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Não se sabe...

One does not know...

Resumos

Não se sabe se a sua vida consiste numa existência individual; se a sua natureza consiste num fato biológico; ou se a sua cultura consiste num modo de ser social. Não há indicações a respeito, a não ser que, de jeito algum, trata-se de um animal rationale ou de uma imago Dei. