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Dominação burguesa entre o velho e o novo: a ascensão da extrema-direita no Brasil

Bourgeois domination between the old and the new: the rise of the extreme right in Brazil

Resumo:

Este artigo tem como objetivo discutir o processo de ascensão da extrema-direita no Brasil, que culmina na vitória de Bolsonaro, e seu significado para a dinâmica de acumulação do capital. Em termos metodológicos, a pesquisa tem natureza qualitativa, de cunho bibliográfico, fundamentada no materialismo histórico-dialético, o qual permite capturar as múltiplas determinações do objeto sob um prisma de totalidade. Aponta como resultado que o bolsonarismo reatualiza a via autocrática de transformação capitalista no país, de modo a ajustar a dinâmica interna aos interesses de acumulação global do capital.

Palavras-chaves:
Extrema-direita; Bolsonarismo; Autocracia; Acumulação de capital

Abstract:

This article aims to discuss the process of rise of the extreme right in Brazil, which culminates in Bolsonaro’s victory, and its meaning for the dynamics of capital accumulation. In methodological terms, the research has a qualitative nature, of a bibliographic nature, based on historical-dialectic materialism, which allows capturing the multiple determinations of the object from a perspective of totality. It points out as a result that Bolsonarism re-updates the autocratic path of capitalist transformation in the country in order to adjust the internal dynamics to the interests of global capital accumulation.

Keywords:
Far right; Bolsonarism; Autocracy; Capital accumulation

Introdução

A preponderância do “velho” no “novo” é uma marca que transcende todo o desenvolvimento econômico, social e político da sociedade brasileira. Mais uma vez, assiste-se ao imbricamento entre a ofensiva do capital e a ascensão/restauração do conservadorismo no país. O atual estágio do capitalismo imperialista, comandando por financeirização e rentismo, parece impor uma nova rodada de ajustes estruturais, mormente na periferia do capital, para a manutenção de sua lucratividade. De modo ilustrativo, pode-se destacar a erosão dos direitos sociais por meio das contrarreformas trabalhista, previdenciária, da Emenda Constitucional n. 95, que impôs um teto de gastos com saúde e educação por vinte anos, além de retrocessos na política de saúde mental e naquelas relacionadas aos direitos humanos, minorias e mulheres, entre outras. Tais medidas atendem à lógica da acumulação capitalista e têm consequências imediatas no dia a dia das classes populares.

A ofensiva do capital mundializado, contudo, não opera sem o intermédio das elites econômicas nacionais que atuam como salvaguarda dos interesses imperialistas e se mantêm literalmente alheias aos problemas internos enfrentados pela população. Com sentimento cosmopolita, a burguesia busca conciliar seus interesses de classe no afã de se apropriar de parcela crescente do mais-valor, com os interesses externos, numa espécie de “democracia restrita”, que é funcional apenas para quem tem acesso à dominação burguesa.

No Brasil contemporâneo, a força motriz da dominação burguesa está assentada no avanço do conservadorismo político-social, com forte apelo moral, antissistêmico e anticorrupção. É essa mistura de elementos que tem permitido a arregimentação de uma base social crescente, inclusive entre os setores populares, haja vista que o movimento se apresenta como alternativa de contestação do status quo, canalizando para si a revolta da população com as ingerências das políticas públicas e as injustiças sociais.

Internamente, a burguesia nacional passa por um processo de complexificação, por isso está sofisticando seus sistemas de dominação e modernizando suas relações com o Estado e a sociedade civil, de modo que alguns estudiosos passaram a falar numa “Nova Direita”1 1 Convém destacar que há alguma margem de autonomia entre a classe (burguesia) e a forma política (nova direita). Parte da construção política que culmina nessa forma é oriunda de setores de pequenos burgueses e da classe média. . Sua base ideológica, calcada no conservadorismo, tem sido transmitida por robustos aparelhos privados de hegemonia que têm como missão educar a espontaneidade das massas, criando consensos em torno das crenças e valores burgueses. A sofisticação das estratégias de dominação burguesa perpassa pela constituição de aparelhos estruturais voltados para incidir sobre a ossatura do Estado e a criação de aparelhos doutrinários, que encontra um canal aberto de comunicação e recrutamento na internet, por meio das redes sociais, de aplicativos de mensagens rápidas etc. (Casimiro, 2016CASIMIRO, F. H. C. A Nova Direita no Brasil: aparelhos de ação político-ideológica e atualização das estratégias de dominação burguesa (1980-2014). Tese (Doutorado em História Social). Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2016.).

Diante desse processo, entre os diversos extratos que compõem o campo da direita, sobressaíram-se os grupos mais extremados, alcançando a liderança do movimento conservador. De acordo com Costa e Mendes (2021COSTA, P. H. A.; MENDES, K. T. Autocracia burguesa e bolsonarismo: um ensaio. Marx e o Marxismo. v. 9, n. 16, jan./jun. 2021.), o bolsonarismo foi a forma da burguesia nacional e do capital imperialista por dois motivos: 1. pela certeza de que a sua primeira opção eleitoral social-democrata (Geraldo Alckmin - candidato à presidência) seria derrotada novamente nas eleições de 2018; 2. pela capacidade de o bolsonarismo mobilizar apoio político dos “de baixo” para a manutenção do status quo. Sobretudo, num cenário onde as classes populares estão num movimento de refluxo, tendo suas lideranças cooptadas e desmobilizadas pela institucionalização dos movimentos sociais que ocorreram nos governos petistas, deixando as massas sem direção política e vulneráveis à captura ideológica das classes dominantes. Em linhas gerais, esse é o panorama no qual a extrema-direita assumiu o poder do estado brasileiro com a vitória de Jair Messias Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2018, trazendo novos/velhos elementos para a dinâmica da dominação de classe.

Este estudo, de natureza qualitativa, fundamenta-se no materialismo histórico-dialético, que permite dimensionar a realidade social em suas múltiplas determinações, ampliando o olhar do pesquisador para uma perspectiva de totalidade, com o intuito de recuperar o fenômeno para além de sua manifestação aparente. Em termos metodológicos, utilizou-se a pesquisa bibliográfica como forma de acessar a literatura pertinente ao objeto de investigação, por meio de consulta a artigos, periódicos, livros e teses, com destaque para contribuições no campo da sociologia crítica e da história, fundamentalmente em autores como Calil (2020CALIL, G. Brasil: o negacionismo da pandemia como estratégia de fascistização. Materialismo Storico, n. 2/2020 (vol. IX)., 2021CALIL, G. Olavo de Carvalho e a ascensão da extrema-direita. Argum. Vitória, v. 13, n. 2, p. 64-82, maio/ago. 2021.), Casimiro (2016CASIMIRO, F. H. C. A Nova Direita no Brasil: aparelhos de ação político-ideológica e atualização das estratégias de dominação burguesa (1980-2014). Tese (Doutorado em História Social). Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2016., 2020CASIMIRO, F. H. C. A tragédia e a farsa: a ascensão das direitas no Brasil contemporâneo. São Paulo: Expressão Popular, Fundação Rosa Luxemburgo, 2020.), Mattos (2020MATTOS, M. B. Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil. São Paulo: Usina Editorial, 2020.), Miranda (2020MIRANDA, J. E. B. Existe uma nova direita no Brasil contemporâneo? In: SANTOS, M. A. M. B. dos; MIRANDA, J. E. B. (org.). Nova Direita, Bolsonarismo e Fascismo: Reflexões sobre o Brasil contemporâneo. Ponta Grossa: Texto e Contexto, 2020.) e Boito Jr. (2021BOITO JR., A. O caminho brasileiro para o fascismo. Caderno CRH, Salvador, v. 34, p. 1-23, 2021.). Para melhor sistematização das ideias aqui apresentadas, o artigo foi dividido em quatro partes. A primeira trabalha a questão da ofensiva burguesa e a ascensão da extrema-direita. A segunda focaliza o debate nas bases ideológicas do bolsonarismo. A terceira aborda alguns aspectos da dominação autocrático-burguesa e o recurso ao neofascismo e, por fim, uma breve conclusão.

2. Ofensiva burguesa e ascensão da extrema-direita no Brasil

Ao longo do último terço do século XX, a sociedade brasileira passou por intensas transformações. Foi um período marcado pela efervescência dos movimentos sociais na luta pela redemocratização, pela concretização de direitos e contra a ditadura civil-militar. Ao movimento da classe trabalhadora e de suas organizações político-sindicais, somou-se a ofensiva da burguesia nacional, em articulação com o capitalismo internacional, a fim de barrar o avanço das forças populares.

Tal ofensiva se concretizou em várias frentes, mormente, a partir dos anos 1990. A primeira a ser destacada foi a adoção das políticas neoliberais propostas pelo Consenso de Washington, as quais recomendavam a instituição de um Estado mínimo para o trabalho e máximo para o capital. No plano social, as políticas neoliberais deram um golpe nos direitos sociais ao demandar a transferência da prestação dos serviços sociais para o mercado, de modo que “a proposta neoliberal inclui a passagem da proteção social para o mercado, transformando benefícios da seguridade social em ‘novos produtos’ da especulação financeira” (Salvador, 2010SALVADOR, E. Crise do capital e o socorro do fundo público. In: Capitalismo em crise, política social e direitos. São Paulo: Cortez, 2010., p. 60).

No mundo do trabalho, a reação da burguesia mundializada, de forma geral, e das elites nacionais, em particular, provocou a reconfiguração da classe trabalhadora, que passou a ocupar postos de trabalho precarizados, terceirizados, temporários e sem proteção social. Uma nova morfologia do trabalho tomou corpo com a introdução de novas ferramentas de gestão implementadas tanto no âmbito da produção industrial stricto sensu, quanto em relação ao surgimento do trabalho mediatizado pelas novas tecnologias de informação e comunicação (TICs), especialmente no setor de serviços. O ambiente virtual das plataformas digitais passou a comandar a organização do trabalho, supostamente atuando como um canal de comunicação entre provedores de serviços e consumidores, pela massificação de conectividade de internet para um grande contingente da população. O uso de tais ferramentas de processamento e transmissão de dados em tempo real permite subordinar, sujeitar e ampliar os níveis de exploração da força de trabalho (Antunes; Filgueiras, 2020ANTUNES, R.; FILGUEIRAS, V. Plataformas digitais, Uberização do trabalho e regulação no Capitalismo contemporâneo. Contracampo, Niterói, v. 39, n. 1, p. 27-43, abr./jul. 2020.) por meio do controle da produtividade e do ritmo de trabalho definidos pelos aplicativos. O fenômeno da Uberização tornou o trabalhador um empreendedor de si mesmo, cuja consciência coletiva é cotidianamente pulverizada pelos ideais do individualismo e do empreendedorismo, os quais mascaram a condição de assalariamento.

No âmbito das particularidades nacionais, outra frente da ofensiva burguesa, citada por Miranda (2020MIRANDA, J. E. B. Existe uma nova direita no Brasil contemporâneo? In: SANTOS, M. A. M. B. dos; MIRANDA, J. E. B. (org.). Nova Direita, Bolsonarismo e Fascismo: Reflexões sobre o Brasil contemporâneo. Ponta Grossa: Texto e Contexto, 2020.), ocorre no terreno da luta de classes, por meio da cooptação de organizações como a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e o Partido dos Trabalhadores (PT), que passaram a atuar no sentido de colaboração e conciliação de interesses de classes divergentes. Esse movimento operou uma espécie de filantropização da militância política e deu fôlego para a atuação de associações, ONGs, fundações e institutos, que começaram a executar tarefas típicas de Estado e minimizar a necessidade do embate social.

Conectado com o movimento internacional de ascensão da (extrema) direita em diversas partes do mundo, Casimiro (2020CASIMIRO, F. H. C. A tragédia e a farsa: a ascensão das direitas no Brasil contemporâneo. São Paulo: Expressão Popular, Fundação Rosa Luxemburgo, 2020., 2016CASIMIRO, F. H. C. A tragédia e a farsa: a ascensão das direitas no Brasil contemporâneo. São Paulo: Expressão Popular, Fundação Rosa Luxemburgo, 2020.), Calil (2020CALIL, G. Brasil: o negacionismo da pandemia como estratégia de fascistização. Materialismo Storico, n. 2/2020 (vol. IX).) e Miranda (2020MIRANDA, J. E. B. Existe uma nova direita no Brasil contemporâneo? In: SANTOS, M. A. M. B. dos; MIRANDA, J. E. B. (org.). Nova Direita, Bolsonarismo e Fascismo: Reflexões sobre o Brasil contemporâneo. Ponta Grossa: Texto e Contexto, 2020.) apontam outro elemento da ofensiva burguesa que atua no campo da ideologia e da criação de consenso em torno dos interesses dominantes, qual seja, a elaboração da diversidade de aparelhos privados de hegemonia (APHs)2 2 A noção de aparelho privado de hegemonia em Gramsci se articula com o conceito de sociedade civil, de modo que ela aparece como “o conjunto de organismos chamados ‘privados’ e que correspondem à função de hegemonia que o grupo dominante exerce sobre toda a sociedade” (Gramsci apudSimionatto, 2011, p. 71). As classes antagônicas constituem os seus aparelhos privados para sistematizarem sua visão de mundo e torná-la dirigente e dominante. . Diante das transformações ocorridas na sociedade brasileira com a redemocratização, a guinada neoliberal e a instituição de governos petistas logo em seguida, as diversas frações de direita atuaram de modo a organizar novas estratégias e táticas na luta de classes contra os trabalhadores. Assim, a constituição dos APHs se relacionou à necessidade de a burguesia redefinir e atualizar as suas bases de dominação, bem como desenvolver modernas maneiras de se relacionar com o Estado (Miranda, 2020MIRANDA, J. E. B. Existe uma nova direita no Brasil contemporâneo? In: SANTOS, M. A. M. B. dos; MIRANDA, J. E. B. (org.). Nova Direita, Bolsonarismo e Fascismo: Reflexões sobre o Brasil contemporâneo. Ponta Grossa: Texto e Contexto, 2020.).

Calil (2020CALIL, G. Brasil: o negacionismo da pandemia como estratégia de fascistização. Materialismo Storico, n. 2/2020 (vol. IX).) demarca o ciclo do primeiro governo petista como sendo o período no qual se afirmou o avanço da direita - que já vinha em um processo de reconfiguração e atualização desde a redemocratização, avançando na década de 1990 - indo de encontro às narrativas ligadas ao PT, as quais asseguram que as mobilizações de 2013 (Jornadas de Junho) teriam sido o estopim para o despertar da direita. Segundo Calil (2020CALIL, G. Brasil: o negacionismo da pandemia como estratégia de fascistização. Materialismo Storico, n. 2/2020 (vol. IX)., p. 71), o fortalecimento delas:

[...] sustentou-se em dois pilares: a criação de múltiplos, variados e muito bem organizados aparelhos privados de hegemonia dedicados a propagar concepções meritocráticas, individualistas, ultraliberais, antissociais, fundamentalistas, anarcocapitalistas, armamentistas e muitas outras situadas no campo conservador; e a sistemática recusa ao embate ideológico por parte dos governos petistas, ao mesmo tempo em que se aliavam com e garantiam posições de poder a lideranças reacionárias que depois as usariam para apoiar o Golpe de 2016.

Sobre esse último elemento, cabe reforçar que a falta de resistência no campo popular abriu margem para a ascensão do Bolsonarismo, inclusive, tendo reverberado de forma desastrosa em amplos setores populares. Esse saldo negativo deriva tanto da institucionalização e transformismo sofridos pelos movimentos sociais e entidades organizativas com a chegada do Partido dos Trabalhadores (PT) ao poder, quanto do abandono dos ideais socialistas em favor da conciliação de classe e alianças com setores conservadores a exemplo da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD).

