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Representações da educação Karajá

Representations on Karaja education

Resumos

Este artigo relata e analisa diferentes conjuntos de representações discursivas sobre a educação bilíngüe Karajá produzida por professores indígenas, lideranças e anciãos Karajá, bem como funcionários da Funai e missionários com atuação na área com o objetivo de contribuir para a compreensão da escola Karajá.

Educação indígena; Educação bilíngüe; Discurso indígena; Karajá; Javaé


This paper reports and analyses different sets of discourse representations on Karaja education produced by indigenous teachers, leaders, as well as government officers and missionaries in an attempt to contribute to the understanding of Karaja bilingual schools.

Indigenous education; Bilingual education; Indigenous discourse; Karaja; Javaé


REPRESENTAÇÕES DA EDUCAÇÃO KARAJÁ

Marcus Maia* E-mail * Professor Adjunto de Lingüística do Departamento de Antropologia do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). : marcusmaia@alternex.com.br

RESUMO: Este artigo relata e analisa diferentes conjuntos de representações discursivas sobre a educação bilíngüe Karajá produzida por professores indígenas, lideranças e anciãos Karajá, bem como funcionários da Funai e missionários com atuação na área com o objetivo de contribuir para a compreensão da escola Karajá.

Palavras-chave: Educação indígena; Educação bilíngüe; Discurso indígena; Karajá; Javaé.

Introdução

Este artigo analisa representações discursivas sobre a educação bilíngüe Karajá, sociedade indígena brasileira composta por cerca de 3.000 pessoas que habitam nove aldeias principais ao longo do rio Araguaia, nos estados de Tocantins, Goiás e Mato Grosso. A pesquisa iniciou-se em julho de 1988, quando os então pesquisadores do Museu do Índio (Funai-RJ) Marcus Antonio Rezende Maia e Carlos Alberto Montes de Peres, responsáveis pela execução do projeto de pesquisa "Documentação e Análise de Programas e Projetos de Educação Indígena", patrocinado pelo INEP-ME, visitaram as aldeias Karajá de Santa Isabel do Morro, Barra do Tapirapé, Macaúba e Aruanã com o objetivo de colher informações primárias junto a professores, monitores bilíngües e programadores educacionais atuantes em programas e projetos de educação na área Karajá, bem como junto aos próprios alunos, ex-alunos e demais membros da comunidade indígena. Dez anos após a pesquisa inicial, entre setembro de 1997 e outubro de 1998, o autor do presente artigo revisitou várias das aldeias participantes do estudo original, avaliando e complementando os dados coletados em 1988. Entre 1988 e 1998, um programa de educação, ligado à Funai e apoiado pelo Ministério da Educação com a participação de lingüistas e pedagogos, incluindo o autor deste artigo, vem realizando intervenções sistemáticas na educação bilíngüe Karajá. O presente artigo avalia a situação educacional dos Karajá anteriormente a essas intervenções, que serão objeto de estudo posterior. Note-se, entretanto, que as vozes que aqui se ouvirão, embora originalmente registradas há uma década, ainda ecoam fortemente no presente. Ouvi-las com atenção certamente contribuirá para nossa atuação presente e futura junto aos Karajá.

Ressalte-se desde logo que se abandonou neste estudo qualquer enfoque de natureza quantitativa que não tivesse relevância imediata para a análise. Considerou-se que a adoção de uma perspectiva analítica predominantemente interpretativista (e não tanto descrivista ou historicista) seria o procedimento epistemológico mais adequado para se reportar o material coletado em campo, constituído, fundamentalmente, por impressões, opiniões e pareceres de grande relevo para a compreensão da Escola Karajá, mas de natureza dificilmente quantificável.

Neste sentido, procurou-se montar neste artigo um amplo "painel polifônico" que, ao mesmo tempo que resgatasse as "vozes" ouvidas pelos pesquisadores no campo, pudesse fornecer ao leitor um retrato vivo, interessado e fiel da escola Karajá. Ainda que a escolha dos "personagens" e de suas "falas" tenha sido, até certo ponto, inevitavelmente determinada pelos sistemas de crenças dos autores, pretende-se que as principais categorias recorrentes nos diversos discursos tenham sido adequadamente explicitadas. Buscou-se, assim, iluminar as pressuposições básicas subjacentes às muitas falas, em um esforço para encontrar os alcances e os limites da Escola Karajá a partir de concepções internas, inerentes aos seus próprios sujeitos - a comunidade indígena e as agências educacionais presentes na área Karajá.

1. Metodologia

Este estudo objetiva analisar diferentes discursos constitutivos da entidade que estamos chamando de Escola Karajá. Queremos nesta seção explicitar os pressupostos metodológicos da pesquisa, bem como aspectos da própria metodologia que são relevantes não só para revelar a fundamentação da pesquisa, mas também para permitir a compreensão adequada do artigo.

Inicialmente, é necessário delimitar o conceito "Escola Karajá". Estamos focalizando aqui, exclusivamente, o que Bartolomeu Melia1 1 . Melia, Bartolomeu. Educação e alfabetização indígena. Cimi, 1987. denomina de Educação para o indígena e não os sistemas tradicionais de transmissão de conhecimento utilizados internamente pela sociedade indígena, independentemente de suas relações com a sociedade envolvente.

Os dados foram coletados em campo em entrevistas com base em formulários especificamente organizados para a pesquisa. Esses formulários buscavam elicitar informações sobre os diferentes aspectos da Escola Karajá. Os pesquisadores procuraram, no entanto, ser suficientemente flexíveis na condução das entrevistas, de forma a incorporar outros tópicos aventados pelos informantes e a permitir que estes discorressem com liberdade sobre os temas que julgassem de maior relevo. Este procedimento coaduna-se com o objetivo de se levantar e analisar as representações constitutivas da Escola Karajá, a partir de categorias discursivas internas, como evidenciamos acima, e não com base em critérios externos.

2. Histórico da Pesquisa de Campo

O período escolhido para a visita às aldeias, julho/agosto de 1988, foi o da realização de um programa de reciclagem pedagógica na aldeia Karajá de Santa Isabel do Morro, na Ilha do Bananal, quando cerca de 15 professores bilíngües indígenas e 5 professoras não-indígenas atuantes em oito aldeias Karajá e Javaé reuniram-se durante duas semanas para participar de cursos nas áreas de Língua (Português e Karajá), Estudos Sociais e Matemática. O autor do presente artigo, o pesquisador Marcus Maia, foi convidado pela 6ª Superintendência Regional para a coordenação geral do programa, bem como para conduzir as atividades da área de Linguagem. Para conduzir a programação de Estudos Sociais, convidou-se o antropólogo André Toral, que atua junto aos Karajá e Javaé desde 1975. A parte de Matemática ficou a cargo do professor Francisco Roberto Vieira, da Universidade Federal Fluminense.

Note-se que, à exceção da professora da aldeia Javaé de Boto Velho, todos os demais professores foram direta ou indiretamente formados pelo Instituto Lingüístico de Verão (SIL), organização missionária norte-americana que, em 1971, iniciou na aldeia de Macaúba o projeto piloto do Programa de Educação Bilíngüe e Bicultural (Peba) do Araguaia, a partir da experiência do casal de lingüistas David e Gretchen Fortune, que desde 1958 já desenvolvia pesquisa lingüística junto aos Karajá. A partir de 1971 o casal Fortune torna-se responsável pela seleção e treinamento de professores, metodologia e produção de material didático para as escolas Karajá.

Como em 1988 não vigia qualquer acordo de cooperação oficial entre a Funai e o SIL, foi possível organizar-se pela primeira vez um programa de reciclagem pedagógica para os professores Karajá sem a ingerência do SIL. Desta forma, o encontro de professores Karajá de 1988 seria um momento atípico na história da Educação Karajá: pela primeira vez reunia-se uma equipe coordenada pela Funai, incluindo profissionais ligados a instituições universitárias brasileiras com qualificação para assessorar a Escola Karajá.

