Acessibilidade / Reportar erro

A dialética entre a concepção e a prática da gestão democrática no âmbito da educação básica no Brasil

The dialectics between the conception and the practice of democratic administration in the basic education level in Brazil

Resumos

Este artigo resgata o avanço das análises teóricas sobre a influência do "modelo empresarial" no funcionamento do sistema educacional brasileiro, desde os anos da ditadura militar. Ressalta que as experiências práticas de gestão democrática da educação básica realizadas em administrações municipais de caráter democrático-popular necessitam ser avaliadas e expandidas para que se materializem as concepções avançadas de educação desenvolvidas pelos setores progressistas que são assimiladas e ressignificadas pelos grupos hegemônicos que atuam nas três instâncias de poder político e administrativo federal, estadual e municipal. São apresentados exemplos e sugestões de encaminhamento político-pedagógico para acirrar a contradição diante da política impositiva do governo, implementada sob a égide do Banco Mundial, de modo que os setores progressistas no cotidiano do funcionamento das escolas e dos sistemas de ensino resgatem os princípios, as concepções e metodologias que foram diluídos e negados no texto da "LDB oficial" para desenvolver o Plano Nacional de Educação.

Política educacional; gestão democrática; administração de sistemas educacionais; projetos político-pedagógicos; democratização da educação


This article demonstrates the advance of theoretical analyses about the influence of the "enterprises's pattern of administration" in the management of brazilian educational system. It points out the necessity to evaluate the practical experiences of democratic administration of the basic education level developed by the municipal administration with a popular and democratic character in order to expand and to materialize these experiences based on the advanced conceptions of education elaborated by progressive educational sectors.The hegemonic groups in the city, state and federal levels of the government used to assimilate these progressive conceptions to redefine them towards their insterests. Some examples are presented and also some suggestions of political and pedagogical procedures to expand opposed tendency among teachers in the schools, against the government politics, realized according the determinations of the World Bank . This progressive sectors of education needs to rescue the principles, conceptions and the methodologies that were ignored by the government in the context of the "Oficial LDB" to develop The National Plan of Education.


A dialética entre a concepção e a prática da gestão democrática no âmbito da educação básica no Brasil

Maria de Fatima Felix Rosar* * Professora Adjunta da UFMA. Doutora em Educação pela FE da Unicamp. Coordenadora do Grupo de Pesquisa de Política de Educação Básica da UFMA. Email: rosar@dglnet.com.br

RESUMO: Este artigo resgata o avanço das análises teóricas sobre a influência do "modelo empresarial" no funcionamento do sistema educacional brasileiro, desde os anos da ditadura militar. Ressalta que as experiências práticas de gestão democrática da educação básica realizadas em administrações municipais de caráter democrático-popular necessitam ser avaliadas e expandidas para que se materializem as concepções avançadas de educação desenvolvidas pelos setores progressistas que são assimiladas e ressignificadas pelos grupos hegemônicos que atuam nas três instâncias de poder político e administrativo federal, estadual e municipal. São apresentados exemplos e sugestões de encaminhamento político-pedagógico para acirrar a contradição diante da política impositiva do governo, implementada sob a égide do Banco Mundial, de modo que os setores progressistas no cotidiano do funcionamento das escolas e dos sistemas de ensino resgatem os princípios, as concepções e metodologias que foram diluídos e negados no texto da "LDB oficial" para desenvolver o Plano Nacional de Educação.

Palavras-chave: Política educacional, gestão democrática, administração de sistemas educacionais, projetos político-pedagógicos, democratização da educação

No final da década de 1970 e nos anos 80, deu-se um aprofundamento da perspectiva teórica na área da administração educacional, que introduziu a crítica aos seus fundamentos originados das teorias empresariais. Esse esforço teórico empreendido por um grupo significativo de estudiosos permitiu identificar os nexos da administração, tanto empresarial como educacional, com o processo de desenvolvimento do capitalismo em termos mundiais e no Brasil.

