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O acesso à educação superior no Brasil

Access to higher education in Brazil

Resumos

Este trabalho, elaborado com base nos indicadores da educação superior produzidos pelo INEP, IBGE e UNESCO, analisa a situação do acesso à educação superior no Brasil nos últimos 40 anos, considerando as diferenças nas matrículas e oferta de vagas entre as dependências administrativas e os cursos, o perfil dos concluíntes e a qualificação dos docentes. Comparam-se também os indicadores de taxa de escolarização e grau de privatização do setor no Brasil com os de outros países da América Latina e do mundo. Por fim, é feita uma breve discussão sobre as últimas ações do MEC (gestão Tarso Genro), com vistas a ampliar a oferta e democratizar o acesso. O que os dados apresentados mostram é que, muito embora desde a década de 1960 a política do governo federal para o setor tem sido a ampliação de vagas via privatização, a Taxa de Escolarização Bruta na Educação Superior do país ainda é uma das mais baixas da América Latina, embora o grau de privatização seja um dos mais altos do mundo. O resultado deste processo foi uma grande elitização do perfil dos alunos, em especial nos cursos mais concorridos e nas instituições privadas, onde é muito pequena a presença de afrodescendentes e de pobres. As propostas apresentadas até o momento pelo MEC norteiam-se pelo princípio de expansão de vagas, sem recursos adicionais, no setor público, e subsídios ao setor privado, em troca de bolsas de estudo. Para democratizar o perfil dos alunos propõem-se quotas, tanto no setor público quanto no privado. Trata-se de medidas paliativas, que não enfrentam a questão central que é a expansão do setor público sem perda de qualidade, o que implica sair do atual 0,8% do PIB gasto com o ensino de graduação para um patamar de cerca de 1,4% do PIB.

Acesso à educação superior; Educação superior; Perfil dos alunos da educação superior; Privatização do ensino; Ensino de graduação


Based on higher education indicators produced by the INEP, IBGE and UNESCO, this study analyzes the problem of access to higher education in Brazil these last 40 years, considering the differences in admission and enrollment according to the administrative regions and fields of study, graduates profiles and teacher qualifications. The gross enrolment ratio and level of privatization indicators for this sector in Brazil are also compared to those of other countries in Latin America and the world. Lastly, the latest actions of the Ministry of Education and Culture (MEC - Tarso Genro administration), aimed at increasing supply and democratizing access are briefly discussed. The data show that, although the federal government policy for this sector since the 1960s has been to increase enrollment via privatization, Brazil's Gross Schooling Rate for Higher Education is still one of the lowest in Latin America, while its level of privatization is one of the highest in the world. This process has resulted in an overall elitization of the profile of students, especially in the fields with the highest demand and in private institutions, where the presence of African-descendant or poor students is still very low. The proposals presented thus far by the MEC reflect a guiding principle oriented toward an increase in enrollment without additional resources for the public sector, and the granting of subsidies to the private sector in exchange for scholarships, as well as quotas, in both the public and private sectors. These are palliative measures that do not address the main point: expanding the public sector without losing quality. This would mean an increase in higher education expenditures, from the current 0.8% of GDP to about 1.4% of GDP.

Access to higher education; Higher education; Profile of undergraduate students; Privatization of education; Undergraduate education


ARTIGOS

O acesso à educação superior no Brasil

Access to higher education in Brazil

José Marcelino de Rezende Pinto

Professor do Departamento de Psicologia e Educação da ffclrp, da Universidade de São Paulo (USP). E-mail: jmrpinto@ffclrp.usp.br

RESUMO

Este trabalho, elaborado com base nos indicadores da educação superior produzidos pelo INEP, IBGE e UNESCO, analisa a situação do acesso à educação superior no Brasil nos últimos 40 anos, considerando as diferenças nas matrículas e oferta de vagas entre as dependências administrativas e os cursos, o perfil dos concluíntes e a qualificação dos docentes. Comparam-se também os indicadores de taxa de escolarização e grau de privatização do setor no Brasil com os de outros países da América Latina e do mundo. Por fim, é feita uma breve discussão sobre as últimas ações do MEC (gestão Tarso Genro), com vistas a ampliar a oferta e democratizar o acesso. O que os dados apresentados mostram é que, muito embora desde a década de 1960 a política do governo federal para o setor tem sido a ampliação de vagas via privatização, a Taxa de Escolarização Bruta na Educação Superior do país ainda é uma das mais baixas da América Latina, embora o grau de privatização seja um dos mais altos do mundo. O resultado deste processo foi uma grande elitização do perfil dos alunos, em especial nos cursos mais concorridos e nas instituições privadas, onde é muito pequena a presença de afrodescendentes e de pobres. As propostas apresentadas até o momento pelo MEC norteiam-se pelo princípio de expansão de vagas, sem recursos adicionais, no setor público, e subsídios ao setor privado, em troca de bolsas de estudo. Para democratizar o perfil dos alunos propõem-se quotas, tanto no setor público quanto no privado. Trata-se de medidas paliativas, que não enfrentam a questão central que é a expansão do setor público sem perda de qualidade, o que implica sair do atual 0,8% do PIB gasto com o ensino de graduação para um patamar de cerca de 1,4% do PIB.

Palavras-chave: Acesso à educação superior. Educação superior. Perfil dos alunos da educação superior. Privatização do ensino. Ensino de graduação.

ABSTRACT

Based on higher education indicators produced by the INEP, IBGE and UNESCO, this study analyzes the problem of access to higher education in Brazil these last 40 years, considering the differences in admission and enrollment according to the administrative regions and fields of study, graduates profiles and teacher qualifications. The gross enrolment ratio and level of privatization indicators for this sector in Brazil are also compared to those of other countries in Latin America and the world. Lastly, the latest actions of the Ministry of Education and Culture (MEC - Tarso Genro administration), aimed at increasing supply and democratizing access are briefly discussed. The data show that, although the federal government policy for this sector since the 1960s has been to increase enrollment via privatization, Brazil's Gross Schooling Rate for Higher Education is still one of the lowest in Latin America, while its level of privatization is one of the highest in the world. This process has resulted in an overall elitization of the profile of students, especially in the fields with the highest demand and in private institutions, where the presence of African-descendant or poor students is still very low. The proposals presented thus far by the MEC reflect a guiding principle oriented toward an increase in enrollment without additional resources for the public sector, and the granting of subsidies to the private sector in exchange for scholarships, as well as quotas, in both the public and private sectors. These are palliative measures that do not address the main point: expanding the public sector without losing quality. This would mean an increase in higher education expenditures, from the current 0.8% of GDP to about 1.4% of GDP.

Key words: Access to higher education. Higher education. Profile of undergraduate students. Privatization of education. Undergraduate education.