Em uma reunião preparatória do Curso em maio do mesmo ano, em Goiânia, a programadora educacional da 6ª Superintendência da Funai havia reportado ao coordenador do programa a necessidade de se produzirem novos materiais didáticos para uso nas escolas Karajá, uma vez que o material originalmente produzido pelo SIL encontrava-se praticamente esgotado. Assim, foi estabelecido que os professores responsáveis pelas três disciplinas organizariam durante o curso uma espécie de "oficina" em que os próprios professores Karajá redigiriam os materiais que fossem necessários em cada área. O Museu do Índio ficaria encarregado da editoração e impressão dos livros didáticos. Posteriormente, estes materiais seriam editados em conjunto com a Imprensa Oficial do Município do Rio de Janeiro.

Enquanto desdobravam-se os preparativos para a realização da viagem à campo, foi aventada a possibilidade de se realizar um documentário em vídeo sobre a Escola Karajá. Através do Departamento de Análise Matemática da Universidade Federal Fluminense, que já vinha desde 1986 assessorando o Projeto de Educação Bilíngüe da aldeia Javaé de Boto Velho,2 2 . Este projeto teve início em julho de 1983, a partir da solicitação de Lucirene Behederu Javaé, filha do cacique da aldeia do Boto Velho, ao lingüista Marcus Maia e ao antropólogo André Toral, para que estes pesquisadores a assessorassem na alfabetização das 12 crianças daquela comunidade, que nunca havia contado até então com qualquer assistência educacional. Inicialmente patrocinado pela Oxfam, o projeto passou em 1986 para o âmbito do Museu do Índio, tendo-se elaborado convênio com o Departamento de Análise Matemática da UFF para assessoramento do ensino da Matemática. elaborou-se um convênio entre o Núcleo Audio-Visual da Universidade (NAV-UFF) e o Museu do Índio, com vistas à realização do projeto. O NAV-UFF cedeu o equipamento e designou dois profissionais para a viagem, o professor Luiz Edmundo Silva e o fotógrafo Juliano Serra. O Museu do Índio responsabilizou-se pelas passagens aéreas e pelas diárias de um dos técnicos da UFF na área Karajá, além de haver adquirido as fitas VHS para o registro das imagens. Documentaram-se, assim, em vídeo, cerca de 24 horas de imagens sobre diferentes aspectos da Escola Karajá, tendo-se entrevistado todos os professores indígenas presentes ao curso de Santa Isabel, lideranças Karajá, alunos e ex-alunos de diversas escolas Karajá, além de tecnicos da Funai, membros do Instituto de Verão e do Conselho Indigenista Missionário - Cimi, com atuação junto aos Karajá.

Outro projeto realizado concomitantemente pelo Setor de Antropologia Visual do Museu do Índio e que foi implementado na aldeia de Santa Isabel com o apoio de toda a equipe foi a exposição fotográfica intitulada "Memória Karajá", expondo-se na aldeia fotos feitas sobre os Karajá nas décadas de 1950 e 1960. Registre-se que todos estes eventos, bem como diversas cenas do cotidiano dos Karajá, foram documentadas em vídeo e eram regularmente apresentadas à comunidade indígena em sessões noturnas na aldeia, que dispõe de aparelho de TV para uso coletivo.

Foi também apresentado aos Karajá nestas sessões o material previamente gravado pela equipe no Museu Nacional (UFRJ), no Museu Antropológico da Universidade Federal de Goiás e no Museu do Índio. No Museu Nacional entrevistaram-se a professora Heloísa Fenelon, especialista em arte Karajá e o pesquisador Hamilton Botelho. Foi filmada ainda parte do acervo Karajá daquela instituição. No Museu Antropológico, em Goiânia, entrevistou-se a professora Silvia Braggio, especialista em Educação Indígena e filmou-se também o material Karajá, em poder daquela Instituição. No Museu do Índio, gravou-se entrevista com a antropóloga Cláudia Menezes, diretora do Museu, que fez breve exposição aos Karajá sobre os objetivos dos projetos que a equipe do Museu coordenaria na área Karajá. No Rio de Janeiro, a equipe entrevistou também o escritor João Américo Peret, ex-funcionário do extinto Serviço de Proteção aos Índios, que trabalhou durante muitos anos entre os Karajá.

Também entrevistaram-se dois importantes líderes do povo Karajá que moram presentemente fora do Parque Indígena do Araguaia, mas que se encontravam na aldeia de Santa Isabel na ocasião. Ijahuri Karajá, ex-aluno do Programa de Ensino Bilíngüe (Peba) coordenado pelo Instituto Lingüistico de Verão, ex-candidato a deputado Federal pelo PMDB, era na ocasião responsável pela Superintendência de Assuntos Indígenas do Governo do Estado de Goiás, onde buscava articular diferentes programas de apoio aos grupos indígenas de Goiás, entre os quais um programa de educação bilíngüe projetado em colaboração com a professora Silvia Braggio, da Universidade Federal de Goiás. Kurehetxi Karajá, também ex-aluno do Peba, ocupava então o cargo de assessor da Presidência da Funai. Neste período, além das entrevistas realizadas entre os Karajá, a equipe entrevistou, na cidade de São Félix do Araguaia, o bispo Dom Pedro Casaldáliga, do Cimi, e o pastor Donatilo Fonseca da Missão Adventista do Araguaia.

Após o término do curso, os pesquisadores e os técnicos do NAV-UFF desceram o rio Araguaia em barco da comunidade indígena Karajá de Barra do Tapirapé e Macaúba, onde se realizaram novas entrevistas e documentou-se uma aula do professor Joel Wahuri às crianças da Aldeia de Barra do Tapirapé; visitou-se também a aldeia dos índios Tapirapé, onde se entrevistaram as irmãzinhas de Jesus, missionárias não-fundamentalistas que trabalharam com os Karajá antes da chegada dos evangélicos fundamentalistas da Missão Novas Tribos e do Instituto Lingüístico de Verão. Na cidade de Santa Terezinha, próxima a aldeia de Macaúba, entrevistou-se o casal Luiz e Eunice Gouvêa, que coordenam há vários anos projeto educacional ligado ao Cimi junto aos índios Tapirapé.

Finalmente, parte da equipe dirigiu-se à Brasília para realização de entrevistas na sede nacional do Instituto Lingüistico de Verão, enquanto o pesquisador Marcus Maia viajava à aldeia de Aruanã, ao sul da Ilha do Bananal, com vistas a observar a situação educacional daquela aldeia, onde não há sistema escolar específico para os Karajá.

A pesquisa aqui reportada situou-se, portanto, em um contexto mais amplo, bastante produtivo. Se, por um lado, os executantes diretos do projeto precisaram dividir a sua atenção com os demais projetos que se realizavam paralelamente à pesquisa, estes outros projetos permitiram, por outro lado, que se ampliasse e aprofundasse, em muitos aspectos, o escopo original da pesquisa. Não fosse o curso da aldeia de Santa Isabel, dificilmente teria se tido acesso aos professores das oito aldeias Karajá e Javaé ali presentes; não fosse o projeto de vídeo em conjunto com a UFF, não se teria tido meios para registrar de forma tão expressiva os diversos depoimentos e entrevistas utilizados nesta pesquisa.

3. A Escola Karajá: a concepção dos professores indígenas

Foram feitas duas entrevistas com os professores indígenas3 3 . Os seguintes professores indígenas participaram do programa de reciclagem: Antonio Ijoraro, Marvel Tuila e Paulo Krumare (aldeia Karajá de Santa Isabel); Daniel Ohòri, Davi Krumare (Aldeia Karajá da Fountoura); Paulo Kuadi (aldeia Karajá de Luciara); Joel Wahuri (aldeia Karajá de Barra do Tapirapé); Raimundo Alàkiri, Marcos Wyra-Wyra e Jú1io Làkukui (aldeia Karajá de Macaúba); Maoel Maruaja (adeia Javaé de Kanoano); Valdemir Ixerua e Juarez Tjmari (aldeia Javaé de Barreira Branca); Lucirene Behederu (aldeia Javaé de Boto Velho). presentes ao curso de reciclagem pedagógica promovido pela Funai na aldeia de Santa Isabel do Morro, nas duas últimas semanas de julho de 1988. A primeira, individual, foi registrada em gravador cassete. Focalizava, fundamentalmente, os seguintes tópicos: formação do professor, o ensino bilíngüe, objetivos da Escola Karajá, principais dificuldades encontradas pelos professores. A segunda série de entrevistas reuniu os professores por aldeia, tendo sido gravada em vídeo. Abordaram-se aí, além dos tópicos acima, questões de natureza mais geral muitas vezes aventadas pelos próprios professores, tais como necessidades das aldeias, preocupações em relação a recursos, assistência da Funai etc. Analisaremos abaixo as categorias recorrentes nas falas dos professores, agrupando-as em termos dos tópicos focalizados nas entrevistas. Note-se que, embora reconheçamos a existência de diferenças individuais entre as escolas das várias aldeias consideradas, não avaliamos como pertinente para os fins da presente pesquisa a explicitação dessas diferenças.

