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Editorial

EDITORIAL

No dia 30 de março fomos surpreendidos pela publicação, no jornal Folha de S. Paulo, Caderno Campinas, de reportagem de difusão ciêntífica comentando pesquisa recentemente realizada por João Batista Araújo e Oliveira e Simon Schwartzman sobre desempenho e repetência escolar na escola básica. Baseada nos resultados a que chegaram os pesquisadores, a matéria afirma, com alarde, que "Para pais e professores da rede pública do país, é o estudante o principal responsável pela repetência escolar e até mesmo pelo péssimo desempenho do Brasil em avaliações internacionais".

A surpresa veio de três aspectos da matéria. Em primeiro lugar, da apresentação dos pesquisadores, que não têm produção consolidada sobre aprendizado na escola pública elementar (o primeiro tem produção sobre gestão escolar e o segundo trabalhos conhecidos sobre a educação superior), como "dois dos maiores especialistas brasileiros no assunto", certamente estratégia para dar credibilidade à versão divulgada. Em segundo lugar, da inesperada atribuição de culpa pela má qualidade do ensino a participantes da vida escolar, cuja influência efetiva nas decisões referentes à escola e ao ensino tem sido impedida por uma política educacional desastrosa. Mas o espanto maior veio da volta à tradicional redução do complexo problema do rendimento escolar a comportamentos isolados de um ou outro participante da vida escolar, em flagrante desconsideração das análises e reflexões competentes produzidas nas duas últimas décadas a respeito deste tema. A conclusão dos pesquisadores baseia-se exclusivamente em levantamento de opiniões e não em uma análise científica. Tal levantamento serviria mais para aquilatar o grau de difusão na população de uma determinada explicação do fracasso escolar, mas revela muito pouco sobre suas verdadeiras causas.

Nos últimos vinte anos, a pesquisa educacional realizada em núcleos universitários e instituições de pesquisa de excelência pôs este tema em outras bases. Em oposição aos procedimentos simplistas, contrários à solução efetiva dos problemas do ensino público, que responsabilizam o aluno e seu ambiente familiar, ou atribuem a culpa ao professor, tido como portador de todos os defeitos pelo discurso oficial, a investigação científica inovadora promoveu uma revolução teórica e metodológica, de modo a desvelar a complexa trama de produção de resultados cada vez mais medíocres na escolarização da maioria das crianças e jovens brasileiros. No centro desta análise, encontram-se a política educacional e sua relação com a política econômica, as condições concretas da escola e do ensino, as condições de trabalho dos educadores, a escola como instituição social estruturada a partir das contradições presentes na sociedade.

Seu resultado mais importante é a descoberta de que a produção do chamado "fracasso escolar" advém de uma variedade de dimensões que só podem ser entendidas no interior de políticas educacionais subordinadas a interesses que não os dos usuários e trabalhadores em educação. De um lado, sucessivas reformas, projetos e diretrizes que, ao sabor de interesses partidários, atropelam educadores, desorganizando seu "saber fazer", tornam-nos descrentes dos "pacotes pedagógicos" e esterilizam o chão das escolas, forrado de desânimo, sentimento de impotência, raiva e estratégias de sobrevivência que as distanciam de seu objetivo de ensinar. De outro, a representação preconceituosa e depreciativa que se tem do usuário majoritário das escolas públicas primárias – crianças e famílias das classes populares –, sumariamente desqualificado em suas capacidades não só por educadores, mas nos textos de projetos e reformas, dá continuidade a um longo processo de desqualificação científica dos subalternos, desde as teorias raciais até o cognitivismo atual, passando pela apropriação indébita da psicanálise para postular "problemas emocionais" de aprendizagem, pelo neurologismo das disfunções cerebrais mínimas, pela famigerada "teoria da deficiência cultural", pelo neo-organicismo da "inteligência emocional". Já se sabe da influência do "discurso competente" – mediado por especialistas e educadores – sobre as opiniões dos pais, convencidos da incapacidade de seus filhos em reuniões escolares e em consultórios médicos, e dos demais profissionais que atendem alunos com supostos "distúrbios de aprendizagem e de ajustamento". Dezenas de pesquisas revelaram o desrespeito crônico a professores mal pagos, mal formados e excluídos dos centros de decisão.

A tradicional responsabilização de alunos, pais e educadores – bodes expiatórios de um processo em que o verdadeiro responsável está sempre fora de foco –, já superada no âmbito da pesquisa, mas ainda presente no discurso oficial, alimenta a cegueira seletiva dos que planejam o ensino, que teimam em desconsiderar as relações de poder instaladas em todas as práticas e processos – seja a relação entre todos os participantes da vida escolar, seja as práticas de avaliação da aprendizagem, os conteúdos ensinados ou os métodos de ensino – recorrentes numa escola submetida a uma lógica econômica e social perversa. Responsabilizar os elos mais enfraquecidos da cadeia de decisões é estratégia que dá asas a tentativas de solução calcadas em tecnicismo e tecnocracia, já analisadas em suas conseqüências funestas, sempre mal-sucedidas no objetivo declarado de melhorar o ensino, mas nem por isso descartadas. No dernier-cri dos novos tempos, educar é um "ato técnico", não mais "ato político", expressão rebaixada a jargão de uma "esquerda demodée", rótulo aplicado a todos os que denunciam a impostura e a ditadura do 'único pensamento válido': o pensamento frio dos que dominam e de seus concessionários.

Inúmeras pesquisas superaram um discurso que insiste em prevalecer, elaborando um conhecimento de fundo que não pode ser negligenciado por quem se propõe a pensar as questões do ensino público brasileiro. Estas investigações reiteram as palavras de Florestan Fernandes: "vivemos numa sociedade em que o povo sempre foi zelosamente afastado dos direitos cívicos de cidadania". Este é o ponto sem o qual o conhecimento não passa de justificação do que aí está.

Comitê Editorial

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Dez 2006
  • Data do Fascículo
    Abr 2002
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