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Questão penitenciária, gênero e sexualidade: análise do tratamento penal gaúcho para pessoas LGBTI+

Prison matter, gender and sexuality: Rio Grande do Sul criminal treatment for LGBTI+ people analysis

Resumo:

O artigo, fruto de investigação qualitativa e descritiva, objetivou analisar como vem se constituindo no Rio Grande do Sul o tratamento penal de pessoas LGBTI+ privadas de liberdade. Para a coleta de dados, foi utilizado um roteiro junto às 125 casas prisionais do estado, tendo uma taxa de 48,8% de respostas que foram analisadas a partir da análise textual discursiva. Os resultados apontam para um tratamento penal violador de direitos e que responde de maneira incompleta às demandas dessa população.

Palavras-chave:
LGBTI+; Prisões; Tratamento penal; Gênero; Sexualidade

Abstract:

The article, the result of qualitative and descriptive research, aimed to analyze how the criminal treatment of LGBTI+ persons deprived of liberty has been constituted in Rio Grande do Sul. For data collection, a script was used with the 125 prisons in the state, with a response rate of 48.8% of responses that were based on discursive textual analysis. The results point to a criminal treatment that violates rights and responds to the demands of this population.

Keywords:
LGBTI+; Prisons; Criminal treatment; Gender; Sexuality

Introdução

O debate sobre gênero e sexualidade na intersecção com a questão penitenciária brasileira é ainda intranquilo e subalternizado no quadro da produção de conhecimentos em Ciências Sociais e é menos debatido ainda no interior do Serviço Social. Isso porque são bastante recentes as análises sociais a esse respeito no Brasil, não apenas de um ponto de vista científico, como também sociocultural: o primeiro livro de que se tem notícia é de 1995 - a autobiografia de Fernanda Farias de Albuquerque sobre o período em que ficou encarcerada na Itália, intitulada A princesa -, enquanto a primeira obra cinematográfica brasileira que tematiza essa questão, mesmo que indiretamente, provavelmente seja Carandiru, de 2003, inspirada no livro homônimo Estação Carandiru, de Drauzio Varella, publicado em 1999 (Albuquerque, 1995ALBUQUERQUE, Fernanda Farias de. A princesa: a história do travesti brasileiro na Europa escrita por um dos líderes da Brigada Vermelha. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.; Varella, 1999VARELLA, Drauzio. Estação Carandiru. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.). Assim, todo o debate público brasileiro a esse respeito não chega a ter 30 anos.

Essas questões parecem ter sido novamente aquecidas em 2009, com o surgimento de diferentes políticas públicas, documentos normativos e investigações científicas que vieram sendo produzidas sobre o tratamento penal da população de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, intersexos e demais identidades sexuais e de gênero dissidentes (LGBTI+). As primeiras alas específicas para essa população em penitenciárias masculinas são criadas na região metropolitana de Minas Gerais, em 2009, em São Joaquim de Bicas e Vespasiano. Depois, em 2011, é criada uma ala no Centro de Ressocialização de Cuiabá (e posteriormente também no interior do Mato Grosso, em Rondonópolis). O Rio Grande do Sul é o terceiro estado brasileiro a contar com esse espaço específico de alocação de pessoas LGBTI+ no sistema prisional masculino, com uma ala sendo criada em 2012 na Cadeia Pública de Porto Alegre; atualmente, o Departamento Penitenciário Nacional já registra a existência de mais de cem espaços específicos para o acolhimento dessa população (Brasil, 2020BRASIL, Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. LGBT nas prisões do Brasil: diagnóstico dos procedimentos institucionais e experiências de encarceramento. Brasília: Departamento de Promoção dos Direitos de LGBT da Presidência da República, 2020. Relatório governamental. Disponível em: Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/ministerio-de-damares-publica-relatorio-sobre-tratamento-da-populacao-lgbt-nas-prisoes/ . Acesso em: 26 abr. 2021.
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).

A primeira normativa legal data de 2014, quando é assinada a Resolução Conjunta n. 1 do Conselho Nacional de Combate à Discriminação (CNCD) e do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), estabelecendo recomendações de tratamento penal para pessoas LGBTI+. Alguns estados produzem suas próprias recomendações estaduais, como é o caso de São Paulo, do Rio de Janeiro, de Mato Grosso, de Minas Gerais e do Distrito Federal. Em 2017, o Departamento Penitenciário Nacional lança sua primeira nota técnica sobre o tema e realiza, em 2020, uma pesquisa quantitativa nacional em todas as casas prisionais sobre presos LGBTI+. Já o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos publica, em 2020, uma pesquisa nacional do tipo diagnóstico sobre LGBTI+ privados de liberdade no Brasil, enquanto o Conselho Nacional de Justiça lança, em 2020, a Resolução n. 348, que também estabelece diretrizes de tratamento penal a serem materializadas em qualquer etapa do processo penal.

No interior acadêmico, as primeiras escritas científicas são de 2013 e 2014, realizadas justamente por assistentes sociais e em nível de pós-graduação (Ferreira, 2014FERREIRA, Guilherme Gomes. Travestis e prisões: a experiência social e a materialidade do sexo e do gênero sob o lusco-fusco do cárcere. 2014. 144 f. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2014. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.pucrs.br/dspace/handle/10923/5660 . Acesso em: 18 abr. 2021.
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; Manfrin, 2013MANFRIN, Silvia Helena. Diversidade sexual no sistema prisional: um olhar sobre o preconceito e a discriminação em relação à diversidade sexual a partir da Penitenciária Wellington Rodrigo Segura de Presidente Prudente/SP. 2013. 166 f. Dissertação (Mestrado em Serviço Social e Política Social) - Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2013. Disponível em: Disponível em: http://www.bibliotecadigital.uel.br/document/?code=vtls000185470 . Acesso em: 19 abr. 2021.
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). Ainda em 2014, são publicados resultados de pesquisas sobre a realidade gaúcha e a mineira e, atualmente, já é possível dizer que temos um campo científico em ascensão com investigações sobre a realidade mundial e sobre diferentes realidades regionais, além de investigações também comparativas de distintos estados. A tarefa de realizar essa discussão, de um ponto de vista científico, requer ter em conta os processos e as práticas sociais que estruturam, em cada sociedade, uma ordem do gênero e da sexualidade - em outras palavras, o padrão de organização geral da sociedade que tem o gênero e a sexualidade na sua base (Connell, 2016CONNELL, Raewyn. Gênero em termos reais. São Paulo: nVersos, 2016.) e que implica determinadas condições concretas de experimentar as identidades de gênero e as orientações sexuais no contexto prisional na forma dinâmica como essa realidade se apresenta. Assim, apesar de todos os esforços investigativos, a realidade social sobre o aprisionamento de pessoas LGBTI+ é dinâmica e requer atualizações aprofundadas sobre cada contexto regional, considerando que não temos uma legislação nacional que determine um tipo específico de tratamento penal para essa população, já que quase tudo o que foi produzido até agora no campo normativo não passa de recomendação.

Tendo isso em consideração, a pesquisa que deu origem a este artigo procurou analisar o tratamento penal oferecido para a população LGBTI+ privada de liberdade no Rio Grande do Sul, particularmente diante da pandemia da covid-19 (2020-2022). Tendo uma natureza fundamentalmente qualitativa (embora tenha se valido de informações quantificáveis), buscou dados documentais e bibliográficos para compreender a realidade nacional e realizou uma etapa empírica com todas as casas prisionais do Rio Grande do Sul para entender o contexto regional em profundidade, algo também inédito, considerando que as investigações gaúchas até aqui concluídas se detiveram sobre estabelecimentos específicos de Porto Alegre e Região Metropolitana. Considerou-se, nesse sentido, uma análise do tratamento penal dirigido a essa população, particularmente tendo em vista os desafios impostos pela pandemia da covid-19 que, em 2020, suspende e restringe uma série de direitos das pessoas privadas de liberdade no Brasil por quase dois anos. Se antes essa população já vinha experimentando processos particulares de encarceramento, a tendência é, como veremos, de uma ampliação e fortalecimento da violência e da violação dos direitos, em um cenário de recrudescimento conservador, ultraneoliberalismo e crise sanitária mundial. Diante desse contexto e das novas recomendações nacionais sobre o tema é que esta pesquisa se realizou, na intenção, também, de contribuir para a qualificação das políticas públicas para esse segmento populacional.

1. Discussão dos dados

A dimensão empírica da pesquisa contou com a aplicação de formulários on-line para todas as 125 casas prisionais do Rio Grande do Sul. Cada casa prisional pôde indicar um respondente, podendo ser ele o diretor (gestor), um trabalhador técnico superior penitenciário (TSP, geralmente assistente social ou psicólogo) ou um agente penitenciário (também nomeado em alguns contextos como policial penal). Vale salientar que a pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da universidade em que se desenvolveu e pela Escola dos Serviços Penitenciários da Superintendência dos Serviços Penitenciários (SUSEPE) que, através do seu Departamento de Tratamento Penal, instruiu as casas prisionais para o preenchimento do formulário on-line. Além da aplicação de formulário on-line enviado para todos os estabelecimentos penitenciários gaúchos, os dados da investigação foram triangulados com dados sistematizados obtidos pela própria SUSEPE sobre o quantitativo de pessoas LGBTI+ presas no Rio Grande do Sul e oferecidos por essa instituição para uma análise mais completa das informações quantificáveis da pesquisa.

1.1 Dados demográficos

A pesquisa obteve o total de 61 respondentes, perfazendo o equivalente a 48,8% de taxa de resposta considerando o universo total. Essa amostra, de acordo com cálculos amostrais em pesquisa quantitativa, é superior ao necessário para obter um grau de confiança nas respostas de 95%, tendo como base uma margem de erro de 10%. Apesar disso, vale dizer que a pesquisa, de natureza fundamentalmente qualitativa, não está interessada em observar a representatividade das opiniões, senão em obter a diversidade de respostas necessária para conseguir produzir um quadro mais fidedigno do tratamento penal gaúcho para LGBTI+. Podemos dizer que o Rio Grande do Sul tem atualmente pelo menos 468 presos pertencentes à população LGBTI+, aproximadamente 1,1% da população prisional gaúcha, segundo dados do Departamento de Segurança e Execução Penal da SUSEPE disponíveis no seu sítio eletrônico. Dentro dessa população, destacam-se as mulheres bissexuais (153) e lésbicas (90). Em seguida, temos os gays (85), os homens trans (57), as travestis (35), os homens bissexuais (25), as mulheres trans (22) e uma única pessoa autodeclarada intersexo.

