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Apresentação

APRESENTAÇÃO

Este dossiê temático da revista Educação & Sociedade é consagrado à questão dos saberes dos docentes e sua formação. No nosso conhecimento, é a primeira vez que uma revista científica no Brasil – ao menos uma revista de envergadura nacional como Educação & Sociedade – escolhe dedicar um dossiê completo ao tema dos "saberes dos docentes". Mas por que realizar um dossiê sobre esse tema? Na nossa opinião, essa escolha reflete a evolução recente, tanto no plano internacional como aqui mesmo no Brasil, da pesquisa no campo das ciências da educação, voltada para o ensino e para a formação dos professores; ela também é o espelho mais amplo das grandes tendências das reformas atuais no âmbito da formação dos professores em vários países e, particularmente, no Brasil. Para melhor apreender essa evolução e essas tendências, trataremos brevemente da importância da questão dos saberes na literatura internacional educativa, bem como apresentaremos alguns dados sobre a história recente dos trabalhos que lhe são consagrados.

A amplitude do campo e um pouco da sua história

Toda pessoa que se interessa hoje pelo estudo do ensino não pode deixar de ficar espantada diante da profusão e da multiplicação dos escritos que tratam da questão do conhecimento (ou do saber: knowledge em inglês; savoirs, connaissances em francês) dos professores. Todos os anos, milhares e milhares de livros e de artigos são publicados sobre esse tema em quase todos os lugares do mundo. Somente nos Estados Unidos, obras volumosas sobre essa questão aparecem de forma cada vez mais regular, apresentando megassínteses sobre centenas e até milhares de pesquisas em curso.

Por exemplo, uma rápida pesquisa bibliográfica no banco de dados americano ERIC1 Notas gera mais de 21.000 referências. Porém, ao pegarmos o ano de 1966, ano em que ERIC foi inaugurado, obtemos apenas 141 referências em relação a teacher e knowledge. Entre 1970 e 1980, encontramos 4.506 documentos associados a esses mesmos termos; entre 1980 e 1990, são 7.728 documentos; e, entre 1990 e 2000, 9.114 documentos. Finalmente, ao pegarmos o ano de 1996, 30 anos portanto após o início de ERIC, encontramos 989 referências, ou seja, um aumento de mais de 700% em relação ao ano de 1966.

Todavia, é preciso acrescentar a essa produção os inúmeros trabalhos que abordam mais ou menos o mesmo fenômeno, mas usando outras categorias (crenças, concepções, competências etc.), sem se referir à noção de conhecimento (knowledge).2 2 . Ao fazer a nossa pesquisa no ERIC, excluímos a palavra-chave «conhecimento»: Teacher and Belief not Knowledge; Teacher and Conception not Knowledge; Teacher and Competency not Knowledge; Teacher and Thinking not Knowledge. Por exemplo, 4.375 trabalhos tratam das crenças dos professores, 29.726 de suas concepções, 19.282 de suas competências, 12.735 do pensamento dos professores, 1.559 de suas representações etc. Conjugado às pesquisas sobre o conhecimento, o conjunto desses trabalhos totaliza aproximadamente 100.000 produções escritas realizadas durante um pouco mais de três décadas. É preciso sublinhar que esses dados não incluem as produções locais nas universidades, as centenas de relatórios de pesquisa e as revistas menos importantes ou de menor prestígio que não são relacionadas por ERIC. Por outro lado, ERIC não leva em consideração a literatura noutras línguas, mas somente em inglês.

Mas essa fecundidade não é somente quantitativa. De fato, o crescimento substancial da pesquisa sobre o conhecimento dos professores vem acompanhado também de uma grande diversificação qualitativa, tanto no que diz respeito aos enfoques e metodologias utilizados, quanto em relação às disciplinas e aos quadros teóricos de referência. Nos últimos quinze anos, temos observado uma invasão intensa desse campo de pesquisa por um grande número de correntes, enfoques ou teorias oriundos das ciências sociais e humanas. Por exemplo, atualmente, o neobehaviorismo, o cognitivismo computacional baseado na teoria do processamento da informação, o construtivismo e o socioconstrutivismo, a etnometodologia e o simbolismo-interacionismo, a sociologia das profissões, a ergonomia, a psicologia social, a antropologia cultural, as teorias do senso comum, a fenomenologia social, os estudos sobre o pensamento dos professores (teacher's thinking), sobre os "professores peritos", sobre o ensino eficaz e estratégico, os trabalhos sobre a "knowledge base" e os inúmeros estudos sobre as competências dos professores, suas crenças, suas concepções e representações etc., se interessam, de uma maneira ou de outra, pelo conhecimento dos professores, ou oferecem aos pesquisadores da área da educação teorias e métodos para estudá-lo. Nesse sentido, pode-se dizer que esse campo de pesquisa transformou-se num objeto de investimentos multi e transdisciplinares, bem como numa luta simbólica de poder entre diversas correntes e disciplinas, entre diversas concepções e enfoques do conhecimento, que tentam impor seus modelos teóricos e suas metodologias.

