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Endividamento da classe trabalhadora no Brasil: elementos para análise a partir da categoria superexploração da força de trabalho

Indebtedness of the working class in Brazil: elements for analysis based on the category of overexploitation of the workforce

Resumo:

Na era da financeirização do capital, o endividamento da classe trabalhadora tem se tornado um fenômeno global, presente tanto nas economias centrais, quanto na periferia do capitalismo. Este artigo contesta a pretensa homogeneidade desse fenômeno, evidenciando a vigência da categoria superexploração da força de trabalho para apreensão do modo particular - e altamente violento - com que o endividamento se expressa no Brasil.

Palavras-chave:
Endividamento; Superexploração da força de trabalho; Financeirização do capital

Abstract:

In the era of the financialization of capital, the indebtedness of the working class has become a global phenomenon, present in both the central economies and the periphery of capitalism. This article questions the supposed homogeneity of this phenomenon, highlighting the validity of the category of overexploitation of the workforce in order to understand the particular - and highly violent - way in which indebtedness is expressed in Brazil.

Keywords:
Indebtedness; Overexploitation of the workforce; Financialization of capital

1. Introdução

Apesar de o conceito de dívida apresentar uma história longínqua nas relações humanas, assumindo, inclusive, formas pretéritas às que conhecemos hoje (Graeber, 2011GRAEBER, D. Debt: the first 5.000 years. New York: Melville House Printing, 2011.), nunca se discutiu tanto sobre endividamento como no momento atual. Desde a crise financeira de 2008, mundialmente reconhecida como uma crise deflagrada pela dívida, cada vez mais os jornais têm noticiado recordes de endividamento dos países, das empresas e das famílias.

No campo da produção acadêmica, termos como “servidão por dívida” (Harvey, 2018HARVEY, D. A loucura da razão econômica: Marx e o capital no século XXI. São Paulo: Boitempo, 2018.), “expropriação financeira” (Lapavitsas, 2009LAPAVITSAS, C. Financialized capitalism: crisis and financial expropriation. Historical Materialism. v. 17, n. 2, p. 114-148, 2009.) e “financeirização da vida cotidiana” (Martin, 2002MARTIN, R. Financialization of daily life. Philadelphia: Temple University Press, 2002.; Langley, 2008LANGLEY, P. The everyday life of global finance: saving and borrowing in Anglo-America. Oxford: Oxford University Press, 2008.) vêm ganhando notoriedade, evidenciando que a dívida tem se entranhado cada vez mais na dinâmica de reprodução da vida, alterando radicalmente as experiências práticas e particulares das famílias trabalhadoras.

O aumento expressivo do endividamento das famílias é visto em todo o mundo. Países considerados “desenvolvidos” apresentam, inclusive, índices que estão entre os mais elevados. Em 2017, a Suíça, por exemplo, registrava um endividamento privado acima de 120% do Produto Interno Bruto (PIB), a Noruega de 100% do PIB e o Reino Unido de 85% do PIB (Zabai, 2017ZABAI, A. Deuda de los hogares: evolución reciente y retos. Informe Trimestral del BPI, dezembro de 2017. Disponível em: Disponível em: http://www.bis.org/publ/qtrpdf/r_qt1712f_es.pdf . Acesso em: 30 nov. 2022.
http://www.bis.org/publ/qtrpdf/r_qt1712f...
).

Do lado de cá, na periferia do capitalismo, embora a oferta de crédito seja recente e a relação dívida-PIB não tão expressiva1 1 Países como Brasil e México, por exemplo, apresentam um coeficiente de endividamento privado em torno de 20% do PIB (Zabai, 2017). , o número de famílias endividadas cresceu de forma acelerada nos últimos anos. No Chile, saltou de 59,1%, em 2010, para 74,9%, em 2019 (Libertad y Desarrollo, 2020Libertad y Desarrollo n. 1455. Radiografía al endeudamiento de los hogares chilenos. 2020. Disponível em: Disponível em: https://lyd.org/wp-content/uploads/2020/07/tp-1455-deuda-hogares.pdf . Acesso em: 19 nov. 2022.
https://lyd.org/wp-content/uploads/2020/...
). O mesmo também pode ser observado na Argentina, em que o percentual entre 2003 e 2019 subiu de 35% para 62% (DGISE, 2022DGISE. Dirección General de Información Social Estratégica. Estudio sobre endeudamientos de familias de sectores populares urbanos. 2022. Disponível em: Disponível em: https://www.argentina.gob.ar/sites/default/files/informe_endeudamiento_mds_unsam_mayo_2022.pdf . Acesso em: 10 set. 2023.
https://www.argentina.gob.ar/sites/defau...
). No México, o endividamento já alcança 56,9% das famílias (INEG, 2019INEG. Instituto Nacional de Estadística y Geografía; Banco de México. Encuesta nacional sobre las finanzas de los hogares. 2019. Disponível em: Disponível em: https://www.inegi.org.mx/contenidos/programas/enfih/2019/doc/enfih_2019_nota_tecnica.pdf . Acesso em: 19 nov. 2022.
https://www.inegi.org.mx/contenidos/prog...
).

O Brasil segue esta mesma tendência. Em 2010, quando a Pesquisa Nacional de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (PEIC) começou a ser apurada, o percentual de famílias endividadas era de 57%, saltando para aproximadamente 78%, em 2022 (CNC, 2022CNC. Confederação Nacional do Comércio. Pesquisa Nacional de Inadimplência do Consumidor (Perfil do endividamento anual 2022) . Disponível em: Disponível em: https://www.portaldocomercio.org.br/publicacoes/pesquisa-de-endividamento-e-inadimplencia-do-consumidor-peic-perfil-do-endividamento-anual-2022/459640 . Acesso em: 2 set. 2023.
https://www.portaldocomercio.org.br/publ...
). Ou seja, na atualidade, 8 em cada 10 famílias brasileiras têm algum tipo de dívida com o Sistema Financeiro Nacional2 2 Embora a dívida geralmente seja associada à inadimplência, é fundamental entender que o endividamento engloba qualquer tipo de compromisso financeiro com instituições financeiras, mesmo que os pagamentos estejam sendo feitos regularmente. Por isso, inclui desde cartões de crédito, cheque especial, cheque pré-datado, carnês de loja, crédito consignado, empréstimos pessoais, financiamentos imobiliários, financiamentos de veículos, até outras formas de compromisso financeiro. .