Voltando a tratar sobre a constituição dos APHs como parte da ofensiva burguesa, ressalta-se que esses aparelhos, sobretudo os de difusão ideológica, dão capilaridade a visões conservadoras, moralizantes, permeadas por concepções machistas, misóginas e homofóbicas, que ecoam no cotidiano da classe trabalhadora por meio de redes sociais e aplicativos de mensagens rápidas. Desse modo:

Através da multiplicação de uma miríade de aparelhos de difusão, gradativamente a ideologia dominante ganha notoriedade e força, adquire ressonância em diferentes espaços da vida social e as formas de atuação da burguesia estabelecem conexões nacionais e transnacionais. Tais aparelhos compõem o que se consumou denominar hoje de “nova direita” (Casimiro apud Miranda, 2020MIRANDA, J. E. B. Existe uma nova direita no Brasil contemporâneo? In: SANTOS, M. A. M. B. dos; MIRANDA, J. E. B. (org.). Nova Direita, Bolsonarismo e Fascismo: Reflexões sobre o Brasil contemporâneo. Ponta Grossa: Texto e Contexto, 2020., p. 34).

Casimiro (2016CASIMIRO, F. H. C. A Nova Direita no Brasil: aparelhos de ação político-ideológica e atualização das estratégias de dominação burguesa (1980-2014). Tese (Doutorado em História Social). Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2016., 2020CASIMIRO, F. H. C. A tragédia e a farsa: a ascensão das direitas no Brasil contemporâneo. São Paulo: Expressão Popular, Fundação Rosa Luxemburgo, 2020.) advoga a tese de que os diversos extratos da burguesia nacional constituem uma “Nova Direita”, tendo como elemento definidor o seu modus operandi, o qual se caracteriza pela materialização de rebuscados aparelhos privados de hegemonia que atuam como mediação na relação de dominação de classe e na captura da institucionalidade do Estado. Como consequência desse processo, ocorreu uma forte expansão de organizações sociais no Brasil, conforme demonstrou o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) (apudCasimiro, 2020CASIMIRO, F. H. C. A tragédia e a farsa: a ascensão das direitas no Brasil contemporâneo. São Paulo: Expressão Popular, Fundação Rosa Luxemburgo, 2020.), que, no ano de 2017, havia 820 mil Organizações da Sociedade Civil (OSCs), das quais 86% representavam associações sem fins lucrativos, 12% eram organizações religiosas, e 2%, fundações privadas. Considerando o período de 1996 a 2017, o crescimento foi aproximadamente de 680%.

O mesmo autor propõe uma divisão, meramente didática, entre os APHs em dois grandes grupos, haja vista que uma mesma organização pode apresentar as duas características: 1. os aparelhos privados de hegemonia estruturais, os quais estão voltados para a reconfiguração da ossatura do Estado (Casimiro, 2016CASIMIRO, F. H. C. A Nova Direita no Brasil: aparelhos de ação político-ideológica e atualização das estratégias de dominação burguesa (1980-2014). Tese (Doutorado em História Social). Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2016.); 2. os aparelhos de ação doutrinária, que são voltados para a disseminação da visão de mundo burguesa, incidindo sobre as crenças e valores das classes populares.

Para exemplificar o primeiro grupo analisado pelo referido autor, pode-se citar o Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (IEDI), o Instituto Atlântico, o Grupo de Líderes Empresariais (LIDE) e o Movimento Brasil Competitivo (MBC). Esses aparelhos atuam no sentido de penetrarem na própria institucionalidade do Estado, com a finalidade de incutir as concepções de mercado no setor público a exemplo dos ideais da meritocracia, do empreendedorismo, da sustentabilidade, da responsabilidade social e da eficiência. Além disso, os intelectuais orgânicos desses aparelhos passaram a integrar conselhos, setores e órgãos públicos, participando das tomadas de decisões, definições de diretrizes e constituição de políticas públicas (Casimiro, 2020CASIMIRO, F. H. C. A tragédia e a farsa: a ascensão das direitas no Brasil contemporâneo. São Paulo: Expressão Popular, Fundação Rosa Luxemburgo, 2020.).

Já em relação aos aparelhos de hegemonia doutrinários, o autor destacou os seguintes: Instituto Liberal (IL), Instituto de Estudos Empresariais (IEE), Instituto Milenium (IMIL), Instituto Von Mises Brasil (IMB) e Estudantes Pela Liberdade (EPL). Calil (2020CALIL, G. Brasil: o negacionismo da pandemia como estratégia de fascistização. Materialismo Storico, n. 2/2020 (vol. IX).) destaca a importância do Mídia Sem Máscaras (MSM) como aparelho de doutrinação, criado em 2002, tendo como figura central o autointitulado filósofo Olavo de Carvalho, cujo pensamento irracionalista, reacionário e fascistizante daria as bases ideológicas para o bolsonarismo.

O MSM constituiu-se como uma espécie de observatório da imprensa, a partir da denúncia de que toda a imprensa do país era comunista, logo, Carvalho se colocou como um intelectual de direita voltado à defesa da classe dominante, numa disputa ideológica que foi intitulada por ele como guerra cultural. O elemento estrutural do olavismo assentava-se no anticomunismo e no pânico moral. Suas ideias encontraram muitos adeptos porque elaborava respostas simples para os temores de pequena burguesia decadente, de modo a afirmar, por exemplo, que “marxistas, feministas e gays teriam provocado a crise da civilização cristã e empurrado a sociedade para o abismo (Bianchi apudCalil, 2021CALIL, G. Olavo de Carvalho e a ascensão da extrema-direita. Argum. Vitória, v. 13, n. 2, p. 64-82, maio/ago. 2021., p. 65).