No caso do Brasil, na área da educação, foi possível apreender uma relativa sincronia entre o desenvolvimento da área de administração de empresas e o "modelo" de sistema educacional implementado pelas reformas realizadas durante os governos militares. No âmbito mais geral do sistema, foram se introduzindo os parâmetros da burocracia privada e, de certa forma, esse processo era validado levando-se em conta o que ocorria na prática do trabalho fabril, em que a produtividade, a eficiência e a racionalidade se concretizavam materialmente no resultado da produção.

Naturalmente esses nexos, embora se deixassem evidenciar no âmbito da concepção e do funcionamento dos órgãos públicos, na área educacional, em todos os níveis, ainda não haviam alcançado a sua dimensão mais ampliada, a ponto de se realizar plenamente na esfera da escola de 1º grau. A divisão do trabalho pedagógico foi a forma mais concreta dessa progressiva homogeneização entre o trabalho no setor público e no setor privado, entretanto, poder-se-ia dizer que a internalização da perspectiva empresarial não havia alcançado seu grau mais elevado entre os docentes e os diretores.

Entretanto, mediante formas e ritmos diferenciados, foi se dando a direção ao processo educativo sob a ótica da administração empresarial, produzindo-se em relação ao currículo, bem como ao modo de organizar a escola e avaliar o desempenho dos professores e alunos, experiências que permitiram identificar de modo mais generalizado e, também, de modo mais particular, a tendência em curso.

É importante ressaltar que na medida em que foram se criando as condições históricas de superação do regime militar e quando isso efetivamente ocorreu, em meados dos anos 80, o debate entre a perspectiva conservadora na área da administração educacional e uma perspectiva crítica, progressista, foi se ampliando, a ponto de se eleger a temática da democratização da educação e a sua gestão democrática, como eixo fundamental das ações políticas das diversas entidades que constituíram o Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública, durante e após o Congresso Constituinte.

Embora esse marco permita-nos avaliar, do ponto de vista histórico, a ação antecipatória dos educadores, através das entidades do Fórum, na tentativa de conceber um sistema de educação de caráter nacional, democrático e de qualidade em todos os níveis de ensino, os ganhos relativos consagrados na Constituição de 1986 não lograram alcançar regulamentação específica que garantisse, no bojo de uma nova LDB e de um Plano Nacional de Educação, dar materialidade aos avanços teóricos atingidos.

Ao mesmo tempo, essas restrições de caráter legal não poderiam se constituir em fatores absolutamente impeditivos para que se aprofundassem experiências democráticas, na maioria dos estados e municípios onde se instalaram governos de oposição, apesar das limitações políticas dadas pela própria correlação de forças que se estabelecera no processo de sua constituição e dinâmica, nos anos 80. Desse modo, começaram a se criar mecanismos de participação da comunidade escolar e da comunidade de pais dentro da escola, a partir de eleições para a escolha de diretores e da constituição de conselhos escolares, comunitários e até dos conselhos municipais de educação. Esses mecanismos apresentam limites e possibilidades que têm de certa forma se confrontado permanentemente, ampliando ou restringindo resultados durante os anos 90, conforme análises divulgadas nas publicações da Anpae, além das diversas dissertações e teses elaboradas sobre a temática, na década passada e na atual.

Embora os partidos de oposição tenham-se mantido hegemônicos em muitos estados e municípios, foram se delineando de forma mais nítida as diferentes e contraditórias concepções de gestão democrática, também em processo de implementação em estados e municípios em que predominam as forças políticas mais conservadoras.

Na realidade, enquanto se elaboravam, do ponto de vista dos setores progressistas na área da educação, as concepções que seriam consagradas nos anteprojetos de LDB pela sua participação efetiva no debate nas Comissões da Câmara e do Senado, estava sendo formulada a política do Banco Mundial para América Latina, neste final de século, sob a ótica do modelo "democrático atualizado", segundo a perspectiva hegemônica do neoliberalismo no campo econômico e político.

Esse "novo modelo", evidentemente, expressa as formas e o conteúdo do avanço do capitalismo que alcança sua expansão máxima no mercado mundial, possibilitando a globalização de uma nova ordem política que permite acelerar a tendência de homogeneizar-se a economia e a cultura, tanto nos países hegemônicos como nos países periféricos, apesar de suas condições de desenvolvimento histórico diferenciado.

