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Sistema Nacional de Educação Básica: nó da avaliação?

The Brazilian elementary educational system: the hitch in assessment?

Resumos

Partindo da consideração dos fundamentos e dos objetivos do Estado democrático de direito preconizado pela Constituição da República Federativa do Brasil, são abordados a perspectiva do direito à educação e os vínculos com os princípios e as finalidades da educação nacional. Ao destacar a marca histórica da descentralização da oferta da educação básica, expõe-se o paradoxo da concentração do poder formulador na esfera da União. A hipertrofia do INEP ¾ Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais e de seus instrumentos de avaliação, assim como os resultados do SAEB ¾ Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica, com base na pesquisa "Retrato da Escola II", são sinteticamente analisados como Sistema nacional de educação básica ¾ nó da avaliação?

Avaliação; Educação básica; Sistema de avaliação; Sistema nacional de avaliação; Avaliação da educação básica


Considering of the foundations and purposes of a democratic state as set forth by the Brazilian Constitution, this paper deals with the problem from the viewpoint of the right to education and its links to the principles and goals of this country's educational system. Highlighting the historical importance of the decentralization of elementary education, it exposes the paradox of the formulation power, concentrated within the Federal sphere. The hypertrophy of both the Brazilian Institute for Educational Studies and Research (INEP) and its evaluation instruments, together with the results of the Brazilian System for Elementary Education Assessment (SAEB) are synthetically analyzed through the prism of the "The II Portrait of School" survey.

Evaluation; Elementary education; Evaluation system; Brazilian assessment system; Assessment of elementary education


SISTEMA NACIONAL DE EDUCAÇÃO BÁSICA: NÓ DA AVALIAÇÃO?

Carlos Augusto Abicalil* * Secretário de Projetos e Cooperação da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE). E-mail: caabicalil@uol.com.br

RESUMO: Partindo da consideração dos fundamentos e dos objetivos do Estado democrático de direito preconizado pela Constituição da República Federativa do Brasil, são abordados a perspectiva do direito à educação e os vínculos com os princípios e as finalidades da educação nacional. Ao destacar a marca histórica da descentralização da oferta da educação básica, expõe-se o paradoxo da concentração do poder formulador na esfera da União. A hipertrofia do INEP ¾ Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais e de seus instrumentos de avaliação, assim como os resultados do SAEB ¾ Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica, com base na pesquisa "Retrato da Escola II", são sinteticamente analisados como Sistema nacional de educação básica ¾ nó da avaliação?

Palavras-chave: Avaliação. Educação básica. Sistema de avaliação. Sistema nacional de avaliação. Avaliação da educação básica.

Situar a avaliação da educação nacional, dadas a abrangência e a complexidade do tema, é um exercício difícil, não-linear e de muitos percursos possíveis. Vale registrar que, per se, merece teses e dissertações inesgotáveis. Diante de tal desafio, optamos por um percurso que procura resgatar as considerações formais do Estado republicano pretendido pela sociedade brasileira, tal como se expressa na Constituição federal. A partir de uma breve referência a seus fundamentos e objetivos, saltamos para a consideração específica da educação nacional, na perspectiva do direito, de seus princípios e finalidades.

Sua atualização obriga à caracterização das bases da reforma educacional imposta ¾ e impostora ¾, seus elementos constitutivos ¾ normativos e organizativos ¾ incidentes sobre o financiamento, as condições de trabalho, a formação e a carreira dos profissionais, o currículo, a avaliação e a gestão.

Um importante trabalho de consideração crítica sobre a base de dados do SAEB ¾ Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica vem sendo desenvolvido pela CNTE ¾ Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação, sob o título Retrato da Escola II,1 1 . Suas primeiras aproximações podem ser acessadas através do sítio http://www.cnte.org.br, de onde se baixam os arquivos de maior interesse temático. O debate crítico prossegue e, em breve, estará consolidado numa publicação de artigos organizada pela Confederação, em convênio com a Campanha Nacional pelo Direito à Educação. cuja síntese aponta importantes fatores de incidência sobre a proficiência dos estudantes da educação básica. Os primeiros resultados confirmam os pontos de estrangulamento da oferta, resultando num diagnóstico suficientemente claro para indicar as prioridades de intervenção das políticas públicas.

Por fim, a qualidade social é abordada como norte irrenunciável para a avaliação, colada ao imperativo da valorização da educação e dos/as educadores/as. Seja no sentido da seleção, da comparação, da certificação, da classificação, do diagnóstico ou do controle, é indispensável considerar a centralidade do INEP ¾ Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais, a megaestrutura disposta pelo MEC ¾ Ministério da Educação e do Desporto ¾ e sua (o)posição ante o horizonte utópico de construção de um sistema nacional de educação.

Um passeio simples e superficial sobre as disposições constitucionais já servirá de referência elementar para tratamento das bases referenciais sobre as quais se fundariam as políticas públicas de responsabilidade do Estado e de alcance universal como direito público subjetivo. Os fundamentos da organização do Estado federado estão claramente dispostos no art. 1º e seus objetivos, no art. 3º. O balanço dos anos que se sucederam à promulgação da Constituição federal quanto ao alcance de tais objetivos e dos sucessivos governos de "transição", de "reforma" e de "modernização" é mostra clara dos desvios de rota, de sentido e de direção. Para aferi-los, nada melhor do que a referência ao art. 6º: "São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição".

É incontestável a oposição de significados quando confrontados estes direitos sociais com as reformas constitucionais, a redução do Estado, as privatizações e restrições de direito advindas dos programas e das ações de governo legitimadas por voto da maioria e avalizadas pela ampla base de sustentação política nos ambientes legislativos de "representação" popular. Ainda assim, a universalidade do direito é a base do princípio de igualdade que não se opõe à pluralidade e às ricas diferenças que compõem qualquer povo. Antes, dá substância ao papel irrenunciável do Estado moderno. Com razão, a Constituição afirma no art. 19, III, que é vedado ao Estado criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si (Brasil, 1988).