Pela forte atuação nas redes sociais e nas mobilizações de rua durante o golpe de 2016, esses aparelhos privados, voltados à educação do consenso entre as massas, têm grande relevância para a constituição das forças que levou ao avanço bolsonarista. O interstício entre março de 2015 e março de 2016 foi marcado pelo retorno às ruas de grupos de direitas formados pelos setores médios da sociedade brasileira, reunidos em torno de pautas antidemocráticas e reacionárias, agregando conservadores e ultraliberais nas manifestações que legitimaram o golpe contra a então presidenta Dilma Housseff em 2016. Foi nesse meandro de insegurança política que as frações de direita mais tradicionais e os segmentos mais extremados e fascistizantes se unificaram e se acomodaram em torno do bolsonarismo.

Temos, assim, um heterogêneo e novo movimento político composto por uma direita autoritária que contribuiu para o aprofundamento da crise capitalista, possibilitando a ascensão de grupos ultraliberais na direção do Estado e reproduzindo as velhas táticas políticas de opressão, de manipulação e de clientelismo, adeptas ao discurso do anticomunismo e do combate à corrupção (Silva, 2021SILVA, S. A. da. Autoritarismo e crise da democracia no Brasil: entre o passado e o presente. R. Katál. Florianópolis, v. 24, n. 1, p. 119-126, jan./abr. 2021., p. 121).

Um cenário marcado por um conjunto de crises, como a econômica e a institucional, que golpeou o governo Dilma. A crise política de desqualificação da esquerda em meio aos escândalos de corrupção (os quais ganharam projeções internacionais com a Operação Lava Jato) e a própria crise de legitimidade da direita, fragmentada e dividida em diversos grupos divergentes, criaram as condições perfeitas para que um político com notoriedade irrelevante se deslocasse da posição de deputado “folclórico” pelas declarações polêmicas, machistas, racistas, misóginas e posturas autoritárias para o “mito” aclamado pela “nova” direita e sua base social identificada nas mobilizações de massa de 2015 e 2016. Logo, infere-se que Bolsonaro não foi simplesmente protagonista pela sua projeção social e vitória eleitoral em 2018, mas um outsider oportunista e bem assessorado pelas fatias mais conservadoras da direita.

3. As bases ideológicas de sustentação do bolsonarismo

A projeção nacional de Bolsonaro, em meio à reorganização política da direita, é permeada por uma construção política e ideológica que serviria de base para o bolsonarismo. Ao longo das quase três décadas em que atuou em mandatos parlamentares, sempre adotou posturas reacionárias e ideologizantes em torno de pautas morais, tendências fascistizantes, disseminação de discursos de ódio contra minorias sociopolíticas e defesa sistemática da ditadura militar. Sua identificação com o militarismo decorre da sua própria passagem pelo exército, de onde deriva a fidelidade eleitoral dos militares e seus familiares para com os bolsonaros, pela defesa de interesses corporativos das tropas em torno de salários e outros direitos.

Mattos (2020MATTOS, M. B. Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil. São Paulo: Usina Editorial, 2020.) fornece uma síntese dos pilares ideológicos que sustentam o bolsonarismo como face imediata do que ele denominou de “neofascismo à brasileira”. O autor aponta como primeiro elemento a busca por uma “teoria neofascista” por meio da apropriação e ressignificação de pensamentos conservadores já difundidos. Nessa direção é que se deve compreender a aproximação do clã Bolsonaro com Olavo de Carvalho, cujo objetivo era “[...] dotar o bolsonarismo de uma ‘filosofia’, no sentido de uma visão mais articulada e totalizante, que confere sentido a sua ação política” (Mattos, 2020MATTOS, M. B. Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil. São Paulo: Usina Editorial, 2020., p. 172).

O pensamento de Carvalho reciclou o pensamento ultradireitista norte-americano, disseminando uma “teoria” conspiratória, na qual estaria em curso uma espécie de dominação da esquerda por meio de uma revolução gramscista, cujo objetivo era se apropriar das mentes humanas, do sistema de ensino e da produção cultural. Como contraponto, o anticomunismo seria o elemento estruturador e unificador da ação política de diferentes grupos em torno do olavismo e do bolsonarismo. Esse é o fio condutor que dá sentido à perseguição do governo federal contra a produção científica, artística, literária e cultural em geral.

Outra dimensão do conspiracionismo bolsonarista materializado na questão ambiental tem a ver com a suposta associação de ativistas ambientalistas com forças internacionais justificadas pelo interesse na Amazônia, constituindo-se como uma espécie de “ameaça” às fronteiras nacionais. Como contraponto à ameaça, a saída seria entregar os recursos naturais à exploração capitalista que também é internacional, mas que gera lucro. Em seguida, Mattos (2020MATTOS, M. B. Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil. São Paulo: Usina Editorial, 2020.) chama a atenção para o nacionalismo como sendo outro pilar ideológico do bolsonarismo, mas salienta que é um nacionalismo vira-lata, que não ultrapassa o jargão “Brasil acima de tudo”, já que o entreguismo foi uma característica muito explícita da subordinação imperialista adotada desde 2018.

Outro eixo estruturante é a denúncia da ideologia de gênero e sua difusão nas escolas durante os governos petistas. O termo tem sido utilizado de forma indiscriminada contra qualquer esforço de educação sexual e combate ao sexismo e à LGBTfobia (Mattos, 2020MATTOS, M. B. Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil. São Paulo: Usina Editorial, 2020.). Inclusive foi uma grande pauta de arregimentação do voto conservador a propagação do “kit gay”, que na realidade foi inventado por Bolsonaro para desqualificar o adversário petista no processo eleitoral. A história foi forjada a partir do material proposto e nunca distribuído pelo Ministério da Educação (MEC), que se intitulava “Escola sem homofobia” e que não tinha nada a ver com o livro apresentado como kit gay. Nesse movimento, Bolsonaro passou a arregimentar a simpatia e o voto evangélico por se alinhar à defesa de pautas morais de setores conservadores alinhados pelos segmentos pentecostais.