A) A formação dos professores

A análise das representações dos monitores sobre sua própria formação permite o levantamento de algumas categorias recorrentes elucidativas da própria concepção de educação e de escola entre os Karajá. Os professores são unânimes em reconhecer a dificuldade que encontraram em sua própria alfabetização, que se deu em língua portuguesa e teve lugar em escola municipal ou ligada a missão evangélica. A dificuldade de compreensão da língua portuguesa é apontada por quase todos como a principal causa dos problemas de aprendizagem. A fala do monitor de Barra do Tapirapé é paradigmática:

O estudo naquela época era diretamente na língua portuguesa... Nessa época não tinha ensino bilíngüe. Eu achei muito difícil porque não entendia português. (Joel Wahuri Karajá)

Reconhecendo a dificuldade para alfabetizarem-se na língua portuguesa, os professores acentuam por um lado o esforço que lhes foi exigido para transpor a barreira lingüística e, por outro, a importância do ensino bilíngüe. A alfabetização em português tem o caráter de verdadeiro rito de passagem: é a prova exigida para se ter direito de tentar a decifração do mundo "tori" (não índio):

Eu comecei a estudar com professor nacional, mas foi tão difícil porque naqueles tempos eu não estava nem aprendendo a falar português. Estudei com professora nacional até que alfabetizei com a maior dificuldade, aprendi português e aprendi as coisas. (Valdemir Ixerua Javaé)

Aprender português oral e, principalmente, alfabetizar-se nesta língua é o instrumento que permite "melhorar de vida". Note-se que este "salto qualitativo" está crucialmente relacionado à distância que separa uma cultura ágrafa da civilização letrada:

Quando eu comecei entrando na escola não entendia nada o que a letra valia. Aí eu cuidei da minha vida, pra ver se melhorava a minha vida. Estudei, estudei, até que entendi um pouco. (Raimundo Alàriki)

A barreira a ser transposta não pode portanto ser minimizada. Note-se que os professores são aqueles que, em princípio, melhor realizaram esta passagem em cada aldeia. A fala dos professores não deixa dúvida sobre a grandeza do esforço:

O fundador da cidade de Luciara tem uma filha e ela me chamou e perguntou se eu podia estudar, eu tinha dez anos. Aí, falei: "a vontade é muita. Eu preciso estudar meu povo todo, até agora ninguém quase estudou e eu quero estudar como branco aprende as coisas." Eu queria aprender. Foi difícil, levou dois anos, foi difícil. (Paulo Kuadi)

Aí comecei a estudar na escola da Missão Adventista, em Português. Mas eu não entendia o que a professora falava. Ela entregava o caderno para mim, prá acompanhar o gesto dela, ver como escrevia. Tava difícil de aprender Português, como é que eu ía responder? Depois eu acabei passando, mas acho que eu levei cinco ou seis anos só na primeira série. (Davi Krumare)

Encerrado o período escolar, quase sempre em torno da quarta série do primeiro grau, o rapaz, em regra, juntava-se às atividades produtivas da comunidade (pesca e roça) ou, com alguma sorte, obtinha emprego junto a Funai. É nesse momento que, geralmente, "aparecia" o professor Davi (David Fortune, lingüista do SIL), convocando-o para o curso que iria torná-lo monitor bilíngüe:

Estudei até a quarta série, depois eu casei, aí parei de estudar e fui esquecendo. Aí quando peguei o curso para ser monitor e fui aprendendo mais e até agora. (Daniel Ohòri)

Aí, quando eu fiz a terceira série, parei de estudar. Fiquei sem escola dois anos. Então o professor Davi apareceu. Eu estava trabalhando para a Funai, eu era rapazinho e ele apareceu e me chamou. Eu fui no curso lá em Macaúba e estou até agora como monitor. (Paulo Krumare)

O "aparecimento do professor Davi" é concebido como uma categoria quase mágica, um evento de caráter providencial que vem premiar o esforço empreendido na alfabetização:

Eu saí da escola e fiquei aqui fazendo lavoura. Depois quando passou aquele serviço eu fiquei parado, eu vivia assim, pescando. Também eu tinha casado e sustentava meu filho e minha mulher através da pescaria. Um dia, eu estava pescando e quando cheguei da pescaria, o professor Davi estava na beira do rio me esperando. Aí, ele falou comigo. Então, eu fui lá em casa e nem almocei. Fui logo com ele prá fazer o teste prá ver quem dava conta de fazer o curso de monitor. (Marvel Tuila)

O curso de formação de monitores bilíngües, conforme representado no discurso dos professores, se reveste de características de novo ritual de passagem, com rigores como o afastamento da família, a dificuldade dos testes. Dificuldades que nem todos ultrapassariam. É também nesses cursos organizados pelo SIL que os professores completarão sua aprendizagem dos conteúdos geralmente transmitidos no primeiro ciclo do primeiro grau:

Eu passei quatro meses lá, fazendo o curso. Muitos desistiram, porque não conseguiram mesmo. De vez em quando eu vinha ver como minha mulher estava passando na minha aldeia, mas voltava logo. (Marvel Tuila)

O professor Davi chegou lá em Kanoano, conversou, convidou para o curso de monitor bilíngüe na aldeia de Macaúba. Quatro meses ensinando como é que a gente dá aula, como é que escreve no quadro, letra bem bonita prá criança entender. Como é que a gente faz os números, as contas. Foi bom, deu pra aprender muita coisa. (Manoel Maruaja)

É nestes cursos que o Instituto de Verão introduz a proposta de ensino na língua Karajá. Para quase todos os professores será o primeiro contato com a escrita Karajá estabelecida pelos lingüistas do Instituto:

Gostei muito do curso, mas achei muito difícil porque era com respeito à língua materna e eu achei muito difícil porque na época que eu estudava não estudava a língua Karajá. Achei difícil, no começo não sabia ler e nem escrever em Karajá. Fui pegando prática até que aprendi. (Joel Wahuri)

Os cursos de formação de monitores do SIL conferiram um novo status social àqueles que conseguiram realizá-lo. Os professores reconhecem unanimemente a importância do curso em suas vidas, crêem que o Peba trouxe resultados positivos para o povo Karajá, avaliando este resultado em termos do sucesso que alguns índios têm alcançado junto à sociedade não-indígena:

Nós ficamos fazendo o curso durante quatro meses. Primeiro em Macaúba, depois em Santa Isabel e o terceiro curso foi em Canoanã, onde nos formamos. Fizemos tudo num grande afeto, veio o presidente da Funai, veio tudo e até agora a gente trabalha no bilíngüe. Também achei que nós tivemos muito resultado, porque todos os alunos dos monitores que vocês já viram, o Ijahuri, já é assessor do governo de Goiás, o Kurehetxi trabalha na Funai. Então, com isso, eu acho que nós já temos um grande resultado. (Raimundo Àlariki)

B) O ensino bilíngüe

A introdução pelo Instituto de Verão da alfabetização em Karajá é considerada por todos os professores indígenas um grande avanço em relação à sua própria experiência de alfabetização em língua portuguesa:

O importante é que a gente ensina na própria língua porque as crianças entendem muito mais fácil. Antigamente não era assim. Antigamente era professora nacional que ensinava pra criança que não sabia nem falar língua de Tori. Era difícil de aprender, demorava pra aprender. Agora tá mais fácil entender. (Paulo Krumare)

Alfabetização inicial em Karajá e em seguida a "transição" para o Português, como objetivo principal. No discurso dos professores, o ensino da língua materna é representado como facilitador, como ponte para o ensino do Português, e não por algum valor intrínseco:

O português, principalmente, é que leva a gente mais pra frente. Nós vamos aprendendo a escrita em nossa própria língua e então a gente vai passando para o Português, que é importante. (Paulo Kuadi)

A transição é também concebida como um momento especialmente difícil, por diferentes razões: a dificuldade de aprendizagem do Português oral, a tendência a projetar o alfabeto Karajá no Português. É interessante observar que a língua portuguesa é, geralmente, representada como "mais difícil" do que a língua Karajá, em função da existência de traços gramaticais que, embora igualmente existentes em Karajá, são percebidos como características exclusivas do Português. A tradição de ensino do Português geralmente enfatiza a explicitação da gramática como parte da aprendizagem da língua, induzindo à associação inadequada entre categorias gramaticais, na verdade, universais, e a língua portuguesa exclusivamente.