Por que e como um campo de pesquisa tão abundante pôde ser construído em apenas algumas décadas? A gênese desse tema de pesquisa é bastante recente. Durante as décadas do pós-guerra (1940-1950), assim como nos anos anteriores, a pesquisa propriamente dita sobre o ensino e os professores pouco se desenvolveu. Os enfoques preconizados eram sobretudo psicológicos e psicopedagógicos. De maneira geral, tanto do lado norte-americano quanto do lado europeu, é para o aluno que se voltam os pesquisadores da educação, ao passo que o professor é visto mais como uma variável secundária que influencia a aprendizagem através de seus comportamentos. Nos países anglo-saxônicos, as pesquisas são largamente influenciadas pelo behaviorismo e pela preocupação em definir "o efeito docente", ou seja, a eficácia dos comportamentos do professor na aprendizagem dos alunos. É o que chamamos de pesquisas do tipo "processo-produto" (process-product). Mas as pesquisas de campo diretamente nas salas de aula e junto aos professores são raras e se limitam, na maioria das vezes, à observação de seus comportamentos (Gauthier et al., 1998; Medley, 1972).

Nas décadas de 1960 e 1970, o movimento de pesquisa se amplifica, mas conserva a mesma orientação dominante "processo-produto", enquanto aparecem as primeiras sínteses críticas, nas quais se deplora justamente a fragilidade dos resultados anteriores da pesquisa sobre o ensino e são apregoadas a necessidade e a urgência de se constituir uma sólida tradição de pesquisa sobre essa questão (Gage, 1963). Entretanto, nos Estados Unidos, as décadas de 1980 e de 1990 são marcadas pelo importante desenvolvimento do movimento de profissionalização do ensino, cujos iniciadores e defensores (Holmes Group, 1986, 1990; Carnegie Forum, 1986; entre outros) lançam com força, principalmente aos pesquisadores universitários da área de ciências da educação, um veemente apelo para que se constitua um repertório de conhecimentos profissionais para o ensino. Para os partidários desse movimento é de fato urgente que os professores, em seu trabalho cotidiano, possam se apoiar num repertório de conhecimentos validado pela pesquisa e susceptível de garantir a legitimidade e a eficácia de sua ação. A profissão médica é tomada aqui voluntariamente como modelo de referência pelos promotores da profissionalização: como o médico, o professor deve possuir saberes expertos eficientes que lhe permitam, com toda a consciência, organizar as condições ideais de aprendizagem para os alunos (Holmes Group, 1986).

A era das reformas

É a partir dessa orientação profissionalizante que a questão do conhecimento dos professores alcança, ao que parece, seu desenvolvimento mais importante e que as pesquisas se multiplicam de maneira quase exponencial. Em seguida, o movimento da profissionalização conduziu nos anos 90, tanto na América do Norte como na Europa e América Latina, importantes reformas na formação dos docentes (Lüdke e Moreira, 1999; Lüdke, Moreira e Cunha, 1999; Tardif, Lessard e Gauthier, 2001).

As reformas atualmente em curso no Brasil se situam no prolongamento desse movimento. Por exemplo, no contexto geral das reformulações, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394 de dezembro de 1996) permitiu o desenvolvimento de políticas públicas como o Fundo Nacional de Desenvolvimento do Ensino Fundamental (Fundef), os Programas de Avaliação dos Sistemas de Ensino (Educação Básica e Ensino Superior), os Parâmetros Curriculares Nacionais e a Proposta de Formação (em nível superior) dos Profissionais da Educação Básica (Decreto, nº 3276, de 6 de dezembro de 1999). Esta última definiu uma política de formação dos profissionais da Educação Infantil, dos professores das primeiras séries do Ensino Fundamental (realizada em cursos de pedagogia e em escola de formação de professores no Ensino Médio até então), dos professores das séries finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio (realizada nos programas de licenciatura). Essas políticas introduzem no cenário brasileiro não somente um novo modo de compreensão da formação de professores e do próprio professor, como também criam novas instâncias formadoras como o Curso Normal Superior e os Institutos Superiores de Educação; estabelecem uma lógica de estreita articulação entre as agências formadoras e os sistemas de ensino; e balizam os conhecimentos considerados básicos para os professores da Educação Básica.3 3 . Sobre esse assunto, ver as diretrizes curriculares nacionais para a formação de professores da educação básica que se encontram em discussão na Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação.

Tais reformas conduzem diretamente à ênfase da questão dos saberes e das competências na formação dos futuros professores brasileiros. Como podemos constatar com Laranjeira et alii (1999), o novo referencial para a formação de professores reconhece que o docente é um profissional; que a natureza do seu trabalho é definida em função do entendimento de que o professor atua com e nas relações humanas; que a gestão da sala de aula, tarefa que é de sua responsabilidade por excelência, exige o confronto com situações complexas e singulares, cuja solução nem sempre é dada a priori, mas que requerem soluções imediatas; que o futuro professor precisa dominar certas competências e saberes para agir individual e/ou coletivamente, a fim de fazer face às especificidades de seu trabalho. E a propósito dos conhecimentos profissionais que devem ser garantidos na formação de professores, seja ela inicial, continuada, à distância etc., o documento propõe:

• O conhecimento sobre as crianças, adolescentes, jovens e adultos;

• o conhecimento sobre as dimensões culturais, sociais e políticas da educação;

• a cultura geral profissional;

• o conhecimento para a atuação pedagógica;

• o conhecimento experiencial contextualizado na ação pedagógica.

Estes conhecimentos devem ser tratados em igualdade e com base em uma metodologia que traga a atuação profissional para o lugar central da formação (Laranjeira et alii, 1999).

Quaisquer que sejam as particularidades do caso brasileiro, ele se inscreve de todo o modo no contexto mais amplo das reformas no plano internacional. E, mesmo se observamos diferenças e variações importantes de um país a outro, é possível identificar um certo número de objetivos e princípios comuns às reformas, tais como apontam Tardif, Lessard e Gauthier (2001):

• Conceber o ensino como uma atividade profissional de alto nível que se apóia num sólido repertório de conhecimentos, do mesmo modo que nas outras profissões "superiores" (medicina, direito, engenharia etc.).

• Considerar que os professores produzem saberes específicos ao seu próprio trabalho e são capazes de deliberar sobre suas próprias práticas, de objetivá-las e partilhá-las, de aperfeiçoá-las e de introduzir inovações susceptíveis de aumentar sua eficácia. Em síntese, os professores são considerados como "práticos reflexivos" capazes de refletir sobre si mesmos e sobre sua prática.

• Ver a prática profissional como um lugar original de formação e de produção de saberes pelos práticos. Tornar a formação dos professores mais sólida intelectualmente, sobretudo através de uma formação universitária de alto nível e, também, por meio da pesquisa em Ciências da Educação e da edificação de um repertório de conhecimentos específicos ao ensino.

• Instaurar normas de acesso à profissão — exames e exigências educacionais — que sejam profissionalmente apropriadas e intelectualmente defensáveis.

• Estabelecer uma ligação entre as instituições universitárias de formação de professores e as escolas. Juntamente com o anterior, esse é sem dúvida o objetivo mais importante das reformas.

Contudo, logo que tomamos em conta esses diversos objetivos e finalidades, constatamos que as reformas propõem uma verdadeira e profunda mutação do modelo de formação até então em vigor nas universidades: mais que os conteúdos, disciplinas e pesquisa universitária, doravante são os saberes da ação, os docentes experientes e eficazes, e as práticas profissionais que constituem o quadro de referência da nova formação dos professores.