Para finalizar, o “cimento ideológico”, que pavimenta o bolsonarismo. Mattos (2020MATTOS, M. B. Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil. São Paulo: Usina Editorial, 2020.) destaca a apologia à violência e ao discurso anticorrupção. Sobre a violência urbana, a saída seria a responsabilização individual pela própria segurança por meio da utilização de arma de fogo, que, segundo ele, foi um dos carros-chefe da propaganda eleitoral de Bolsonaro, o qual mudou a legislação para facilitar a compra, a posse e porte de armas, minando os avanços históricos conquistados com o estatuto do desarmamento. De forma irracionalista, o discurso anticorrupção também inflamou o ego dos “camisas amarelas”, que se fizeram presentes nas mobilizações reacionárias pelo golpe de Dilma e estavam diretamente conectados com o antipetismo, como se a corrupção fosse prerrogativa apenas do PT, refletindo na projeção de Bolsonaro um candidato ficha limpa. Aquém de suas vinculações com as milícias cariocas, havia denúncias de rachadinhas, superfaturamento na compra de vacinas contra a covid-19 e apropriação de joias sauditas como patrimônio pessoal.

4. O bolsonarismo e a dominação burguesa: uma concessão necessária

A figura caricata de Bolsonaro, com suas piadas de mau gosto e sua ignorância habitual, passou a ser tolerada pelas classes dominantes para levar às últimas consequências os ajustes internos necessários ao aprofundamento da superexploração da classe trabalhadora. Diante disso, houve uma convergência de interesses entre a burguesia nacional e o capital imperialista em torno de sua candidatura à presidência da república e sua consequente ascensão ao poder.

Embora haja interesses distintos e disputas internas entre os diversos grupos que compõem o governo Bolsonaro, destacadamente o núcleo militar, o núcleo ideológico olavista e o ultraliberal comandado por Paulo Guedes, o historiador Marcelo Badaró Mattos destaca que existem pautas relacionadas à retirada de direitos e à privatização do Estado que articulam todos esses grupos em torno de interesses comuns. Nas palavras do autor:

Militares, olavistas e ultraliberais convergiam em alguns momentos para apoiar determinadas linhas políticas do governo. O melhor exemplo se dá em torno à pauta econômica de retirada de direitos dos trabalhadores, aprofundando a superexploração da força de trabalho e a transferência de fundos públicos, serviços monopolizados pelo Estado e empresas estatais para o controle da acumulação privada (Mattos, 2020MATTOS, M. B. Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil. São Paulo: Usina Editorial, 2020., p. 234).

É sintomático ressaltar que as contrarreformas avançaram em diversas frentes no governo Bolsonaro, sejam elas por meio das privatizações, da desresponsabilização do Estado (explícito na questão ambiental) ou do desfinanciamento de políticas públicas, as quais se articularam diretamente com os interesses do capital financeiro internacional.

Internamente, a retirada de direitos foi o braço forte das políticas macroeconômicas do governo Bolsonaro. Como prova disso, destaca-se o retrocesso no âmbito da previdência social, com a imposição da idade mínima para a aposentaria fixada em 62/65 anos para mulheres/homens, respectivamente. Na prática, essa medida caducou com o direito de aposentadoria por tempo de contribuição e dificultou o acesso aos benefícios previdenciários para milhares de trabalhadores. O texto-base ainda previa uma pauta, que, embora não tenha sido aprovada, estava extremamente articulada com os interesses do capital rentista, que era o fim do princípio de solidariedade pelo regime de capitalização, no qual pretendia-se entregar as contribuições salariais para os bancos privados especularem no mercado financeiro, o que significaria a destruição da previdência pública brasileira (Mustafa; Bueno, 2020MUSTAFA, P. S.; BUENO, B. A atual (2019) contrarreforma da previdência social sob a égide do capital financeiro: análises críticas. Serv. Soc. Rev., Londrina, v. 23, n. 1, p. 256-278, jul./set. 2020.).

A salvaguarda da economia em detrimento das vidas humanas ficou muito clara durante o governo Bolsonaro, sobretudo na gestão da pandemia do novo coronavírus. Como resultado da adoção de medidas antipopulares, tem-se a volta do Brasil ao mapa da fome, conforme foi demonstrado pelo levantamento realizado pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO/ONU). De acordo com o estudo, 61 milhões de brasileiros enfrentaram dificuldades para se alimentar entre os anos de 2019 e 2021. Essas pessoas não tinham certeza do que iriam comer na próxima refeição. No penúltimo relatório, divulgado em 2015, o Brasil havia saído do mapa da fome, mas agora retornou numa situação de insegurança alimentar pior que a média global, haja vista que a faixa de corte para a fome crônica é de 2,5% da população passando por situação de falta de alimentos, e o Brasil atualmente apresenta uma realidade na qual 4,1% da sua população está passando fome. Para o diretor do Programa de Alimentos da ONU no Brasil, Daniel Baladan, a situação começou a piorar antes da pandemia como reflexo da desigualdade estrutural que existe no país (G1, 06/07/2022G1 - JORNAL NACIONAL: Brasil volta ao Mapa da Fome das Nações Unidas. Disponível em: Disponível em: https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2022/07/06/brasil-volta-ao-mapa-da-fome-das-nacoes-unidas.ghtml . Acesso em: 15 de jul. 2022.
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).

