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Escritos de educação<A NAME="top1"></A>

** Resenha do livro de Maria Alice Nogueira e Afrânio Catani (orgs.), Petrópolis: Vozes, 1998, 251 p.

Luci Regina Muzzeti*** Resenha do livro de Maria Alice Nogueira e Afrânio Catani (orgs.), Petrópolis: Vozes, 1998, 251 p.

O livro organizado por Maria Alice Nogueira e por Afrânio Catani tem por objetivo reunir importantes escritos do sociólogo francês Pierre Bourdieu sobre educação e ensino.

Os estudos que vêm sendo realizados por Pierre Bourdieu, seja individualmente ou com os seus colaboradores, não são muito conhecidos e compreendidos no Brasil. É fato que a produção de Pierre Bourdieu é complexa, às vezes de difícil acesso, fato que se agrava tendo em vista o pequeno número de traduções de seus textos em português. Além disso, nem todos os estudiosos de educação conhecem, realmente, suas obras.

Este livro pretendeu reunir alguns estudos fundamentais a respeito de seu referencial teórico, os quais trazem significativas contribuições para a Sociologia da Educação, fazendo com que a reflexão desse sociólogo seja mais acessível aos estudiosos e interessados em educação.

A obra reúne onze textos precedidos de um prefácio do autor, assim como apresenta os anexos I e II, que fornecem valiosas informações sobre as equivalências entre os graus e as séries entre o sistema de ensino francês e o brasileiro. Acresce-se a isso a apresentação do significado das siglas educacionais francesas que aparecem nos textos.

O texto "Sobre as artimanhas da razão imperialista", que constitui o prefácio da obra em análise, por sugestão de Bourdieu aos organizadores, "é de grande importância para os sociólogos de diferentes países", pois, nesse artigo, observa que o imperialismo cultural tem por base o poder de universalizar uma visão particular de mundo, tornando-a verdade universal, perdendo, nas análises, as particularidades sociais, históricas, políticas e culturais, próprias de um universo singular. Nessa perspectiva, Bourdieu adverte os estudiosos para não perderem, em suas análises, as citadas particularidades, pois essas são constitutivas das diferentes sociedades.

No artigo "Método científico e hierarquia social dos objetos", Bourdieu observa que nos campos de produção simbólica existe uma hierarquia dos objetos legítimos, legitimáveis ou indignos e que essa se constitui em uma das mediações através das quais se impõe a censura específica de um campo determinado. Observa, ainda, que as disciplinas científicas não ignoram essa hierarquia dos objetos considerados legítimos e que tendem a afastar os estudiosos dos gêneros, objetos, métodos ou teorias consideradas menos prestigiosas em um determinado momento histórico.

A definição hegemônica dos temas, objetos socialmente reconhecidos como importantes ou insignificantes em um dado momento, constitui-se em um dos mecanismos ideológicos que fazem com que temas e objetos não menos nobres ou indignos não interessem a ninguém, ou, em contrapartida, sejam tratados de modo envergonhado ou vicioso.

Já no artigo "A escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura", Bourdieu explicita conceitos fundamentais de sua teoria, como o de capital cultural, o qual se caracteriza como uma herança puramente social constituída por um conjunto de conhecimentos, informações, códigos lingüísticos e, também, por atitudes e posturas que, em sua visão, vêm a ser responsáveis pela diferença de rendimento dos agentes frente à escola.

Segundo ele, para um percurso escolar regular, sem interrupções, a escola exige, consciente ou inconscientemente, de todos os agentes, uma relação natural, familiar, com a cultura e com a linguagem, privilegiando, assim, a relação com o saber, muito mais do que o saber em si mesmo.

Essa relação natural com a cultura, ou seja, a proeza verbal e a competência cultural, só pode ser apropriada pelos agentes no interior de seu ambiente familiar, através da aprendizagem difusa, imperceptível, proporcionada pelas famílias pertencentes às classes cultas. Acrescenta ainda que, como essa familiaridade com a cultura é transmitida de maneira osmótica, até mesmo imperceptível no interior do contexto familiar, isto é, sem qualquer esforço metódico, ela não é percebida como tal e contribui para reforçar, nos agentes das classes cultas, a convicção de que eles devem os conhecimentos, atitudes e posturas que possuem aos seus dons, aptidões inatas ou vocações.

Esse estudo traz significativa contribuição para a compreensão mais adequada das relações entre a escola e a sociedade na medida em que desvenda os mecanismos objetivos, dentre eles o capital cultural, que influencia a trajetória escolar dos agentes, rompendo, assim, com o mito do dom ou das qualidades inatas.

Os dois outros trabalhos, "Os três estados do capital cultural" e "O capital social ¾ notas provisórias", são textos fundamentais para se entender o referencial teórico de Bourdieu. Ele afirma que o capital cultural é o responsável pelo rendimento dos agentes frente ao sistema de ensino e difere segundo a origem social dos grupos de agentes. Portanto, mais uma vez, ratifica o rompimento com o mito do dom e das habilidades inatas.

Em sua concepção, o capital cultural pode existir sob três formas: no estado incorporado, no estado objetivado e no estado institucionalizado.

No estado incorporado, dá-se sob a forma de disposições duráveis do organismo. A acumulação de capital cultural exige sua incorporação pressupondo um trabalho de inculcação e de assimilação, o qual custa tempo e deve ser realizado pessoalmente pelo agente. Tal como o bronzeamento, essa assimilação, inculcação e incorporação não podem se dar por procuração.