Os artigos sob o Título II da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional ¾ LDB (Brasil, 1996) mencionam os princípios e fins da educação nacional, seguindo-se pelo direito à educação e dever de educar no Título III. Embora o dever da família preceda, na ordem da escrita, ao do Estado (art. 2º), em momento algum se pode suprimir qualquer das partes na afirmação do direito à educação escolar vinculada ao mundo do trabalho e à prática social (§ 2º do art. 1º).

A lista de 11 princípios revela-se como campo denso de disputa de significados e sentidos pautada nas tensões entre: o público e o privado; a consolidação do direito e a oferta de oportunidades; a universalidade e a obrigatoriedade; a gratuidade e o mercado; a pluralidade, a liberdade e a tolerância; a democracia e o controle. Eles pautam a afirmação do dever do Estado com a educação escolar pública nos incisos I, II, III, IV e V do art. 4º. O reconhecimento do déficit histórico com a escolarização de jovens e adultos e com a atenção infantil são expressos nos incisos VI, VII e VIII do art. 4º. Outrossim, a controversa expressão dos "padrões mínimos de qualidade", mencionados no inciso IX do mesmo artigo, em substituição a um padrão universal, não pode ser simplesmente reduzida à qualidade mínima sem ferir gravemente o art. 19 da Constituição federal.

Passados 14 anos da promulgação da Carta Magna, não existe lei complementar que fixe as normas da cooperação determinada pelo art. 23. Não há sequer projeto conhecido em tramitação. Fala-se correntemente em reforma tributária e reforma política, promove-se a reforma da administração com os vínculos conhecidos e oculta-se o debate estrutural sobre os critérios claros, precisos, públicos e permanentes de cooperação. Talvez pela contundente permanência dos matizes clientelísticos e patrimoniais da herança histórica (Mendonça, 2001). Certo é, porém, que tal fato tem assegurado um inédito poder de concentração da União em determinar políticas e programas em frontal contradição com o princípio federativo.

Retornando às disposições da LDB, o art. 8º mencionará os regimes de colaboração entre sistemas de ensino, regendo no plural, de acordo com as esferas de administração.

No caso específico da educação básica, a oferta educacional nos estabelecimentos oficiais de ensino é o foco no qual deveria ser verificado o cumprimento dos princípios propugnados pela Constituição, no art. 206, além de seus objetivos e finalidades já mencionados.

Porém, diante de leis flexíveis é necessário continuar a disputa. Dada a origem fortemente descentralizada da oferta da educação pública brasileira e a chamada coexistência entre redes públicas e a rede privada, é importante resgatar elementos da Carta Magna que balizam o pacto federativo e sintetizam a possibilidade de convivência humana na frágil nação brasileira. A idéia do regime de colaboração substituiu precariamente a formulação de um sistema nacional de educação. Assim como a cooperação entre as esferas administrativas exigiu regulamentação em lei complementar até hoje inexistente, o regime de colaboração entre sistemas não conhece regulação clara, objetiva, universal e validada para o território nacional. A tradição patrimonialista ganha farto espaço de teimosa persistência, regulando-se caso a caso, na forma de convênios pontuais e temporários, decretos ocasionais e, até mesmo, acordos informais entre "autoridades educacionais". É evidente que, num quadro destes, os princípios proclamados pela Constituição ficam sumariamente relativizados ao sabor do entendimento político dos governos de turno em cada unidade federada.

A LDB organizou a educação brasileira em apenas dois níveis: a educação básica (formada pela educação infantil, ensino fundamental e ensino médio) e educação superior, de acordo com o seu art. 21. A incorporação da educação infantil, ofertada em creches ¾ recém-saídas da rede de assistência social ¾ e pré-escolas, significou um avanço considerável do direito à educação. Não correspondeu, entretanto, ao aumento de recursos para a educação em igual intensidade.

Uma alegoria que bem expressa a apreensão de profissionais da educação básica brasileira sobre a atual organização é a máxima de Boaventura de Souza Santos (Arroyo, 2001):

Professores e alunos terão de ser exímios nas pedagogias das ausências, ou seja, na imaginação da experiência passada e presente se outras opções tivessem sido tomadas. Só a imaginação das conseqüências do que nunca existiu poderá devolver o espanto e a indignação perante as conseqüências do que existe.

No Brasil, a descentralização da oferta da educação obrigatória não é novidade. Nunca se logrou que o Poder Público central tivesse responsabilidade relevante na escolarização das maiorias. A esta característica correspondeu, sempre, a consagração de desigualdades regionais agudas, a pulverização de sistemas (e redes), a desarticulação curricular ou a sua rígida verticalidade e o estabelecimento de ação concorrencial entre as esferas de governo subnacionais. O poder formulador, normativo, tributário e controlador, por sua vez, não foi distribuído igualmente (Abicalil, 1998).

Por esta mesma razão, a LDB descreveu, sob a orientação constitucional, incumbências de cada esfera administrativa, notadamente nos art. 9º, 10 e 11. Em todos, o princípio da colaboração repete-se, subordinado ao cumprimento do direito público subjetivo ao qual correspondem deveres de Estado e ações de governo, à superação de desigualdades, à formação básica comum e a consolidação de um padrão de qualidade. É conveniente destacar que, embora a política de turno obedeça à lógica da municipalização da oferta, os sistemas municipais em franca expansão não herdaram da LDB a competência para avaliar.