Primeira coisa é aprender Karajá, que ele (o aluno) já sabe através da mãe, da família, mas aí aprende a escrever na escola. Português, eles só estão aprendendo (a falar) com oito, nove anos, então fica difícil a alfabetização em Português. (Marvel Tuila)

Principalmente, quando é no primeiro ano que tá passando para o Português, começando a escrever, já lê tudo misturado, já mistura letra Karajá com letra do Português, já é meio difícil. A gente, como sabe duas línguas, explica bem direitinho para os alunos compreender melhor. (Paulo Kuadi)

Hoje, a dificuldade maior é a transição para o Português porque a língua portuguesa é muito difícil porque tem verbo, conjugação, tem passado, presente... (Joel Wahuri)

C) Objetivos da Escola Karajá

Embora um dos principais objetivos da equipe do Instituto de Verão, responsável pelo Peba, fosse a implementação de uma "ponte cultural" que pudesse ser atravessada em "ambas as direções",4 4 . Fortune, David and Fortune, Gretchen. Karajá Literary Acquisition and SocioculturaJ Effects on a Rapidly Changing Culture. Journal of Multi1ingual and Multicultural Deve1opment, vo1. 8, n° 6, 1987, p. 488. a representação, que se depreende do discurso dos professores indígenas a respeito das finalidades da Escola Karajá, é a de que esta deve visar proritariamente a instrumentalizar os Karajá para compreender e, eventualmente ingressar no mundo não-indígena.

Tem que aprender a ler e a escrever em Português prá melhorar a vida. Da minha parte, eu antigamente, não tinha nada para dar assistência à minha esposa, aí precisava pescar, botar roça, sofri muito Mas depois que eu fiz o curso prá ser monitor eu já comprei muitas coisas pra mim e minha esposa. Eu estou trabalhando para a Funai, já ganho direito, aí tenho condições de ter uma casa bem arrumada. Eu falo sempre prás crianças pra ir à escola, aprender muitas coisas que é do branco, como vocês estão trabalhando, pra trabalhar no escritório ou mesmo na sede da Funai. (Raimundo Alàriki)

A escola é, portanto, o lugar onde se aprende a cultura do "branco". Interessa conhecer os valores da sociedade envolvente para "melhorar de vida", adquirindo bens e valores do mundo não-indígena porque:

...hoje em dia a gente vai vivendo só com o dinheiro mesmo, sabe? Porque ninguém dá, assim, de presente. Então, por isso, a gente quer aprender prá ganhar trabalho, dinheiro. (Paulo Krumare)

O índio quer aprender a ler e escrever para conhecer mais o sistema dos brancos. Na cartilha bilíngüe tem a palavra em Karajá e embaixo tem o Português. Interessa mais é aprender o Português. (Julio Làkukui)

Paradoxalmente, aprender a vida do "branco" não significa necessariamente deixar de ser índio. Há na representação dos professores o ideal vivo do equilíbrio entre culturas. Neste sentido, há uma "voz" que defende a preservação dos valores próprios dos Karajá e concebe o papel da escola como sendo o de permitir comprender o mundo do "branco" para garantir o mundo do índio. De qualquer forma, a educação escolar é sempre concebida como reveladora do mundo não-indígena.

A importância é que sempre vem chegando a civilização no nosso meio e a importância é a gente saber mais prá poder se manter. Por exemplo, saber o que acontece com a nova Constituição, que quer acabar com o índio. Então, nós temos que ficar sabendo prá enfrentar e não prá deixar de ser o que nós somos. (Joel Wahuri)

Esta voz preservacionista está presente na fala de todos os professores Karajá. Mesmo quando alguns concebem, como Raimundo Alàriki, acima, que melhorar de vida é possuir bens e valores do mundo não-indígena, não se ouve jamais no discurso dos professores nenhuma "voz" explicitamente integracionista. O próprio Alàriki afirma:

Tem uns tori que já tem falado prá gente acompanhar só a vida do branco agora. Tem uns Karajá que já pensa em deixar a nação, mas eu pra mim, eu não tenho interesse nisso. Eu tenho interesse em entender o que é do branco, mas não prá deixar a nossa nação. (Raimundo Alàriki)

Não fica claro na fala dos professores, no entanto, como conciliar, na prática, estes dois objetivos - o de aprender os valores do "branco" e o de continuar a ser Karajá. O que fica bastante claro, por outro lado, é a concepção de que a escola , como afirmamos acima, serve basicamente para apresentar conhecimentos pertencentes ao mundo não-indígena. Neste sentido, um professor vocaliza mesmo a existência de pressões, por parte de muitas famílias, no sentido de que o ensino deixe de ser bilíngüe, voltando-se exclusivamente para o ensino do Português:

Nesse tempo agora está ruim porque os pais estão sendo contra nós, poque acham que o ensino bilíngüe está levando as criançadas para trás. Dizem que não estão aprendendo nada, só a língua Karajá, que já sabem. Querem que ensinem só em Português. Muitos até proíbem as crianças de vir prá escola. (Davi Krumare)

De modo geral, os professores indígenas reagem a esta descaracterização da filosofia do ensino bilíngüe-bicultural em que foram formados. Muitos se esforçam para fazer da escola a ponte de "mão dupla" da concepção original do Peba, mas reconhecem não ser esta a vocação primária da escola, com o máximo, a cultura Karajá é abordada no âmbito da escola, com o sentido de, contrastivamente, facilitar a percepção dos valores externos, que ali são mediados pelos professores indígenas:

Às vezes, faço reunião com os pais e com as mães também porque a gente não pode deixar o que nós somos. As crianças tem que aprender as coisas dos Karajás antigos e dos Tori também. (Davi Krumare)

De vez em quando eu falo das culturas nossas Karajá, como é a diferença da cultura Tori. É muito diferente da nossa. Eu falo prá eles sobre alimento, pescaria, muitas coisas. O branco tem cultura e nós também. Assim é que eu explico prás crianças. (Paulo Kuadi)

Assim, como está patente no discurso dos professores indígenas, a Escola Karajá parece refletir de fato a ambigüidade característica da situação de contato em que se encontra esta sociedade: por um lado, a forte penetração da sociedade dita "civilizada", com seus atrativos por vezes irresistíveis, impondo a sua decifração sob a ameaça de "engolir" os Karajá. Por outro lado, a cultura tradicional Karajá que, paradoxalmente, precisa "conhecer" a cultura envolvente para garantir a sua sobrevivência, mas que neste processo pode ser por ela engolfada. Esta possibilidade que se afigura bastante real quando se observam aldeias mais períficas, tais como Aruanã, ao sul da Ilha do Bananal, ou Xambioá, ao norte, onde não se praticam mais as festas tradicionais e a língua Karajá não é mais falada pelas crianças, não parece estar expressa de forma suficientemente clara entre as preocupações dos professores indígenas, embora possa ser localizada, como veremos posterirmente, no discurso de algumas lideranças e anciãos.