As determinações desse quadro só podem ser compreendidas se considerarmos que, na dinâmica do atual estágio do desenvolvimento capitalista, marcada pela financeirização do capital3 3 As raízes desse processo remontam o contexto de transição do século XIX para o século XX, que representa um estágio superior do desenvolvimento capitalista (Lênin, 2012). Contudo, um novo impulso é experimentado no período da crise dos anos 1970, quando a financeirização se expande globalmente de maneira agressiva, colocando em movimento um conjunto de processos econômicos, políticos e sociais que culminaram na reestruturação do trabalho, no redimensionamento do papel do Estado e na fetichização sem precedentes da sociabilidade. , o metabolismo da acumulação e toda a sociabilidade estão subjugados aos ditames do capital portador de juros - já anunciado por MarxMARX, K. O capital: crítica da economia política. O processo de produção do capital. Livro I. Tradução Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013. como “a matriz de todas as formas insanas de capital” (Marx, 2017MARX, K. O capital: crítica da economia política. O processo global da produção capitalista. Livro III. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 523) - e de sua forma exacerbada: o capital fictício4 4 O capital portador de juros aparece nas relações capitalistas como uma fonte autocriadora de juros. Em sua dinâmica de valorização, expressa no ciclo D - D’, todo o rastro de como o dinheiro emprestado se valoriza desaparece, criando a ilusão de que, pelos seus próprios atributos naturais, o dinheiro seria capaz de gerar mais dinheiro. O capital fictício, por sua vez, é a exacerbação dessa lógica para a esfera da especulação financeira, sendo denominado fictício por representar o direito de apropriação sobre a mais-valia futura. Ver mais em Marx (2017). .

A busca incessante por lucros e fontes de valorização do ciclo D - D’, própria desse tipo de capital, é o que impulsionou a generalização do crédito - antes restrito aos capitalistas - para a classe trabalhadora, um processo que começa a ser delineado no início do século XX nos Estados Unidos e se espraia para os países da Europa, com o advento do capitalismo tardio (Mandel, 1982MANDEL, E. O capitalismo tardio. São Paulo: Abril Cultural, 1982.).

De acordo com Moura (2016MOURA, R. Crédito consignado: potência inteiramente nova de expropriação do trabalho. 2016. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Escola de Serviço Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.), a expansão do crédito, nesse contexto, assume um duplo papel: possibilita a realização da mais-valia, ao mesmo tempo que se torna uma forma específica de consumo, permitindo o acesso a bens e serviços que não poderiam ser comprados apenas com os salários. Contudo, a autora adverte que, diferentemente do que ocorre entre capitalistas, os(as) trabalhadores(as) não produzem um novo valor com o dinheiro oriundo do crédito. Com isso, a remuneração do capital portador de juros é feita com parte do seu salário, o que impulsiona, de forma particular, a expropriação do trabalho (Moura, 2016MOURA, R. Crédito consignado: potência inteiramente nova de expropriação do trabalho. 2016. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Escola de Serviço Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.).

Isso nos leva a considerar que, embora o endividamento da classe trabalhadora seja um fenômeno global, presente tanto nas economias centrais, quanto na periferia do capitalismo, ele, certamente, não se objetiva da mesma forma em todos os lugares do mundo. Para apreender essa dinâmica, as contribuições da Teoria Marxista da Dependência (TMD)5 5 No contexto das décadas de 1960/1970, a efervescência das transformações societárias que marcaram esse período impulsionou um conjunto de intelectuais, entre sociólogos, economistas e militantes políticos, como Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos, Vânia Bambirra e André Gunder Frank, a se debruçar sobre os dilemas da teoria do desenvolvimento latino-americano sob a lente da análise marxiana, buscando superar os esquemas teóricos até então hegemônicos. Esse movimento inaugura o que ficou conhecido como “a vertente marxista da Teoria da Dependência”, um legado ainda hoje referenciado e examinado por diversos estudiosos que se propõem a decifrar as particularidades da realidade latino-americana. oferecem pistas fundamentais.

Na abrangência desse arcabouço, merece destaque a categoria superexploração da força de trabalho, elaborada por Ruy Mauro Marini (2005MARINI, R. M. Dialética da Dependência. In: Ruy Mauro Marini: vida e obra. Roberta Traspadini, João Pedro Stedile (org.). São Paulo: Expressão Popular, 2005.). Para o autor, esse mecanismo aparece em países de economia dependente, como o Brasil, enquanto uma estrutura de acumulação que se funda para compensar a relação de dependência com os países centrais.

Nessa dinâmica, a força de trabalho é submetida a uma superexploração, recebendo salários inferiores a seu valor e desprovida de condições essenciais para recuperar o desgaste adicional que lhe é imposto. Como resultado, os(as) trabalhadores(as) enfrentam condições laborais que aceleram o esgotamento de sua força de trabalho e condições de vida que frequentemente os impedem de satisfazer necessidades básicas de reprodução, incluindo alimentação adequada.

Ao assumirmos que, no Brasil, enquanto um país de economia dependente, a superexploração da força de trabalho é parte da lógica da acumulação: “o que representa o endividamento dos(as) trabalhadores(as)? Para uma força de trabalho que é superexplorada, remunerada abaixo do seu valor e impedida de consumir mesmo o estritamente necessário à sua reprodução, o que significa ter, ainda, uma parte do seu salário expropriada pelo capital portador de juros? Como a oferta de crédito se insere e se particulariza nessa dinâmica?”.

O argumento principal que conduz a nossa análise é o de que a financeirização do capital em países de economia dependente como o Brasil, com uma acumulação baseada na superexploração da força de trabalho, produz uma dinâmica particular de endividamento da classe trabalhadora, que, mesmo não estando entre as maiores do mundo em termos absolutos, tende a assumir contornos altamente violentos, alcançando proporções de um verdadeiro desastre social.

2. As determinações da categoria superexploração da força de trabalho

Conforme argumentado por Marini, a superexploração da força de trabalho é o fundamento da dependência. Para aprendê-la, é essencial considerar que um dos principais elementos da dependência são as várias formas de transferências de valor da periferia para o centro. Assim, à medida que são convocadas a contribuir para a acumulação de capital nos países centrais, as economias dependentes o fazem mediante o aumento da produção de valor excedente, alcançado por meio da superexploração de seus trabalhadores.

De acordo com Marini (2005MARINI, R. M. Dialética da Dependência. In: Ruy Mauro Marini: vida e obra. Roberta Traspadini, João Pedro Stedile (org.). São Paulo: Expressão Popular, 2005.) a superexploração opera por meio do desenvolvimento de três mecanismos fundamentais: i) a extensão da jornada de trabalho, ii) o aumento da intensidade do trabalho e a iii) a redução dos custos de reprodução da força de trabalho. Apoiado em um artigo menos difundido de Marini, Luce (2012LUCE, M. S. A superexploração da força de trabalho no Brasil. Sociedade Brasileira. Economia Política, São Paulo, ed. 32, p. 119-141, jun. 2012.), adiciona uma quarta modalidade: iv) o aumento do valor histórico social da força de trabalho sem a elevação correspondente da sua remuneração6 6 Trata-se de um desdobramento da terceira modalidade e que, por sua própria natureza, interessa sobremaneira à discussão do endividamento. Ver mais em Luce (2012). .

Nos dois primeiros mecanismos, o capital atenta contra o fundo de vida do(a) trabalhador(a), à medida que exige um dispêndio de força de trabalho superior ao que deveria existir normalmente, provocando seu esgotamento prematuro. Os desdobramentos desse processo para a classe trabalhadora brasileira são constitutivos da dinâmica das relações de trabalho no Brasil, historicamente marcadas pelos traços da informalidade, do desemprego estrutural e da precarização, e se expressam nitidamente nos altos índices de morte prematura, nos acidentes de trabalho e nas doenças do trabalho, explicitando o quanto as condições mínimas do trabalho assalariado protegido nunca foram uma realidade no nosso país.

Nos dois últimos mecanismos, o que é atacado é o fundo de consumo do(a) trabalhador(a), à medida que lhe são retiradas as possibilidades de consumir o estritamente necessário para reproduzir a sua força de trabalho em condições normais. De acordo com Luce (2013LUCE, M. S. Brasil: nova classe média ou novas formas de superexploração da classe trabalhadora? Trabalho, Educação e Saúde, v. 11, n. 1, p. 169-190, 2013.), a forma mais evidente desse ataque é a contratação do(a) trabalhador(a) abaixo do valor da força de trabalho, o que, a grosso modo, chamamos de arrocho salarial. Nesse contexto, a série histórica da Pesquisa Nacional da Cesta Básica de Alimentos do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese) é um exemplo notável. Ao comparar o salário-mínimo nacional com o valor necessário para que uma família trabalhadora sobreviva, a pesquisa revela que, ao longo da história, a força de trabalho no Brasil tem sido remunerada abaixo de seu valor7 7 Para calcular o salário-mínimo necessário, o Dieese considera o preceito constitucional, previsto no Decreto Lei n. 399 de 1938, de que o salário-mínimo é “a remuneração mínima devida a todo(a) trabalhador(a) adulto(a), sem distinção de sexo, por dia normal de serviço, capaz de satisfazer as suas necessidades normais de alimentação, habitação, vestuário, higiene e transporte” (Dieese, 2016, p. 8). . Em 2023, por exemplo, enquanto o salário mínimo nacional é de R$1.320,00, o salário mínimo necessário é R$ 6.528,93, evidenciando a necessidade de remuneração quase cinco vezes maior.

Contudo, o autor argumenta que essa situação se agrava devido ao fato de que a cesta de bens essenciais para a reprodução da força de trabalho sofre modificações à medida que as forças produtivas se desenvolvem. No entanto, ao contrário do que ocorreu nos países centrais nos períodos de crescimento econômico, nas economias dependentes, esse progresso não resulta em melhorias para a classe trabalhadora. Isso cria um hiato entre o valor histórico social da força de trabalho e a sua remuneração (Luce, 2013LUCE, M. S. Brasil: nova classe média ou novas formas de superexploração da classe trabalhadora? Trabalho, Educação e Saúde, v. 11, n. 1, p. 169-190, 2013.).

Ademais, Osório (2018OSORIO, J. Sobre superexploração e capitalismo dependente. Caderno CRH, v. 31, n. 84, p. 483-500, 2018. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-49792018000300004. Acesso em: 2 set. 2023.
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) destaca que a própria vocação exportadora das economias dependentes não favorece a criação de um mercado interno próprio para o consumo, à medida que gera estruturas produtivas afastadas das necessidades dos(as) trabalhadores(as) e cria um padrão de consumo pouco elevado, com acesso restrito a bens e serviços essenciais.

Nessas circunstâncias, o que tende a ocorrer é uma constante redução e até o cancelamento do consumo de determinados bens essenciais à reprodução da força de trabalho no Brasil. Comprar uma geladeira, uma máquina de lavar ou um celular, por exemplo, implica reduzir o consumo de carnes, verduras e frutas e/ou deixar de atender outras necessidades vitais (Osório, 2018OSORIO, J. Sobre superexploração e capitalismo dependente. Caderno CRH, v. 31, n. 84, p. 483-500, 2018. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-49792018000300004. Acesso em: 2 set. 2023.
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).

Isso significa que, sob as determinações da superexploração, a força de trabalho se reproduz no Brasil em condições precárias, seja pelo consumo deficiente de bens e serviços, que seriam necessários à sua reprodução, seja pelo seu esgotamento prematuro. Além dos(as) próprios(as) trabalhadores(as), seus filhos, que correspondem às gerações futuras de força de trabalho, também são impactados por essa dinâmica, impedidos desde a infância de acessar os meios essenciais - materiais e imateriais - para crescer e se desenvolver em condições mínimas.