Vale destacar que historicamente, no Brasil, as mulheres e os homens transexuais são alocados em instituições masculinas ou femininas de acordo com um argumento biologicista, que define a pessoa de acordo com sua genitália. Em outras palavras, a genitália define, para essas instituições, o gênero da pessoa. As pesquisas empíricas realizadas no passado e esta em tela apontam que é uma preocupação para os homens trans as suas manutenções em instituições penitenciárias femininas, pois consideram que estar em uma prisão masculina poderia expô-los à violência e à vulnerabilidade, particularmente a sexual. No entanto, as mulheres trans e travestis frequentemente possuem opiniões diversas quanto ao local para o cumprimento da privação da liberdade, narrando preferências distintas publicadas em investigações já realizadas (Sanzovo, 2017SANZOVO, Natália Macedo. O lugar das trans* na prisão: um estudo comparativo entre o cárcere masculino (São Paulo) e alas LGBT (Minas Gerais). 2017. 230 f. Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.usp.br/item/002880431 . Acesso em: 19 abr. 2021.
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).

Conseguimos observar, também, que a 10a região (Metropolitana) congrega o maior número de pessoas LGBTI+ presas (314 pessoas; 67% de toda a população do estado), seguida da 1a região (Vale dos Sinos e Litoral, 69), 7a região (Serra, 42), 8a Região (Vale do Rio Pardo, 39) e 5a Região (Sul, 29). As penitenciárias estaduais femininas da Região Metropolitana de Porto Alegre (Madre Pelletier e Feminina de Guaíba) são as que mais possuem essa população, enquanto nas prisões masculinas, o maior contingente é encontrado na Penitenciária Estadual de Charqueadas e no Presídio Regional de Bagé. Em números totais, merecem destaque também as unidades prisionais localizadas em Canoas, Osório, Torres e Rio Grande, além das outras unidades masculinas e femininas localizadas na capital, Porto Alegre.

No entanto, precisamos considerar como um viés da investigação a desigualdade importante que se nota entre a quantidade de pessoas em prisões femininas e masculinas. Por um lado, entendemos que as dissidências sexuais e de gênero são mais possíveis de serem expressadas nas instituições femininas, tanto porque são menos expostas à violência física e sexual (ainda que devamos constatar outras formas de violência institucional, incluindo deboches, humilhações, impossibilidades de exercer certos tipos de tarefas/trabalhos etc.) quanto porque as mulheres, no geral, podem ter mais condições de exercitar a sexualidade fora da norma do que os homens em sociedades heteroterroristas como a nossa (Bento, 2011BENTO, Berenice. Na escola se aprende que a diferença faz a diferença. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 19, n. 2, p. 549-559, 2011.); por outro, porque as pessoas respondentes também podem ter mais ou menos conhecimento em relação às temáticas de gênero e diversidade sexual, o que certamente influencia na resposta dada. Nesse sentido, vale observar que a pesquisa foi respondida por 16 agentes penitenciários ou diretores (todos de unidades masculinas), 45 técnicas superiores penitenciárias das áreas de Serviço Social, Psicologia e Direito (de unidades masculinas ou femininas) e uma professora. Se considerarmos que a função de TSP, em geral, tem mais acesso a conhecimentos relativos a gênero e sexualidade e mais condições de oferecer tratamento penal individualizado em comparação à função de agente penitenciário, agente penitenciário administrativo ou diretor, poderíamos supor que o quantitativo geral sofre também com essas determinações.

A possibilidade de assumir uma identidade sexual ou de gênero dissidente dentro da prisão, assim, é sempre desafiadora, o que impossibilita, consequentemente, um quadro quantitativo fidedigno, ainda que empenhemos esforços nesse sentido. O primeiro desafio é esse mencionado anteriormente: como a prisão registra essa informação. Uma das lições desta investigação é que muitas unidades mencionaram não haver LGBTI+ porque não sabem o que é essa população, não fazem essa pergunta ou registram de maneira equivocada esse dado. Mesmo porque o Infopen - Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias - não possui os campos da orientação sexual nem da identidade de gênero para preenchimento obrigatório dos trabalhadores (o que, inclusive, apareceu na pesquisa como queixa de alguns respondentes), o que significa que a tabulação dessas informações depende da boa vontade dos próprios assistentes sociais e psicólogos ao realizarem a entrevista de acolhimento inicial quando uma pessoa ingressa na prisão.

Além disso, mesmo que o trabalhador pergunte, pode ser que ele ou a pessoa presa não possuam as ferramentas teóricas de compreensão do que significa ser lésbica, gay, bissexual, travesti, transexual ou intersexo. Assim é que a capacitação sobre gênero e sexualidade para profissionais da segurança e da justiça já se configura como uma demanda urgente e pouco levada a cabo pelos gestores estaduais das secretarias de justiça, administração penitenciária, segurança pública ou direitos humanos pelo Brasil. É preciso também que o servidor traduza essas identidades à pessoa que está sendo entrevistada, que, embora possa experimentar relações sexuais e de gênero dissidentes da norma, talvez nunca tenha tido acesso a essas categorizações. Esse, aliás, é um aprendizado antigo: na prisão, a população LGBTI+ demonstra ter necessidades de primeira ordem não saciadas - como não ter uma geladeira, roupas, pasta de dente etc. -, e argumentam que não querem discutir gênero nem sexualidade em um contexto de mínimos sociais não resolvidos.

