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EDITORIAL

A imprensa brasileira e internacional, os mais diversos setores sociais, econômicos, políticos e acadêmicos saudaram a eleição de Luis Inácio Lula da Silva como um evento histórico. Este é um fato incontestável.

A Revista Educação & Sociedade, obediente à rigorosa objetividade científica e atenta ao pluralismo nas posições dos que nela colaboram, bem como respeitosa do pensamento de seus inúmeros leitores, considera a eleição de um líder sindical como a marca fundamental do processo de democratização do nosso Estado. Este passo permitirá a concomitante democratização da sociedade. Quando a expressão "evento histórico" é lembrada, para definir a eleição do próximo presidente, julgamos imprescindível recordar, até mesmo com detalhes, o peso do adjetivo que recorda a História do país.

O Brasil, sabemos, é controlado, desde quando foi colônia portuguesa, por oligarquias regionais. Dada a enorme extensão territorial, o centro do poder nunca conseguiu, sozinho, dirigir o país do Norte ao Sul, do Leste ao Oeste. Para garantir as fronteiras ampliadas nos séculos XVI e XVII pelos "Bandeirantes", foi preciso instalar, nas províncias mais afastadas da capital, grupos sociais interessados em manter o território contra os colonos espanhóis, aproveitando as riquezas naturais do solo. As oligarquias, ao longo da história, foram de muito auxílio para o poder, sobretudo quando, após a ruptura com Portugal, o imenso país optou por um regime centralizador. No Império e nas Regências, surgiram movimentos de autonomia ou mesmo de independência regional. São exemplos disto a Confederação do Equador, em 1824, no nordestino estado de Pernambuco e a República Farroupilha, em 1836, no extremo sul do país.

Estes movimentos produziram revoluções armadas em todo o território nacional, sustentadas pelas doutrinas liberais da Revolução Francesa de 1789 e do liberalismo inglês. Para abafar tais revoltas, o Império utilizou dois mecanismos: o exército e a diplomacia. No mesmo instante em que as forças armadas venciam os rebeldes, os diplomatas do Império negociavam benefícios, reais ou supostos, para as províncias. Estas negociações se efetivaram por intermédio dos oligarcas regionais.

Das oligarquias surgiram os quadros dirigentes do Império e da República. Desde então, os funcionários públicos dos postos mais elevados e os integrantes das profissões liberais (médicos, engenheiros, advogados) administraram a máquina dos poderes, dos municípios à Federação. O voto foi negado aos analfabetos, às mulheres, e mesmo aos não-proprietários. Gradativamente, reformas democráticas foram implementadas. Também das oligarquias surgiram os quadros universitários e científicos do país. A própria fundação das universidades federais resultou de negociações entre oligarcas regionais e poder central.

Os cargos mais relevantes nos campi foram assegurados aos filhos dos que controlavam politicamente as regiões. Assim, a preparação para o exercício dos cargos públicos, feita nas universidades, foi por muito tempo reservada às famílias oligárquicas.

Semelhante regra vale para todo o país. Mesmo o estado de São Paulo não foge dela. No século XIX, ele era um dos mais pobres do país, limitado à produção do café e sem indústrias ou escolas superiores. No século XX foi iniciada a sua industrialização, que teve os seus oligarcas, os grandes fazendeiros de café, como incentivadores. Crescida a indústria e aumentada a riqueza do Estado, ele foi a última das unidades da Federação que procurou, por via armada, uma autonomia ou independência do Brasil. Em 1932, começou uma guerra vencida pelo poder central, que estava nas mãos de Getúlio Vargas. Este último, no plano federal, também iniciou a moderna industrialização do Brasil como um todo. Perdida a guerra, a oligarquia de São Paulo instaurou a sua Universidade estadual, a USP, em 1934, com o alvo de produzir ciência e tecnologia. Os "paulistas" perceberam que a guerra tinha sido perdida, entre outras coisas, pela fraqueza tecnológica do estado. O brasão da USP traz uma frase simbólica do desejo dos oligarcas: "A ciência vence". Isto é: com a ciência e a técnica geradas no campus, São Paulo poderia sonhar com a separação do Brasil.

A Universidade de São Paulo não trouxe a independência política desejada, mas produziu saberes e técnicas que fizeram de São Paulo a maior economia da Federação. Daquela universidade saíram os quadros políticos e administrativos mais importantes do atual governo brasileiro. É dela, e das duas outras universidades do estado de São Paulo (UNICAMP, Universidade de Campinas, e UNESP, Universidade do Interior de São Paulo), que sairá a maioria dos quadros políticos e administrativos do governo Lula da Silva. Reprimida durante a ditadura militar, a Universidade de São Paulo formou físicos e engenheiros que ajudaram a idealizar o programa do "Brasil potência" dos militares. Com o fracasso econômico e político da ditadura, este objetivo foi abandonado.