Para Souza (2022SOUZA, C. L. S de. A indissociabilidade entre racismo e superexploração da força de trabalho no capitalismo dependente. Serviço Social & Sociedade n. 146. São Paulo: Cortez, maio/set. 2022, p. 16-35. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/sssoc/a/4XC6y7XCQj3L8RVFrSvGFGD/?format=pdf . Acesso em: 27 mar. 2023.
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), essa discussão no Brasil é indissociável da questão racial. Apoiada em autores como Clóvis Moura, Lélia Gonzalez e Maria Aparecida Bento, a autora reconstrói criticamente a categoria superexploração da força de trabalho, evidenciando que o racismo, longe de ser mera herança do passado, é um elemento que organiza e hierarquiza as relações de produção no capitalismo, sendo, portanto, determinado e determinante da superexploração da força de trabalho. Como resultado, essa relação dialética entre racismo e superexploração confere uma distribuição racializada do trabalho produtivo e do trabalho reprodutivo, relegando os piores postos de trabalho (limpeza urbana, trabalho doméstico, trabalhos de cuidado) e as piores condições de reprodução à população negra, em particular, às mulheres negras.

Considerando essas determinações, Osório (2018OSORIO, J. Sobre superexploração e capitalismo dependente. Caderno CRH, v. 31, n. 84, p. 483-500, 2018. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-49792018000300004. Acesso em: 2 set. 2023.
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) nos lembra que é um equívoco afirmar que a superexploração está presente em todo o sistema capitalista. Nas economias centrais, além de os salários abaixo do valor serem relativamente reduzidos, os(as) trabalhadores(as) representam um peso na conformação do mercado interno, fazendo com que o bem-estar material e imaterial seja mais generalizado.

Isso assinala que, apesar da dinâmica da financeirização impor cada vez mais a lógica da dívida como uma mediação necessária para a reprodução da força de trabalho em escala mundial, o endividamento da classe trabalhadora não se objetiva da mesma forma nas diversas economias que formam esse sistema, o que destaca a necessidade de uma análise mais detalhada das especificidades desse fenômeno no contexto brasileiro.

3. Endividamento e superexploração da força de trabalho no Brasil: elementos para análise

Frente a uma trajetória historicamente marcada por baixos salários e pela impossibilidade de acessar integralmente os meios necessários à sua sobrevivência, a relação da classe trabalhadora com a dívida não é algo novo no Brasil. Presente desde a constituição do “trabalho livre”, a lógica do “comprar agora e pagar depois”, expressa nas compras a prazo e no famoso “fiado”, foi sendo naturalizada, arraigando-se na cultura popular, ao passo que caracteriza, ainda hoje, parte significativa da dinâmica das relações de consumo no país.

Entretanto, isso não significa que o endividamento atual deva ser entendido como uma simples modernização das práticas já existentes. A inserção do Brasil na era da financeirização do capital transforma radicalmente a relação da classe trabalhadora com o endividamento, não só porque institucionaliza e generaliza o crédito, mas, sobretudo, porque eleva a dívida a um novo patamar, deslocando-a da condição de um mecanismo auxiliar, para promovê-la como meio fundamental para a reprodução da força de trabalho.

Nesse processo, a superexploração da força de trabalho desempenha um papel central, comparecendo dialeticamente como um elemento que determina e é determinado por esse novo cenário de endividamento. Para apreender essa dinâmica, é preciso considerar que a própria entrada do Brasil na era da financeirização do capital ocorre sob os traços da dependência, impactando diretamente na configuração do mercado de crédito e no modo particular como o endividamento se generaliza no país.

De acordo com Batista e Moraes (2012BATISTA, E.; MORAES, L. de C. G. A inserção do Brasil na financeirização capitalista e as articulações no mundo do trabalho: os setores bancário e industrial. Revista Novos Rumos. v. 49. Marília, 2012. p. 138-158. Disponível em: Disponível em: https://revistas.marilia.unesp.br/index.php/novosrumos/article/view/2377 . Acesso em: 20 fev. 2023.
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), as raízes dessa integração fazem parte de um projeto coordenado de expansão e internacionalização da economia que se origina nos anos 1960, no período da ditadura empresarial-cívico-militar, resultando em um modelo de sistema financeiro altamente oligopolizado, privatizado e internacionalizado. Com as reformas neoliberais dos anos 1990, expressas nas políticas de liberalização, desregulamentação e privatização, que marcaram a reestruturação produtiva brasileira, esse processo adquire um novo impulso, consolidando a inserção subordinada do Brasil na dinâmica da mundialização financeira do capital (Chesnais, 1996CHESNAIS, F. A mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996.).

Moura (2016MOURA, R. Crédito consignado: potência inteiramente nova de expropriação do trabalho. 2016. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Escola de Serviço Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.) observa que, apesar de a expansão e a institucionalização do crédito estarem em curso no Brasil desde a ditadura militar, foi somente nos anos 2000, durante os governos do Partido dos Trabalhadores (PT), que essa abordagem ganhou notoriedade, assumindo um status de política pública direcionada a incrementar o consumo e acelerar a economia no país. Nesse cenário, um relatório do Banco Central, apoiado em uma análise do Banco Mundial, expressava a sua preocupação com o baixo nível de bancarização da população brasileira, apontando para a necessidade de estímulo ao uso do crédito.

A análise feita pelo Banco Mundial identificou que em 2003 “apenas” 43% da população investigada possuía conta bancária. [...] O estudo mostrou, ainda, que somente 15% dos entrevistados haviam solicitado empréstimos em 2003, e que apenas 2/3 dessas solicitações foram aceitas. Com relação ao cartão de crédito, apenas 1⁄4 dos entrevistados o possuía e 77% afirmaram pagar as suas contas com dinheiro vivo (Moura, 2016MOURA, R. Crédito consignado: potência inteiramente nova de expropriação do trabalho. 2016. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Escola de Serviço Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016., p. 160).

Para atender aos anseios do capital centrado nas finanças, o Estado brasileiro passou a intervir de maneira mais direta na bancarização da população e na expansão do crédito. Essa estratégia, aliada às políticas de valorização do salário-mínimo, de crescimento do emprego formal e expansão dos benefícios sociais monetários - que foram os pilares dos governos Lula e Dilma - contribuiu para a rápida proliferação da oferta de crédito no país, de tal modo que as operações para pessoa física (aquelas destinadas às famílias trabalhadoras) se tornaram o carro-chefe do processo de consolidação do mercado de crédito brasileiro.