Outras investigações (Boldrin, 2014BOLDRIN, Guilherme Ramos. Monas, envolvidos e o crime: etnografia com travestis e homossexuais em uma prisão paulista. 2014. 82 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Ciências Sociais) - Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2014.; Souza, 2018SOUZA, Simone Brandão. Lésbicas, entendidas, mulheres viados, ladies: as várias identidades sexuais e de gênero que reiteram e subvertem a heteronorma em uma unidade prisional feminina da Bahia. 2018. 309 f. Tese (Doutorado em Cultura e Sociedade) - Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2018. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.ufba.br/handle/ri/29951 . Acesso em: 19 abr. 2021.
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; Zamboni, 2020ZAMBONI, Marcio Bressiani. A população LGBT privada de liberdade: sujeitos, direitos e políticas em disputa. 2020. 520 f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade de São Paulo, São Paulo, 2020. Disponível em: Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8134/tde-29072020-200816/es.php . Acesso em: 19 abr. 2021.
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) argumentam ainda que essas categorias podem receber contornos êmicos e, algumas vezes, homogeneizadores na prisão - como quando pessoas LGBTI+ são tratadas como “entendidas” e “envolvidas”. Essas palavras são historicamente utilizadas para designar, em contextos muitas vezes periféricos, aquelas pessoas que se “envolvem” com LGBTI+ ou que “entendem” do assunto. Outra possibilidade é serem tratadas como a mesma coisa: “bicha”, “viado” e “puto”, em prisões masculinas; e “sapatão”, “paizinho”, “machorra” ou “mulher viado”, em prisões femininas. Dessa maneira, a travesti e seu marido são diferenciados apenas na relação conjugal que estabelecem entre si, enquanto “pra fora” são percebidos de forma semelhante, por exemplo. Assim, as diferenças entre esses sujeitos são reduzidas frequentemente à performance sexual (a noção de distinção entre “ativo/passivo”, por exemplo, que acaba se tornando o papel de um homem e de uma mulher na relação) que estabelecem um com o outro, e esses papéis sexuais se tornam papéis de gênero reconhecidos apenas por eles (por exemplo, quem cuida da comida e da limpeza e quem se ocupa de consertos eletrônicos).

Também pode ocorrer de essas pessoas jamais se reconhecerem como pertencentes à comunidade LGBTI+, ainda que manifestem desejos sexuais ou expressões de gênero dissidentes da cisgeneridade e da heterossexualidade. Não por acaso, existem categorias como a dos “homens que fazem sexo com outros homens” (HSH) e investigações científicas que preferem pensar em mulheres que se relacionam afetiva ou sexualmente com outras mulheres na prisão (SOUZA, 2018SOUZA, Simone Brandão. Lésbicas, entendidas, mulheres viados, ladies: as várias identidades sexuais e de gênero que reiteram e subvertem a heteronorma em uma unidade prisional feminina da Bahia. 2018. 309 f. Tese (Doutorado em Cultura e Sociedade) - Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2018. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.ufba.br/handle/ri/29951 . Acesso em: 19 abr. 2021.
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), já que há uma diferença sensível entre a orientação sexual - o desejo sexual e afetivo que uma pessoa tem por outras - e a identidade sexual - a pessoa entender-se de acordo com uma categoria identitária. Por fim, considerando que possa haver entendimento suficiente tanto do trabalhador penitenciário quanto da pessoa presa para tratar desse tema e havendo interesse em tabular essa informação por parte da administração penitenciária, resta ainda o problema de a pessoa preferir não se declarar (ou, como dizemos, “sair do armário”) por medo de sofrer violência ou represália.

1.2 A política penitenciária

No Brasil, a tendência de produção de uma certa “política penitenciária” relacionada às pessoas LGBTI+ privadas de liberdade se restringe quase exclusivamente à criação de alas, celas ou galerias específicas para essa população. Em estudos anteriores (Ferreira; Klein, 2019FERREIRA, Guilherme Gomes; KLEIN, Caio Cesar (org.). Sexualidade e gênero na prisão: LGBTI+ e suas passagens pela justiça criminal. Salvador: Devires, 2019. E-book. Disponível em: Disponível em: https://editoradevires.com.br/sdm_downloads/sexualidade-e-genero-na-prisao-lgbti-e-suas-passagens-pela-justica-criminal/ . Acesso em: 19 abr. 2021.
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) já foram analisadas experiências regionais interessantes na forma como os gestores penitenciários decidem operacionalizar o funcionamento desses espaços específicos, ora exigindo uma autodeclaração da pessoa para ingresso no local, ora uma heteroidentificação, podendo ela ser de um psicólogo ou mesmo do coletivo LGBTI+ já existente no lugar. É claro que essas diferentes decisões produzem efeitos diversos, mas sempre contraditórios e com repercussões negativas do ponto de vista do tratamento penal.

No Rio Grande do Sul, 14 estabelecimentos penitenciários afirmam haver galeria, ala ou cela exclusiva para pessoas LGBTI+ em privação de liberdade, considerando que 41 estabelecimentos dos 61 respondentes (62,1%) afirmam alocar pessoas dessa população. A opção pelo isolamento é realizada em 12 unidades prisionais (ficando essas pessoas nos chamados “seguros” - espaços de confinamento que podem funcionar também como castigo, já que frequentemente são cubículos sem iluminação ou ventilação adequada). Em dois casos é citada a sala de triagem como uma opção; e no restante são colocadas junto ao restante da população prisional - valendo a pena mencionar que em cinco estabelecimentos foi citada a cela dos agressores sexuais como o espaço destinado às pessoas LGBTI+.

No que concerne às respostas, observa-se que as porcentagens relacionadas ao tipo de espaço destinado à população LGBTI+ superam 100% porque os estabelecimentos selecionaram opções repetidas, considerando que a mesma unidade poderia ter arranjos diferentes. O Presídio Regional de Bagé, por exemplo, funciona como um estabelecimento “masculinamente misto” (Colares; Chies, 2010COLARES, Leni Beatriz Correia; CHIES, Luiz Antônio Bogo. Mulheres nas so(m)bras: invisibilidade, reciclagem e dominação viril em presídios masculinamente mistos. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 18, n. 2, p. 407-423, 2010.), ou seja, existe como unidade masculina que acaba criando, em certo momento, um “puxadinho” para alojar as mulheres. Essa unidade respondeu à pesquisa que possui tanto mulheres trans, travestis e homens gays ou bissexuais quanto mulheres bissexuais e lésbicas, alocando essas populações também de diferentes maneiras.

Outros estabelecimentos, como é o caso do Instituto Penal de Passo Fundo, oferecem um espaço diferente a depender de cada situação. No caso dessa instituição, a regra é que a pessoa permaneça em espaço junto aos homens (ou seja, sem separação), mas pode também permanecer em espaço de isolamento (precário, segundo a resposta). Em algumas situações, também ocorre de a pessoa ficar em alojamento masculino que abriga os presos que cometeram crimes sexuais. A tomada de decisão sobre um ou outro local não foi esclarecida. Já na Penitenciária Estadual de Caxias do Sul, a informante diz que

a pessoa passa por atendimento inicial com psicólogo e assistente social, onde recebe acolhimento e é informada de seus direitos, podendo optar em ser recambiada para estabelecimento prisional com ala LGBTI+ ou permanecer nesta casa prisional.

A transferência de prisão parece ser uma alternativa comum também a outros estabelecimentos penitenciários.

No Rio Grande do Sul, o primeiro estabelecimento penitenciário a possuir uma ala específica para alocar pessoas LGBTI+ foi a Cadeia Pública de Porto Alegre, naquele momento nomeada Presídio Central. Foi a terceira unidade prisional a realizar esse feito, em 2012, após as unidades de Vespasiano e São Joaquim de Bicas em Minas Gerais (2009) e Cuiabá, no Mato Grosso (2011) (Ferreira, 2014FERREIRA, Guilherme Gomes. Travestis e prisões: a experiência social e a materialidade do sexo e do gênero sob o lusco-fusco do cárcere. 2014. 144 f. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2014. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.pucrs.br/dspace/handle/10923/5660 . Acesso em: 18 abr. 2021.
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). Durante algum tempo, foi a única prisão a ter espaço exclusivo para essa população, a “Terceira do H” que se tornou objeto de investigações científicas (Ferreira, 2014FERREIRA, Guilherme Gomes. Travestis e prisões: a experiência social e a materialidade do sexo e do gênero sob o lusco-fusco do cárcere. 2014. 144 f. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2014. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.pucrs.br/dspace/handle/10923/5660 . Acesso em: 18 abr. 2021.
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; Passos, 2014PASSOS, Amilton Gustavo da Silva. Uma ala para travestis, gays e seus maridos: pedagogias institucionais da sobrevivência no Presídio Central de Porto Alegre. 2014. 109 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2014. Disponível em: Disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/106455 . Acesso em: 19 abr. 2021.
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; Silva, 2017SILVA, Gabriela Baptista. Políticas identitárias e de conjugalidades: agenciamentos na Galeria LGBTT do Presídio Central de Porto Alegre. 2017. 80 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2017. Disponível em: Disponível em: https://tede2.pucrs.br/tede2/handle/tede/7512 . Acesso em: 19 abr. 2021.
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), documentários e séries e diversas reportagens de jornal e televisão. Atualmente, entretanto, possui apenas 12 pessoas LGBTI+ alocadas nesse espaço, número abaixo daquele observado em Charqueadas e Canoas.

Parece ter havido na Cadeia Pública uma mudança importante na forma como esse espaço é gestado e tratado pela administração prisional. Essa casa prisional, uma das únicas em todo o estado administrada ainda pela Brigada Militar de Porto Alegre desde 1995 (a outra é a Penitenciária Estadual do Jacuí, ambas tomadas pela intervenção militar diante de situações de motins e rebeliões provocadas pelas facções criminais naquele momento), acolheu a possibilidade de uma galeria só para LGBTI+ a partir do ingresso de uma administração mais sensível à pauta dos direitos humanos e que foi continuada com o ingresso de outros diretores e, atualmente, diretora. Foi tratada por noticiários e especialistas como um modelo de tratamento penal dentro de uma instituição que ainda era considerada a pior no Brasil e já foi apontada como a pior da América Latina - em 2008, por uma CPI da Câmera dos Deputados e por diagnóstico realizado pela Comissão de Direitos da Organização dos Estados Americanos (OEA).