Conforme já ressaltado em outro momento, a primeira opção política da direita brasileira, em 2018, não era Bolsonaro, mas passou a ser pela sua popularidade entre setores médios e populares. Esse populismo de direita entre jovens, setores conservadores, classe média e pequenos empresários foi decisivo para arregimentar a classe dominante em torno daquilo que se convencionou chamar de bolsonarismo.

Numa análise de fôlego sobre o primeiro ano do governo Bolsonaro, o historiador Marcelo Badaró Mattos recorre às categorias analíticas do neofascismo e da autocracia burguesa como sendo elucidativas para compreender o fenômeno em curso. Ao longo deste artigo, alguns elementos do neofascismo à brasileira já foram abordados, contudo, de forma mais organizada, pode-se destacar que o autor utiliza o conceito supramencionado a partir de sua mutabilidade e adaptação em relação ao fascismo histórico, a ponto de não se rotular o regime político ou o governo Bolsonaro como fascista, mas sim alertar para uma dinâmica de “transição para o autoritarismo” levada a cabo por um presidente com tendências claramente neofascistas atuando num regime democrático em crise e em processo de corrosão de suas instituições (Mattos, 2020MATTOS, M. B. Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil. São Paulo: Usina Editorial, 2020.). Ressalvadas algumas divergências, Boito Jr. (2021BOITO JR., A. O caminho brasileiro para o fascismo. Caderno CRH, Salvador, v. 34, p. 1-23, 2021., p.8) nos oferece uma síntese do neofascismo bolsonarista:

O neofascismo surgiu no século XXI e, no caso brasileiro, na semiperiferia do sistema imperialista. É um movimento reacionário de massa predominantemente de alta classe média, e não pequeno-burguês; voltado contra o movimento democrático e popular, e não contra um movimento socialista e comunista de massa que não existe no Brasil atual; mobiliza uma crítica conservadora, de classe média, à corrupção e à política democrática, e chegou ao governo cooptado pelo capital financeiro internacional e pela fração da burguesia brasileira a ele integrada, e não por uma burguesia nacional expansionista que, de fato, não existe no Brasil.

No tópico anterior, ficou claro o conteúdo extremamente ideológico, manipulatório e conspiracionista do bolsonarismo, propagado por meio do discurso de ódio às minorias sexuais, com destaque para temas como misoginia, preconceito racial e social, anticomunismo, apelo anticorrupção e apologia à violência, tendo como inimigo declarado a própria população. Destaca-se também a sua base social assentada na pequena burguesia e nos setores médios, visivelmente expresso nas mobilizações de rua, no eleitorado que concedeu a vitória de Bolsonaro nas eleições de 2018 e nas carreatas da morte, em que, principalmente, os pequenos comerciantes se mobilizaram contra as medidas de isolamento social para contensão da pandemia do novo coronavírus. Outra característica ressaltada por Mattos (2020MATTOS, M. B. Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil. São Paulo: Usina Editorial, 2020.) é a estratégia de comunicação direta com a população por meio das redes sociais e a intensa propagação de fake news pelas milícias digitais. As redes sociais acabariam preenchendo a lacuna deixada pela ausência de constituição de um partido de massa neofascista, inviabilizado pelas divergências internas do bolsonarismo. Além disso, é um canal de comunicação que dá a ideia de proximidade popular, mas evita o confronto direto de ideias por permitir ao ex-presidente falar o que convém e fugir de respostas mais complexas, para quais nunca esteve preparado para enfrentar.

Portanto, seja pela sua base social, seja pelo conjunto de ideias que expressa, em especial de 2015 em diante, Jair Messias Bolsonaro configura-se claramente como fascista, apresentando-se e sendo tratado por seus seguidores como o “Mito”, uma designação muito característica e elucidativa da natureza da relação estabelecida (Calil, 2020CALIL, G. Brasil: o negacionismo da pandemia como estratégia de fascistização. Materialismo Storico, n. 2/2020 (vol. IX)., p. 98).

Mattos (2020MATTOS, M. B. Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil. São Paulo: Usina Editorial, 2020.) também recupera a noção de autocracia burguesa, cunhada por Florestan Fernandes, para evidenciar que, ao contrário dos países onde houve uma revolução burguesa clássica com forte associação entre capitalismo e democracia, no Brasil o que se constituiu foi a manutenção dos interesses das antigas classes dominantes metamorfoseadas em burguesia ascendente, consolidando uma ditadura de classe institucionalizada no poder do Estado. De modo que o desenvolvimento capitalista no país esteve sempre assentado em bases autocráticas, ou seja, capitalismo e autocracia asseguraram as transformações necessárias para a introdução nacional na ordem da dominação imperialista numa reiterada posição de dependência e subordinação. Além disso, mantiveram-se irretocáveis os problemas do desenvolvimento desigual interno, derivando daí a necessidade de uma contrarrevolução permanente e prolongada contra qualquer insurgência das classes populares que ponha em xeque o poder burguês. Assim sendo:

[...] Fernandes argumenta que as mais leves demonstrações de manifestação autônoma dos trabalhadores urbanos e/ou rurais seriam tomadas como sérias ameaças ao padrão burguês de dominação autocrática. Daí que tal dominação adquirisse um caráter permanentemente contrarrevolucionário (Mattos, 2020MATTOS, M. B. Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil. São Paulo: Usina Editorial, 2020., p. 102).