Nesse contexto, diferentes modalidades de crédito foram popularizadas, deixando de ser privilégio de camadas restritas da população para se tornarem amplamente acessíveis, sobretudo, às camadas mais empobrecidas. O cartão de crédito, por exemplo, que, em 1987, exigia comprovação de renda acima de cinco salários-mínimos, dez anos depois estava disponível para pessoas com renda abaixo de dois salários-mínimos (Ribeiro; Lara, 2016RIBEIRO, R. F.; LARA, R. O endividamento da classe trabalhadora no Brasil e o capitalismo manipulatório. In: Revista Serviço Social e Sociedade. n. 126. São Paulo: Cortez, 2016.). Além disso, a implementação de outras estratégias de estímulo ao consumo, como a redução de impostos na aquisição de automóveis e de produtos classificados como “linha branca” no setor de móveis e eletrodomésticos, possibilitou que muitas famílias, muitas delas pela primeira vez, adquirissem itens como refrigeradores, fogões e máquinas de lavar, historicamente negados pela dinâmica da superexploração da força de trabalho.

Contudo, Luce (2012LUCE, M. S. A superexploração da força de trabalho no Brasil. Sociedade Brasileira. Economia Política, São Paulo, ed. 32, p. 119-141, jun. 2012., 2013LUCE, M. S. Brasil: nova classe média ou novas formas de superexploração da classe trabalhadora? Trabalho, Educação e Saúde, v. 11, n. 1, p. 169-190, 2013.) adverte que, apesar de esse período ter sido significativo para uma população acostumada aos baixos salários e à negação do acesso a padrões mínimos de consumo, o aumento do poder de compra observado nos primeiros governos do PT apenas criou a aparência de que a classe trabalhadora obteve vantagens em relação ao capital, sem conseguir reverter os antagonismos de classe do capitalismo brasileiro. O que se constata é que as determinações da superexploração foram disfarçadas nesse período pelo acesso ao crédito, resultando no preocupante cenário de endividamento que se evidencia nos anos seguintes8 8 Não por acaso, 20 anos após implementar estratégias de expansão da oferta de crédito para toda a classe trabalhadora, o novo governo Lula se viu diante da necessidade de criar ações para mitigar os efeitos do endividamento, a exemplo do Programa Desenrola Brasil, aprovado em junho de 2023, com o intuito de incentivar a renegociação de dívidas e reintroduzir a população negativada ao circuito do crédito. .

Um marco significativo dessa dinâmica foi a regulamentação do crédito consignado em 2003, que trouxe maior segurança jurídica para as instituições financeiras, garantindo que, em pouco tempo, essa fosse uma das modalidades de crédito mais difundidas no país, principalmente entre servidores públicos e aposentados/pensionistas da Previdência Social9 9 Modalidade de crédito que entrou em vigor a partir da promulgação da Lei n. 10.820/2003 e que prevê o desconto automático das parcelas do empréstimo diretamente no salário e/ou benefício da(o) contratante, podendo comprometer até 40% (quarenta por cento) da sua renda mensal disponível, dos quais 5% (cinco por cento) são destinados à amortização de despesas contraídas com o cartão de crédito consignado. . Essa regulamentação provou ser altamente vantajosa para os bancos, que já nos primeiros dez anos viram o crédito consignado destinado para beneficiários da Previdência crescer “810% em operações realizadas e 576% em valor de empréstimos” (Moura, 2016MOURA, R. Crédito consignado: potência inteiramente nova de expropriação do trabalho. 2016. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Escola de Serviço Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.). Em uma realidade na qual a informalidade, o desemprego e os baixos salários são a regra, a renda paga pelo Estado a esses segmentos representa uma fonte segura de expropriação do capital portador de juros.

A engenharia expressa nesse tipo de crédito revela uma particularidade do endividamento no contexto da superexploração da força de trabalho no Brasil: diante das condições precárias de trabalho e de vida da população brasileira, o crédito avança mediante intervenção direta do Estado, que não só cria mecanismos para estimular o seu uso, como também mobiliza o fundo público de acordo com os interesses do capital portador de juros e do capital fictício, assumindo, muitas vezes, a posição de um fiador, um garantidor da operação.

Nesse contexto, é preciso considerar o papel de destaque que o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) assumiu no mercado de crédito no Brasil. Contrariando a sua natureza de ser uma forma de proteção do(a) trabalhador(a) em caso de demissão, o fundo passou a ser mobilizado para aquisição de imóveis próprios no contexto de expansão do Sistema Financeiro Habitacional e, inaugurada essa possibilidade, começou a ser utilizado como garantia de empréstimo consignado para trabalhadores(as) da iniciativa privada em 201610 10 Como forma de estimular os empréstimos consignados para trabalhadores(as) da iniciativa privada, a Lei n. 13.313/2016 autorizou o uso de até 10% do FGTS e até 100% da multa rescisória paga pelo empregador como garantia nas operações de crédito. , até se tornar ele mesmo objeto de empréstimo de bancos e financeiras a partir de 202011 11 Com a criação dessa nova linha de crédito, que prevê a antecipação de até 12 anos das parcelas do chamado Saque Aniversário do FGTS, até setembro de 2023 o total contratado via empréstimos somava mais de R$112 bilhões (Cardoso e Bretas, 2023). .

Cabe sublinhar ainda que a popularização e expansão do crédito caminhou lado a lado ao processo de financeirização das políticas sociais, conformando uma sociabilidade na qual as políticas mínimas operadas pelo Estado passaram a ser elementos da lógica das finanças (Granemann, 2007). Nesse contexto, o “sonho da casa própria”, o acesso à educação superior e, até mesmo, a saúde e a aposentadoria tornaram-se objeto de valorização do capital portador de juros e do capital fictício, promovendo a dívida como forma de atendimento às necessidades que deveriam ser ofertadas pelo Estado.

Essas estratégias demonstram a voracidade do capitalismo contemporâneo na era das finanças, que não hesita em criar mecanismos alternativos para dar vazão à sua necessidade de reprodução, adaptando-se às configurações particulares das economias periféricas. Como resultado, produz grande violência ao expropriar o fundo de consumo dos(as) trabalhadores(as) e os parcos direitos que lhes restam, avançando até mesmo sobre os setores mais empobrecidos da população.