Na perspectiva de funcionamento de um Estado Mínimo, segundo a lógica neoliberal, configura-se uma escola municipalizada e "administrada de forma democrática com a participação da comunidade", que deve ser responsável, juntamente com docentes e alunos, pela produção da qualidade total. Também sob a mesma lógica, ao processo de globalização da economia deve corresponder um processo de descentralização, portanto o ensino fundamental deve ser municipalizado e as escolas devem ser autônomas, de modo que se viabilize, ao mesmo tempo, concentrar recursos no governo central, destinando-os às operações financeiras de expansão do capitalismo financeiro, enquanto tornam-se cada vez mais restritos os investimentos nos setores dos serviços públicos, que, na realidade, vão progressivamente sendo privatizados, sob diferentes modalidades de terceirização, de convênios, de parcerias, de sistemas de cooperativas etc.

Apesar de não se poder desconsiderar as experiências que, de fato, em muitos municípios deste país estão consolidando as formas democráticas mais avançadas de estrutura e funcionamento do sistema de educação básica, dando visibilidade às referências teóricas em desenvolvimento, do ponto de vista crítico, é preciso ressaltar o significado político das campanhas e ações governamentais do governo federal, no sentido da desestruturação desse sistema, apesar do esforço de um grande contingente de educadores em sua prática cotidiana para manter e aprofundar o projeto de um sistema nacional de educação.

Embora em termos do pensamento educacional mais crítico, consiga se manter uma relativa sistematização, em termos da análise acerca das políticas do governo federal em todos os setores, sobretudo das políticas sociais, pode-se inferir pelo grau de adesão que alcançaram os blocos políticos situacionistas que ocupam o poder nos governos da União, na maioria dos estados e municípios, que é necessário concentrar-se esforço ainda mais extraordinário para explicitar os impactos dessas políticas implementadas, em grande medida já superadas em muitos países da Europa, em que as perdas impingidas aos trabalhadores lhes impuseram um retrocesso muito ampliado, em termos das garantias dos seus direitos como cidadãos.

Esse esforço que se traduz inclusive na iniciativa das entidades do campo sindical, estudantil e científico, para a realização de eventos como o Coned, pode se ampliar também em ações mais concretas durante os próximos períodos eleitorais, de modo que se consiga alcançar contingentes de educadores, de estudantes e de cidadãos de um modo geral, que possam compreender a essência do processo mediante o qual as medidas anunciadas pela mídia, e implementadas pelo governo federal nos municípios, podem restringir as possibilidades de democratização da educação básica, apesar do marketing que é feito sobre a prioridade dada a esse nível de ensino.

O Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef) é um dos exemplos da tendência de que poderão ser restringidas as possibilidades de democratização mais plena do sistema educacional, considerando-se que se tornam reduzidas as possibilidades de gerenciamento dos recursos, ainda insuficientes, que para ele são canalizados, com a efetiva participação das entidades das categorias dos educadores, e, também, dos setores populares da sociedade.

Do mesmo modo, a definição do custo/aluno, dos critérios de cálculo para o repasse dos recursos para os estados e municípios, a definição do piso salarial, nenhum desses aspectos estará sendo administrado ou supervisionado pelos setores sobre os quais se produz o impacto dessas medidas, pelas dificuldades concretas de exercer controle efetivo sobre os grupos políticos que detêm o domínio dos órgãos oficiais federais, estaduais e municipais. Os estudos de diversos pesquisadores, como Davies (1997), Callegari (1997), Melchior (1997), Monlevade (1997) e outros, apresentaram análises percucientes sobre as inconsistências do Fundef como mecanismo democrático de financiamento da educação básica.

Apesar dessa centralização do gerenciamento dos recursos globais, o governo adota a medida de descentralizar parcelas do recurso do salário-educação para as escolas de Ensino Fundamental, anunciando essa medida como podendo garantir a autonomia da escola, a partir de uma gestão democrática que deve necessariamente produzir resultados satisfatórios em termos do rendimento escolar e realizar a qualidade total. Sabe-se, entretanto, que até o momento permanecem as condições de formação, de trabalho e de remuneração da maioria dos professores do Ensino Fundamental, que não podem se alterar, como num passe de mágica, somente pela reprodução de dezenas de treinamentos desarticulados entre si, como vem ocorrendo, por exemplo, em alguns estados do Nordeste, como é o caso do Maranhão, por meio da implementação dos programas do Projeto Nordeste, que se constitui num dos instrumentos políticos dos governos pós-ditadura, para incrementar a municipalização do ensino nas regiões menos desenvolvidas.