Seguindo esse raciocínio, Mattos (2020MATTOS, M. B. Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil. São Paulo: Usina Editorial, 2020., p. 236) advoga que a ascensão de Bolsonaro ao poder representa “[...] um momento em que a autocracia burguesa recorre ao neofascismo para garantir a contrarrevolução preventiva”. Embora o regime político ainda seja formalmente democrático, ele segue em crise e impermeável à absorção das demandas populares, numa clara tendência fascistizante. Assim sendo, infere-se que as manifestações de insatisfação popular expressas nas jornadas de junho de 2013, nas greves da educação, nas ocupações das escolas, nos movimentos de mulheres, entre outros, deixaram claro para as frações burguesas nacionais e estrangeiras que o governo petista “[...] já não era capaz de garantir a paz social, como também não teria capacidade para levar adiante a agenda de cortes nos gastos públicos e retiradas de direitos no ritmo e na profundidade que o grande capital passava a exigir” (Mattos, 2020MATTOS, M. B. Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil. São Paulo: Usina Editorial, 2020., p. 159).

Nessa perspectiva, o golpe de Temer em 2016 e a eleição vitoriosa de Bolsonaro dois anos depois tiveram o escopo de cumprir com essa função: garantir a extração do mais valor mediante o aprofundamento do grau de exploração e espoliação da classe trabalhadora num país de capitalismo periférico e dependente. Para tanto, de um lado, tem-se a implementação dos ajustes estruturais, fazendo passar a “boiada” das desregulamentações das legislações ambientais, previdenciárias, trabalhistas, assistenciais, educacionais etc. e, do outro, o recurso à violência neofascista como instrumento de contensão das classes populares, ações que se tornaram imprescindíveis para a manutenção da “ordem”, sendo necessária uma opressão sistemática para prevenir que elas se rebelem. É nesse sentido que se pode compreender o apelo de Bolsonaro ao uso de armas individualmente ou pelo braço forte do Estado, numa espécie de guerra de todos contra todos, como forma de gerir a miséria provocada e agravada pela crise do capitalismo selvagem existente no país.

5. Conclusão

Nos rumos da argumentação apresentada, pode-se dizer, portanto, que a ascensão da extrema-direita, representada pelo bolsonarismo, reatualiza a via autocrática de transformação capitalista no país de modo a ajustar a dinâmica interna aos interesses de acumulação global do capital. As velhas práticas do autoritarismo e da dominação burguesa são resgatadas, ressignificadas e apresentadas à população sob a nova roupagem do populismo bolsonarista com sua forma caricata de ser, com seu discurso raso, sua fama de “sincerão”, de representante político que fala a língua do povo e que leva o mesmo povo a aceitar, e o pior, defender a destruição de seus próprios direitos.

Nesse pacote de inovações, fazem parte das novas estratégias de comunicação e interação com a população: a utilização de vastos e elaborados aparelhos privados de hegemonia, a disseminação de blogs, as páginas de conteúdo conservador nas redes sociais, a utilização da internet para a realização de transmissões ao vivo, o disparo de fake news por aplicativos de mensagens e a desinformação em geral como parte da ofensiva ideológica da “nova”/velha direita.

Nesse jogo, a violência neofascista tornou-se um recurso de gestão contrarrevolucionária dos rebeldes e descontentes, sem contar que o clima de guerra que a ideologia bolsonarista vem propagando cotidianamente parece estar chegando a um nível irreversível. Para demonstrar a exacerbação desse clima de tensão, pode-se mencionar o assassinato político do guarda municipal Marcelo Arruda, em Foz do Iguaçu, no dia 10 de julho de 2022. A vítima estava comemorando seu aniversário de 50 anos em uma festa cujo tema era o PT e o ex-presidente Lula, quando teve o local invadido por um apoiador de Bolsonaro gritando palavras de ordem e efetuando disparos contra a vítima que veio a falecer. Embora o crime tenha sido claramente motivado por intolerância política, a polícia civil concluiu em seu inquérito que não houve motivação ideológica para a execução do homicídio, numa clara tentativa de blindar o ex-presidente Bolsonaro de ser responsabilizado por incitar a população à violência e ao ódio político. Aqui, claramente, a tendência ao autoritarismo pode ser facilmente identificada seja na radicalização da situação de violência entre civis, seja na descredibilização da polícia ao atuar de forma parcial e sectária, minando, portanto, as bases da democracia e do Estado de direito.

Referências

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  • SIMIONATTO, I. Gramsci: sua teoria, incidência no Brasil, influência no Serviço Social. 4 ed. São Paulo: Cortez, 2011.
  • 1
    Convém destacar que há alguma margem de autonomia entre a classe (burguesia) e a forma política (nova direita). Parte da construção política que culmina nessa forma é oriunda de setores de pequenos burgueses e da classe média.
  • 2
    A noção de aparelho privado de hegemonia em Gramsci se articula com o conceito de sociedade civil, de modo que ela aparece como “o conjunto de organismos chamados ‘privados’ e que correspondem à função de hegemonia que o grupo dominante exerce sobre toda a sociedade” (Gramsci apudSimionatto, 2011SIMIONATTO, I. Gramsci: sua teoria, incidência no Brasil, influência no Serviço Social. 4 ed. São Paulo: Cortez, 2011., p. 71). As classes antagônicas constituem os seus aparelhos privados para sistematizarem sua visão de mundo e torná-la dirigente e dominante.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    03 Ago 2023
  • Aceito
    18 Set 2023
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