Um exemplo marcante dessa investida é o controverso decreto do governo BolsonaroBRASIL. Decreto n. 11.170, de 11 de agosto de 2022. Dispõe sobre autorização de desconto para fins de amortização de empréstimos e financiamentos no âmbito do Programa Auxílio Brasil. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/decreto/d11170.htm . Acesso em: 28 ago. 2022.
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, promulgado em agosto de 2022, que autorizou a concessão de empréstimos consignados aos beneficiários do Programa Auxílio Brasil (Bolsa Família). Com base nesse decreto, as famílias foram autorizadas a comprometer até 40% do valor do benefício (na época R$ 400,00 por mês) com empréstimos. Em menos de três meses, essa modalidade de crédito movimentou um montante de R$ 9,47 bilhões aos bancos e financeiras, enquanto para as famílias, o valor médio do empréstimo era R$ 2.700, frequentemente utilizado para o consumo de itens de primeira necessidade (Pereira, 2022PEREIRA, M. Auxílio Brasil: uma em cada seis famílias beneficiárias solicitou empréstimo consignado. Portal de notícias do G1. Brasília, 12 de dezembro de 2022. Disponível em: Disponível em: https://g1.globo.com/economia/noticia/2022/12/12/auxilio-brasil-uma-em-cada-seis-familias-beneficiarias-solicitou-emprestimo-consignado.ghtml . Acesso em: 4 ago. 2023.
https://g1.globo.com/economia/noticia/20...
).

Segundo Cavallero e Gago (2021CAVALLERO, L.; GAGO, V. Uma leitura feminista da dívida: vivas, livres e sem dívidas nós queremos. 2. ed. Porto Alegre: Criação Humana, 2021., p. 30), isso ocorre porque a financeirização se expande e penetra em territórios periféricos, ignorando velha categorias políticas como “exclusão”, “marginalização” e “populações sobrantes”, para incluí-los no circuito das finanças, ainda que o trabalho assalariado formal, que sempre foi a unidade de medida dos bancos para a concessão do crédito, não seja a fonte de sobrevivência das famílias.

Nesse novo cenário, a dívida se torna um dispositivo comum que atravessa a heterogeneidade de atividades, fontes de renda, formas de contratação, expectativas e estratégias de sobrevivência da classe trabalhadora no Brasil. De servidores(as) públicos com estabilidade no emprego, passando por aposentados(as) e pensionistas da Previdência Social, trabalhadores(as) da iniciativa privada nas suas mais variadas formas de contratação, até trabalhadores(as) informais, desempregados(as), subempregados(as), beneficiários(as) de programas de transferência monetária, todos(as) convivem, em maior ou em menor medida, com o endividamento como mediação necessária para a reprodução da força de trabalho.

É crucial notar que, em 2022, quando o endividamento atingiu seu recorde, alcançando 78% das famílias brasileiras (CNC, 2022CNC. Confederação Nacional do Comércio. Pesquisa Nacional de Inadimplência do Consumidor (Perfil do endividamento anual 2022) . Disponível em: Disponível em: https://www.portaldocomercio.org.br/publicacoes/pesquisa-de-endividamento-e-inadimplencia-do-consumidor-peic-perfil-do-endividamento-anual-2022/459640 . Acesso em: 2 set. 2023.
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), o Brasil estava submerso em um cenário dramático, em curso desde o golpe de 2016, marcado pela aprovação das Reformas Trabalhista e Previdenciária, bem como pela implementação da PEC 95 (Teto dos Gastos), mas que foi agravado pelas diversas arbitrariedades de um governo de extrema direita, que levou o país ao quadro de grave estagnação econômica e instabilidade política.

Apesar de ser um dos maiores produtores de alimentos do mundo, o Brasil retornou ao Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas e, com a crise sanitária da covid-19 (que matou mais de 700 mil pessoas e teve quase 40 milhões de casos no país), viu esse quadro se agravar ainda mais. O relatório nacional “Olhe para a fome” revelou que, nesse período, 125,2 milhões de pessoas estavam em condição de insegurança alimentar e mais de 33 milhões passavam fome (OXFAM, 2022OXFAM et. al. II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil [livro eletrônico]. São Paulo: Fundação Friedrich Ebert, 2022. Disponível em: Disponível em: https://olheparaafome.com.br/#elementor-action%3Aaction%3Dpopup%3Aopen%26settings%3DeyJpZCI6IjE2NzMiLCJ0b2dnbGUiOmZhbHNlfQ%3D%3D . Acesso em: 29 jun. de 2023.
https://olheparaafome.com.br/#elementor-...
,). Os dados também revelaram uma conexão direta entre a insegurança alimentar e o crescimento do endividamento das famílias: mais de 40% daqueles que enfrentavam a fome estavam endividados (OXFAM, 2022OXFAM et. al. II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil [livro eletrônico]. São Paulo: Fundação Friedrich Ebert, 2022. Disponível em: Disponível em: https://olheparaafome.com.br/#elementor-action%3Aaction%3Dpopup%3Aopen%26settings%3DeyJpZCI6IjE2NzMiLCJ0b2dnbGUiOmZhbHNlfQ%3D%3D . Acesso em: 29 jun. de 2023.
https://olheparaafome.com.br/#elementor-...
).

Outro elemento a ser considerado é que, diferentemente do que ocorre nos países de economia central, em que o endividamento está relacionado majoritariamente à aquisição de bens duráveis como imóveis, por exemplo, no Brasil, o cartão de crédito é o principal meio de endividamento para 86,6% das famílias brasileiras (CNC, 2022CNC. Confederação Nacional do Comércio. Pesquisa Nacional de Inadimplência do Consumidor (Perfil do endividamento anual 2022) . Disponível em: Disponível em: https://www.portaldocomercio.org.br/publicacoes/pesquisa-de-endividamento-e-inadimplencia-do-consumidor-peic-perfil-do-endividamento-anual-2022/459640 . Acesso em: 2 set. 2023.
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). Além disso, 69% das compras feitas com cartão são destinadas ao atendimento de necessidades básicas, como alimentos e medicamentos, o que demonstra que mesmo as necessidades vitais passaram a ser financiadas no âmbito do endividamento.

Essa realidade ilustra o modo como a dívida aprofunda, ao mesmo tempo, a violação do fundo de consumo e do fundo de vida do(a) trabalhador(a). O compromisso mensal com os serviços da dívida significa uma renúncia ainda maior dos já precários meios de sobrevivência da família trabalhadora no Brasil. Por outro lado, ao se endividar o(a) trabalhador(a) está se comprometendo com a exploração futura de sua força de trabalho.

[...] ao ter de endividar-se para acessar tais valores de uso, os indivíduos da família trabalhadora estarão ou se submetendo a uma violação de seu fundo de vida para compensar parcialmente a insuficiência de seu fundo de consumo ou comprometendo o seu próprio fundo de consumo futuro, mediante endividamento, na tentativa de compensar a sua violação no presente (Luce, 2013LUCE, M. S. Brasil: nova classe média ou novas formas de superexploração da classe trabalhadora? Trabalho, Educação e Saúde, v. 11, n. 1, p. 169-190, 2013., p. 184).

Por fim, cabe sublinhar que, embora seja um mecanismo que se tornou transversal, a dívida não é capaz de ignorar as profundas desigualdades que estruturam as relações sociais no Brasil. Pela posição que ocupam, dentro e fora das famílias, como as principais responsáveis pela manutenção, regeneração e reposição geracional da força de trabalho (Vogel, 2022VOGEL, L. Marxismo e a opressão às mulheres, rumo a uma teoria unitária. São Paulo: Expressão Popular, 2022.), bem como considerando o modo como as determinações de raça e gênero incidem sobre a cesta de bens e sobre o próprio valor da força de trabalho (Bhattacharya, 2023BHATTACHARYA, T. Como não passar por cima da classe. In: Teoria da Reprodução Social: remapeamento de classe, recentralização da opressão / Tithi Bhattacharya (org.). Trad. Juliana Penna. São Paulo: Elefante, 2023.)12 12 Esse debate é parte das formulações da Teoria da Reprodução Social (TRS) que, pelos limites estabelecidos neste ensaio, não podem ser mais bem desenvolvidas. Ainda assim, cabe registrar que a investigação sobre como ocorrem a produção e a reprodução diária e geracional da força de trabalho é algo que escapa às elaborações marxianas e à própria TMD, evidenciando o quanto as interlocuções com a TRS podem ser profícuas. , as mulheres encontram-se no cerne dessa discussão e, não por acaso, aparecem nas pesquisas como as mais endividadas e mais inadimplentes, revelando o caráter generificado do endividamento no Brasil13 13 As mulheres têm sido o alvo preferencial do endividamento no Brasil: quase 80% delas estão endividadas e 29,5%, com dívidas em atraso (CNC, 2022, p. 8). .

Ademais, embora as pesquisas sejam omissas em relação ao quesito raça/cor das famílias endividadas, ao articular endividamento e superexploração da força de trabalho, nos termos apontados por Souza (2022SOUZA, C. L. S de. A indissociabilidade entre racismo e superexploração da força de trabalho no capitalismo dependente. Serviço Social & Sociedade n. 146. São Paulo: Cortez, maio/set. 2022, p. 16-35. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/j/sssoc/a/4XC6y7XCQj3L8RVFrSvGFGD/?format=pdf . Acesso em: 27 mar. 2023.
https://www.scielo.br/j/sssoc/a/4XC6y7XC...
), é possível inferir que esse caráter é ainda determinado pelo racismo, o que faz com que a dívida recaia com maior força sobre as mulheres negras. Isso significa dizer que a lógica da dívida responde, de modo particular, não só à relação dialética imposta pela dependência entre países do centro e da periferia do capitalismo, como também atua sobre a dinâmica interna das economias dependentes, aprofundando as desigualdades já existentes entre a classe trabalhadora.

4. Considerações finais

Considerando que o endividamento da classe trabalhadora ainda tem recebido pouca atenção no campo da tradição marxista, o artigo oferece alguns elementos para uma análise crítica sobre o tema e evidencia a vigência da categoria superexploração da força de trabalho, para iluminar as particularidades desse fenômeno, em um país de capitalismo dependente como o Brasil.

Trata-se de uma análise exploratória, fruto de um esforço de articulação entre dois temas comumente tratados em separado, mas que, na realidade brasileira, encontram-se dialeticamente entrelaçados. As particularidades aqui delineadas indicam que, embora o endividamento da classe trabalhadora seja um fenômeno global, sob as determinações da superexploração da força de trabalho, esse fenômeno assume contornos altamente violentos, alcançando proporções de um verdadeiro desastre social.

Longe de esgotar o assunto, essa discussão articulada revela a necessidade de novas pesquisas, e de maiores aprofundamentos, explicitando que o campo de análise que se abre com a Teoria Marxista da Dependência, em particular com o legado de Ruy Mauro Marini, segue pulsante e dispõe das ferramentas necessárias para decifrar os desafios do presente.