A luta organizada em torno do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública, desde o período constituinte, expressou a reivindicação por um sistema nacional de educação que articulasse as políticas públicas de educação, segundo um padrão unitário de qualidade, com estruturas democráticas de gestão, de planejamento e de avaliação e de forte apelo ao controle social das ações de Estado. Mesmo considerando a herança descentralizadora dos sistemas estaduais e da, já presente, municipalização de redes no ensino obrigatório, a articulação nacional do sistema objetivava assegurar os princípios da educação e alcançar seus fins. Diante de tanta desigualdade e da perversa concentração das riquezas ¾ regional e socialmente consideradas ¾, somente um sistema nacional seria capaz de cumprir os imperativos desejados pelo Estado de direito democrático. Como assinalamos anteriormente, a ordem formal satisfez-se com a saída de uma fórmula difusa e pouco comprometida: a cooperação entre as esferas da administração federativa e a colaboração entre sistemas.

As análises internacionais podem trazer referenciais importantes para nossa síntese (IE, 1999). A vontade estatal de promover a educação tem sido um fator de identidade nacional. Em muitos lugares, a maneira mais eficaz de vencer obstáculos e desigualdades foi a centralização. Em outros casos, comunidades locais regionais, por razões ideológicas, culturais ou políticas, disputaram com o poder central a conformação de sistemas locais. De todo modo, o desenho dos sistemas tem seguido o mesmo modelo da composição do Estado: federal, unitário, de comunidades autônomas etc. (Abicalil, 2001).

Ora, em qualquer modelo de organização, os aspectos mais fundamentais podem ou não estar presentes, a saber:

1. A gestão democrática do sistema, envolvendo as diversas forças sociais implicadas no processo, em todos os níveis, com regras estáveis para composição das instâncias de decisão, de avaliação e de planejamento;

2. A promoção de igualdade e a promoção da justiça social supondo a conjunção de diversos fatores, entre os quais:

2.1. as orientações estratégicas e a regulamentação;

2.2. programas, registros, certificações e métodos de reconhecimento e autorização;

2.3. os critérios de financiamento;

2.4. o estatuto de contratação do trabalho e de desenvolvimento profissional, bem como as normas de gestão;

3. A garantia da qualidade e da eficácia do processo, com investimentos pesados e com um trabalho de fortalecimento das relações voltadas à consolidação da nação e para além das fronteiras nacionais, a partir de uma matriz de desenvolvimento humano;

4. A geração de condições para que as escolas e as equipes de trabalho possam assumir suas responsabilidades correspondentes à resposta às expectativas comuns, aos planos pedagógicos, às famílias e aos estudantes, ao entorno econômico e cultural, demarcada pela abertura à prática e à exigência de cidadania;

5. Articulação do nível local, regional, nacional e, inclusive, supranacional (importante na formação dos blocos contemporâneos e nas relações internacionais, em geral), fortalecendo o caráter público do sistema.

Com base nestes aspectos fundamentais, originou-se a pesquisa Retrato da Escola II (CNTE, 2001), da qual destacamos considerações importantes.

1. As condições de infra-estrutura das escolas têm influência na aprendizagem e no desempenho dos/as alunos/as. As condições infra-estruturais das escolas particulares, salvo pouquíssimos itens, são melhores do que as de escolas públicas. As condições mais precárias encontram-se em escolas municipais, e da zona rural.

1.1. Como esses são dados da série histórica do SAEB 1995-1997-1999, períodos em que se acelerou o processo de municipalização do ensino, verifica-se não ter havido a preocupação necessária com o investimento das redes municipais para proceder a sua expansão.

1.2. A proficiência recebe influências diferenciadas, dependendo da etapa de ensino. Por exemplo, na 4ª série a existência de pátios e áreas para recreação é condição destacada. Já na 8ª série e no ensino médio são as condições de equipamentos de apoio didático (laboratórios de ciências e de informática). Em contrapartida, as condições ambientais perturbadoras (barulho, falta de ventilação, má iluminação) são fatores que interferem significativamente na aprendizagem. Em relação a esses fatores, o desnível entre escolas particulares e escolas públicas é muito grande.

A análise que pode ser feita nos remete às debilidades da política oficial de expansão e de manutenção de prédios escolares.

1.3. Na análise das condições de equipamentos, em todos os cortes feitos (capital/interior; urbana/rural; pública/particular) a TV e o vídeo são os que se encontram em melhor estado de conservação. Contudo, não são os que têm maior impacto na aprendizagem. Às vezes uma máquina copiadora seria melhor. O investimento em equipamentos não leva em consideração a realidade das escolas. Prende-se ao direcionamento das políticas de governo, em detrimento de outros fatores que necessitam ser incluídos. O investimento centralizado nas prioridades da política governamental não é o melhor caminho.

2. Quanto ao planejamento pedagógico e uso do livro didático, é comprovado que, quando a escola desenvolve (discute e planeja) sua própria proposta pedagógica, o rendimento dos alunos aumenta. O porcentual de proficiência no nível alto dobra, apresentando-se melhor do que na situação de ausência de debate e de imposições de propostas. A proficiência alta chega a ser melhor em situações em que não se registra existência de projeto pedagógico. A política educacional vigente, no entanto, não contempla a participação da escola e dos professores como elemento de construção e de elaboração de propostas, programas e projetos. Dá-se prioridade ao caráter meramente executor da escola, sendo constantes as iniciativas centralizadas que limitam os professores a agentes operativos, desprezando-se sua capacidade crítica, reflexiva e criativa. O acesso ao livro didático e a sua escolha, mediante processo coletivo de discussão relacionado à proposta pedagógica da escola, melhora significativamente a aprendizagem dos estudantes. Há um limite para a escolha, pois ela é feita pelas indicações da lista da FAE ¾ Fundação de Apoio ao Estudante, e muitos estados, embora afirmem ter propostas pedagógicas, não a consideram na escolha do livro didático. O aceso ao livro didático cai no ensino médio, embora também se constate a melhoria na aprendizagem quando é adotado.

2.1. Ficam evidentes três aspectos da política vigente: a fragmentação dos programas e projetos (livro didático e proposta pedagógica, neste exemplo particular); a imposição de projetos para as escolas (listagem FAE/MEC); a exclusão do ensino médio das políticas de natureza suplementar que podem contribuir para a qualidade do ensino.