Analisando-se algumas ações desse projeto, no estado do Maranhão, observou-se que o Programa de Valorização, Capacitação e Aperfeiçoamento de Recursos Humanos teve como meta atualizar e reciclar 105.666 profissionais da rede estadual e municipal, no período de 1992-1996, o que corresponde a 55,20% do universo de professores do estado. Além dos docentes, seriam treinados 12.800 diretores e técnicos sobre novos padrões de gestão.

A sistemática do processo de capacitação descrita e em execução conforme o Plano Operativo (1993-1997), elaborado com a consultoria da Arthur Andersen Consultores prestada à Secretaria de Educação do Estado do Maranhão, compreendeu em primeiro lugar a preparação de equipes técnicas da secretaria, por meio de consultorias e assistência técnica do MEC, que se responsabilizaram em treinar agentes multiplicadores para se tornarem instrutores de diretores e professores, sendo finalmente elaborados manuais de orientação para instrutores, diretores e técnicos dos órgãos municipais de educação.

O total destinado para a implementação desse programa foi inferior, conforme dados do Plano Operativo, àquele destinado a todas as demais ações relativas a materiais de ensino-aprendizagem, construção civil e sistemas integrados de informação, além de destinar um total de U$ 132.025 para remunerar 740 horas de consultoria, incluindo passagens, hospedagem e alimentação. Além dessa restrição financeira para desenvolvimento das ações de treinamento, elas foram planejadas com uma média de 40 horas de duração, o que permite avaliar, em certa medida, a sua qualidade como sendo insatisfatória. Essas evidências levantam questionamentos sobre as possíveis intenções implícitas do projeto, quais sejam de apenas "reproduzir", "treinar", sem que se amplie a capacidade de reflexão e de produção de novos conhecimentos elaborados coletivamente, numa perspectiva crítica.

Essa breve ilustração pretendeu demonstrar que o caráter do projeto educacional do governo está muito distanciado daquele que os setores progressistas defenderam como diretriz para a elaboração da LDB e também do Plano Nacional de Educação, cujo teor resultou bastante distinto daquele encaminhado pelo MEC para o Congresso Nacional.

O processo de formação e aperfeiçoamento continuado dos professores da escola de educação básica, do ponto de vista crítico, deve articular o sistema educacional de forma orgânica, portanto, demanda a elaboração de um projeto político-pedagógico que perpasse os três níveis de ensino, permitindo alterar a qualidade da escola, tanto em termos de conteúdo, como em termos metodológicos, na perspectiva de um processo de democratização integrado em suas dimensões política, pedagógica e técnica.

Um grande número de trabalhos de qualidade comprovada, na área de pesquisa e extensão, em diversas universidades brasileiras, já permite um acúmulo de conhecimento científico capaz de subsidiar a elaboração de projetos de currículo para as escolas básicas e para os cursos de formação de magistério. Esse conjunto de conhecimentos, na perspectiva de se implementar um Plano Nacional de Educação, deveria centrar-se nos eixos da interdisciplinaridade e da indissociabilidade entre os três níveis de ensino, no debate com as Secretarias de Educação dos estados e municípios.

Certamente, a exemplo do que ocorre no Maranhão, em muitos estados esse cenário torna-se bastante complexo, dado que existe uma prática de treinamentos reproduzidos em larga escala, sem que se realizem debates sobre os mesmos no âmbito das universidades. Sabe-se que, de um modo geral, a esses projetos estão atrelados diversos grupos de técnicos, que detêm a hegemonia dos sistemas de assessoramento e de consultoria, cuja articulação, desde o âmbito federal até o municipal, vem garantindo reproduzir-se um segmento de burocratas e tecnocratas que trabalham de forma aparentemente técnica, "neutra", sendo alguns desses identificados, desde o período da ditadura militar, com os objetivos de fortalecimento da burocracia estatal.