Referências

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    » http://www.bis.org/publ/qtrpdf/r_qt1712f_es.pdf
  • 1
    Países como Brasil e México, por exemplo, apresentam um coeficiente de endividamento privado em torno de 20% do PIB (Zabai, 2017ZABAI, A. Deuda de los hogares: evolución reciente y retos. Informe Trimestral del BPI, dezembro de 2017. Disponível em: Disponível em: http://www.bis.org/publ/qtrpdf/r_qt1712f_es.pdf . Acesso em: 30 nov. 2022.
    http://www.bis.org/publ/qtrpdf/r_qt1712f...
    ).
  • 2
    Embora a dívida geralmente seja associada à inadimplência, é fundamental entender que o endividamento engloba qualquer tipo de compromisso financeiro com instituições financeiras, mesmo que os pagamentos estejam sendo feitos regularmente. Por isso, inclui desde cartões de crédito, cheque especial, cheque pré-datado, carnês de loja, crédito consignado, empréstimos pessoais, financiamentos imobiliários, financiamentos de veículos, até outras formas de compromisso financeiro.
  • 3
    As raízes desse processo remontam o contexto de transição do século XIX para o século XX, que representa um estágio superior do desenvolvimento capitalista (Lênin, 2012). Contudo, um novo impulso é experimentado no período da crise dos anos 1970, quando a financeirização se expande globalmente de maneira agressiva, colocando em movimento um conjunto de processos econômicos, políticos e sociais que culminaram na reestruturação do trabalho, no redimensionamento do papel do Estado e na fetichização sem precedentes da sociabilidade.
  • 4
    O capital portador de juros aparece nas relações capitalistas como uma fonte autocriadora de juros. Em sua dinâmica de valorização, expressa no ciclo D - D’, todo o rastro de como o dinheiro emprestado se valoriza desaparece, criando a ilusão de que, pelos seus próprios atributos naturais, o dinheiro seria capaz de gerar mais dinheiro. O capital fictício, por sua vez, é a exacerbação dessa lógica para a esfera da especulação financeira, sendo denominado fictício por representar o direito de apropriação sobre a mais-valia futura. Ver mais em Marx (2017MARX, K. O capital: crítica da economia política. O processo global da produção capitalista. Livro III. São Paulo: Boitempo, 2017.).
  • 5
    No contexto das décadas de 1960/1970, a efervescência das transformações societárias que marcaram esse período impulsionou um conjunto de intelectuais, entre sociólogos, economistas e militantes políticos, como Ruy Mauro Marini, Theotônio dos Santos, Vânia Bambirra e André Gunder Frank, a se debruçar sobre os dilemas da teoria do desenvolvimento latino-americano sob a lente da análise marxiana, buscando superar os esquemas teóricos até então hegemônicos. Esse movimento inaugura o que ficou conhecido como “a vertente marxista da Teoria da Dependência”, um legado ainda hoje referenciado e examinado por diversos estudiosos que se propõem a decifrar as particularidades da realidade latino-americana.
  • 6
    Trata-se de um desdobramento da terceira modalidade e que, por sua própria natureza, interessa sobremaneira à discussão do endividamento. Ver mais em Luce (2012LUCE, M. S. A superexploração da força de trabalho no Brasil. Sociedade Brasileira. Economia Política, São Paulo, ed. 32, p. 119-141, jun. 2012.).
  • 7
    Para calcular o salário-mínimo necessário, o Dieese considera o preceito constitucional, previsto no Decreto Lei n. 399 de 1938, de que o salário-mínimo é “a remuneração mínima devida a todo(a) trabalhador(a) adulto(a), sem distinção de sexo, por dia normal de serviço, capaz de satisfazer as suas necessidades normais de alimentação, habitação, vestuário, higiene e transporte” (Dieese, 2016DIEESE. Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos. Metodologia da Pesquisa Nacional da Cesta Básica de Alimentos. Janeiro de 2016. Disponível em: Disponível em: http://www.dieese.org.br/metodologia/metodologiaCestaBasica2016.pdf . Acesso em: 4 set. 2023.
    http://www.dieese.org.br/metodologia/met...
    , p. 8).
  • 8
    Não por acaso, 20 anos após implementar estratégias de expansão da oferta de crédito para toda a classe trabalhadora, o novo governo Lula se viu diante da necessidade de criar ações para mitigar os efeitos do endividamento, a exemplo do Programa Desenrola Brasil, aprovado em junho de 2023, com o intuito de incentivar a renegociação de dívidas e reintroduzir a população negativada ao circuito do crédito.
  • 9
    Modalidade de crédito que entrou em vigor a partir da promulgação da Lei n. 10.820/2003BRASIL. Lei n. 10.820, de 17 de dezembro de 2003. Dispõe sobre a autorização para desconto de prestações em folha de pagamento, e dá outras providências. Disponível em: Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.820.htm . Acesso em: 10 jul. 2016.
    http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
    e que prevê o desconto automático das parcelas do empréstimo diretamente no salário e/ou benefício da(o) contratante, podendo comprometer até 40% (quarenta por cento) da sua renda mensal disponível, dos quais 5% (cinco por cento) são destinados à amortização de despesas contraídas com o cartão de crédito consignado.
  • 10
    Como forma de estimular os empréstimos consignados para trabalhadores(as) da iniciativa privada, a Lei n. 13.313/2016 autorizou o uso de até 10% do FGTS e até 100% da multa rescisória paga pelo empregador como garantia nas operações de crédito.
  • 11
    Com a criação dessa nova linha de crédito, que prevê a antecipação de até 12 anos das parcelas do chamado Saque Aniversário do FGTS, até setembro de 2023 o total contratado via empréstimos somava mais de R$112 bilhões (Cardoso e Bretas, 2023CARDOSO, L. e BRETAS, P. FGTS: bancos já antecipam até 12 anos de saque-aniversário. Empréstimos já somam R$ 49 bi este ano. Jornal O Globo. Rio de Janeiro, 26 de setembro de 2023. Disponível em: Disponível em: https://oglobo.globo.com/economia/noticia/2023/09/26/fgts-com-risco-baixo-bancos-antecipam-ate-12-anos-de-saque-aniversario.ghtml . Acesso em: 30 set. 2023.
    https://oglobo.globo.com/economia/notici...
    ).
  • 12
    Esse debate é parte das formulações da Teoria da Reprodução Social (TRS) que, pelos limites estabelecidos neste ensaio, não podem ser mais bem desenvolvidas. Ainda assim, cabe registrar que a investigação sobre como ocorrem a produção e a reprodução diária e geracional da força de trabalho é algo que escapa às elaborações marxianas e à própria TMD, evidenciando o quanto as interlocuções com a TRS podem ser profícuas.
  • 13
    As mulheres têm sido o alvo preferencial do endividamento no Brasil: quase 80% delas estão endividadas e 29,5%, com dívidas em atraso (CNC, 2022CNC. Confederação Nacional do Comércio. Pesquisa Nacional de Inadimplência do Consumidor (Perfil do endividamento anual 2022) . Disponível em: Disponível em: https://www.portaldocomercio.org.br/publicacoes/pesquisa-de-endividamento-e-inadimplencia-do-consumidor-peic-perfil-do-endividamento-anual-2022/459640 . Acesso em: 2 set. 2023.
    https://www.portaldocomercio.org.br/publ...
    , p. 8).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    05 Out 2023
  • Aceito
    20 Out 2023
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