2.2. Há uma distinção de procedimentos, nas diversas variáveis analisadas, se considerarmos as etapas da educação básica nas quais foram aplicados os protocolos de pesquisa (4ª e 8ª séries do ensino fundamental e 3ª série do ensino médio), o que nos leva a ter características próprias, bem marcantes, em cada uma delas. É inegável que existem particularidades decorrentes do perfil dos estudantes, da organização curricular e da própria prática pedagógica dos professores. Porém, quando se analisam componentes globais do processo educativo que atuam positivamente na aprendizagem dos alunos, independentemente da etapa que cursam, é importante destacar que a sua observância deveria dar-se em toda a educação básica, mesmo que guardadas as características próprias de cada etapa. A fragmentação da educação básica em infantil, fundamental e média, e a subfragmentação do ensino fundamental em 1ª e 2ª fases são uma marca das políticas vigentes, como se houvesse três escolas distintas em uma só. Visivelmente faltam políticas de suporte ao ensino médio e a fragmentação da educação básica traz impactos perversos para a organização curricular e sistêmica, como confirmam os próprios dados do SAEB.

3. A pesquisa mostra a importância da leitura, pelo professor, de livros, revistas e jornais de informação geral e de atualidades, e de romances e revistas em quadrinhos, que permitem acesso a opiniões mais amplas, a outras dimensões do conhecimento humano e ao mundo discente. O tipo de leitura mais importante para melhorar a proficiência de 4ª série e a qualificação dos professores, em qualquer etapa de ensino, não se limita aos aspectos técnicos da profissão, mas à sua própria amplitude e complexidade.

A política educacional oficial, entretanto, secundariza esse aspecto da qualificação profissional, preferindo atuar na capacitação em serviço, voltada principalmente para os aspectos técnicos e metodológicos do trabalho. Não discute a política, sua concepção e formulação. Apenas as melhores formas de sua implementação na escola. Tal postura limita os espaços de formação continuada, reduzidos ao "aprender a fazer". Exemplo explícito tem sido a execução do Programa Parâmetros em Ação.

3.1. A relação entre formação profissional e proficiência dos alunos não se limita à escolaridade do professor, que na maioria dos estados e dos municípios, em qualquer das redes de ensino, é maior do que a exigida por lei. Interferem outros fatores como tempo em que trabalha como professor e tempo em que trabalha na escola. A experiência acumulada, tecida nos desafios diários enfrentados pelos professores, tenderá a ser mais valorizada para a qualificação profissional, à medida que for refletida e sistematizada na relação teoria versus prática, superando o estágio de conhecimento do exercício profissional, para o estágio de apropriação e pleno controle desse exercício por meio da reflexão/ação/reflexão. As políticas vigentes não contribuem para isso, seja pela natureza da formação em serviço, como vimos anteriormente, seja pelas condições objetivas de tempo dos professores, presos a múltiplas jornadas de trabalho, via de regra em mais de uma escola ou rede de ensino, a dezenas de turmas e centenas de alunos. O acúmulo de tarefas burocráticas decorrente desse quadro gera sobrecarga de trabalho e prejudica o aperfeiçoamento e a qualificação dos professores e a sua relação pedagógica com a escola e com os estudantes.

3.2. Com relação aos diretores escolares, além do nível de escolarização pesam, na aprendizagem, o tempo como diretor e o tempo em que trabalha na educação. Os dados mostram que o maior tempo de exercício na educação melhora a proficiência. Contudo, deve haver um momento para sair da atividade de direção escolar. Conforme mostram os dados, a permanência muito longa nessa função não atua positivamente na aprendizagem. A política de escolha de diretores escolares, na maioria dos estados e dos municípios, considera outros critérios, como o da indicação político-partidária. Vale ressaltar a proposta de democratização da gestão educacional, contemplando a eleição para diretores como fator relevante. Numa proposta consistente, o tempo determinado para sair, os critérios claros e públicos de escolha e a defesa de um plano de ação coerente com a proposta pedagógica da escola são fatores indispensáveis.

4. No que se refere à prática da sala de aula, os recursos utilizados pelos professores são os tradicionais quadro de giz, exposição oral da matéria e exercício em livro didático. Na avaliação, predominam a prova e a lição de casa, também considerados recursos tradicionais. A utilização de recursos tradicionais de ensino corresponde a práticas de avaliação também tradicionais por parte da maioria esmagadora dos professores. Tal correlação não é observada nos instrumentos de avaliação utilizados pelo INEP, que não aferem o desenvolvimento do processo de aprendizagem dos alunos mas o seu resultado.

4.1. O cumprimento da proposta curricular e dos conteúdos previstos pelo plano de ensino tem impactos positivos muito significativos na proficiência, em todas as redes de ensino e etapas da educação. Não é a suspensão eventual de aulas que prejudica o desenvolvimento do conteúdo do ensino. Estados com baixo índice de desenvolvimento do conteúdo afirmam não terem tido problemas de paralisação de atividades. O fator tempo objetivo dedicado às atividades escolares pelos estudantes e pelos professores, em uma dimensão mais permanente, tende a ser mais importante na relação com o desenvolvimento do conteúdo. Mais uma vez, questões como jornada de trabalho, ambiente familiar, organização curricular questionam a política educacional vigente.

4.2. Os professores apontam três dificuldades principais que podem estar prejudicando a relação ensino/aprendizagem: alto índice de falta às aulas, carência de recursos pedagógicos e carência de pessoal de apoio pedagógico. Estes indicadores são reveladores de limites perversos que, se superados, poderiam influir positivamente na aprendizagem.