D) Dificuldades da Escola Karajá

As dificuldades geralmente apontadas pelos professores nas entrevistas podem ser divididas em dois tipos. Há aquelas de natureza conjuntural ou quantitativa, que dizem respeito, por exemplo, à escassez de materiais, à precariedade das instalações físicas da escola ou à freqüência insuficiente das supervisões. O discurso que privilegia este tipo de caracterização dos problemas geralmente concebe a sua solução em termos de simples ampliação quantitativa:

A principal dificuldade nossa lá é a falta de material, cartilha, caderno, lápis. Meus alunos lá gostam de estudar, a mãe e o pai sempre falam. A dificuldade que eles tem é só Português oral. Se tivesse algum material pra mostrar prá eles ajudava mais. (Julio Lákukui)

O segundo tipo de problemas está relacionado a fatores mais estruturais, cujo equacionamento requereria mudanças qualitativas, geralmente nem cogitadas pelos professores. Sintomas deste tipo de problemas são caracterizados na fala dos professores em termos, por exemplo, do reconhecimento do alto grau de absenteísmo ou da insatisfação da comunidade com o papel por eles desempenhado:

No começo eu tinha 24 alunos e agora tenho só 14, já desistiram 10 alunos. Os pais acham que a gente está só ganhando dinheiro da Funai ás custas dos alunos. (Daniel Ohóri)

As razões apontadas como responsáveis pelas desistências são várias: calendário escolar conflitante com atividades produtivas da comunidade, dificuldades com o português oral, descrença das famílias no ensino bilíngüe, casamento. De modo geral, a metodologia pedagógica em que foram formados os professores é poupada de críticas.

4. A Escola Karajá: as representações da comunidade

Buscaremos analisar nesta seção outras "vozes" ouvidas e registradas pelos pesquisadores nas aldeias visitadas. Entre os anciãos Karajá da aldeia de Santa Isabel, realizaram-se entrevistas com Arutana, Watau, Maluaré e Kutaria. De modo geral, percebe-se na fala desses antigos líderes Karajá uma profunda nostalgia e um certo conformismo em relação aos rumos que a sociedade Karajá vai tomando. A fala do velho ixydinodu, "chefe ritual" Arutana, é expressiva:

Antigamente é que era bom, agora tá prá estragar mesmo. Criançada já não tá quase querendo saber mais nada do Antigo, só de cidade mesmo. Também fazendeiro bota gado bem aí, turista vem... Antigamente, não. Indio Karajá era guerreiro mesmo. Veio Tori, trouxe coisa da cidade, panela, roupa, agora Karajá precisa...

Embora os velhos sejam ainda muito respeitados e ouvidos pelas lideranças mais jovens, seu prestígio vai ficando cada vez mais restrito às questões de natureza propriamente cultural ou religiosa. Por outro lado, percebe-se que, apesar do saudosismo, os velhos Karajá concordam que é preciso estudar e conhecer o mundo do "branco". Neste sentido, não parecem importar-se muito com a discussão sobre o papel da escola na valorização da cultura Karajá. Escola, para eles, não é instituição propriamente Karajá, mas é porta para o "outro lado do rio", a cidade, o mundo Tori:

Meninada tem que ir prá escola, aprender fala de Tori, ficar sabido, mas tem algum que esquece que é Karajá. Antigamente, não... (Arutana)

Outra voz Karajá muito importante é a de Kutaria, filho do velho Wataú, criado para ser guerreiro, na tradição da verdadeira escola Karajá. Kutaria tem dois filhos já rapazes, Ijeseberi e Karirama. O primeiro é estudante no segundo grau em um colégio de Goiânia, o segundo mora com ele na aldeia e é mais versado nas tradições Karajá. Sua filha de 14 anos quase não fala Português, bem como o pequenino Maxiware, seu filho mais novo, cuja primeira língua é Karajá. Kutaria é mais crítico a respeito da introdução da escola entre os Karajá, mas também não deixa de reconhecer a sua necessidade:

Quando veio escola, meninada parou de ir prá roça, acabou a roça da comunidade. Roça bonita que tinha, antigamente. Aí vão prá escola, querem ir trabalhar na cidade, largam as coisas dos índios. Mas nesses tempos de hoje tem que ter dinheiro prá viver, então precisa ir prá escola mesmo.

No extremo oposto da escala etária, encontram-se as crianças Karajá, principais beneficiárias da Escola Karajá: meninos e meninas de 6, 7, a 14 ou 15 anos, mas principalmente meninos, que povoam as salas de aula nas diversas aldeias e que serão em algum tempo os responsáveis pelos destinos da nação Karajá. A "meninada" constitui uma população crescente em quase todas as aldeias Karajá. São, geralmente, alegres, curiosos e extrovertidos. À exceção daqueles nascidos nas aldeias mais periféricas (Aruanã e Xambioá), todos falam Karajá como língua materna. Nas principais aldeias da Ilha do Bananal, visitadas pela equipe, continuam vivas as principais tradições do grupo Karajá. Embora os velhos se queixem do desaparecimento de muitas festas antigas, o principal ciclo ritual - o Aruanã, a dança das máscaras sagradas - continua a ser praticado. Nas aldeias de Santa Isabel, Fontoura, Barra do Tapirapé e Macaúba está de pé a heto-krè ou casa-das-máscaras, onde se realiza importante parte da formação dos meninos Karajá e onde se dá a sua iniciação nas tradições religiosas Karajá. O ingresso do menino na casa-das-máscaras, na categoria inicial denominada de jiurè, é marcado externamente por um corte de cabelo característico. Em todas as aldeias visitadas, encontram-se jiurè, sinal da vitalidade dos sistemas internos de socialização da etnia Karajá.

De modo gral, as crianças em idade escolar demonstram grande interesse e curiosidade pelas aulas e por tudo que se relaciona à cultura do Tori. Também elas concebem a escola principalmente como veículo de transmissão do saber tori. É comum em todas as aldeias verem-se grupos de jovens viajarem, às vezes, horas de barco ou trator para assistirem às aulas em escolas dos municípios vizinhos, já que nas escolas Karajá podem estudar, no máximo, até a quarta série do primeiro grau. A maior parte desses jovens pensa em conseguir um "emprego", de preferência na Funai, como tratorista, motorista, quem sabe, até chefe de posto. Alguns gostariam de ser professor ou de trabalhar em "escritório". Praticamente todos projetam seu futuro em termos de alguma atividade do mundo tori. Paradoxalmente, poucos dentre eles pensam em deixar suas aldeias. Sorriem, incrédulos, quando lhes indagamos sobre a possibilidade de deixarem para trás sua vida tradicional, sua língua, suas festas. Ficam pensativos quando lhes contamos que muitos "parentes" nas aldeias de Aruanã e Xambioá já não "brincam" mais o Aruanã e nem falam mais a língua Karajá. Aprenderam a escrever em Karajá, mas não se observa o uso da escrita produtivamente nas aldeias Karajá.

Outro segmento importante da sociedade Karajá é formado por suas lideranças. Estes jovens adultos, geralmente egressos das escolas do Peba, vêm tendo cada vez mais um papel decisivo na condução dos interesses do povo Karajá. Durante nossa estadia na aldeia de Santa Isabel do Morro tivemos a oportunidade de entrevistar Ijahuri, um dos mais proeminentes líderes Karajá. Ijahuri Karajá, então ocupando o cargo de superintendente de assuntos indígenas do governo do estado de Goiás, foi candidato a deputado federal pelo PMDB em 1986. Foi aluno do programa de educação bilíngüe organizado pelo SIL e, posteriormente, estudou em escolas secundárias em Goiânia. Já foi chefe do Posto da Funai, na aldeia de Santa Isabel do Morro. É membro da Assembléia de Deus. Em 1985, viajou em companhia do lingüista David Fortune, do SIL, aos Estados Unidos, onde participou de um simpósio sobre literaturas indígenas, em San Antonio, Texas. Presentemente, Ijahuri vive em Goiânia e tem dois filhos, que não falam Karajá. Ijahuri é um entusiasta do ensino bilíngüe intoduzido pelo Peba. Defende o Instituto Lingüístico de Verão de uma das principais críticas que geralmente é feita ao Instituto pelos antropólogos e indigenistas - o proselitismo religioso:

Se hoje os Karajá tem a sua ortografia própria, se nós temos, ou bem ou mal, o ensino na nossa própria língua, a alfabetização inicial em Karajá, isso se deve ao Instituto. É claro que muita coisa ainda precisa melhorar, mas a verdade é que hoje nós temos uma escola aqui na aldeia, onde eu e outras lideranças estudaram diretamente em Karajá, graças ao Instituto.