Esse novo modelo de formação profissional pode ser encontrado também em várias profissões e formações profissionais "universitarizadas". No campo da educação ele foi defendido inicialmente por Schön (1983, 1987), Argyris e Schön (1974) e Saint-Arnaud (1992) e retomado por vários pesquisadores europeus e americanos (Calderhead, 1987; Bolster, 1983; Doyle 1986; Altet, 1994, Perrenoud, 1994, 1996). De acordo com esse modelo, a prática profissional é considerada uma instância de "produção" de saberes e competências. Todavia, todos os esforços para implantar esse modelo têm causado uma grande polêmica entre os dirigentes, responsáveis pelas políticas educacionais, os universitários vinculados à formação do quadro professoral e os próprios profissionais do ensino que atuam nas escolas (Camargo, Pino e Manfredi, 1999). Além disso, na medida em que vão sendo introduzidas, não passa despercebida a semelhança entre as reformas levadas a cabo no Brasil e aquelas implantadas em outros países (Lüdke e Moreira, 1999; Lüdke, Moreira e Cunha, 1999), de forma que somos levados a refletir sobre as repercussões dessas tendências internacionais na formação de professores, analisando suas contribuições e limites; e a nos questionar sobre os desafios concretos com os quais devem se confrontar os pesquisadores, os formadores de professores, os próprios profissionais da educação no Brasil.

É preciso ter em conta que esta questão dos saberes docentes – isto é, dos conhecimentos, competências e saber-fazer que são o fundamento do ato docente no meio escolar – conheceu um percurso um pouco mais lento e sinuoso na pesquisa brasileira e nas ciências da educação, mas particularmente no âmbito do ensino e da formação de professores. Na realidade, logo que analisamos os trabalhos produzidos nesta última década, observamos que as pesquisas que tomam este tema como objeto de estudo são bastante raras. Contudo, é necessário estabelecer aqui algumas nuances, visto que já faz algum tempo que a questão dos saberes dos professores tem, de uma certa forma, preocupado os pesquisadores brasileiros, porém, a partir de outras perspectivas, como veremos nos textos deste Dossiê.

É certamente impossível, no quadro dessa apresentação, retraçar a história do desenvolvimento desse campo de pesquisa no Brasil. Alguns autores deste Dossiê abordam essa questão e oferecem alguns indicativos sobre a recente evolução desse tema. Apenas para dar uma idéia, além do campo da formação de professores, a questão dos saberes docentes vem sendo explorada tanto no campo da didática quanto no de currículo. No tocante à produção acadêmica, tomando como base a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, a Anped,4 4 . Especificamente no Grupo de Trabalho de Formação de Professores (GT8), o tema dos saberes docentes tem sido recorrente a cada reunião, porém com uma certa irregularidade, no que diz respeito à freqüência de trabalhos apresentados durante os encontros deste grupo. Um balanço das produções do GT apresentado por Íria Brezinski (1998), durante o encontro anual da Anped, realizado em Caxambú, em setembro de 1998, evidencia o crescimento modesto dessa temática no âmbito das pesquisas sobre formação de professores. entidade de maior representação da pesquisa desenvolvida na pós-graduação em educação no Brasil, bem como algumas publicações e teses recentes, percebe-se que essa temática vem se tornando cada vez mais expressiva. E o estudo dos saberes docentes vem aparecendo continuamente como um dos vieses de análise que tem iluminado o debate em pesquisas que investigam as representações e/ou concepções e/ou crenças que os docentes possuem de sua prática pedagógica e do ensino (Dias-da-Silva, 1994, e Penin, 1995); em pesquisas que estudam as representações e/ou metáforas que os estudantes, professorandos, possuem e constroem do trabalho docente (Lima, 1997); em estudos que buscam analisar a prática pedagógica e a formação dos e nos saberes de professores experientes e/ou iniciantes (Caldeira, 1995, 1993; Borges, 1998, 1997; Canto, 1998, e Therrien, 1998); em estudos que analisam as trajetórias (Mizukami, 1996) e o desenvolvimento socioprofissional dos professores (Lüdke, 1998, 1996a, 1996b, 1995); em estudos que buscam compreender a formação do "capital pedagógico" (Lelis, 1995) e da identidade profissional docente (Moreno, 1996; Schaffer, 1999); em estudos que procuram captar os processos de formação de professores "artistas-reflexivos" (Queiroz, 2000) e as implicações socioculturais e político-pedagógicas que determinam a identidade e a construção dos saberes de estudantes universitários trabalhadores, que se preparam para o magistério (Melo, 2000). Enfim, cada vez mais os estudos sobre os saberes docentes vêm se constituindo como uma possibilidade de análise dos processos de formação e profissionalização dos professores.