4.3. O número de livros existentes nas casas de estudantes e de professores tem impacto positivo e aumenta os índices de proficiência alta. Os resultados são melhores quando os alunos possuem número significativo de livros (mais de 100). O programa do livro didático FAE/MEC não estabelece um vínculo permanente do aluno com o livro. Aos professores, diante da situação salarial, não é fácil organizar uma biblioteca de consulta e de uso particular e múltiplo.

5. A violência, manifestada tanto contra as pessoas como contra o patrimônio, tem efeitos na qualidade do ensino e é mais presente nas escolas públicas do que nas particulares. Contra as pessoas, a violência é mais presente no ensino médio do que no ensino fundamental. As medidas de segurança atuam positivamente na proficiência dos alunos e, entre elas, o controle da entrada na escola e da saída desta e a presença do vigia apresentam mais impactos significativos na aprendizagem. Os dados indicaram a necessidade de um tratamento mais atencioso ao ensino médio, etapa da educação básica desprovida de políticas fundamentais de manutenção e a importância do fator humano e da valorização profissional como elementos primordiais na definição de políticas que visem à qualidade do ensino.

5.1. São evidentes a dimensão educativa da atividade do vigia e a sua vinculação ao projeto pedagógico e ao ambiente da escola, fatores totalmente ausentes nas políticas oficiais, que negam os funcionários como educadores. Os governos investem mais em grades e cercas como equipamentos de segurança.

5.2. Há uma variável neste dado não investigada, mas real nas escolas particulares, que é o seguro financeiro do patrimônio e a instalação de alarmes e sistemas eletrônicos de segurança e vigilância, o que dá uma certa tranqüilidade aos proprietários em casos de perdas e danos. Outro dado, já investigado em pesquisa anterior (CNTE, 1999), indica que, muito mais do que as grades e as cercas, são a proposta pedagógica da escola e a sua relação com a comunidade os elementos inibidores da violência. As medidas mais usadas estão, pois, na contramão do tratamento mais eficaz à violência escolar.

A redução dos recursos para a educação tem sido dramática, conforme relata o próprio Tribunal de Contas da União. Entre 1996 e 1999, houve uma queda de R$ 1,4 bilhão no orçamento federal. A distribuição dos recursos do FUNDEF pela via da complementação federal atingiu apenas 10,9 milhões entre os 32,4 milhões de alunos. Os gastos federais, irregulares nos últimos cinco anos, seguem a tendência de decrescimento: R$ 6,1 bilhões em 1995; R$ 5,6 bilhões em 1996; R$ 5,3 bilhões em 1997, R$ 4,8 bilhões em 1998 e R$ 5,5 bilhões em 1999. Enquanto isso, em 2000, foram destinados R$ 30 bilhões para o pagamento dos juros da dívida. Este montante seria suficiente para dobrar os recursos federais da educação (PT, 2001).

Por outro lado, grandes obstáculos de desconsideração da organização federativa do Brasil, de seus fundamentos e finalidades previstos nos art. 1º e 3º da Constituição federal foram agregados nos últimos oito anos. Exemplos desta situação são fartos: o privilegiamento do chamado superávit fiscal com o objetivo de honrar os compromissos com as dívidas públicas interna e externa, a Lei de Responsabilidade Fiscal, os vetos presidenciais ao FUNDEF ¾ Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério ¾ e ao PNE ¾ Plano Nacional de Educação, o desrespeito aos valores de custo-aluno-anual referenciados nos art. 6º e 11 da Lei nº 9.424/96, a DRU ¾ Desvinculação de Recursos da União que subtrai recursos de transferências devidos a estados e municípios, os elementos de isenção e elisão fiscal da chamada guerra fiscal, entre outros.

Por último, há que considerar que o patamar brasileiro de investimento público em educação é muito baixo. Em torno de 4% do PIB¾ Produto Interno Bruto. As vinculações constitucionais de recursos resultantes de impostos de 18% para a União e de 25% para estados e municípios, no mínimo, raramente se cumprem, o controle social é ineficiente e as contas automatizadas com repasse decendial não se efetivaram.

Diante da aceleração da municipalização, dos incentivos oficiais à máxima descentralização e à evolução das disparidades regionais e da precarização do trabalho, faz-se mister aprofundar a relação destas incidências com a organização do sistema (Gracindo, 1997). Assim, é preciso ter claro que o discurso ¾ e a prática ¾ da descentralização no âmbito dos ajustes estruturais do Estado afeta a organização interna do poder e consiste em transferir competência e responsabilidade a esferas cada vez menores, culminando na redução da responsabilidade pública por financiar os sistemas.

Há uma tendência de crescimento das exclusões e restrições: educação infantil, de jovens e adultos, especial, do ensino médio, da educação profissional, do ensino superior gratuito (Abicalil, 2000).

É preciso assinalar que qualquer desenho de avaliação setorial se coloca diante de um projeto mais global de desenvolvimento no qual se estabelece uma escala de valores de convivência humana, de produção/distribuição econômica e cultural, de relação com a natureza ¾ espaço e tempo. Neste sentido, uma vez mais, vale considerar que a orientação das reformas educacionais em curso possui algumas características fundantes que, contribuem decisivamente sobre aqueles resultados (Torres, 1997).

Ora, qualquer avaliação deveria ser posta na perspectiva da valorização. Esta é a relação prevista na LDB ¾ Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Vai muito além das prescrições da Resolução nº 03 do CNE ¾ Conselho Nacional de Educação que reduz sua vinculação à avaliação periódica de conhecimentos do profissional e ao grau de proficiência de seus alunos, com impactos progressivos ou regressivos na carreira e na remuneração. Um desvio desta magnitude pareceria justificar que menos aprendizagem justificaria menos salário ¾ e vice-versa ¾, numa dinâmica de legitimação da falta de qualidade e da promoção da desigualdade como próprios da natureza do processo escolar. O modismo dos prêmios de produtividade aplicado por grandes redes públicas de ensino representa um choque ético, portanto.