Em um primeiro momento, a pessoa LGBTI+ candidata à ala poderia solicitar sua transferência já estando dentro da cadeia ou vindo de fora (sendo presa pela primeira vez ou a partir de transferência de outra prisão, a chamada “viagem” ou “viajada”). No entanto, essa solicitação seria confirmada pela representante da galeria, uma travesti eleita pelo coletivo e nomeada de “prefeita”. A prefeita, em conjunto com sua “prefeitura” - os presos que lhe “assessoravam” nessa tomada de decisão -, comunicava à direção e esta acolheria ou não a nova pessoa na galeria, sob consentimento do restante da “vila” (os outros presos que não participam da prefeitura). Em muitas situações, essa decisão sobre acolher ou não uma nova pessoa no espaço era justificada como sendo para o “bem maior” da galeria - seja porque a pessoa poderia ser usuária de droga ou envolvida com o tráfico, seja porque ela poderia ter histórico de mau relacionamento na rua com alguém alojado na galeria -, e essa decisão era corroborada também por ativistas de uma organização local de travestis e transexuais de Porto Alegre, que fazia a ponte entre a ala e a direção (Ferreira, 2014FERREIRA, Guilherme Gomes. Travestis e prisões: a experiência social e a materialidade do sexo e do gênero sob o lusco-fusco do cárcere. 2014. 144 f. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2014. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.pucrs.br/dspace/handle/10923/5660 . Acesso em: 18 abr. 2021.
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).

Com o passar do tempo, a galeria de travestis, gays e seus maridos passou a receber menos investimento e atenção da administração prisional, algo que vimos repetir-se em outros locais, como em Minas Gerais, onde um estabelecimento deixou de acolher presos LGBTI+ e os transferiu para outra unidade. Esse fato, aliás, aliado a outros relacionados a precariedade e maus-tratos no novo local de cumprimento da pena, levou a uma onda de suicídios expressa pela morte de sete detentos LGBTI+ entre janeiro e setembro de 2021. Em Porto Alegre, esse desinvestimento se traduziu em trocar a representação da galeria para a de um homem gay, não mais uma travesti; e pela reabertura do espaço a homens envolvidos com crimes sexuais, como ocorria no passado. Então, embora a galeria continue existindo, passa a não cumprir mais completamente sua finalidade.

Assim, pode ser que tenha havido nos últimos tempos uma preferência pela população LGBTI+ em ser alojada, no que se refere a unidades masculinas, na Penitenciária Estadual de Charqueadas, que possui funcionamento distinto. Nesse estabelecimento, há a separação das travestis, mulheres trans e seus companheiros do restante da população prisional. Elas e eles permanecem em três celas de uma das duas galerias da penitenciária (A e B). Essa galeria (A) acolhe também os presos trabalhadores, de modo que os presos “faccionados” são incluídos na galeria oposta, chamada “galeria dos vagabundos” (B), divididos nas diferentes celas segundo as distintas facções criminosas.

Em relação aos estabelecimentos prisionais que não possuem ala nem galeria específica, vemos que as respostas qualitativas trazem uma diversidade importante de arranjos que incluem manter pessoas LGBTI+ em espaços provisórios, como a sala de triagem. Outros estudos nacionais e internacionais (Ferreira; Klein, 2019FERREIRA, Guilherme Gomes; KLEIN, Caio Cesar (org.). Sexualidade e gênero na prisão: LGBTI+ e suas passagens pela justiça criminal. Salvador: Devires, 2019. E-book. Disponível em: Disponível em: https://editoradevires.com.br/sdm_downloads/sexualidade-e-genero-na-prisao-lgbti-e-suas-passagens-pela-justica-criminal/ . Acesso em: 19 abr. 2021.
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) também já apontaram a enfermaria como uma possibilidade, a sala de aula ou mesmo o pátio - nesse caso, a própria Cadeia Pública de Porto Alegre já foi alvo de investigação por manter uma facção inteira alojada no pátio em um momento em que não tinha espaço dentro das instalações, e misturá-la a outras facções poderia significar risco de morte aos apenados. Também podem ocorrer transferências compulsórias, sem o consentimento da pessoa presa, ainda que isso implique ela ficar mais distante de suas visitas.

Muitos foram os estabelecimentos penitenciários que afirmaram, entretanto, não haver população LGBTI+. Merece destaque a resposta do Instituto Penal de Gravataí, que reflete sobre essa inexistência:

Acredito que, possivelmente, seja mais uma questão de receio de exposição a não declaração de pessoa LGBTI+ neste estabelecimento prisional, entre outras questões que atravessam o convívio em um espaço prisional, na sua maior parte, masculino.

Essa é uma análise fundamental, pois é difícil a dissidência sexual e de gênero simplesmente não existir ou nunca ter existido em muitas unidades prisionais que responderam não haver pessoas LGBTI+. Como veremos adiante, esse é um problema não resolvido que envolve pensar uma política pública não apenas ancorada na identidade, mas que também considere a vulnerabilidade, já que espaços exclusivos foram criados para proteger pessoas da violência, entretanto acarretam mais prejuízos a esses sujeitos.