É claro que esse fenômeno não se circunscreve apenas no sistema educacional brasileiro, mas tem correspondência na maioria dos países da América Latina em que se desenvolveu e continua se realizando a formação de quadros a serviço do Banco Mundial e de todas as agências internacionais, que têm condicionado, em última instância, as políticas educacionais dos países subalternizados neste continente, às políticas econômicas definidas por essa e outras instituições que exercem o papel de guardiães dos interesses da burguesia e do capital em todos os continentes.

O fenômeno da globalização da economia e da política, que não é recente, tem permitido, nas duas últimas décadas, que os setores progressistas, intimidados com um sem-número de derrotas em termos da defesa dos seus projetos no âmbito do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, criem certas resistências ao processo de contestação dessas políticas, considerando até mesmo que as forças nacionais e internacionais articuladas são extraordinariamente poderosas.

Assim ocorreu, nesta década, na Argentina e na Colômbia, como no Brasil, que os sindicatos dos professores envolvidos na luta pela aprovação de uma nova legislação educacional foram derrotados pelas forças conservadoras. Porém, vale ressaltar que as investidas dessas forças em municípios brasileiros em que as forças progressistas assumiram o poder não foram suficientes para que se paralisassem as políticas destinadas ao desenvolvimento dos setores sociais (educação e saúde, por exemplo), sendo alcançados resultados comprovados e avaliados positivamente até por organismos internacionais.

Dessas constatações infere-se, portanto, que o processo dialético entre a teoria e a prática da gestão democrática, enquanto permanecem as organizações educacionais e sociais administradas sob a égide do capitalismo, permite que se evidencie dentro do mesmo contexto um movimento de avanço teórico e prático, embora as políticas governamentais tentem descaracterizar as concepções e as propostas mais avançadas para o desenvolvimento da educação básica.

Na perspectiva de expandir a contradição a graus cada vez mais elevados, poder-se-ia conceber uma estratégia a ser desencadeada pelos setores progressistas que permitisse alcançar níveis mais profundos de radicalidade teórica e política, a partir da transformação de práticas administrativas e pedagógicas, mesmo que isto ocorresse em dimensões mais restritas a escolas, a distritos, a municípios e a estados, de modo que se consolidassem as referências teóricas, dando-lhes materialidade empírica adequada à construção de uma nova educação básica, ainda no seio do sistema educacional que se desestrutura em conseqüência de uma série de ações equivocadas do governo em todos os níveis de ensino.

Essa estratégia requer, evidentemente, que estejam organizados os blocos históricos dos intelectuais orgânicos críticos articulados em todos os níveis do sistema educacional e em todos os espaços de atuação no âmbito dos movimentos sociais, dos sindicatos e dos partidos, independentemente de terem que debater as filigranas das suas concepções teóricas e metodológicas, estabelecendo, portanto, os consensos possíveis no campo da produção de um pensamento e uma prática de caráter crítico e transformador.

Talvez seja possível concluir, a partir de uma leitura ampliada da realidade nacional, que o acúmulo teórico, científico e político realizado pelos setores progressistas, nas três últimas décadas, foi capaz de gestar e de realizar projetos os quais nem os governos militares, nem os governos civis pós-ditadura conseguiram destruir, apesar da conjugação das forças nacionais e internacionais contrárias. Trata-se, portanto, de expandir a capacidade de produzir e administrar coletivamente a implementação de projetos, principalmente, no âmbito das universidades mais diretamente responsáveis pela formação do educador, que ampliem a participação dos docentes do Ensino Fundamental e Médio, possibilitando a criação de redes de grupos de estudo e de trabalho pedagógico integrado, de modo que possa se fortalecer a condição de resistência à ideologia das políticas educacionais em curso, ao mesmo tempo em que se elaboram as formas e os conteúdos alternativos, simultaneamente.

A "moderna" teoria da administração educacional, mais uma vez atualizada mediante a transposição das teorias e práticas empresariais renovadas pelas imposições do processo produtivo, que exigem o desmonte das linhas de produção tayloristas, para alcançar novos patamares de produtividade e acúmulo de valor e capital, por meio dos times, dos grupos, dos círculos de qualidade total, obteve sua ampla divulgação através do Núcleo Central de Qualidade e Produtividade subordinado ao MEC e responsável pelo programa "Escola de Qualidade Total".