O currículo é peça fundamental para a avaliação que poderia apontar outro horizonte.2 2 . "Os PCNs são mais do que parâmetros curriculares, eles traduzem concepções sobre a função social e cultural da escola, reinterpretam na sua ótica o direito universal à educação básica e, sobretudo, não conseguem fugir a concepções e perfis de educador/a, de infância, adolescência e juventude. (...) concretizam estratégias e políticas de um governo e dos interesses sociais e políticos que representam. (...) Mas podem os PCNs ir mais fundo e derrubar cercas, abrir horizontes em que novos conteúdos da docência e das licenciaturas sejam mais abertos, incorporem dimensões e culturas que não cabem mais nos quintais fechados, gradeados e disciplinados. Na medida em que são redefinidos os conteúdos da docência, esta também é redefinida" (Arroyo, 2001). Partir da desigualdade e da diversidade, com base na análise de experiências, pela crítica de estudiosos e dos movimentos sociais, pelo exame das propostas originadas nos ambientes educativos, pela análise da literatura, pela crítica das programas internacionais contemporâneos. Estes pressupostos exigem uma ampla consideração das condições objetivas de trabalho, do acesso a informações e conhecimentos continuadamente, duma nova divisão dos tempos e dos espaços do trabalho profissional, duma concepção ampliada dos diversos campos profissionais da educação.

Em contrapartida, a imposição permanente de aprofundar as relações escola/sociedade e escola/trabalho/produção/distribuição, a valorização dos conflitos e da cultura vividos no cotidiano das comunidades, a crítica e o diálogo com outros saberes, a heterogeneidade cultural, a globalização cultural com abertura à consideração dos desafios e limites, as perspectivas humanas e éticas, as lutas contra-hegemônicas e étnicas, a historicização dos conteúdos, a radicalização da transversalidade incluindo as rupturas seqüenciais e hierárquicas que organizam o conhecimento chamado científico e sistematizado.

Este outro horizonte só será re-conhecido e per-corrido com base em novas relações de trabalho entre/para/com os profissionais da educação. O próprio conceito de profissionais da educação deve ser ampliado para considerar as diversas características e exigências do trabalho escolar, cada vez mais complexo e diverso, se se pretende ser contemporâneo, democrático e qualificado. Não se admite mais o conceito raso da docência ante ferramentas seculares como a voz, o quadro de giz e o (ainda raro) livro de texto. Outros instrumentos de aprendizagem e outros fatores de bem-estar têm ocupado o tempo e o espaço da escola, seja com atividades diretamente vinculadas à aprendizagem dos componentes curriculares, seja nas atividades de realização concreta dessas aprendizagens. Dos serviços de segurança à manutenção, da alimentação escolar à administração burocrática, da coordenação pedagógica aos multimeios didáticos.

Hoje, pode-se afirmar que as conhecidas funções "não-docentes" e de apoio estão cada vez mais presentes no trabalho da escola, constituindo-se como exercícios profissionais típicos do processo escolar. Por esta razão a afirmação de outros profissionais, para além dos quadros docentes em relações cada vez ¾ menos verticalizadas ¾ mais horizontais e igualitárias, impõe um outro desenho conceptual e outro patamar societário. É o mesmo Arroyo (op. cit.) quem adverte:

Como ser capazes de transmitir os saberes e as competências que preparam os jovens para o mercado competitivo, de excelência e seletivo e formar para as competências abertas como objetivos?

As políticas públicas colocam os docentes em fronteiras de guerra... São obrigados a optar por um lado, freqüentemente, pelo hegemônico, as exigências do mercado, do concurso, do vestibular. Terão de optar por determinados conteúdos e secundarizar outros. Possivelmente os abertos.

O mercado de trabalho não é aberto, neutro, inocente, tem preferência por determinados conhecimentos e competências, fechados e úteis, ignora competências e conhecimentos mais abertos.

Cidadania é dominar saberes úteis, aqueles mesmos das grades curriculares, das disciplinas, das provas escolares e dos concursos.

O autor relaciona o que seriam conteúdos abertos: cidadania, participação social e política; exercício de direitos e deveres, valores, atitudes, condutas, identidade pessoal e nacional; respeito às diversidades; autoconfiança; desenvolvimento das capacidades afetiva, física, cognitiva, ética, estética, musical, matemática, gráfica, plástica, corporal, para expressar e comunicar suas idéias, interpretar e usufruir produções culturais; capacidade de intervir para o uso do pensamento lógico, a criatividade, a intuição, capacidade de análise crítica etc.

Quaisquer processos avaliativos possuem uma finalidade. De acordo com a instituição que as realiza, com os parâmetros que estabelece, com os objetivos e as metas a que se referem e com os atores que deles participam se pode inferir algumas finalidades, entre as quais se situam: certificação; comparação; seleção/classificação/progressão; diagnóstico; controle.

Em se tratando da abrangência nacional, é imprescindível colocar a atenção sobre as incumbências da União, segundo o art. 9º da LDB, especialmente nos incisos destacados:

V - coletar, analisar e disseminar informações sobre a educação;

VI - assegurar o processo nacional de avaliação do rendimento escolar no ensino fundamental, médio e superior, em colaboração com os sistemas de ensino, objetivando a definição de prioridades e a melhoria da qualidade do ensino;

Outras referências à avaliação estarão dispostas nos art. 67, IV, 74 e 75. A primeiras destas se refere à obrigação dos sistemas de promover a valorização dos profissionais da educação, assegurando a progressão funcional baseada na titulação ou habilitação, ou na avaliação do desempenho. Deve-se sublinhar que a finalidade da avaliação do desempenho, com toda a complexa discussão em torno de seus termos, destina-se à valorização profissional. Nos art. 74 e 75, é transparente o estabelecimento de um padrão de qualidade que se constituiria na base referencial do financiamento público e da ação supletiva e redistributiva da União na garantia do direito à educação.