Tais estudos, no atual quadro da pesquisa educacional brasileira, fazem parte de um esforço de compreensão da profissão e dos processos de profissionalização docentes a partir da ótica dos próprios sujeitos nela envolvidos. Como dissemos anteriormente, eles se inserem no movimento internacional das reformas pela profissionalização, revelando um lado do ofício de professor que, por muito tempo, ficou encoberto pelas pesquisas que buscavam analisar o ensino a partir de traços da personalidade docente, dos métodos empregados no processo de ensino-aprendizagem, do desempenho do professor medido através do rendimento dos alunos, entre outras.

O objetivo deste Dossiê e os temas abordados pelos autores do número temático

O objetivo deste Dossiê é duplo:

• Ele tem por objetivo oferecer referências sobre a evolução e sobre a situação recente desse tema de pesquisa, dando uma visão geral dos trabalhos que lhe foram consagrados, suas bases conceituais e teóricas, bem como os contextos sociais e ideológicos nos quais eles se inserem. Ele deseja contribuir para o corpo de conhecimentos até então acumulado sobre esse assunto no Brasil, abordando os fundamentos históricos, conceituais e ideológicos da questão dos saberes docentes, sua recepção, discussão e transformação pela pesquisa e pelos pesquisadores brasileiros.

• Apoiando-se em pesquisas recentes ou em curso, este Dossiê pretende pôr em evidência as diferentes abordagens e concepções sobre o saber dos docentes e sua formação, mostrando que essa questão é complexa e que ela pode ser tratada sob diferentes ângulos. Ao mesmo tempo, ele quer contribuir, através das reflexões e trabalhos empíricos dos autores aqui presentes, para enriquecer e destacar o valor dessa temática para o estudo do ensino e da formação de professores.

Vejamos qual é precisamente o conteúdo deste Dossiê e das contribuições específicas dos sete autores que fazem parte desse projeto.

Célia Nunes, em seu artigo "Saberes docentes e formação de professores: Um panorama da pesquisa brasileira", apresenta uma reflexão sobre quando e como a questão dos saberes docentes aparece nas pesquisas sobre formação de professores na literatura educacional brasileira. Em seu trabalho, busca identificar os diferentes referenciais e abordagens teórico-metodológicas, bem como tipologias utilizadas por pesquisadores brasileiros. Inicialmente, apresenta as características do debate no âmbito nacional que emerge com a marca da produção intelectual estrangeira. Em seguida, busca identificar os diferentes enfoques e tipologias presentes na produção brasileira. Por fim, encerrando sua reflexão, aponta o movimento que vai de um enfoque que objetivava a capacitação docente e respectiva eficácia às abordagens que se voltam para a análise do cotidiano e da prática dos professores e seus respectivos saberes, considerando este último um campo promissor para aqueles que atuam com a formação docente.

Isabel Alice Lelis, em "Dos conteúdos do ensino aos saberes do professor: Mudança de idioma pedagógico?", traz à tona a evolução dos debates em torno da formação de professores, analisando algumas das tendências marcantes no campo educacional brasileiro nas últimas décadas. A autora tem por meta entender as lógicas de pensamento que fundamentaram e ainda fundamentam algumas propostas presentes na literatura nacional. Centrando-se nas décadas de 1980 e 1990, explora, inicialmente, no discurso da pedagogia dos conteúdos, sua importância, suas possibilidades e limites, particularmente no que concerne à relação dos professores com o saber dentro dessa proposição. Num segundo momento, põe em evidência o aprofundamento dos debates em torno da formação de professores, sob "o primado da lógica relacional", no qual problemas crônicos como a separação entre teoria e prática, entre disciplinas específicas e pedagógicas, entre conteúdo e forma, entre outros, vão sendo discutidos à luz de novos referenciais. Um movimento que desloca o centro de gravidade da reflexão político-pedagógica, desenvolvida até então num plano mais genérico, para questões que envolvem a articulação entre saber disciplinar e saber pedagógico. Junto com a busca de maior qualificação do professorado brasileiro, através de programas de formação inicial e continuada, que se intensificam por todo o país nos anos de 1990, evidencia, por fim, o impacto da literatura internacional, trazendo novos aportes e possibilidades para repensar a formação de professores, através de dimensões pouco ou ainda não exploradas como a valorização da voz do professor, dos saberes docentes etc.