Entretanto, essa ação massiva de convencimento ideológico acionada pelo governo tem obtido repercussões limitadas na prática dos diretores e professores das escolas de educação básica, mesmo quando reproduzem a terminologia veiculada. A indagação que daí decorre é: por que não pode ser hegemônica essa concepção, no âmbito do sistema educacional?

Essa é uma questão que pode ser trabalhada por todos os segmentos progressistas, combatendo a falácia dos projetos educacionais fundamentados nos pressupostos da qualidade total. Em primeiro lugar, o seu conteúdo pode ser criticado a partir das condições concretas do funcionamento do sistema educacional e das escolas, levantando-se os indicadores do que deve estar contido na categoria de qualidade. Em segundo lugar, nessa seqüência de raciocínio, expande-se a categoria, de modo a apontar, teoricamente, o que corresponderia à totalidade de um sistema de qualidade. Em terceiro lugar, define-se o seu atributo social, na discussão ampliada sobre as possibilidades de uma sociedade radicalmente democrática. Em quarto lugar, destaca-se da experiência educacional empreendida por setores progressistas da área da educação os parâmetros da estrutura e do funcionamento da escola e do sistema educacional, compreendidos a partir do projeto de LDB e do Plano Nacional de Educação, concebidos pelo Fórum Nacional em Defesa da Educação Pública, conforme o conhecimento teórico e o debate político realizado durante a última década.

Desse modo, o conceito de gestão democrática compreende a redefinição da estrutura de poder, desde o nível macro do Ministério da Educação na sua forma de organização e funcionamento, até o nível micro de cada escola. As ações do MEC deveriam estar adequadas às deliberações de um Fórum Nacional de Educação que pudesse definir, a partir de amplo debate nacional, as diretrizes político-pedagógicas, as prioridades educacionais, a garantia de recursos para todos os níveis de ensino considerados como um todo, e as formas de avaliação dos mesmos, com a participação de diversos setores sociais.

Por outro lado, as questões relativas à concepção dos conteúdos e de metodologia de ensino, principalmente no âmbito do Ensino Fundamental e médio, devem estar compreendidas como parte do processo de socialização dos conhecimentos científicos. Nesse sentido, Fóruns Interdisciplinares com professores e especialistas de todos os níveis de ensino deveriam funcionar para produzir propostas curriculares que poderiam ser analisadas e normatizadas pelo Conselho Nacional de Educação, no qual deveriam estar representadas, majoritariamente, as categorias profissionais responsáveis pela execução das propostas curriculares.

Também a dimensão relativa ao processo de arrecadação e aplicação de recursos para o funcionamento do sistema educacional deve ser amplamente debatida, no âmbito das entidades nacionais, reunindo especialistas na área da educação, economia e financiamento, para criar mecanismos de controle dos fluxos financeiros, de modo que os conselhos municipais e os conselhos escolares tenham a competência para supervisionar o processo de administração dos recursos orçamentários e extra-orçamentários, estabelecendo-se, portanto, procedimentos de controle social sobre as ações do Executivo e do Legislativo.

Enfim, trata-se de recuperar as possibilidades de se aprovar e implementar um Plano Nacional de Educação que permita concretizar-se um sistema educacional que seja: a) financiado integralmente com recursos públicos; b) administrado pela conjugação de formas de gestão, em que os segmentos da sociedade implicados no seu funcionamento sejam também os seus gestores; c) avaliado pela sua capacidade de realizar os objetivos em relação à educação básica das classes populares, assegurando-lhes a possibilidade real de progressão no sistema educacional, no âmbito do Ensino Médio e do Ensino Superior.

As ênfases dadas neste texto, no que tange à dialética entre a concepção e a prática da gestão democrática, deixaram entrever que no bojo do processo de desestruturação do sistema educacional, ao longo das últimas décadas, tem sido gestado um novo projeto de educação para o Brasil, que necessita ser fortalecido em termos teóricos e práticos, no movimento dialético e contraditório que vivenciamos no cotidiano da luta pela garantia de seu caráter social, democrático e anticapitalista.

