eu não me considero diferente de ninguém, não me considero menor do que ninguém, é isso... (entrevista com Aurora, 2021).

Identificamos também narrativas que apresentam iniciativas do próprio grupo de servidoras TAE de criarem espaços de apoio entre as trabalhadoras, sejam elas negras ou não negras, numa perspectiva que esteja comprometida com uma universidade verdadeiramente inclusiva. Citamos, por exemplo, a criação de um núcleo de escuta, ou grupos de WhatsApp, conforme percebemos na fala de Ivone a seguir transcrita:

[...] teve uma pessoa lá dentro que teve uma iniciativa de também criar um tipo núcleo de escuta também, mas também não era um lugar para tratar, sei lá formalmente das questões, era só para você ter para onde levar, para te ajudar de alguma forma. E foi porque uma funcionária, ela é [nome da profissão da funcionária], mas o cargo dela não é esse, né? O cargo dela é de [nome do cargo], mas ela tem essa formação em [nome do curso em que a funcionária se graduou], então ela quis assim criar esse núcleo por conta própria, tentando, indo atrás da diretoria, do RH, da seção de pessoal, pra tentar fazer isso, aconteceu, mas partiu dela, né? [...] percebo que é uma coisa, uma demanda dela, assim, que ela é uma pessoa que tem esse tipo de preocupação, que está se formando e ela, né, percebe algumas coisas, mas também é um núcleo voltado para uma escuta de uma forma geral (entrevista com Ivone, 2021).

Uma das interlocutoras destacou que esse processo de reação às ações de teor preconceituoso e discriminatório tem acontecido em um movimento de dentro para fora, ou seja, as pessoas têm tomado consciência e têm se fortalecido, afirmando suas presenças e se movimentando para mudar as estruturas institucionais.

Acho que existe uma mobilização de pessoas negras, sobretudo em relação a discriminações, a preconceitos, a essa mobilização acho que acontece muito de dentro para fora, sabe? De dentro, as próprias pessoas se fortalecendo e dizendo das suas presenças, e reagindo a estas invisibilidades, então. Estamos aqui, somos corpos que se afirmam e por aí vai [sorriso]. E também é a partir disso que determinadas situações são também evidenciadas. Nestes espaços, nestes coletivos, em que são evidenciadas algumas situações mesmo, né, ocorrência de casos de racismo. Acho que acontece, mas ainda é de dentro para fora (entrevista com Ruth, 2021).

Sabemos que modificar essas estruturas que praticam e reproduzem ações excludentes e limitadoras, e que estão impregnadas nas práticas burocráticas institucionais, é uma tarefa árdua e difícil de ser executada, pois mexe diretamente com o privilégio de grupos historicamente hegemônicos. No entanto, essa é a única maneira de se efetivar ações que impulsionem mudanças que, verdadeiramente, incluam a população negra e os demais grupos historicamente oprimidos, e construam um caminho em favor de uma sociedade justa, igualitária e, de fato, democrática.

Se a proposta de inclusão estiver restrita somente ao discurso e não estiver acompanhada de ações concretas de combate ao racismo (incluindo a sua dimensão que se desdobra nos contextos institucionais), continuaremos a reproduzir opressões contra corpos e subjetividades negras. Portanto, ações e políticas pautadas e comprometidas com a ideia de inclusão perpassam o enfrentamento, na realidade concreta, das desigualdades (Theodoro, 2013THEODORO, M. As relações raciais, o racismo e as políticas públicas. In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM CIÊNCIAS SOCIAIS, 37., 2013, São Paulo. Anais [...]. São Paulo: Anpoc, 2013.; Silva, 2017SILVA, M. A. B. Racismo institucional: pontos para reflexão. Laplage em Revista, v. 3, n. 1, p. 127-136, 2017.).

Considerações finais

Em face do exposto, este estudo teve o objetivo de colocar a serviço da sociedade as experiências, os conhecimentos e os saberes advindos da realidade das trabalhadoras negras, ignorados pelas epistemologias de viés eurocêntrico. Com isso, podem-se perceber as manifestações do racismo institucional e seus efeitos, como barreiras que limitam e comprometem as condições de inclusão da população negra.

Esses efeitos são percebidos por meio de deslegitimação de falas e conhecimentos de trabalhadores negros, distanciamento dos espaços institucionais decisórios, restrita participação em cargos de chefia e assessoramento, estranhamento e invisibilidade em alguns espaços, principalmente em cargos de mais prestígio e status sociais, dentre outras formas de expressões que reafirmam a lógica racista que atravessa a realidade das organizações públicas no Brasil.

Nesse sentido, permanece, na universidade em que as entrevistadas atuam, a omissão para se abordar assuntos referentes à associação de marcadores sociais de raça, gênero e classe como uma política institucional, voltada a trabalhadores e trabalhadoras TAE e a outros grupos historicamente invisibilizados que prestam serviços à universidade.

Em que pese os anteriormente citados aspectos, vale destacar que a pesquisa aponta também a importância da lei de cotas como uma ação que compõe as políticas afirmativas no contexto da possibilidade de acesso aos cargos públicos. E isso indica a necessidade de extensão do prazo da vigência da lei de cotas. Isso porque durante estes quase 10 anos, observou-se a demanda de outras ações de teor afirmativo, paralelas à implementação e à execução da reserva de vagas per se. É preciso pensar também em ações que promovam oportunidades de reflexão e de formulação de propostas que reflitam em alterações nas relações raciais no âmbito da instituição. Somente a Lei n. 12.990/2014 não tem força suficiente para proceder às modificações no seio das relações institucionais e estruturais atravessadas pela lógica do racismo.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    19 Ago 2022
  • Aceito
    20 Set 2022
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