Cecília Borges, em seu texto "Saberes docentes: Diferentes tipologias e classificações de um campo de pesquisa", destaca a diversidade conceitual e metodológica presente nos estudos sobre os saberes dos docentes, apresentando algumas das diferentes tipologias e classificações das pesquisas sobre o ensino, os docentes e seus saberes. Num primeiro momento, ela põe em evidência as contribuições de autores que se dedicaram ao desenvolvimento de sínteses críticas das pesquisas realizadas na América do Norte. Num segundo momento, explora em sua reflexão alguns pontos relativos ao problema das tipologias, seus limites, ambigüidades e contribuições para as pesquisas sobre o ensino e os saberes dos docentes, entre os quais ela destaca o papel histórico que desempenham esses estudos na constituição e desenvolvimento do campo; a dificuldade em classificar, agrupar e distinguir estudos provenientes de abordagens teórico-metodológicas variadas (em alguns casos muito distantes e noutros muito próximas); o impacto das tipologias e sua apropriação pela comunidade de pesquisadores, entre outros.

Menga Lüdke, com "O professor, seu saber e sua pesquisa", analisa, em sua reflexão, as relações entre saber docente e pesquisa docente, confrontando dados empíricos com a literatura internacional e nacional atualmente disponível e cujo foco tem sido dirigido para as idéias de professor-pesquisador, do "tipo de pesquisa próprio do professor" e dos problemas levantados pela sua comparação com a pesquisa acadêmica. Já na introdução, a autora insinua que a relação entre o conjunto de saberes considerados importantes para o professor em seu exercício profissional e a atividade de pesquisa não é tão evidente, daí o seu interesse em abordá-la em um pesquisa junto a professores do Ensino Médio, atuando em estabelecimentos de ensino da rede pública do Rio de Janeiro. Explorando as contribuições de diferentes autores sobre o tema dos saberes docentes e da pesquisa do professor, ela nos oferece o estado desta questão, apresentando diferentes conceituações como pesquisa-ação, professor pesquisador, reflexive practitioner, practitioner research (pesquisa do professor), scholar, scholarship, entre outras. Das diversas vozes presentes no discurso acadêmico, passa, na segunda parte do artigo, às constatações resultantes da análise dos dados obtidos em sua investigação, evidenciando nesse momento a voz do professor. Das condições estruturais para o exercício da pesquisa nas diferentes escolas, da formação para a pesquisa recebida nas instituições formadoras, dos produtos das pesquisas nem sempre óbvios, dos conceitos de pesquisa não consensuais apresentados pelos sujeitos que participaram do estudo etc, a autora vai destacando as ambigüidades, os limites, as possibilidades, os desafios de uma prática que vem sendo realizada e cujo reconhecimento, compreensão, legitimação, implicações estão ainda em processo de discussão e assimilação por parte do meio científico-universitário.

Glória Queiroz, em seu artigo intitulado "Processo de formação de professores artistas-reflexivos de física", apresenta alguns resultados da pesquisa Professores Artistas-reflexivos de Física no Ensino Médio, cuja análise buscou as especificidades dos saberes docentes de cinco professores de Física de uma escola privada da cidade de Niterói, Estado do Rio de Janeiro. Seu trabalho está dividido em duas partes. A primeira, com base em autores norte-americanos e europeus, discute a questão dos saberes essenciais à profissão; aborda as reflexões atuais no campo da pesquisa internacional sobre os saberes docentes; explora a categoria artista-reflexivo propondo como questionamento como formar professores artistas-reflexivos; salienta a "tradição artística" das antigas corporações de ofícios no âmbito da formação e desenvolvimento profissional dos jovens; e, ainda, trata da separação entre arte e técnica, entre teoria e prática resultantes do processo de industrialização. A segunda parte está centrada na análise dos processos de formação dos professores estudados, abordando aspectos relativos ao desenvolvimento pessoal, às concepções dos professores relativamente à própria formação e às formações inicial e continuada, ao contexto escolar e educacional mais amplo que serviram de referência para a prática artístico-reflexiva dos professores e constituição de seus respectivos saberes.