No estado objetivado, o capital cultural pode existir sob a forma de bens culturais: escritos, pinturas, livros etc. Para possuir os bens culturais em sua materialidade é necessário ter simplesmente capital econômico, fato que se evidencia através da compra de uma máquina. Para se apropriar dela, simbolicamente, é necessário possuir os instrumentos de apropriação e os códigos necessários para decifrá-la, isto é, capital cultural incorporado.

No estado institucionalizado, o capital cultural materializa-se através dos diplomas. Nesse estado, é possível depreender as funções de um sistema de ensino em uma sociedade determinada bem como suas relações com o sistema econômico.

Bourdieu entende que o capital social é baseado em relações mundanas que constituem fontes estratégicas de apoio entre os agentes.

O volume do capital social que um agente singular possui depende da rede de relações que ele pode mobilizar e do volume de capital econômico, cultural ou simbólico que é posse exclusiva de cada agente que pertence a essa rede de relações a que está ligado. (p. 67)

No texto "Futuro de classe e causalidade do provável", Bourdieu observa que o habitus, "sistema de disposições duráveis", adquirido em um determinado meio familiar, sob determinadas condições objetivas, produz ações comumente organizadas, consciente ou inconscientemente, para funcionar como estratégias de reprodução. Tais estratégias visam, em última instância, a manter ou melhorar a posição de um determinado grupo social na estrutura de classes. Tendo como princípio unificador o habitus, elas são objetivamente harmonizadas para atender a esse fim.

Observa que, para se entender as estratégias de reprodução ¾ e elas são inúmeras ¾, devem-se considerar, principalmente, as estratégias que dificilmente são percebidas, tais como as estratégias que regem os investimentos educativos, as taxas de fecundidade ou as escolhas matrimoniais. Observa, ainda, que qualquer mudança na estrutura e no volume do patrimônio (capital cultural, social, econômico) ou nos lucros proporcionados pelos instrumentos de reprodução, acarretará uma mudança correlativa na utilização das estratégias de reprodução, convertendo o investimento de uma família em outros investimentos mais rentáveis, proporcionados, em um determinado momento, pelos diferentes mercados. Tais mudanças representam reconversões de uma espécie de capital por outros mais rentáveis, considerando o estado dos instrumentos de reprodução em um determinado momento.

Em "O diploma e o cargo: relações entre o sistema de produção e o sistema de reprodução", escrito conjuntamente com Luc Boltanski, desenvolve uma interessante e séria análise sobre as possíveis relações entre o sistema de ensino e o sistema produtivo. Em outro artigo, "Classificação, desclassificação, reclassificação", Bourdieu estende a análise às estratégias de reprodução empregadas, consciente ou inconscientemente, pelas diversas frações de classes que visam, em última instância, ao máximo rendimento possível de seus investimentos escolares e do seu capital escolar.

Já no estudo "As categorias do juízo professoral", Pierre Bourdieu e Monique de Saint-Martin contribuem significativamente para a Sociologia da Avaliação Escolar, na medida em que desvendam o seu sistema de classificação. Observam que o sistema de ensino tende a valorizar em seus juízos a relação natural e familiar com o saber, a desenvoltura, comportamentos e características que estão ligados diretamente à origem social dos agentes. Dessa forma, o sistema de ensino contribui para legitimar as diferenças iniciais entre os agentes, resultado da educação familiar e da origem social, transmutando-a em diferenças escolares.

Merece muita atenção o artigo "Os excluídos do interior", escrito em co-autoria com Patrick Champagnhe, em que os autores desvendam as novas formas sutis de desigualdade escolar. Observam que, até a década de 1950, as desigualdades escolares já eram muito claras, pois existiam os escolarizados e aqueles que estavam fora da escola. Atualmente, as desigualdades escolares são muito mais sutis e dissimuladas, uma vez que os agentes encontram-se na escola, mas o sistema de ensino ainda cumpre sua função social de exclusão daqueles oriundos das frações de classes desprivilegiadas. Através do itinerário escolar, tende a reservar às escolas cursos menos prestigiados e profissões menos rentáveis.

No artigo "As contradições da herança", Bourdieu analisa, entre outras coisas, o papel dos veredictos e juízos escolares nos processos de transmissão da herança familiar. Observa que tais veredictos podem se opor, contrariar ou confirmar as vontades ou anseios das famílias, contribuindo, decisivamente, para a construção da identidade dos agentes.

Não poderíamos deixar de enfatizar também o artigo "Medalha de ouro do CNRS", último estudo dessa coletânea, em que Bourdieu desvenda a lógica inerente ao campo científico, situando o sociólogo nesse espaço social. Ele chama a atenção e defende a sociologia, o sociólogo, o metiér do sociólogo e das condições de institucionalização da sociologia, principalmente na França.

Em síntese, os trabalhos reunidos nessa coletânea contribuem para o estudo do campo científico, de comportamentos e expectativas das diversas camadas sociais em relação à escola e às estratégias de reprodução empregadas, permitindo uma compreensão mais adequada das relações entre a escola e a realidade social e, conseqüentemente, contribuindo com a disciplina Sociologia da Educação, na medida em que desvendam, entre outras coisas, os mecanismos objetivos através dos quais as desigualdades sociais se transformam em desigualdades escolares, rompendo definitivamente com o mito do talento ou do dom.

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    Resenha do livro de Maria Alice Nogueira e Afrânio Catani (orgs.), Petrópolis: Vozes, 1998, 251 p.
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    Professora no Departamento de Didática ¾ FCL/Unesp,
    campus de Araraquara.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Abr 2001
    • Data do Fascículo
      Dez 2000
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