Agora, se eles tem a religião deles, isso é outra questão. Se fossem marxistas, iriam defender a ideologia marxista. Cada um defende seu ponto-de-vista. (...) Se hoje eu sou protestante, eu não sou menos Karajá por isso, pelo contrario, acho que aprendi a ser mais Karajá ainda. A Constituição Brasileira garante a todos a liberdade de crença religiosa...

Ijahuri defende a educação escolar bilíngüe e acredita que a escola tem um papel a desempenhar na luta pela preservação da cultura Karajá. Reconhece a existência de muitos problemas, tais como o abandono a que tem se relegado o sistema escolar Karajá como um todo, mas crê que, como suas bases metodológicas são eficazes, é possível recuperá-lo, sendo necessário apenas que se ampliem os investimentos da Funai no setor educativo. Em uma falta gravada em vídeo para ser exibida aos Karajá de Santa Isabel na TV coletiva da comunidade, Ijahuri exorta as crianças na língua Karajá a estudarem mais, esforçando-se para vencer na vida. Lembra-lhes que, "assim como o Tori é capaz, também os Karajá podem ir para frente". Cita o seu próprio exemplo, de menino Karajá criado na aldeia e Santa Isabel, hoje ocupando cargo importante na capital.

5.As concepções do SIL

O Instituto Lingüístico de Verão (Summer Institute of Linguistics - SIL) é uma instituição evangélica que tem por finalidade o estudo de línguas ágrafas com vistas à tradução de textos bíblicos, o que é feito pela associada Wycliffe Bible Translators (WBT). Vem atuando no Brasil desde 1958, ligado inicialmente ao Museu Nacional (UFRJ) e, posteriormente, a outras universidades brasileiras. O Summer participou direta ou indiretamente da formação de grande parte dos lingüistas brasileiros, especialmente no que diz respeito ao chamado "trabalho de campo", área em que o SIL tem indíscutivel know-how, obtido em mais de 50 anos de atividades junto a quase oitocentas etnias em todo o mundo. A partir de 1969, firma um convênio com a Funai, ampliando seu campo de ação à Educação Indígena. A respeito do modelo de ensino bilíngüe proposto e executado pelo SIL junto a vários grupos indígenas brasileiros,5 5 . Apesar de uma curta interrupção do acordo entre a Funai e o SIL entre 1978 e 1983, o SIL continua a trabalhar com cerca de 50 grupos indígenas no Brasil e desenvolve, desde 1970, cinco programas educacionais: Kaingang (1970), Karajá (1971), Xavante (1972), Guajajra (1972) e Maxakali (1980). a União das Nações Indígenas (UNI), assim se manifestou em documento apresentado em reunião da ONU em Genebra,6 6 . Os Povos Indígenas e o Direito à Educação no Brasil. Documento apresentado pela União das Nações Indígenas do Brasil na quarta sessão do grupo de trabalho sobre populações indígenas da ONU, em Genebra 1985. em 1985:

A dua adoção integral pela Funai tem seus motivos explicados: daria o ensino bilíngüe com toda a aparência de respeito à língua e à cultura, porém conseguiria uma passagem muito mais integral do índios ao mundo dos brancos, uma vez que todos os valores seriam agora traduzidos na língua nativa e assim muito mais embutidos em suas mentes, pois estavam expressos nos próprios termos e modos de concepção indígena.

O SIL designou para atuar junto aos Karajá, a partir de 1958, o casal de missionários-lingüistas David e Gretchen Fortune. De acordo com o modelo padrão de trabalho de campo do SIL, estes lingüistas produziram uma primeira análise gramatical de língua Karajá e estabeleceram uma escrita para a língua antes de iniciarem em 1971 o projeto piloto do Programa de Educação Bilíngüe-Bicultural do Araguaia, o Peba. Seus primeiros trabalhos sobre o Karajá filiam-se à Tagmêmica, escola lingüística de cunho estruturalista desenvolvida pelo norte-americano Kenneth Pike, cuja trajetória confunde-se com a do próprio SIL. Posteriormente, os Fortune desenvolveram estudos sobre o Karajá relacionados a outras correntes da Lingüística. Entretanto, não há dúvida de que a parte mais importante de suas pesquisas está ligada à Educação Bilíngüe. Assim, os estudos realizados pelos Fortune revelaram-se perfeitamente adequados para o estabelecimento de um sistema ortográfico e para a produção de material didático bilíngüe, condições básicas para a realização de um programa educacional. Em publicação recente,7 7 . Fortune, David and Fortune, Gretchen. Karajá literary acquisition and sociocultural effects on a rapidly changing cu1ture. Journal of Mu1ti1inguaJ and Mu1ticu1tural Development, vol. 8, n° 6, 1987, p. 470. o casal Fortune avalia os resultados do Peba:

The development of a literary-based education has enabled the Karajá to face the challenges of the mid-1980's. In a world of extremely rapid cultural change affecting every major aspect of their society, a major transition has been made. They have managed to retain the values taught in their society in a place of central importance. The majority of young Karajá have been taught to read in their mother tongue by bilingual Karajá teachers in their own villages. These newly educated indigenous teachers realised the importance of keeping their own indigenous system, which could be lost through assimilation. Therefore, they, in words, aptly put,'... assumed control of education, and economics...and demanded acceptance as a contemporary tribal people' (Scheneider, 1985). Although Idjarruri Karajá did not win a seat in the National Congress, he was appointed Coordinator of Indian Affairs for the state of Goiás by the new governor.

Também a professora Margaret R. Alford, do SIL, que se juntou à equipe do Peba a partir da segunda metade da década de 1970, publicou uma avaliação8 8 . Alford, Margaret R. A culturally relevant programme for teaching readingin the mother tongue: The Karajá indians of Brazil. Journal of Multilingual Development, vol. 8, n° 6, 1987, p. 493. bastante positiva do programa, em que atribui o seu sucesso (sic) aos seguintes fatores:

The programme has been basically successful because it is culturally relevant in the following ways: a) monolingual Karajá and Portuguese, with bilingual teachers from their own culture; b) Karajá writers have been trained and have produced culturally and linguistically appropriate reading materials in mens's and women's speech; c) the first Brazilian Indigenous Social Studies book was produced and illustrated by Karajá teachers, showing their world view and ethnic pride in their language and culture.

Infelizmente, a equipe responsável pelo presente projeto não pôde realizar entrevista com o casal Fortune, já que este se encontrava fora do país naquela ocasião. Gravou-se, no entanto, entrevista em vídeo na sede nacional do SIL, Brasília, com o Sr. James Walker, piloto e relações-públicas do Instituto e com o casal de lingüistas-missionários Harold e Frances Popovich, que atua a 30 anos junto aos índios Maxakali, tendo amplo conhecimento do projeto desenvolvido pelos seus colegas entre os Karajá. Foram expostas as posições do Instituto a respeito de vários tópicos concernentes à Educação Indígena, em geral, entre os quais o ensino bilíngüe-bicultural:

Os Karajá dispõem hoje de uma escola autenticamente bilíngüe e bicultural, de professores próprios, materiais didáticos próprios. Principalmente, através da Educação Bilíngüe obtiveram a possibilidade de, se assim escolherem, transitar entre duas culturas. Atravessar a ponte de lá para cá e também de cá para lá.

A respeito da questão do proselitismo religioso, o sr. Walker expressou o seguinte ponto-de-vista:

O que o Instituto faz é colocar à disposição daqueles que quiserem, textos bíblicos em sua língua materna. O Instituto considera que um livro como a Bíblia é um patrimônio universal, não é brasileiro, nem norte-americano e, portanto, pode ser do conhecimento de todos.

Os membros do SIL referiram-se ainda, durante a entrevista, à necessidade de se dar continuidade ao programa de educação Karajá, de forma a que não se perca o investimento realizado na implementação das escolas Karajá. Neste sentido, foi reiterada a disposição do Instituto em cooperar com a Funai, como vinha sendo feito até o final do último convênio Funai/SIL.

6. As concepções da Funai

É extremamente difícil apresentar em um texto da natureza do presente relatório uma visão adequada, ainda que sucinta, a respeito das concepções da Funai sobre o Peba. Em primeiro lugar porque é impossível definir no âmbito deste órgão a existência de uma política educacional nítida e consistente em todos os níveis hierárquicos em seus quadros. Devendo, em princípio, atender a cerca de 200 grupos indígenas distintos, o órgão tem, desde sua fundação, adotado sistematicamente a política de delegar parte substancial de suas atribuições no setor educacional a outras instituições.

Não raro, instituições missionárias estrangeiras têm sido beneficiárias dos convênios através dos quais se comprometem a "colaborar com a Funai" em programa de educação junto a grupos indígenas brasileiros. A natureza e amplitude desta "colaboração" têm sido amplamente questionadas pela comunidade científica nacional, formulando-se críticas quanto à delegação do dever de tutela, atribuição legal do Estado brasileiro, a instituições estrangeiras. Neste sentido, os participantes do Encontro Nacional de Educação Indígena, realizado no Rio de Janeiro em 1987, assim se expressaram no documento final do encontro:9 9 . O Encontro Nacional de Educação Indígena teve lugar no Rio de Janeiro, entre 19 e 23 de outubro de 1987, sob o patrocínio do Museu do Índio e do CNRC da Fundação Pró Memória. Participaram desse Encontro 68 professores, lideranças indígenas, educadores, lingüistas, antropólogos, matemáticos, sociólogos e representantes de entidades civis, instituições científicas e órgãos oficiais, ligados direta ou indiretamente ao campo da Educação Indígena.

Tendo em vista, portanto, a incapacidade história da Funai, que conta hoje com um único profissional de educação em sua Coordenadoria de Programação e Assessoramento CPA, para desenvover e acompanhar programas educacionais em áreas indígenas e para supervisionar a atuação das agências missionárias, o GT recomenda que:

a) continuem suspensos os convênios existentes entre a Funai e as Missões religiosas, não se permitindo o ingresso e a permanência nas áreas indígenas de representantes de agências missionárias que adotem práticas proselitistas, visto serem tais práticas prejudiciais à integridade cultural dos grupos indígenas;

b) providencie-se a substituição, no menor prazo possível, dos técnicos vinculados á agências missionárias proselitistas, ainda atuando no Brasil, visando-se a redução gradativa da participação daqueles missionários na elaboração e acompanhamento de programas de treinamento e reciclagem de professores e na elaboração de material didático para as escolas indígenas;

c) constitua-se uma comissão interinstitucional com vistas a encontrar alternativas para a presente situação de absoluto descontrole da atuação missionária e a implementar mecanismos de ação coordenada no campo da educação indígena.

Assim, em função das limitações de recursos humanos e financeiros adequados que, historicamente, têm caracterizado a Funai, o que se verifica é que - via de regra - as instituições conveniadas terminam por exercer uma ingerência quase que total sobre os programas com que, supostamente, estariam colaborando. Dessa maneira, percebe-se nitidamente que a equipe Funai/SIL, responsável pela implantação e desenvolvimento do Peba, seria mais autenticamente definida sob o rótulo de equipe "SIL/Funai", na medida em que é o instituto que estipula as diretrizes básicas do programa e que exerce, de fato, a sua execução, restando à Funai o mero papel de auxiliar e legitimar a atuação do SIL.

Além do mais, há que se considerar a conhecida instabilidade inerente ao órgão tutor. Por exemplo, em 1988, no momento em que realizávamos a pesquisa nas aldeias Karajá, o convênio entre a Funai e o SIL estava suspenso, o que permitiu, como já notamos anteriormente, que outras agências (a própria Funai e a Universidade Federal Fluminense) pudessem atuar no espaço há 17 anos ocupado exclusivamente pelo SIL. Entretanto, já em 1989, a presidência da Funai restabeleceria o convênio com o Instituto.

Neste sentido, que concepções poderia ter a Funai sobre o Peba ou sobre qualquer outro programa educacional? Programas desta natureza têm sido extremamente convenientes para a Funai, que pode apresentar resultados, estatísticas de atendimento, materiais publicados, sem fundamentalmente entrar no mérito dos programas, seja em termos de sua execução ou de sua avaliação. Naturalmente, há na Funai profissionais competentes e dedicados que, eventualmente, obtêm algum resultado por seus esforços sistemáticos e ingentes em algumas áreas de atuação indigenista. E é justamente pela existência desses funcionários que ainda se pode creditar à Funai um mínimo de valor no campo do indigenismo. Mas enquanto órgão da burocracia federal, não há como localizar na Funai nenhum critério, nenhum parâmetro consistente que possa ser utilizado na avaliação das representações do órgão a respeito da educação indígena. De modo geral, tem-se adotado a prática de atribuir ao "órgão tutor" a filosofia integracionista, que está explícita em seus estatutos, como pressuposição fundamental subjacente à maioria de suas atuações. Do ponto de vista conjuntural a que nos referimos acima, pudemos verificar a existência, tanto na 6ª Superintendência, em Goiânia, quanto na ADR-Araguaia, de profissionais capazes e comprometidos com a elevação da qualidade do ensino oferecido nas aldeias Karajá. De modo geral, há por parte deste pessoal - programadores educacionais, supervisores, coordenadores, e professores - a concepção de que o índio tem direito legítimo à sua cultura e que os sistemas educacionais organizados para eles devem respeitar este direito. Embora possa parecer o mais óbvio dos truísmos, tal afirmação justifica-se, quando se conhece que o conceito de que "as comunidades indígenas devem ser assimiladas à comunhão nacional" - o velho chavão integracionista-etnocêntrico - é ainda tão vivo no Brasil.

7. A concepção do Cimi

O Conselho Indigenista Misionário, órgão ligado aos setores mais progressistas da Igreja católica, nunca atuou propriamente entre os Karajá. Estão presentes na aldeia Tapirapé, vizinha à aldeia Karajá de Barra do Tapirapé. Na aldeia Tapirapé residem as Irmãzinhas de Jesus e desenvolve-se um projeto de Educação com o apoio do Cimi. As irmãzinhas, cuja presença na área remonta à década de 1950, chegaram a iniciar um trabalho de assistência aos Karajá que, nesta época, ainda reservavam mais nitidamente suas características de povo nômade, que durante os longos "verões" acampava nas praias do rio Araguaia. As irmãzinhas viajavam de barco pelo Araguaia, indo ao encontro desses grupos para, simplesmente, viver com eles, inculturar-se, aprender sua maneira de ser. Assisti-los no que for preciso, mas sem querer transformá-los, de acordo com os princípios da filosofia "encarnacionista" que adotam.

Em meados da década de 1950, as irmãzinhas assistem à chegada na área dos missionários da Missão Novas Tribos, a New Tribes Mission, cuja atuação missionária tem um caráter marcadamente proselitista. Os missionários das "Novas Tribos" promoveram a reunião de vários destes grupos nômades, formando a aldeia de Macaúba. As irmãzinhas passaram, então, a dedicar-se exclusivamente aos índios Tapirapé, deixando de trabalhar com os Karajá.

É importante ressaltar-se a diferença entre esses dois tipos de atuação missionária. Abdicar do proselitismo significa não só desistir de converter o Outro, introjetando-lhe valores que acarretarão, em última análise, a desestruturação de seu universo próprio, mas implica, igualmente, a adoção de uma atitude solidária para com o Outro, no sentido de trabalhar ativamente pelo seu direito a alteridade. Neste sentido, a "missão" é de libertação e impõe a co-participação nas lutas do Outro para que este possa afirmar a sua identidade e resistir à descaracterização de sua singularidade pela assimilação aos projetos dos grupos dominantes. Por outro lado, a atuação das agências proselitistas é de "salvação", implicando em última análise, a crença de que o Outro não tem um projeto existêncial próprio e que, portanto, deve ser convertido para sobreviver.