Diante deste espectro normativo, a avaliação que incumbe à União deveria ter por finalidades a definição de prioridades, a melhoria da qualidade, o controle da oferta de ensino superior de seu sistema. O diagnóstico, o controle e a ação corretiva em vista das prioridades deveriam ser o norte.

Cumpre perguntar a ação dos organismos de avaliação. Fundamentalmente, o INEP ¾ Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais ¾ constitui a mais importante estrutura do Ministério da Educação e do Desporto ¾ MEC. É tal sua importância estratégica na indução das políticas que sua ex-presidente, Maria Helena Guimarães de Castro, chegara a propor sua conversão na Agência Nacional de Educação. Talvez, muito ao gosto da eliminação do próprio Ministério e da consolidação de uma forma de autonomia da escassa rede federal que só visasse à redução das responsabilidades executivas da União. Por outro lado, ressalta a omissão (no art. 11 da LDB) da incumbência de avaliar por parte dos municípios, em que pese toda indução à municipalização da oferta de ensino fundamental e de educação infantil.

Os principais instrumentos de avaliação do(s) sistema(s) concentram-se num super órgão federal. Assim, o SAEB ¾ Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica, o Provão ¾ Exame Nacional de Cursos Superiores, o ENEM ¾ Exame Nacional do Ensino Médio e o já anunciado ENEJA ¾ Exame Nacional de Educação de Jovens e Adultos somam uma fantástica base de dados sobre o resultado dos alunos em diversos níveis/etapas de educação escolar, cuja utilização principal tem sido a do mero "ranqueamento" de resultados. O centro da difusão de dados é a mera comparação entre os resultados. Não se refere à qualidade nem restabelece prioridades na correção de rumos. Vale assinalar que 64% das matérias de mídia impressa têm fonte oficial (ANDI, 2000).

Sacristã admoesta para os requerimentos da comparação (Silva, 1996). Avaliar pode pressupor a comparação, que, por sua vez, pressupõe a identidade de critérios. Esta questão remete a outra questão: O que um aluno aprende é comparável com o que outro aluno aprende?

Cruzando dados da própria base de coleta do SAEB, ver-se-á que a variável classe social do aluno aparece dividindo espaços com aspectos como o uso do computador, o tipo de leitura, a infra-estrutura da escola, a questão se os pais conhecerem ou não algum amigo dos filhos na escola ou o fato de os banheiros estarem limpos!

Tanto é assim que estas variáveis comparecem igualmente nas escolas privadas e públicas. Note-se também que a variável "nível de escolaridade dos pais" tem sua parcela de explicação, juntamente com todas as outras e inclusive com a classe social dos alunos, professores e diretores. O nível de leitura dos alunos e dos professores, a infra-estrutura das escolas, a formação e a experiência do professor e diretor, a conduta dos pais, a violência que acomete a escola têm um peso importante na explicação da proficiência (CNTE, 2001). Assim, ao contrário do que se dissemina na opinião pública:

É preciso dizer que não se pode comparar com rigor a qualidade do sistema público com a do sistema privado enquanto não se cumpram, pelo menos, duas premissas metodológicas básicas: levar em consideração, na comparação, as condições socioeconômicas e culturais dos alunos que acedem a um sistema e a outro. Se não se controlam as variáveis externas, não se pode atribuir mérito às internas. O rendimento escolar é uma forma enviesada de avaliar a educação, a qual mantém estreita relação com o capital cultural familiar.

A comparação teria de se apoiar numa avaliação que levasse em consideração variáveis relacionadas com uma gama de objetivos educacionais, assim como os elementos materiais, humanos, técnicos e metodológicos dispostos para a sua consecução. Se a escolaridade não se justifica ou se valida apenas pelos resultados acadêmicos, teremos que ser coerentes quando comparamos os sistemas de educação. (Silva, 1996)

Os veículos de comunicação de massa, há meses, divulgam os mais variados indicadores do vexame nacional na aprendizagem de jovens, adolescentes e adultos que estão ou passaram pela educação básica brasileira. Agora, a divulgação dos resultados aferidos pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura ¾ UNESCO e pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico ¾ OCDE, comparativos entre diversos países de condição similar, não deixa dúvidas e move o arroubo ministerial para reiterar uma precária análise que aponta três principais motivadores do fracasso: 1) os pobres estão na escola; 2) as professoras são mal formadas; 3) não se utilizam adequadamente as inovações técnicas e metodológicas.

A rigor, tais afirmações não passam de justificações para a inoperância governamental na construção das vias de superação do enorme quadro de pobreza material da população, dos/as profissionais de educação pública básica, como das próprias escolas das redes públicas. Esta base de justificação, sem qualquer proximidade com uma análise mais conseqüente e justa, é a mesma que faz a maior autoridade educacional brasileira regozijar-se pelo fato de o país necessitar de um programa de "bolsa-escola federal" que contemple com R$ 15,00 mensais 13 milhões de crianças ¾ 1/3 dos alunos do ensino fundamental ¾ com renda familiar per capita inferior a R$ 90,00. Ao contrário de motivo de tanto foguetório, orgulho da política de FHC/Paulo Renato, é uma denúncia veemente da geração ampliada de empobrecidos/as pela adesão oficial aos programas de ajuste neoliberais.

Em contrapartida, não se mencionam a péssima remuneração, as precárias condições e as autoritárias e estéreis relações de trabalho dos profissionais de ensino. Fala-se mal da formação, como se fosse, per se, capaz de provocar tantas mazelas e se o já alcançado fosse um patamar suficiente. Esquecem-se da formação continuada, requerimento dos chamados tempos modernos e requisito fundamental para a atualização do fenômeno educacional. A virtual existência de recursos tecnológicos é fartamente denunciada pela base de dados disponível no próprio INEP (CNTE, 2001).