Ana Maria Monteiro, em "Professores: Entre saberes e práticas", tem por objetivo discutir as possibilidades teóricas provenientes de duas categorias de análise importantes para os estudos que focalizam as relações dos docentes com os saberes que ensinam: "saber docente" e "conhecimento escolar". O artigo está dividido em três partes: na primeira, a autora analisa as contribuições de autores nacionais e estrangeiros que têm operado com a categoria saber escolar; na segunda, analisa as proposições de autores, sobretudo norte-americanos e europeus, que operam com a categoria saber docente; e, na terceira e última, ela faz uma discussão das possibilidades de articulação dessas categorias, apontando seus aspectos promissores, bem como levantando questões relativas aos riscos e desafios a serem considerados no emprego das mesmas no desenvolvimento das pesquisas. Para tratar da primeira, recorre aos estudos desenvolvidos no âmbito da sociologia do currículo. Para tratar da segunda, referencia-se em autores que, no bojo da crítica ao modelo da racionalidade técnica, têm se voltado para o estudo dos saberes docentes a partir de perspectivas diversas como, entre outras, a sociologia do trabalho, a sociologia das profissões, a psicologia cognitiva e a pedagogia.

Jacques Therrien e Francisco Loiola, fechando este Dossiê, apresentam uma reflexão sobre o significado da experiência no saber-ensinar, segundo a perspectiva da ergonomia inspirada na cognição situada. Em seu artigo, intitulado "Experiência e competência no ensino: Pistas de reflexões sobre a natureza do saber-ensinar na perspectiva da ergonomia do trabalho docente", assinalam inicialmente o movimento internacional das reformas educacionais que privilegia o debate sobre a formação e a profissionalização do professor. Em seguida, tratam dos novos contornos da política educacional brasileira e, na seqüência, analisam as tendências das reformas educativas atuais, pondo em evidência dois vetores que estão na base da formação profissional docente: os saberes e as competências. Privilegiando o "saber da experiência do trabalho docente" como o eixo fundante na formação do futuro professor, os autores nos oferecem ainda uma reflexão sobre os conceitos de experiência, saber-ensinar, competência e cognição situada, ressaltando, em sua conclusão, a emergência e a importância dos estudos com base na ergonomia para a compreensão do trabalho e dos saberes do professor e, particularmente, da natureza do saber-ensinar.

O conjunto das reflexões aqui apresentadas não pretende dar conta da totalidade das pesquisas a respeito dos saberes dos docentes atualmente desenvolvidas no Brasil; porém, temos a convicção de que este Dossiê, de dimensão modesta, reúne contribuições da mais alta qualidade intelectual. Ele deseja registrar, a sua maneira, com as escolhas que orientaram sua constituição, um momento rico da pesquisa brasileira tratando da questão dos saberes dos docentes e de sua formação.

Por fim, nós não podemos encerrar esta apresentação sem expressar o nosso especial agradecimento, em nome dos autores convidados e em nosso próprio nome, aos membros do Comitê de Redação da Revista Educação & Sociedade e mais particularmente a Ivany Pino, que, desde o início desse projeto, sempre o sustentou com entusiasmo e senso crítico.

Recebido para publicação em 16 de janeiro de 2001.

Cecilia BORGES,

Universidade Federal de Pelotas

Maurice TARDIF,

Université de Montréal

1. ERIC é o principal banco de dados de língua inglesa sobre a educação. Ele contém quase um milhão de documentos e arrola mensalmente, desde 1966, em torno de 1000 revistas de língua inglesa, a maior parte delas americanas, mas também australianas, britânicas, canadenses etc., bem como livros, relatórios de pesquisa, atas de colóquios etc. Está sob a responsabilidade do Departamento de Educação nos Estados Unidos e pode ser consultado gratuitamente pela Internet: http://www.ericir.syr.edu/Eric/

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  • Notas
  • 2
    . Ao fazer a nossa pesquisa no ERIC, excluímos a palavra-chave «conhecimento»: Teacher and Belief not Knowledge; Teacher and Conception not Knowledge; Teacher and Competency not Knowledge; Teacher and Thinking not Knowledge.
  • 3
    . Sobre esse assunto, ver as diretrizes curriculares nacionais para a formação de professores da educação básica que se encontram em discussão na Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação.
  • 4
    . Especificamente no Grupo de Trabalho de Formação de Professores (GT8), o tema dos saberes docentes tem sido recorrente a cada reunião, porém com uma certa irregularidade, no que diz respeito à freqüência de trabalhos apresentados durante os encontros deste grupo. Um balanço das produções do GT apresentado por Íria Brezinski (1998), durante o encontro anual da Anped, realizado em Caxambú, em setembro de 1998, evidencia o crescimento modesto dessa temática no âmbito das pesquisas sobre formação de professores.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Dez 2001
    • Data do Fascículo
      2001

    Histórico

    • Recebido
      16 Jan 2001
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