1.3 Tratamento penal

Após ingresso na prisão e alocação da pessoa, resta avaliar como ela é tratada penalmente, o que inclui uma série de questões distintas, mas aqui focaremos algumas: (i) acesso à visita íntima e contato externo; (ii) acesso à escola, ao trabalho ou a projetos de remissão de pena; (iii) e acesso à saúde e a questões específicas de enfrentamento à pandemia da covid-19. Essas três questões são as que consideramos mais objetivas e possíveis de serem respondidas em formulário on-line, pois aquelas que dizem respeito às relações e aos relacionamentos entre presos e agentes penitenciários; a situações de maus-tratos e tortura; ao acesso à justiça e ao acompanhamento jurídico; e ao acesso à alimentação de qualidade e à água, bem como questões de estrutura, teriam de ser aprofundadas em entrevistas e, dificilmente, viriam de forma espontânea em resposta ao formulário.

Isso porque, conforme experiências prévias de outros estudos envolvendo prisões, percebe-se que qualquer informação sobre a condição de permanência da pessoa privada de liberdade em estabelecimento penitenciário é sempre muito difícil de ser obtida e precisa ser sempre justificada e detalhada, especialmente aquelas que dizem respeito à violência e à presença de maus-tratos ou tortura - o que já é em si uma violência, considerando que a sociedade fica, assim, apartada do conhecimento sobre como as pessoas experimentam o aprisionamento. Assim, vale a pena indicar que este estudo merece sua continuidade através de aprofundamento qualitativo que possibilite a realização de entrevistas em profundidade com as pessoas presas, podendo elas próprias relatarem suas experiências prisionais.

Em relação à possibilidade de as pessoas LGBTI+ receberem visita e visita íntima, 36 estabelecimentos (58%) afirmam que sim. O restante (25) afirmou que não ou que nunca aconteceu. Entre as respostas positivas, destacamos aquelas que mencionaram a necessidade de formalização da união estável para que a pessoa presa receba uma visita íntima. Em outras palavras, o sujeito preso só recebe visita íntima de pessoa com quem mantenha casamento ou união estável e, em algumas situações, a própria unidade prisional realiza a união estável no ato da visita. A resposta positiva que mais se destaca em termos de garantia de direitos, por outro lado, é a da Penitenciária Estadual de Charqueadas, que relata já ter havido anteriormente apenado gay que recebia visita de seu companheiro, e, nesse caso, a visita íntima ocorria na própria cela, de acordo com organização da galeria, como seria para os demais casais. Somente outras três instituições afirmaram que a visita íntima não é diferente entre pessoas LGBTI+ e demais presos. Agora em relação às respostas negativas, o que mais se destaca tem a ver com os impedimentos colocados pela pandemia da covid-19 que interrompeu a visitação (íntima ou a chamada “social”) de todas as pessoas presas. No entanto, houve também respostas que evidenciaram esse impedimento particularizado no caso de pessoas LGBTI+.

Cabe mencionar, por outro lado, que pelas experiências nacionais - e o Rio Grande do Sul espelha essa realidade - parece haver mais relacionamentos internos do que demanda por visitas externas. Em prisões femininas, as conjugalidades entre mulheres ou entre mulheres cis e homens trans frequentemente são respeitadas, inclusive justificadas, como é o caso da Penitenciária Estadual Feminina de Guaíba, por esses relacionamentos existirem também entre trabalhadoras penitenciárias. Nas prisões masculinas gaúchas também apareceu o relato da dificuldade de visitação por parte de amigos, ou seja, pessoas que não teriam condições de apresentar documentos formais que comprovassem o vínculo familiar, casamento ou união estável. Esse é um detalhe importante quando analisamos do ponto de vista das pessoas LGBTI+, já que muitas narram a experiência de abandono familiar, algumas vezes mesmo antes do aprisionamento (Ferreira, 2014FERREIRA, Guilherme Gomes. Travestis e prisões: a experiência social e a materialidade do sexo e do gênero sob o lusco-fusco do cárcere. 2014. 144 f. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2014. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.pucrs.br/dspace/handle/10923/5660 . Acesso em: 18 abr. 2021.
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).

Já relativamente ao acesso à educação, ao trabalho, à geração de renda ou à remissão de pena, a maioria respondeu que não há dificuldade particular de acesso de pessoas LGBTI+ a essas questões, afora aquelas dificuldades comuns ao ambiente prisional e agora agravadas com a pandemia da covid-19. Somente duas unidades prisionais disseram que há prejuízo dessa população por conta do preconceito e da não aceitação dos outros presos nesses ambientes de labor e na escola prisional. Ao mesmo tempo, quase não foram identificadas iniciativas nem projetos desenvolvidos no sentido de proporcionar atividades específicas de acesso à educação, à qualificação profissional ou ao trabalho destinadas a pessoas LGBTI+. Estudos empíricos anteriores verificaram impedimentos especializados, por exemplo, a impossibilidade de mulheres lésbicas ou homens trans de cozinharem porque outras presas não comeriam a comida feita por eles, ou de travestis não conseguirem estudar porque o próprio diretor da escola não as aceitava (Ferreira, 2014FERREIRA, Guilherme Gomes. Travestis e prisões: a experiência social e a materialidade do sexo e do gênero sob o lusco-fusco do cárcere. 2014. 144 f. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2014. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.pucrs.br/dspace/handle/10923/5660 . Acesso em: 18 abr. 2021.
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).