The dialectics between the conception and the practice of democratic administration in the basic education level in Brazil

ABSTRACT: This article demonstrates the advance of theoretical analyses about the influence of the "enterprises's pattern of administration" in the management of brazilian educational system. It points out the necessity to evaluate the practical experiences of democratic administration of the basic education level developed by the municipal administration with a popular and democratic character in order to expand and to materialize these experiences based on the advanced conceptions of education elaborated by progressive educational sectors.The hegemonic groups in the city, state and federal levels of the government used to assimilate these progressive conceptions to redefine them towards their insterests. Some examples are presented and also some suggestions of political and pedagogical procedures to expand opposed tendency among teachers in the schools, against the government politics, realized according the determinations of the World Bank . This progressive sectors of education needs to rescue the principles, conceptions and the methodologies that were ignored by the government in the context of the "Oficial LDB" to develop The National Plan of Education.

Bibliografia

  • ANPAE. "Anais do XIII Simpósio Brasileiro de Administraçăo da Educaçăo A democratizaçăo da educaçăo e a gestăo democrática da educaçăo". Porto Alegre: RBAE, v. 4, nş 2, jul./dez. 1986.
  • _______. "Anais do XV Simpósio Brasileiro de Administraçăo da Educaçăo. Das políticas ao planejamento e ŕ gestăo da educaçăo". Brasília: RBAE v. 7, nos 1 e 2, jan./dez. 1991.
  • _______. "Anais do XVII Simpósio Brasileiro de Administraçăo da Educaçăo. Gestăo e Qualidade." Brasília, nov. 1995.
  • CALLEGARI, Cesar e CALLEGARI, Newton. Ensino Fundamental: A municipalizaçăo induzida. Săo Paulo: Ed. Senac, 1997.
  • DAVIES, Nicholas. "Política fiscal golpeia política educacional". Revista Universidade e Sociedade Săo Paulo: Andes, 1997.
  • FELIX, Maria de Fatima Costa. Administraçăo escolar: Um problema educativo ou empresarial 4Ş ed. Săo Paulo: Cortez, 1989.
  • FÓRUM NACIONAL EM DEFESA DA ESCOLA PÚBLICA. PNE/MEC X PNE/SOCIEDADE. Revista Universidade e Sociedade. Andes, ano VIII, nş 16, junho1998.
  • MEC/INEP. "Gestão da educação. Algumas experiências do Centro-Oeste". Brasília, 1995.
  • MELCHIOR, José Carlos de Araújo. Mudanças no financiamento da educaçăo no Brasil Campinas: Autores Associados, 1997.
  • MONLEVADE, Joăo. Educaçăo pública no Brasil: Contos e descontos Ceilândia: Idéa, 1997.
  • MONLEVADE, Joăo e FERREIRA, E.B. O Fundef e seus pecados capitais Ceilândia: Idéa, 1997.
  • OLIVEIRA, Dalila Andrade (org.). Gestăo democrática da educaçăo Petrópolis: Vozes, 1997.
  • OLIVEIRA, Romualdo Portela e CATANI, Afrânio Mendes. Constituiçőes estaduais brasileiras e educaçăo. Săo Paulo: Cortez, 1993.
  • _______ (org.). Política educacional. Impasses e alternativas Săo Paulo: Cortez, 1995.
  • ROSAR, Maria de Fatima Felix. "Da globalizaçăo ŕ descentralizaçăo. O processo de desestruturaçăo do sistema educacional pela via da municipalizaçăo". Tese de doutoramento. Campinas: Unicamp, 1995.
  • SAVIANI, Dermeval. A Nova LDB. Limites e perspectivas Campinas: Autores Associados, 1997.
  • *
    Professora Adjunta da UFMA. Doutora em Educação pela FE da Unicamp. Coordenadora do Grupo de Pesquisa de Política de Educação Básica da UFMA. Email:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Out 2000
    • Data do Fascículo
      Dez 1999
    Centro de Estudos Educação e Sociedade - Cedes Av. Berttrand Russel, 801 - Fac. de Educação - Anexo II - 1 andar - sala 2, CEP: 13083-865, +55 12 99162 5609, Fone / Fax: + 55 19 3521-6710 / 6708 - Campinas - SP - Brazil
    E-mail: revistas.cedes@linceu.com.br