Para um país que viu surgir seus primeiros cursos superiores (não teológicos) no século XIX e sua primeira universidade apenas no século XX, ao passo que nas colônias espanholas da América, quando da nossa independência, já havia mais de duas dezenas de universidades (Cunha, 1980), não é de se estranhar que o Brasil apresente uma tão baixa Taxa de Escolarização Bruta1 1 . A UNESCO considera a Taxa de Escolarização Bruta na Educação Superior a razão entre a matrícula total na educação superior (ensino de graduação), independentemente da idade dos alunos matriculados, e a população na faixa etária teoricamente adequada (5 anos contados a partir do ensino médio; no Brasil, seria de 18 a 22 anos). Tendo em vista que no Brasil, em virtude de muitos alunos concluírem o ensino médio com idade superior a 18 anos em função dos elevados índices de repetência da educação básica, este indicador pode apresentar alguma distorção, pois uma parcela considerável de alunos da educação superior possui idade acima de 24 anos. Assim, segundo o MEC, apenas 9% dos jovens de 18 a 24 anos estão cursando uma IES. Mas, de toda forma, essa taxa é importante pois permite comparações internacionais, e como há uma certa estabilização no tamanho das coortes da população mais jovem, ela é um indicador razoável do atendimento nesse nível de ensino. na Educação Superior, mesmo quando comparada com aquela de nossos vizinhos latino-americanos, conforme mostra a Tabela 1.

Os dados apresentados indicam que o país ocupa uma posição extremamente desfavorável, com uma oferta próxima apenas àquela do Paraguai e da África do Sul, entre os países selecionados. Não obstante estes baixos índices de oferta, a situação já foi bem pior. Assim é que, em 1960, a Taxa de Escolarização Bruta na Educação Superior era de apenas 1% (INEP, 2004). Em especial nos últimos 40 anos, o país apresentou uma grande expansão nas matrículas de graduação conforme mostra a Tabela 2, de tal forma que de 1960 a 2002 as matrículas cresceram 37 vezes. Cabe ressaltar, contudo, que este aumento se deu de forma distinta entre as redes pública e privada. Assim é que, enquanto, no mesmo período, as matrículas na rede privada cresceram 59 vezes, na rede pública o aumento foi de 20 vezes. O resultado deste processo é que, se em 1960 o setor privado respondia por 44% das matrículas de graduação, em 2002, essa participação passou para 70%, tornando o Brasil um dos países com mais elevado grau de privatização desse nível de ensino, conforme mostra a Tabela 3. Basta dizer que a participação do setor privado nas matrículas no Brasil é quase três vezes maior que a da média dos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Assim, pelos dados apresentados, podemos concluir que o modelo de expansão da educação superior adotado no Brasil, em especial a partir da Reforma Universitária de 1968 (Lei n. 5.540/68), em plena ditadura militar, e intensificado após a aprovação da LDB (Lei n. 9.394/96), no governo Fernando Henrique Cardoso, que teve como diretriz central a abertura do setor aos agentes do mercado, não logrou sequer resolver o problema do atendimento em níveis compatíveis com a riqueza do país além de ter produzido uma privatização e mercantilização sem precedentes, com graves conseqüências sobre a qualidade do ensino oferecido e sobre a eqüidade.

Com relação ainda à Tabela 2, e analisando os dados do setor público, cabe comentar também a presença das redes estaduais e municipais. As primeiras surgem, sem a menor dúvida, como o grande fato novo no setor público. Assim é que, ao passo que em 1974 elas representavam apenas 44% das matrículas da rede federal, em 2002 este índice chegou a 78%. Quanto às instituições de educação superior (IES) municipais, estas apresentaram um grande crescimento no período entre 1974 e 1998 (2,7 vezes), quando iniciam uma queda abrupta, recuperada, em parte, em 2002. Essa queda pode ser atribuída, em parte, à aprovação da LDB (Lei n. 9.394/96) que, entre outros aspectos, estabelece em seu art. 11, inciso V, que os municípios só poderão atuar nos níveis de ensino médio e superior se atendidas plenamente as necessidades relativas à educação infantil e ao ensino fundamental e, mesmo assim, com recursos acima do porcentual de 25% vinculado à manutenção e ao desenvolvimento do ensino. Outra possível explicação para a queda pode ser a entrada em vigor, em 1998, do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (FUNDEF), que vincula o repasse de seus recursos à matrícula no ensino fundamental regular. Por fim, cabe comentar que tanto as IES estaduais como as municipais representam um segmento bastante heterogêneo no qual se mesclam instituições essencialmente públicas (como as universidades estaduais paulistas, por exemplo) com outras de natureza claramente privada, que cobram mensalidades, por exemplo. Além disso, boa parte delas não é de instituições de pesquisa mas apenas de ensino. Há inclusive que se questionar o caráter público dessas instituições, adotado pelo Censo da Educação Superior do MEC/INEP. Muitas delas organizam-se sob a forma de fundações de direito privado como meio de burlar a norma constitucional que determina a gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais (art. 206, inc. IV, da CF), transformando-se muitas vezes em fonte de enriquecimento privado e de clientelismo político.

Dourado (2001), ao analisar o processo de interiorização do ensino superior por meio da discussão das fundações municipais em Goiás, destaca a obscura relação entre os setores público e privado. Em seu estudo afirma que, em sua maioria, as fundações municipais de ensino superior constituíram-se por meio de uma engenharia jurídica voltada para viabilizar a expansão do setor privado por intermédio de contratos de prestação de serviços e, ainda, pela cobrança de mensalidades dos alunos. A ambigüidade jurídica destas instituições ditas municipais "constituem fortes evidências de que a adoção do regime fundacional foi o meio encontrado para garantir a expansão privada do ensino superior, sob os auspícios legais e o financiamento do poder público municipal" (2001, p. 184).

Um último comentário cabe ainda ser feito sobre os dados apresentados na Tabela 2. Trata-se da grande expansão apresentada pela rede federal no período 1990-2002, cujas matrículas cresceram 82%. Este dado, que poderia ser encarado como positivo, na verdade, preocupa, quando tomamos ciência de que, no período que vai de 1989 a 2001, o total de recursos das instituições federais de educação superior (IFES) saiu de um patamar de 0,97% do PIB em 1989 (Governo Sarney), caindo para 0,57% do PIB, em 1992 (Governo Collor), recuperando-se, parcialmente, em 1994 (Governo Itamar), quando atinge 0,91% do PIB, para então iniciar um processo inexorável de queda, chegando a 0,61% do PIB em 2001, com leve recuperação em 2002 (0,64% do PIB), como mostra relevante trabalho de Nelson Cardoso Amaral (2003). Segundo os mesmos dados, no período que vai de 1989 a 2002, a queda dos recursos das IFES com relação ao PIB foi de 34%.