Por último, tratando-se das questões de saúde, observamos que mais uma vez o Rio Grande do Sul reflete uma situação nacional: as equipes das Unidades Básicas de Saúde Prisional (UBSP) estão geralmente desfalcadas, assim como as equipes técnicas de tratamento penal. Nesse sentido, vale mencionar que questões específicas de saúde das pessoas LGBTI+ não são tratadas ou são parcialmente tratadas. Não há hormonização para pessoas trans nem oferecimento de cuidados específicos com silicone industrial (no caso das travestis) ou oferecimento de acessórios, como binders (no caso de homens trans). O atendimento de saúde ocorre com muito atraso e algumas pessoas não chegam a consegui-lo. No caso da hormonização, embora haja em algumas situações a previsão de atendimento a essa demanda no sentido de prescrição médica, o medicamento não chega a ser oferecido pelo estado e a pessoa presa não tem, frequentemente, condições de adquiri-lo. Outras demandas gerais de saúde são atendidas de maneira precária, assim como é precário para toda a população prisional, mas pode haver mais dificuldades para pessoas que não se relacionam tão bem com as chefias/representações, independentemente da orientação sexual e da identidade de gênero. Em outras palavras, são os representantes de celas/galerias que se comunicam com os agentes penitenciários ao solicitarem atendimentos de saúde e, nesse sentido, pode haver formas de privilegiar os pedidos daquelas pessoas que se relacionam melhor com essas representações, em detrimento das demandas de saúde da população LGBTI+

Assim, embora isso tenha aparecido em poucas respostas, é possível verificar que em tempos de pandemia de covid-19 a situação das pessoas presas foi sensivelmente agravada com o afastamento das suas famílias, que passam a não poder mais visitar seus parentes privados de liberdade. As visitas presenciais só voltaram a ser permitidas em muitas prisões brasileiras mais recentemente, após um ano e meio em que foram suspensas pela primeira vez. Algumas respostas apontam, inclusive, presos “magros e debilitados”, já que, como sabemos, a família também cumpre um papel importante de resposta às necessidades sociais das pessoas na prisão, desprotegidas socialmente e, frequentemente, sem acesso aos bens materiais mínimos de alimentação e vestuário. A alternativa mais interessante nesse período foi a da prisão domiciliar.

É possível verificar que a pandemia afetou diretamente a saúde física e a mental das pessoas privadas de liberdade, dificultando o atendimento técnico, impondo isolamentos a partir de casos positivos do vírus e intensificando a perda dos vínculos sociais e familiares. O sentimento de abandono experimentado pela população prisional nesse período requereu mais atenção das equipes de saúde - já prejudicadas do ponto de vista dos recursos humanos e que só conseguem encontrar como resposta a medicalização dos presos, conforme relato do Presídio Estadual Feminino Madre Pelletier: “As presas passaram a solicitar muito atendimento com psiquiatra; a pandemia contribuiu para agravar questões de transtornos psíquicos e o aumento do uso de medicações antidepressivas”.

Em algumas prisões gaúchas também ocorreram surtos de contágio da covid-19, conforme também os relatos das instituições respondentes. Em um estabelecimento prisional com 373 presos, 41 foram infectados; em outro, com 249 pessoas, 59 se infectaram; em outro, com 631, houve 121 infecções. Isso mesmo diante da suspensão de atividades educativas, recreativas e de geração de trabalho e renda, já que a maioria só manteve em todo esse período o horário para o banho de sol. Talvez não seja nem possível mensurar o impacto dessas mudanças e dos surtos ocorridos na saúde mental de pessoas que não puderam escolher por não se aglomerar, e sem acesso a condições sanitárias e de salubridade adequadas.

Considerações finais

Em relação à população LGBTI+ presa, vemos que tanto as chamadas “políticas penitenciárias” quanto o tratamento penal estão ancorados no conceito da identidade, ainda que as próprias instituições prisionais com frequência não saibam responder sobre essas identidades sexuais e de gênero dissidentes. Temos um desafio tremendo quando pensamos no quantitativo dessa população, justamente por falta de tabulação desses dados (pois não há uma orientação nacional para este fim) e por falta de conhecimento dos trabalhadores penitenciários e das próprias pessoas LGBTI+ em entenderem o conceito de identidade em que a política pública está fundada. Afora as situações de maus-tratos e tortura, que impedem as pessoas de se autodeclararem por medo da violência e da morte.

Todas essas questões, é claro, estão no bojo do Serviço Social, para que essa profissão e área do conhecimento científico qualifiquem-nas tendo como horizonte seu projeto ético e político. São questões que colocam para o Serviço Social um desafio sem precedentes, em que vemos com ainda mais necessidade a defesa dos direitos humanos. Essa defesa não é abstrata, ela se materializa no trabalho com familiares de pessoas presas, na luta por espaços de controle social das prisões, na defesa das políticas sociais (e do setor social, como um todo) e, inclusive, na proposição de espaços formativos de qualificação do tratamento penal, ainda que nosso horizonte ético-político deva ser pelo desencarceramento. Se o tempo presente é de vidas cortadas, de vidas interrompidas, nossa luta deve ser inteira e em unidade.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    09 Jun 2022
  • Aceito
    19 Set 2022
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