A respeito do modelo educacional decorrente da postura não-proselitista, o documento da UNI acima mencionado assim afirma:

Contrapondo-se ao modelo SIL, foram surgindo no decorrer dos últimos 10 anos os chamados modelos alternativos. O mais amplo é o que vem sendo desenvolvido por pessoas ligadas de um modo ou de outro ao Cimi - Conselho Indígena Missionário. A questão da formação de pessoal vem sendo enfrentada paulatinamente, através do concurso de lingüistas brasileiros, os quais dão cursos intensivos, assessoram projetos, de modo a permitir que os professores, geralmente não-índios, aprendam a língua, possam descrevê-la e cheguem a um alfabeto. Preferem uma educação, sempre que possível bilíngüe, mas os propósitos são bem diferentes: trata-se de um processo educacional ligado ao desenvolvimento comunitário e visa, sobretudo, a fornecer os meios mínimos de defesa para fazer face à sociedade nacional.

As irmãzinhas avaliam que o Peba fracassou:

O que foi que eles conseguiram? Alguns Karajá foram estudar fora, deixaram suas aldeias. Mas pelo bem do povo Karajá? O que foi feito? A própria senhora do Davi (Gretchen Fortune) nos falou uma vez que eles haviam falhado. (Irmã Genoveva)

9. Conclusões

Esperamos haver esboçado neste artigo os principais fatores que concorrem para caracterizar a Escola Karajá. Seu futuro aprofundamento poderá contribuir para a melhor compreensão da dinâmica sociocultural em que estes índios estão inseridos e, talvez, possa também ajudar na luta desse povo pela afirmação de sua identidade. Queremos, a título de conclusão, levantar os seguintes pontos:

1) O assessoramento pedagógico aos professores Karajá vem sendo estruturado em novas bases para não se perpetuarem os equívocos decorrentes da metodologia do SIL que, como se indicou neste artigo, fundamenta-se em um bilíngüismo de transição, isto é, utiliza-se da língua e de aspectos da cultura indígena apenas como "ponte" para o ensino do Português e de valores externos, priorizando a realidade do mundo branco e desconsiderando, de fato, os valores intrínsecos da cultura indígena.

2) Na última década, vêm-se procedendo a uma revisão do material didático utilizado nas escolas Karajá. Em sua grande parte, o material produzido pelo SIL contribui para reproduzir junto aos Karajá conceitos e valores que são hoje amplamente questionados na educação em língua portuguesa. Por exemplo, no livro de Estudos Sociais há capítulos como "19 Txu abril", o (o dia do índio), "Biuheòty-txu" (a semana da Asa), "Bandeira - txu" (o dia da Bandeira), que transmitem para os Karajá as mesmas superficialidades, as mesmas "belas mentiras" que se têm hoje tentado mudar na educação nacional.

3) Um projeto educacional de real valor para o povo Karajá não pode ser levado a efeito pela Funai isoladamente, mas deve reunir componentes operacionais provenientes de distintas instituições (governo, universidades, agências não-proselitistas) e não deve restringir-se ao campo educacional somente. Deve-se levar em conta a necessidade de preservação dos ecossistemas da Ilha do Bananal, presentemente sob forte ameaça por parte das atividades de pecuária massiva, que ali se desenvolve descontroladamente. Por outro lado, é de fundamental importância trabalhar em estreita cooperação com os Karajá, no sentido de valorizar a língua Karajá e seus dialetos, bem como a cultura Karajá como um todo, visando não só a sua preservação nos níveis atuais, mas principalmente a sua revitalização, buscando reverter o quadro de desvalorização crescente que ameaça de morte iminente as línguas e culturas minoritárias do Brasil.

Recebido para publicação em agosto de 2000.

Notas

REPRESENTATIONS ON KARAJA EDUCATION

ABSTRACT: This paper reports and analyses different sets of discourse representations on Karaja education produced by indigenous teachers, leaders, as well as government officers and missionaries in an attempt to contribute to the understanding of Karaja bilingual schools.

Key words: Indigenous education; Bilingual education; Indigenous discourse; Karaja; Javaé.

  • ALFORD, Margaret R. A Culturally relevant programme for teaching reading in the mother tongue: The Karajá indians of Brazil. Journal of Multilingual Development, nº 6, vol. 8, 1987, p. 493.
  • FORTUNE, David & G. FORTUNE. Karajá literary acquisition and sociocultural effects on a rapidly changing culture. Journal of Multilingual and Multicultural Development, nº 6, vol. 8, 1987, p. 488.
  • MELIA, Bartolomeu. educação e Alfabetização indígena. Cimi, 1987.
  • OS POVOS indígenas e o direito à educação no Brasil. Documento apresentado pela União das Nações Indígenas do Brasil na quarta sessão do grupo de trabalho sobre populações indígenas da ONU, em Genebra, 1985.
  • 1
    . Melia, Bartolomeu. Educação e alfabetização indígena. Cimi, 1987.
  • 2
    . Este projeto teve início em julho de 1983, a partir da solicitação de Lucirene Behederu Javaé, filha do cacique da aldeia do Boto Velho, ao lingüista Marcus Maia e ao antropólogo André Toral, para que estes pesquisadores a assessorassem na alfabetização das 12 crianças daquela comunidade, que nunca havia contado até então com qualquer assistência educacional. Inicialmente patrocinado pela Oxfam, o projeto passou em 1986 para o âmbito do Museu do Índio, tendo-se elaborado convênio com o Departamento de Análise Matemática da UFF para assessoramento do ensino da Matemática.
  • 3
    . Os seguintes professores indígenas participaram do programa de reciclagem: Antonio Ijoraro, Marvel Tuila e Paulo Krumare (aldeia Karajá de Santa Isabel); Daniel Ohòri, Davi Krumare (Aldeia Karajá da Fountoura); Paulo Kuadi (aldeia Karajá de Luciara); Joel Wahuri (aldeia Karajá de Barra do Tapirapé); Raimundo Alàkiri, Marcos Wyra-Wyra e Jú1io Làkukui (aldeia Karajá de Macaúba); Maoel Maruaja (adeia Javaé de Kanoano); Valdemir Ixerua e Juarez Tjmari (aldeia Javaé de Barreira Branca); Lucirene Behederu (aldeia Javaé de Boto Velho).
  • 4
    . Fortune, David and Fortune, Gretchen. Karajá Literary Acquisition and SocioculturaJ Effects on a Rapidly Changing Culture.
    Journal of Multi1ingual and Multicultural Deve1opment, vo1. 8, n° 6, 1987, p. 488.
  • 5
    . Apesar de uma curta interrupção do acordo entre a Funai e o SIL entre 1978 e 1983, o SIL continua a trabalhar com cerca de 50 grupos indígenas no Brasil e desenvolve, desde 1970, cinco programas educacionais: Kaingang (1970), Karajá (1971), Xavante (1972), Guajajra (1972) e Maxakali (1980).
  • 6
    . Os Povos Indígenas e o Direito à Educação no Brasil. Documento apresentado pela União das Nações Indígenas do Brasil na quarta sessão do grupo de trabalho sobre populações indígenas da ONU, em Genebra 1985.
  • 7
    . Fortune, David and Fortune, Gretchen. Karajá literary acquisition and sociocultural effects on a rapidly changing cu1ture.
    Journal of Mu1ti1inguaJ and Mu1ticu1tural Development, vol. 8, n° 6, 1987, p. 470.
  • 8
    . Alford, Margaret R. A culturally relevant programme for teaching readingin the mother tongue: The Karajá indians of Brazil.
    Journal of Multilingual Development, vol. 8, n° 6, 1987, p. 493.
  • 9
    . O Encontro Nacional de Educação Indígena teve lugar no Rio de Janeiro, entre 19 e 23 de outubro de 1987, sob o patrocínio do Museu do Índio e do CNRC da Fundação Pró Memória. Participaram desse Encontro 68 professores, lideranças indígenas, educadores, lingüistas, antropólogos, matemáticos, sociólogos e representantes de entidades civis, instituições científicas e órgãos oficiais, ligados direta ou indiretamente ao campo da Educação Indígena.
  • E-mail

    * Professor Adjunto de Lingüística do Departamento de Antropologia do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). :
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      05 Set 2001
    • Data do Fascículo
      Ago 2001

    Histórico

    • Recebido
      Ago 2000
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