Na Tabela 4 podemos acompanhar o crescimento das vagas nos cursos de graduação por dependência administrativa no período de 1980 a 2002. Nela constata-se a grande explosão do setor privado, que cresceu no período 5,3 vezes contra 1,9 para a rede federal, 3,9 para a estadual e 1,4 para a municipal. O resultado natural deste processo foi uma queda na relação candidatos/vaga nesse setor e um grande crescimento nesta razão para o setor público, conforme mostra o Gráfico 1. Repete-se com as vagas o fenômeno já comentado com relação às matrículas; no período 1995-2002, o número de vagas oferecidas pelo setor privado cresceu 3,4 vezes e, em apenas dois anos (2000-2002), o aumento foi superior a 52%.


Os dados do Gráfico 1 ilustram com clareza o impasse a que chegou o modelo de expansão da educação superior via privatização. As sim, ao passo que no setor público a razão inscritos/vaga cresceu 2,7 vezes no período de 1974 a 2002, no setor privado, a partir de 1980, essa razão é descendente, sendo inferior a 2 a partir de 2000, o que sinaliza uma nítida saturação no setor.

A Tabela 5 apresenta a relação inscritos/vaga no vestibular, considerando as diferentes categorias administrativas e regiões do país. Sob a ótica das regiões, constata-se que a Região Norte é a mais crítica do ponto de vista da procura na rede pública, seguida pela Região Sudeste. Quanto às diferentes categorias administrativas, a rede federal apresenta uma demanda equivalente à da rede estadual, embora, nesta última, ocorram grandes diferenças entre as regiões do país, ao passo que a rede municipal apresenta uma razão inscritos/vaga similar àquela da rede privada, o que talvez se explique pela não-gratuidade de boa parte das IES municipais. Dois fatos ainda chamam a atenção na Tabela 5. O primeiro é que a razão inscritos/vaga da Região Norte nas IES estaduais é o dobro daquela apresentada pelas IFES e o segundo é o valor relativamente baixo dessa razão para o Nordeste. Este fato surpreende, ainda mais quando constatamos que a Taxa de Escolarização Bruta na Educação Superior do Nordeste, em 2002, era a mais baixa do país (7,9%), seguida pela da Região Norte (12,9%), ao passo que o valor deste indicador para as regiões Sudeste, Sul e Centro-Oeste era de, respectivamente, 17,8%, 21,1% e 19,1%, ante uma média nacional, como vimos, de 15,1% (INEP, 2004). Possível explicação para esta "baixa" demanda no Nordeste pode ser a reduzida escolaridade da população dessa região, que a impede de concluir o ensino médio. Segundo o IBGE (2003), apenas 17% da população de 25 anos ou mais de idade já havia concluído, até 2000, pelo menos esse nível de ensino, contra 27% na Região Sudeste. Já a grande demanda pela educação superior pública na Região Norte pode ser explicada pela sua reduzida taxa de escolarização. Quanto à maior procura pela rede estadual, esta pode ser decorrência de maior descentralização dessas IES ao passo que as IFES se concentram nas capitais, em uma região onde a distância é um fator claramente limitante em virtude das dificuldades de deslocamento. Outra possível explicação pode ser também a menor expectativa dos candidatos de conseguir ingresso nas IES federais.

Uma segunda conseqüência da grande expansão recente de vagas no setor privado foi o aumento no número daquelas não preenchidas, conforme mostra a Tabela 6, que, em 2002, chegaram a 568 mil vagas (32% do total de vagas oferecidas), 97% delas no setor privado. Confrontando a Tabela 6 com a Tabela 4 observa-se que não foram preenchidas 1,3% das vagas oferecidas pelas IFES, 5,1% daquelas oferecidas pelas IES estaduais, 16,4% das IES municipais e 37,4% das IES privadas. Estes dados reforçam mais uma vez o caráter atípico das instituições municipais, que dificilmente poderiam ser classificadas como públicas, e a forte crise que atingiu o setor privado. Cabe, porém, um alerta quanto ao conceito de "vagas não preenchidas", em especial no setor privado. Neste segmento, muitas vezes, as vagas são oferecidas em seus processos seletivos sem que as condições efetivas para o funcionamento do curso já estejam concretamente asseguradas. Caso apareçam candidatos, corre-se atrás dos meios.

A Tabela 7 apresenta as vagas oferecidas e os ingressantes para alguns cursos selecionados no ano de 2002. Em primeiro lugar, cabe comentar a grande variação no total de vagas oferecidas nos diferentes cursos. Assim é que somente o conjunto dos cursos de direito, administração e as licenciaturas (que abrangem um elenco grande de áreas) respondeu por 57% das vagas oferecidas. Decorrente deste fato, neles também se concentraram 55% das vagas não preenchidas. No pólo oposto encontram-se os cursos de medicina, que representavam, em 2002, 0,6% das vagas oferecidas e 0,07% das vagas não preenchidas (com preenchimento de 100% no sistema público). Em segundo lugar constata-se que, dos cursos listados, apenas no de agronomia a oferta de vagas na rede pública é superior àquela da rede privada, o que se explica pelos seus altos custos de implantação. Uma segunda área em que se observa uma forte presença da rede pública na oferta de vaga trata-se das licenciaturas, que responderam, em 2002, por 52% do total de vagas oferecidas pelas IES públicas. Tendo em vista a grande carência de professores da educação básica com formação em nível superior, em especial na educação infantil e nas séries iniciais do ensino fundamental, trata-se de uma boa notícia o grande número de vagas oferecidas pelo setor público. É nas licenciaturas que se encontra também o maior número de vagas não preenchidas no setor público (61%), o que pode se explicado pela menor atração da carreira do magistério, em virtude da baixa remuneração e valorização profissional, e pelo fato de muitas dessas vagas serem oferecidas em IES municipais e estaduais que não são gratuitas.

As Tabela 8 retrata o atendimento levando-se em conta as diferentes regiões do país e os turnos de funcionamento da IES. Dos dados apresentados observa-se uma grande desproporção entre o atendimento nas regiões Norte e Nordeste (Taxa de Escolarização Bruta de 12,9% e 7,9% respectivamente) e aquele das regiões Sul e Sudeste (taxas de 21,1% e 19,1%, respectivamente). Esta distorção se deve basicamente à distribuição regional do setor privado, já que estas duas últimas regiões concentram 79% dos alunos matriculados nesse segmento. Em contraste, observa-se que, nas regiões Norte e Nordeste, o setor público responde por, respectivamente, 61% e 58% das matrículas. Ou seja, ao setor privado interessam as regiões de maior poder aquisitivo.

Constata-se também que, ao passo que no sistema público predomina a matrícula no período diurno (64% do total), no setor privado as matrículas no noturno respondem por 67% do total.

O dado positivo apontado pela Tabela 8 é que, levando-se em conta a diferença de matrículas no setor público entre diurno e noturno, e considerando-se a infra-estrutura existente, há um potencial estimado de criação de quase 300 mil vagas no período noturno nas instituições públicas, 58% delas nas regiões Norte e Nordeste. É claro que esta ampliação implicará investimentos na contratação de pessoal e em material de consumo.