A política do Brasil, hoje, ainda registra a existência das poderosas oligarquias regionais, representadas no Parlamento Nacional. Elas também controlam os Parlamentos dos estados e os seus poderes executivos. Elas são muito fortes no Judiciário, tanto em plano federativo quanto nos estados. Representantes dos oligarcas encontram-se em grandes partidos políticos, agremiações estratégicas na aprovação ou recusa do orçamento nacional. Sem apoio daquelas agremiações, isto é, sem apoio das oligarquias, é difícil governar o Brasil com o Parlamento.

Semelhante desafio estará à frente do próximo governo. A dificuldade aumenta porque o PT não ganhou as eleições em estados importantes do país. No Rio de Janeiro, no Rio Grande do Sul, em São Paulo, foram escolhidos pelo voto popular dirigentes não ligados ao Partido dos Trabalhadores. No estado do Paraná e em Santa Catarina, foram eleitos aliados incertos do PT: sua adesão depende do modo pelo qual o governo federal negociará as dívidas daquelas unidades com a União. Se lembrarmos que a dívida pública da própria União atingiu, no mês de setembro último, a cifra espantosa de R$ 658,78 bilhões (segundo o Banco Central e a Secretaria do Tesouro Nacional), percebemos a complexidade dos problemas a serem enfrentados pela nova equipe do governo central.

Os futuros dirigentes deverão tratar ao mesmo tempo da enorme dívida federal e, para qualquer negociação (nacional ou internacional) precisarão do apoio dos estados. Estes, por sua vez, possuem dívidas para com o poder central, e todos querem renegociar tais débitos. Como a maioria dos estados não estará nas mãos do PT e como, para repetir a história política do país, as oligarquias continuam sendo fortes nas regiões, segue-se que o governo federal deverá negociar com os oligarcas tradicionais. Estes, por sua vez, desde a Colônia, são notáveis pelo conservadorismo político, econômico, social. Na pauta das questões nacionais, cuja solução foi proposta pelo PT, estão a reforma agrária, o incentivo à indústria avançada tecnologicamente, as reformas tributárias, judiciária e outras. Os setores sociais esperam as inovações do governo, sobretudo nas áreas de saúde, educação, segurança. Os oligarcas, até hoje, vetaram todas estas reformas. Assim, para conseguir a governabilidade, o PT deverá pedir, pelo menos temporariamente, um adiamento estratégico no que prometeu aos operários, empresários e vastas camadas da população urbana.

Ao mesmo tempo em que trata com os setores oligárquicos, e com os representantes do capital internacional, o governo eleito precisará reforçar ao máximo os seus antigos vínculos com a população, sobretudo com os movimentos populares. Uma ruptura ou atenuação deste nexo será desastrosa para o Brasil. O apoio das massas populares é um imperativo categórico para o sucesso do programa escolhido nas urnas. Tudo leva a crer que o equilíbrio do novo governo será precário. Apenas uma eficiente engenharia política poderá conciliar os interesses contraditórios que se digladiam no país. É um feito quase impossível. É por este motivo que o governo eleito promete dialogar com todas as forças. A idéia de um pacto nacional pelo desenvolvimento econômico, pelo emprego e pelas aplicações na área social (saúde, educação, segurança) tem sido o traço principal da proposta do Partidos dos Trabalhadores. Será preciso muito consenso e respeito à democracia no Brasil, o que também será um fato histórico fundamental.

A Universidade possui a missão, neste instante histórico, de propor aos governantes os mais diversos cenários, construídos com os saberes plurais presentes nos campi. Não é possível imaginar a solução dos graves problemas nacionais sem a presença atuante dos universitários, quaisquer que sejam as suas opções políticas. Por tal motivo, por estar muito consciente dos violentos desafios que o Brasil enfrentará nos próximos anos, o CEDES e a Revista Educação & Sociedade pretendem se caracterizar como um fórum onde todas as contribuições sejam respeitadas e expostas, de modo a fertilizar intelectualmente todas as iniciativas acadêmicas em benefício da sociedade democrática. Este compromisso ético, que acompanha o CEDES desde o seu nascimento, é renovado nesta nova época que se abre para as esperanças do povo brasileiro.

Com a publicação do texto "Percorrendo caminhos na educação", o CEDES presta homenagem ao seu sócio-fundador, Professor Dermeval Saviani, que, recentemente, recebeu da UNICAMP o título de Professor Emérito , pela sua inestimável contribuição para o desenvolvimento da educação brasileira.

Comitê Editorial

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Fev 2003
  • Data do Fascículo
    Dez 2002
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