A finalidade diagnóstica da avaliação para a mudança, em direção aos parâmetros de qualidade universais, passa a ser reduzida, por um lado, à comparação e, por outro, amplia-se em direção à (des)classificação de sujeitos, redes e sistemas. Em contrapartida, extrapolando sua competência legal, o INEP ameaça, agora, avançar sobre a certificação e a seleção, anulando o espaço institucional e o processo educativo no lugar próprio ¾ a escola ¾ como sua referência máxima.

É grave a pretensão expressa de "estruturar uma avaliação da educação básica que sirva como modalidade alternativa ou complementar aos processos de seleção nos diferentes setores do mercado de trabalho" e ao acesso à educação profissional e superior como estabelece a Portaria nº 195/2001 do INEP.

Em geral, renunciando às medidas de mudança, tende mais para a justificação dos resultados do que para o seu efetivo controle. Rende-se à absoluta ausência de crítica e renuncia à política (Oliveira, 2000).

O aparente descompasso entre descentralização e autonomia nos projetos oficiais nada mais é do que a ocultação do principal: a atomização da execução, a acentuação das desigualdades ¾ em nome das diferenças ¾, e a individuação das oportunidades no lugar do direito universal e público. Isso dá sentido ao foco na gestão local, mais do que na articulação de um sistema nacional como queríamos na LDB. Fragmenta a oferta, forja espaços normativos sem poder deliberativo, institui programas gerais que passam por cima dos sistemas e das redes ¾ PROFORMAÇÃO, PROINFO, FUNDESCOLA, PREMEM, Parâmetros em Ação, Dinheiro Direto na Escola etc. É evidente que não se pode renunciar ao combate ao ocultamento da crítica e ao debate sobre a qualidade (Cury, 1999).

Nada mais atual e forte do que firmar posição no sentido de que à educação pública cabe: a) a promoção da igualdade nas condições de acesso e permanência (Abicalil, 2000); b) a promoção da Qualidade Social (Carvalho, 1996); c) a avaliação voltada para o projeto político-pedagógico centrado na construção de uma nação soberana e emancipadora (Silva, 1996).

Abre-se a esperança de que não nos restará apenas a afasia de esforços perdidos!

Não menos importante na valorização é a radicalidade na gestão democrática das escolas e dos sistemas. A criação de espaços de participação e de decisão colegiada dos diversos segmentos escolares (docentes, funcionários, pais/mães, estudantes) em conselhos eleitos por seus pares com função deliberativa e de controle social. Os conselhos de escola, os conselhos dos sistemas ¾ municipais e estadual ¾, os conselhos de acompanhamento e controle de recursos financeiros e da merenda escolar devem ser legitimados por representações sociais democraticamente indicadas pelas instituições civis, com mandatos claros, condições técnicas de operação, acesso franco a dados e informações, agilidade na operacionalização corretiva.

A desprofissionalização avança e, mais que antes, é tempo de resistência (Abicalil, 1999). Resistir, agora, significa também construir conceitos e realidades capazes de disputar opiniões e propor superações. Neste particular, o debate sobre o sistema precisa ser aprofundado, estimulado, difundido.

O esforço público por um sistema nacional de educação, longe de significar um elemento de justificação, deve ser um mecanismo de mudanças consistentes, de pressão continuada, de prática administrativa que ponha em curso uma transgressão salutar e necessária à lógica de redução do Estado, do direito minimal, da restrição de garantias sociais e trabalhistas. A base de dados disponível no Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica é suficiente para afirmar a necessidade da outra direção. Não nos basta um sistema de avaliação nacional.

Por isto, ao apostar numa outra educação possível, a ação necessária recomenda a denúncia aberta e o anúncio de alternativas socialmente válidas e politicamente sólidas. Será necessária uma conduta fundada nos imperativos éticos de resistência.

Recebido e aprovado em julho de 2002.

Notas

THE BRAZILIAN ELEMENTARY EDUCATIONAL SYSTEM: THE HITCH IN ASSESSMENT?

ABSTRACT: Considering of the foundations and purposes of a democratic state as set forth by the Brazilian Constitution, this paper deals with the problem from the viewpoint of the right to education and its links to the principles and goals of this country's educational system. Highlighting the historical importance of the decentralization of elementary education, it exposes the paradox of the formulation power, concentrated within the Federal sphere. The hypertrophy of both the Brazilian Institute for Educational Studies and Research (INEP) and its evaluation instruments, together with the results of the Brazilian System for Elementary Education Assessment (SAEB) are synthetically analyzed through the prism of the "The II Portrait of School" survey.

Key words: Evaluation. Elementary education. Evaluation system. Brazilian assessment system. Assessment of elementary education.

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  • 1
    . Suas primeiras aproximações podem ser acessadas através do sítio
    http://www.cnte.org.br, de onde se baixam os arquivos de maior interesse temático. O debate crítico prossegue e, em breve, estará consolidado numa publicação de artigos organizada pela Confederação, em convênio com a Campanha Nacional pelo Direito à Educação.
  • 2
    . "Os PCNs são mais do que parâmetros curriculares, eles traduzem concepções sobre a função social e cultural da escola, reinterpretam na sua ótica o direito universal à educação básica e, sobretudo, não conseguem fugir a concepções e perfis de educador/a, de infância, adolescência e juventude. (...) concretizam estratégias e políticas de um governo e dos interesses sociais e políticos que representam. (...) Mas podem os PCNs ir mais fundo e derrubar cercas, abrir horizontes em que novos conteúdos da docência e das licenciaturas sejam mais abertos, incorporem dimensões e culturas que não cabem mais nos quintais fechados, gradeados e disciplinados. Na medida em que são redefinidos os conteúdos da docência, esta também é redefinida" (Arroyo, 2001).
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    Secretário de Projetos e Cooperação da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE).
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Dez 2002
    • Data do Fascículo
      Set 2002

    Histórico

    • Recebido
      Jul 2002
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