A Tabela 9 apresenta o perfil geral das IES e as mudanças ocorridas na última década.2 2 . Na última década efetivou-se no Brasil um processo de diversificação e diferenciação da educação que se consubstanciou em vários dispositivos legais. Destaca-se, nesse processo, o Decreto n. 3.860, de 9 de julho de 2001, que alterou a organização acadêmica da educação superior ao classificar as instituições de ensino superior do Sistema Federal de Ensino em: I - universidades; II - centros universitários; III - faculdades integradas, faculdades, institutos ou escolas superiores. De um lado, observa-se a progressiva perda de espaço, no setor privado, das faculdades isoladas ou integradas que tanto marcaram o início da expansão desse segmento na década de 1970. Assim, no período de 1994 a 2002, o peso desses dois segmentos caiu de 52% do total de matrículas no setor privado para 32%. Em contrapartida, assistiu-se a um discreto aumento da participação das universidades nas matrículas do setor (de 48% para 51%) e uma explosão dos centros universitários, os quais, previstos pela LDB (Lei n. 9.394/96), em 2002 já representavam 18% das matrículas do setor privado (416 mil).

Possível explicação para a crescente opção por esse tipo de instituição no setor privado é a autonomia que possuem para a criação de novos cursos, sem a exigência de se constituírem como instituições de pesquisa, ao contrário do que acontece com as universidades. Assim, dentro de uma lógica estrita de mercado, reside nesse modelo a melhor relação custo/lucro, pelo menos no curto prazo. Na rede pública não se constataram grandes mudanças no período, prevalecendo o predomínio do padrão universitário, que respondia por 87% das matrículas em 2002. Nota dissonante desse padrão foi a rede de IES municipais, nas quais as universidades, no mesmo ano, representavam apenas 33% das matrículas (INEP, 2004).

Considerando agora as diferentes formas de administração do ensino privado, observa-se que as instituições privadas organizadas como empresas lucrativas (particulares em sentido estrito), dentro da nova conceituação da LDB (Lei n. 9.394/96, art. 20), ganharam grande espaço ante as instituições privadas sem fins lucrativos (comunitárias, confessionais e filantrópicas), passando de 39% do total de matrículas do setor privado, em 1997, para 52% em 2002 (INEP, 2004).

Uma outra tendência observada, que é típica da lógica mercantil que preside o setor privado de educação superior, é um progressivo processo de concentração das matrículas em poucas instituições como mostra a Tabela 10. Assim é que as pequenas instituições (até 1.000 alunos), as quais, em 1994, respondiam por 62,3% das instituições e por 13,4% das matrículas, embora tenham crescido em número, respondendo, em 2002, por 68,7% das instituições, decaíram em participação nas matrículas, que foi de apenas 10,6% do total. Em sentido oposto, as instituições com mais de 5.000 alunos cresceram em número e matrícula de tal forma que, em 2002, cerca de 1/10 das instituições já respondiam por mais de 2/3 das matrículas.

Uma outra característica que surge no padrão de organização dessas instituições, também como decorrência da concentração de capital no setor, é o surgimento de megainstituições assim como o oferecimento de cursos fora da sede. Assim, segundo dados do INEP (2003), considerando as dez maiores IES do país, seis são privadas,3 3 . Pela ordem: UNIP (88 mil alunos de graduação), Estácio de Sá (86 mil), Universidade de São Paulo (43 mil), Universidade Luterana do Brasil (42 mil), Universidade Bandeirante de São Paulo (35 mil), PUC-MG (34 mil), Universidade do Vale do Rio dos Sinos (32 mil), Universidade Estadual de Goiás (32 mil), Universidade Estadual do Piauí (31 mil, com campi também na Bahia e no Maranhão) e Universidade Federal do Pará (30 mil). inclusive as duas maiores (UNIP e Estácio de Sá). A UNIP, a maior delas, com 88 mil alunos de graduação em 2002, já estava presente, no mesmo ano, em quatro estados da Federação (São Paulo, Amazonas, Distrito Federal e Goiás). Essas dez instituições respondem por 13% do total de matrículas.

Duas inovações com impacto na oferta de vagas para a educação superior trazidas pela LDB são os cursos seqüenciais previstos no art. 44, inciso I, da lei e a educação a distância (art. 80), que anteriormente à lei era prevista apenas no ensino fundamental e médio.

Com relação aos cursos seqüenciais, uma das novidades introduzidas por Darcy Ribeiro na LDB, os dados do INEP (2003) mostram que a modalidade "Complementação de Estudos", que é a que mais se aproxima da idéia original do ex-senador, não tem atraído muito o interesse das instituições, talvez por levar apenas a um certificado. Já a modalidade "Formação Específica", que leva a um diploma cuja legalidade é, de qualquer forma, questionável, apresentou uma grande expansão (sete vezes, de 1999 a 2002), com predomínio da rede privada, com mais de 77% das matrículas, seguida pelas instituições estaduais, com 22%. De qualquer forma, em 2002, as duas modalidades de cursos seqüenciais somavam apenas 45 mil matrículas, o equivalente a 1,9% das matrículas em cursos presenciais no mesmo ano.

Já a educação a distância apresentou também uma expansão impressionante, crescendo 24 vezes de 2000 a 2002 (INEP). O dado novo aqui é que nessa modalidade de ensino predominam, até o momento, as instituições públicas,4 4 . Na esfera pública, é fundamental destacar a implementação da Universidade Pública Virtual do Brasil (UNIREDE), consórcio formado por várias instituições de ensino superior públicas. No setor privado, foi organizada a Rede Brasileira de Ensino a Distância, como resultado da associação de dez instituições de ensino superior do país, que, juntas, formam o Instituto Universidade Virtual Brasileira (IUVB). ficando, em 2002, as estaduais com 55% das matrículas, seguidas pelas federais, com 29%, e pelas privadas, com 16%. Contudo, apesar do crescimento, as 41 mil matrículas registradas em 2002 respondiam por 1,7% das matrículas em cursos presenciais. Entretanto é de se esperar, a exemplo do que ocorre em outros países, uma grande pressão expansionista nesses programas, em especial por parte do setor privado de capital nacional e internacional.

Um outro ponto recorrente que surge quando se discute o acesso à educação superior no Brasil trata-se da alegada injustiça do sistema atual, uma vez que, argúi-se, os alunos vindos de famílias de maior poder aquisitivo freqüentariam as IES públicas ao passo que os alunos mais pobres iriam para as IES privadas. O conjunto das Tabelas 11, 12 e 13, construídas com base nas respostas dadas ao questionário socioeconômico pelos participantes do Exame Nacional de Cursos (ENC), o "Provão", permite uma interessante discussão sobre este ponto. Em primeiro lugar, ele ressalta algo que já era senso comum: cursos como o de medicina são muito mais elitizados que o de pedagogia, por exemplo. Assim, o porcentual de pessoas negras é 6 vezes maior no segundo curso que no primeiro, nas IES públicas, e é de 4,7 vezes nas IES privadas. Em contrapartida, nas IES públicas, o porcentual de alunos de medicina participantes do ENC que declararam viver em famílias cuja renda mensal é superior a R$ 7,2 mil é 24 vezes maior que o mesmo índice para os alunos de pedagogia. Nas IES privadas, essa razão é igual a 39,5! Comparando agora o porcentual de alunos que cursou todo o ensino médio em escola pública, constatamos que este índice no curso de pedagogia é 6 vezes maior que no de medicina, nas IES públicas. Nas IES privadas, ele é 9 vezes maior. Uma explicação para este fato pode ser encontrada na Tabela 7, onde se vê que o número de vagas oferecidas, em 2002, nas licenciaturas (entre as quais se encontra o curso de pedagogia) é 46 vezes maior que o número de vagas nos cursos de medicina. Outra explicação para a maior elitização destes cursos é que, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílio (PNAD) (IBGE, 2001), ao passo que o salário médio de um médico era de R$ 2.973, um professor das séries iniciais do ensino fundamental recebia R$ 462 e um professor do ensino médio, R$ 866. Assim, boa parte da elite direciona seus esforços e recursos para esses cursos de maior retorno econômico.

Uma segunda revelação trazida pelos dados, e que se choca frontalmente com o senso comum, aponta que em todos os cursos considerados as IES públicas são menos elitizadas que suas congêneres privadas. Assim é que o porcentual de participantes negros ou pardos no ENC de medicina é de 20,6% nas instituições públicas, contra 10,5% nas privadas. Esta grande diferença está presente em todos os cursos analisados.

Comparando a renda familiar declarada (Tabela 12), observa-se também uma grande proximidade entre os dois grupos de alunos, embora, na média, o porcentual dos participantes cuja renda familiar é igual ou inferior a R$ 720 seja maior nas IES públicas que nas privadas, acontecendo o contrário naqueles segmentos na faixa acima de R$ 7,2 mil.

Estes valores declarados, referentes à renda familiar, permitem também uma breve discussão sobre o grau de elitização do acesso à educação superior, em especial nas IES públicas. Por eles se constata que, em cursos como medicina, direito, odontologia, engenharia civil, administração e jornalismo, cerca de 2/3 dos participantes declararam viver em famílias com renda mensal de até R$ 4,8 mil. Muito embora este seja um valor muito acima do que ganha 90% da população brasileira, não é possível classificar como rico quem possui essa renda familiar. Já nos cursos de pedagogia e matemática, cerca de 90% dos participantes declaram estar na faixa de renda familiar de até R$ 2,4 mil, ao passo que nos cursos de engenharia civil, administração e jornalismo, cerca da metade dos participantes declarou enquadrar-se nessa mesma faixa.

Considerando, por fim, a trajetória escolar (Tabela 13), observa-se que, apesar da proximidade dos índices para os dois tipos de instituição, em média o porcentual de alunos das IES públicas que freqüentaram o ensino médio somente em escolas públicas é levemente superior. De qualquer forma, esse porcentual está mais associado ao curso que ao tipo de instituição, e é preocupante a baixa participação da escola pública quando sabemos que ela responde por 81% dos concluintes do ensino médio. Existe um dado que pode enviesar as estatísticas e que não deve ser desprezado, e que se trata do mecanismo utilizado por muitas instituições particulares do ensino médio de, mediante a realização de "vestibulinhos" para a oferta de bolsas, retirar das escolas públicas seus alunos mais preparados, "vitaminando", com isso, seus índices de aprovação no vestibular. O que aparece na publicidade como compromisso social dessas instituições (a oferta de bolsas) é na verdade investimento de retorno garantido e baixo custo.

Estes dados mostram a necessidade de se aprofundar os estudos sobre o perfil socioeconômico dos universitários brasileiros, ainda mais porque o "Provão" trabalha apenas com os dados dos formandos e da minoria dos cursos. De qualquer forma, estes números são um alerta para se evitar afirmações que, de tanto repetidas, ganharam foro de verdade, como a de que o rico faz escola básica particular e, depois, universidade pública, e o pobre, o inverso. Na verdade, a elitização no Brasil está associada, como vimos, à baixa oferta na rede pública, à pequena oferta de vagas em algumas áreas e à concentração de renda do país.

Um último aspecto que precisa ser comentado quando analisamos as condições de oferta da educação superior trata-se da qualificação e do regime de trabalho dos professores, condição essencial para a boa qualidade do ensino.

A Tabela 14 mostra a evolução da qualificação do corpo docente por categoria administrativa. Em primeiro lugar, observa-se em todas as categorias uma melhora significativa neste importante indicador de qualidade do ensino, efeito que pode ser atribuído às exigências da LDB e da legislação complementar. Em 2002, considerando o porcentual de funções docentes com mestrado e doutorado, as redes federal e estadual apresentaram, respectivamente, os índices de 69,6% e 64,3%, ficando a rede privada com 49,8% e, por último, a rede municipal com 39,9%. Em contrapartida, preocupa o fato de que 60% dos docentes da rede municipal e a metade dos docentes da rede privada possuam, no máximo, especialização. Quanto à qualificação dos docentes nas diferentes regiões do país, os dados do INEP (2003) indicam, em melhor posição, as regiões Sudeste e Sul, com, respectivamente, 59% e 57% de seus professores com o título de mestres ou doutores. No pólo oposto situam-se as regiões Norte e Nordeste, onde esses índices são, respectivamente, de 44% e 51%.

Na Tabela 15 são apresentados os diferentes regimes de trabalho dos docentes da educação superior. Se houve uma pequena melhora no número de docentes em tempo integral ou em jornada parcial de 1998 a 2002, ainda preocupa o grande índice de horistas, em especial na rede privada, na qual mais da metade dos docentes se encontrava nessa situação em 2002. Esta condição, associada ao grande número de alunos por turma, compromete, de modo claro, a qualidade da formação.

