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Preconceitos no cotidiano escolar - Ensino e medicalização

Preconceitos no cotidiano escolar — Ensino e medicalização* * Resenha do livro de Collares, Cecília A.L. e Moysés, M. Aparecida A. Preconceitos no cotidiano escolar: Ensino e medicalização. São Paulo, Cortez, 1996. ** Doutora em Educação pela UFRJ e professora titular de Educação na Universidade Federal Fluminense.

Regina Leite Garcia** * Resenha do livro de Collares, Cecília A.L. e Moysés, M. Aparecida A. Preconceitos no cotidiano escolar: Ensino e medicalização. São Paulo, Cortez, 1996. ** Doutora em Educação pela UFRJ e professora titular de Educação na Universidade Federal Fluminense.

Cecília e Maria Aparecida abrem seu Preconceitos no cotidiano escolar – Ensino e medicalização já impactando o leitor. A história de Reginaldo, terrível, é paradigmática. Quem já andou pelas escolas brasileiras sabe quantos Reginaldos encontrou. Crianças normais, até que alguém, com a autoridade do lugar social que ocupa, a encaminha para o Serviço de Saúde, solicitando um eletroencefalograma a partir de seu pré-diagnóstico. Pouco a pouco a dúvida vai se instalando na família. Aquela mãe que, ao ser entrevistada, afirmara "...eu não entendo, porque acho que quando uma pessoa é ruim da cabeça, não tem raciocínio para nada", e aquele pai que antes lutava para defender a normalidade de seu filho começam, ambos, a desacreditar de sua capacidade de avaliar ..."quem sabe a professora está certa e meu filho não aprende porque é mesmo doente e nós é que não víamos?", devem perguntar-se ambos.

Assim vai se fechando o cerco e a própria criança, no caso o Reginaldo, como tantos Reginaldos, ao não conseguir fazer o dever, admite, desesperada: "Eu sei, eu sei que sou doido, vou passar no médico e precisar ficar internado uns dez anos." Seus colegas de classe, seus irmão, quando querem atacá-lo, afirmam com desdém: "Bem que a professora fala que tem problema."

Talvez as sessões de tortura não produzam efeitos tão devastadores quanto a exposição dos alunos àquilo que acontece em algumas escolas, quando as professoras, já no início da escolaridade, fazem os seus "diagnósticos", separando as crianças que irão aprender e as que não conseguirão fazê-lo, e, sem se dar conta, anunciam, como um anjo perverso, o futuro fracasso escolar.

Valendo-se de uma metodologia etnográfica, as autoras vão penetrando no universo da escola na busca de compreensão do problema da repetência e da exclusão de crianças e jovens, sempre das classes populares, em geral negros ou mestiços. E vão encontrando respostas para as suas perguntas iniciais:

• Como a criança e a família reagem ao fracasso escolar e ao estigma?

• Como a escola e as professoras a percebem?

• Qual a dimensão da patologização do desempenho escolar?

• Que mecanismos a informam e mantêm?

A pesquisa rompe com o consenso, ousa outras explicações, desvela o que acontece dentro da escola e da sala de aula e, apesar de tudo o que descobre, ao final, leva as duas pesquisadoras a afirmar que transformar é possível. Sua palavra final é: "Se, porém, pretendemos ser agentes efetivos de transformação social, sujeitos da história, fica o desafio de sermos capazes de nos infiltrar na vida cotidiana, quebrar seus sistemas de preconceitos e retomar a cotidianidade em outra direção."

Para quem pretender tomar outra direção à do fracasso escolar, é indispensável a leitura deste livro, que vai nos apresentando evidências empíricas de que José de Souza Martins e Victor Valla estão certos ao afirmar que "a crise da compreensão é nossa".

Como poderia ver diferente a professora que foi ensinada a ver as crianças com as lentes deformadas da patologização?

Felizes aqueles que pensam que este é um tema já estudado e superado. Deles será o reino dos céus... se ingênuos forem... Quanto a mim, entendo que este livro deveria constar da bibliografia de todos os que trabalham na formação de professores, seja a inicial seja a continuada. Com os subsídios deste livro acredito que poderemos desconstruir a falsa idéia de que as crianças e os jovens não aprendem por terem "problemas de saúde", e apresentar às professoras as conseqüências deste diagnóstico infundado de doença na formação do autoconceito e da auto-estima. E eu pergunto: Será que alguém pode aprender quando se considera incapaz de aprender, ou, melhor dizendo, será que alguém consegue fazer qualquer coisa se descrê de si mesmo?

Depoimentos de professoras e diretoras vão sendo apresentados e as crianças vão recebendo os rótulos: "dificuldade de aprendizagem", "dislexia", "distúrbios", "disfunções neurológicas", "desnutrição", "disfunção cerebral". Os rótulos variam, mas a conseqüência é a mesma – a imputação à vítima da responsabilidade do fracasso escolar.

Mas as autoras não vão pelo caminho mais fácil de deslocar a culpa das crianças para as professoras. Elas sabem que o que acontece na escola vem de longe e faz parte da luta que se trava em todos os espaços da sociedade. E denunciam, perguntando:

• Como se origina e se dissemina, tornando-se consensual, uma forma de pensar a escola e as pessoas que permite conviver, aparentemente de forma pacífica, com este fracasso, que é de cada um e é de todos?

• Como pode se manter este processo de culpabilização de pessoas, seja a criança, a mãe ou a professora, quando todos são vítimas e sofrem?

• O que faz a professora, que também é vítima, assumir o papel de agente acusador, quando se percebe em sua fala sua própria angústia e ambigüidade?

• Como se naturaliza uma violência social contra quase todos?

É disto que trata o livro, leitura obrigatória para quem quer ver a escola sem os véus que a encobrem e não se conforma com o fracasso escolar.

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    Resenha do livro de Collares, Cecília A.L. e Moysés, M. Aparecida A.
    Preconceitos no cotidiano escolar: Ensino e medicalização. São Paulo, Cortez, 1996.
    ** Doutora em Educação pela UFRJ e professora titular de Educação na Universidade Federal Fluminense.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      21 Jun 2001
    • Data do Fascículo
      Ago 1997
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