Pois bem, chegamos a este ponto com um razoável diagnóstico das condições de oferta da educação superior no Brasil. O que os dados mostram é um sistema que apresentou uma grande expansão nos últimos 40 anos, expansão esta capitaneada basicamente pela liberação do setor às empresas privadas. Este crescimento, contudo, ainda foi insuficiente para garantir à juventude brasileira um acesso à educação superior equivalente àquele assegurado por nossos vizinhos da América Latina. Uma segunda conseqüência deste modelo de expansão foi o surgimento de dois padrões de instituições: de um lado, as IES públicas (IFES e parte das IES estaduais), que respondem por cerca de 30% das matrículas e que apresentam condições mínimas para a oferta de um ensino de qualidade (docentes com qualificação e regime de trabalho adequados e condições para a realização de pesquisa) e, de outro, as IES privadas (entre as quais incluo as IES municipais), que atendem a maioria dos alunos e que, embora tenham melhorado muito, nos últimos tempos, o grau de qualificação de seus docentes,5 5 . Menos por esforço próprio e mais por pressão da legislação e pelos investimentos públicos feitos na expansão da pós-graduação. ainda funcionam mais como grandes colégios que como instituições destinadas a "estimular a criação cultural e o desenvolvimento do espírito científico e do pensamento reflexivo", como determina a LDB (art. 43, inc. I). Este fato ocorre, a meu ver, sobretudo porque o que determina a diretriz dessas empresas é, basicamente, a rentabilidade e, nesta lógica, o ensino é tão-somente meio para se atingir o objetivo real da instituição, que é o lucro, aliás como acontece com qualquer empresa capitalista. Um outro elemento importante para a análise é que o setor privado chegou ao seu limite de capacidade de conseguir alunos, com mais de meio milhão de vagas ofertadas e não ocupadas. A conseqüência deste processo será um aumento da "guerra" por mercados, o que deve ocasionar maior concentração do setor e um crescimento nas regiões Norte e Nordeste, onde sua presença ainda é minoritária, como vimos. Outro efeito não menos importante desta ociosidade de vagas no setor privado será um aumento da pressão por recursos públicos, basicamente por meio do Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (FIES). Como se sabe, o FIES surgiu em 1999 para substituir o Programa de Crédito Educativo (CREDUC), que fora criado em 1975 e que teve sua carteira suspensa em função da inadimplência. Segundo dados da Caixa Econômica Federal, cerca de um milhão de estudantes foram atendidos pelo CREDUC e, de um total de 194.520 contratos em fase de amortização (valor de R$ 1,864 bilhão), 163.870 contratos estão inadimplentes, o que corresponde a 84% deste total.

Segundo dados apresentados em estudo de Helena Heller de Barros (2003) até o segundo semestre de 2002 o FIES havia atendido a 184.362 alunos, número que representa 18% da matrícula da rede pública naquele ano e 7,6% daquela do setor privado. Cabe ressaltar que, longe de ser um auxílio aos estudantes, o FIES é antes um subsídio ao setor privado da educação superior. Como dos atuais participantes do FIES boa parte não terá condições, quando formada, de saldar seus empréstimos com a CEF, o que o atual programa provoca é uma transferência de recursos públicos, a fundo perdido, para o setor privado. E, o que é pior, o financiamento é feito sobre a tarifa "cheia" da instituição, sem qualquer desconto. E, mais grave, a cada ano este sistema consome recursos adicionais, caso se queira incluir novas vagas. Segundo o relatório da Caixa Econômica Federal, relativo a 2003, nesse ano foram gastos R$ 103,4 milhões em 49,3 mil novos contratos e R$ 550,7 milhões referentes a aditamentos em 262,7 mil contratos preexistentes. Para 2004 estão abertas mais 50 mil vagas, o equivalente a cerca de 35% do total de vagas oferecidas pela rede federal.

Um outro comentário a ser feito sobre o FIES é que, conforme mostra a Tabela 16, ele tem atendido, proporcionalmente, muito mais os cursos elitizados, como medicina e odontologia, em detrimento daqueles em que predominam os alunos de menor poder aquisitivo, como pedagogia e matemática.

Finalmente, a Tabela 17 busca avaliar a dimensão do esforço de expansão do setor público que o país precisa fazer caso se pretenda cumprir as metas estabelecidas pelo Plano Nacional de Educação (Lei n. 10.172/2001) para o ensino de graduação. Pelo PNE, até 2011 a matrícula de graduação deve corresponder a 30% da população na faixa etária de 18 a 24 anos. Pelos dados da Tabela 17 observa-se que essa meta implicaria expandir as matrículas no setor público, ante a situação de 2003, em 1,8 vez até 2006 e em 2,9 vezes até 2011. Trata-se de um esforço gigantesco, ainda mais quando se considera que, na estimativa feita pelo INEP, considerou-se que a proporção de alunos entre o setor público e o privado seria mantida ao longo desses anos (o que significa que o setor privado cresceria nessa mesma razão), o que é impensável tendo em vista os indicadores de saturação desse setor. Além disso, para estimar os custos considerou-se que, com a expansão do sistema público, haveria um ganho de escala de tal forma que o custo/aluno-ano cairia de um patamar de 1,5 vez o PIB per capita, em 2003, para um valor igual a uma vez o PIB per capita em 2011. Mesmo assim o país teria que aumentar 2,5 vezes os seus gastos com o ensino público de graduação, em reais de 2002, ou aumentar em 1,8 vez os gastos com relação ao PIB para essa área (sem contar os gastos com pós-graduação).

Para enfrentar a questão da ampliação e democratização do acesso, o Governo Lula, a partir da gestão de Tarso Genro no MEC, acena basicamente com duas propostas. Para democratizar o perfil do aluno ingressante, tanto do ponto de vista étnico quanto socioeconômico, o MEC defende a introdução de quotas tanto no sistema público quanto no sistema privado de educação superior. No primeiro caso as IFES reservariam, no mínimo, 50% de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. Dentro desses limites as vagas seriam preenchidas de acordo com o peso de cada etnia na composição da população do estado onde se situa a instituição (MEC, 2004a).

No caso do setor privado, foi instituído o Programa Universidade para Todos (PROUNI), proposto inicialmente como medida provisória, transformado depois em projeto de lei ante a reação da comunidade acadêmica, e editado finalmente na forma de medida provisória (n. 213 de 11/9/2004). O prometido processo democrático de discussão foi atropelado "em virtude da relevância social da matéria e da urgência em abrir milhares de novas vagas gratuitas", segundo o Informativo do MEC (2004b). A medida provisória estabelece a aquisição de vagas no setor privado via isenção fiscal, associada a uma política de quotas. As instituições que aderirem ao Programa deverão conceder bolsas de estudo (uma para cada nove alunos regularmente matriculados) em troca da isenção, no caso das instituições com fins lucrativos, de recolhimento do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas, da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, da Contribuição Social para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS) e da Contribuição para o Programa de Integração Social (PIS). A idéia central da proposta é trocar tributos por bolsas. Aparente ovo de Colombo, trata-se de proposta de quem conhece pouco a lógica que domina o setor privado. O que este deseja é a ampliação do FIES e a redução de tributos. Portanto, vemos neste novo sistema um caminho a mais para gerar fraudes no sistema e degradação do ensino uma vez que o MEC (1994b) avalia que cada vaga custará cerca de R$ 406 ao ano, um valor que, claramente, não garante um ensino de qualidade, mesmo para as sofríveis condições de oferta de boa parte das instituições privadas. As sim, é de se prever que as instituições que aderirem ao sistema o farão ou por apresentarem custos (e qualidade) muito baixos ou por não estarem bem-intencionadas. A possibilidade de permuta de até 1/5 das bolsas entre cursos (art. 5º da mp) levará também a que as instituições concentrem as bolsas nos cursos de menor custo (troca de bolsas do curso de odontologia pelo de pedagogia, por exemplo). Outro aspecto que deve ocorrer é a redução das bolsas que as instituições privadas voluntariamente já concediam (usando sua capacidade ociosa), de tal forma que o ganho efetivo em novos alunos bolsistas seja muito abaixo do anunciado. A bolsa de 50% das mensalidades para alunos com renda familiar per capita de até três salários mínimos (art. 1º da mp) também pode gerar problemas de inadimplência. Além disso, onde maior é a necessidade de novos cursos (regiões Norte e Nordeste) é exatamente onde é menor a presença do setor privado. Em síntese, como a experiência do salário-educação (que adotava um modelo parecido com a proposta do PROUNI no sistema de aquisição de vagas) mostrou à exaustão, com um grande número de bolsistas "fantasmas", o concubinato público-privado no campo da educação só leva a fraudes e prejuízos ao erário público. O que cabe ao MEC é avaliar, fiscalizar e municiar a Receita Federal com os dados que possui sobre as IES privadas, o que traria grande ganho de recursos para as finanças públicas do país. Por fim, cabe ressaltar que esta mp se choca de frente com o art. 213 da Constituição Federal, que não permite a destinação de recursos públicos para instituições com fins lucrativos e só admite bolsas de estudo para o ensino fundamental e médio, e só no caso das instituições sem fins lucrativos. Dizer que as bolsas são concedidas pela instituição privada e não pelo poder público é uma falácia pois, como é evidente, a origem dos recursos é o erário público. De positivo na mp pode-se citar a tentativa de regular o setor das entidades "beneficentes", que já gozam de uma série de benefícios fiscais e pouco dão em troca (arts. 10 e 11 da mp). Contudo, mesmo esta tentativa de regular o setor já está sendo questionada por embutir uma grande anistia às instituições inadimplentes e apresentar uma série de falhas jurídicas que farão a alegria dos advogados dessas entidades (ver Folha de S. Paulo, 26 set. 2004, p. A 13).

A outra proposta de ampliação de oferta de vagas do MEC encontra-se no documento "Reforma da Educação Superior - Reafirmando princípios e consolidando diretrizes da reforma da educação superior" (MEC, 2004c). Nesse documento se propõe duplicar a oferta de vagas das IFES, especialmente nos cursos noturnos, em quatro anos, além de "avaliar a possibilidade" de viabilizar a expansão das IES estaduais e municipais com articulação e apoio da União. Para viabilizar a expansão apresentada para o sistema propõe-se a criação de um Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino (sic) Superior, que seria composto por 13,5% da receita líquida de impostos da União (o equivalente a 75% dos recursos vinculados da União destinados a manutenção e desenvolvimento do ensino) sobre o qual não incidiriam os descontos da Desvinculação das Receitas da União (DRU). Para avaliar o impacto desse fundo sobre o financiamento das IFES, aplicamos o índice de 13,5% sobre a receita líquida de impostos efetivamente arrecadada em 2003 (sem considerar a DRU, que atingiu R$ 23 bilhões nesse ano) e chegamos ao valor de R$ 7,1 bilhões. Considerando o impacto da DRU (que tomou, ao todo, R$ 4,14 bilhões à educação nesse ano), os recursos seriam de apenas R$ 4 bilhões. Para efeito de comparação, o total de recursos gastos pelo governo federal na subfunção "Educação Superior", em 2003, foi de R$ 7,4 bilhões. Ou seja, da forma que está proposto o fundo, as IFES terão que dobrar as suas matrículas com menos recursos do que possuem hoje, o que é um contra-senso e um terrível risco para a qualidade dos cursos.

Concluindo, o que os dados apresentados neste trabalho mostram é que o Brasil tem uma necessidade premente de ampliar o acesso à educação superior e de democratizar o perfil dos seus alunos, em especial nos cursos mais concorridos. Constata-se também que a saída deve dar-se pela expansão do setor público, uma vez que o grau de privatização apresentado por esse nível de ensino já é um dos maiores do mundo. As propostas apresentadas pela atual gestão do MEC para enfrentar o problema, talvez até por não estarem embasadas em um diagnóstico adequado, mostram-se equivocadas (no caso do PROUNI), ou com poucas consistência e condições de viabilidade (no caso da duplicação de vagas das IFES). A idéia de criação de um fundo contábil com vinculação direta das receitas, a exemplo do que ocorre hoje nas IES estaduais paulistas, é, a meu ver, um avanço desde que equacionada a questão do pagamento dos aposentados, que hoje, junto com uma expansão de vagas irresponsável, estrangula essas instituições. Contudo, já vimos que esse fundo vai nascer, à semelhança do FUNDEF, como um fundinho, incapaz de responder às grandes demandas do setor (Pinto, 1999).

Estudo feito pelo INEP (2001), tendo por base a adoção de um padrão mínimo de qualidade nos diferentes níveis e modalidades de ensino, indica que, para atender as metas estabelecidas pelo Plano Nacional de Educação, o Brasil precisaria sair dos atuais 4,1% do PIB gastos em educação e atingir, até 2011, cerca de 8% do PIB, para depois estabilizar em um patamar de cerca de 6% do PIB. Esse valor pode parecer elevado mas, quando constatamos que o Brasil gastou com despesas financeiras da União, nos últimos três anos, em média, mais de 9% do seu PIB a cada ano, fica evidente para onde vai o dinheiro que falta para a educação e as demais políticas sociais. Analisando a Execução Orçamentária da União de 2003, constata-se que o governo federal gastou R$ 10,4 bilhões com manutenção e desenvolvimento do ensino e R$ 133 bilhões com juros e amortizações das dívidas interna e externa.

Sem equacionar esta sangria de recursos há pouca esperança de saída, a não ser ampliar ainda mais a participação do setor privado, via subsídios diretos (PROUNI) e financiamento aos estudantes (FIES), e acentuar a mercantilização das instituições públicas, via fundações de direito privado, vistas como a tábua de salvação para a falta crônica de recursos dessas instituições. Contudo, não é isso o que mostram os estudos sobre tais instituições. Levantamento de Grupo de Trabalho criado pela Reitoria da USP apenas com dados de parte das fundações existentes no interior da universidade mostra que suas receitas representaram o equivalente a 36% do Orçamento da USP. Não obstante, o repasse por elas feito à universidade, na melhor das hipóteses, chegou a 1,5% desse mesmo orçamento (ADUSP, 2004). E, o que é mais grave, a maior parte dos recursos administrados por essas fundações vem do setor público.

Quanto às políticas envolvendo quotas para a educação superior, o que os dados apresentados indicam é que os processos seletivos para esse nível de ensino têm funcionado como um filtro étnico (que barra os afrodescendentes e indígenas) e socioeconômico (que barra os pobres), e que, portanto, não estão ingressando nas universidades os "mais capazes", como define a Constituição, mas os mais bem treinados. A introdução de quotas, em especial se adotada nos cursos mais concorridos, trará um novo perfil de aluno que, se é carente em uma série de conteúdos cobrados no vestibular (e que geralmente são desconsiderados posteriormente nos cursos de graduação), é rico em outros, decorrentes de um maior conhecimento do país real, aquele onde vive a maioria da população, o que trará um ganho de qualidade às instituições de educação superior, sem falar daqueles advindos de uma composição social mais diversificada. Além disso, essa medida, com certeza, terá um impacto muito positivo sobre a qualidade da educação básica, pois trará de volta para a escola pública muitos segmentos que a abandonaram.

Por fim, não basta resolver os problemas do reduzido e elitizado acesso à educação superior no Brasil, resta uma tarefa mais árdua: garantir que haja trabalho para os que se formam nesse nível de ensino, o que já não acontece para os graduados de hoje. Resolver esta questão passa, inevitavelmente, por uma mudança estrutural no modelo econômico vigente, reduzindo-se a concentração de renda, que se situa entre as cinco piores do mundo, condição essencial para o aparecimento de um mercado privado que possa consumir os serviços prestados por estes profissionais graduados e para o fortalecimento financeiro da administração pública, principal empregadora de profissionais que atuam na área social.

Notas

Recebido e aprovado em setembro de 2004

  • AMARAL, N.C. Financiamento da educação superior: Estado X mercado. São Paulo: Cortez; Piracicaba: UNIMEP, 2003.
  • ASSOCIAÇÃO DOS DOCENTES DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (ADUSP). Como e por quê as fundações privadas "de apoio" estão destruindo o caráter público e gratuito da USP São Paulo: ADUSP, 2004. 32p.
  • BARROS, H.H.D. Financiamento estudantil: estudo da Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados. Brasília, DF, set. 2003. 6p.
  • BRASIL. CAIXA ECONOMICA FEDERAL. Relatório da administração, 2003 Disponível em: <www.cef.gov.br> Acesso em: 2004.
  • BRASIL. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATISTICA. Censo demográfico 2000: educação, resultados da amostra. Rio de Janeiro: IBGE, 2003.
  • BRASIL. Medida Provisória n. 213, de 10 de setembro de 2004. Institui o Programa Universidade para Todos - PROUNI, regula a atuação de entidade beneficentes de assistência social no ensino superior, e dá outras providencias. Disponível em: <www.mec.gov.br/acs/pdf/Prouni.pdf> Acesso em: out. 2004.
  • BRASIL. MINISTERIO DA EDUCAÇÃO. Projeto de Lei que institui o sistema especial de reservas de vagas para estudantes egressos de escolas públicas. Brasília, DF: MEC, 2004a.
  • BRASIL. MINISTERIO DA EDUCAÇÃO. Informativo do MEC Brasília, DF: MEC, 2004b. Disponível em: <www.mec.gov.br>. Acesso em: 17 set. 2004.
  • BRASIL. MINISTERIO DA EDUCAÇÃO. Reforma da educação superior: reafirmando princípios e consolidando diretrizes da reforma da educação superior. Documento II. Brasília, DF: MEC, 2004c.
  • BRASIL. MINISTERIO DA EDUCAÇÃO. INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS (INEP). Relatório do Grupo de Trabalho sobre financiamento da Educação. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, DF, v. 82, n. 200/201/202, p. 117-136, jan./dez. 2001.
  • BRASIL. MINISTERIO DA EDUCAÇÃO. INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS (INEP). Mapa da educação superior Brasília, DF: MEC; INEP, 2004. 85p.
  • CUNHA, L.A. A universidade temporã: o ensino superior da colônia à era de Vargas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.
  • DOURADO, L.F. A interiorização do ensino superior e a privatização do público Goiânia: UFG, 2001.
  • FOLHA de S. Paulo, São Paulo, 26 set. 2004, p. A 13.
  • PINTO, J.M.R. Um fundinho chamado "fundão". In: DOURADO, L.F. (Org.). Financiamento da educação básica Campinas: Autores Associados; Goiânia: UFG, 1999.
  • 1
    . A UNESCO considera a Taxa de Escolarização Bruta na Educação Superior a razão entre a matrícula total na educação superior (ensino de graduação),
    independentemente da idade dos alunos matriculados, e a população na faixa etária teoricamente adequada (5 anos contados a partir do ensino médio; no Brasil, seria de 18 a 22 anos). Tendo em vista que no Brasil, em virtude de muitos alunos concluírem o ensino médio com idade superior a 18 anos em função dos elevados índices de repetência da educação básica, este indicador pode apresentar alguma distorção, pois uma parcela considerável de alunos da educação superior possui idade acima de 24 anos. Assim, segundo o MEC, apenas 9% dos jovens de 18 a 24 anos estão cursando uma IES. Mas, de toda forma, essa taxa é importante pois permite comparações internacionais, e como há uma certa estabilização no tamanho das coortes da população mais jovem, ela é um indicador razoável do atendimento nesse nível de ensino.
  • 2
    . Na última década efetivou-se no Brasil um processo de diversificação e diferenciação da educação que se consubstanciou em vários dispositivos legais. Destaca-se, nesse processo, o Decreto n. 3.860, de 9 de julho de 2001, que alterou a organização acadêmica da educação superior ao classificar as instituições de ensino superior do Sistema Federal de Ensino em: I - universidades; II - centros universitários; III - faculdades integradas, faculdades, institutos ou escolas superiores.
  • 3
    . Pela ordem: UNIP (88 mil alunos de graduação), Estácio de Sá (86 mil), Universidade de São Paulo (43 mil), Universidade Luterana do Brasil (42 mil), Universidade Bandeirante de São Paulo (35 mil), PUC-MG (34 mil), Universidade do Vale do Rio dos Sinos (32 mil), Universidade Estadual de Goiás (32 mil), Universidade Estadual do Piauí (31 mil, com
    campi também na Bahia e no Maranhão) e Universidade Federal do Pará (30 mil).
  • 4
    . Na esfera pública, é fundamental destacar a implementação da Universidade Pública Virtual do Brasil (UNIREDE), consórcio formado por várias instituições de ensino superior públicas. No setor privado, foi organizada a Rede Brasileira de Ensino a Distância, como resultado da associação de dez instituições de ensino superior do país, que, juntas, formam o Instituto Universidade Virtual Brasileira (IUVB).
  • 5
    . Menos por esforço próprio e mais por pressão da legislação e pelos investimentos públicos feitos na expansão da pós-graduação.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Jan 2005
    • Data do Fascículo
      Out 2004

    Histórico

    • Aceito
      Set 2004
    • Recebido
      Set 2004
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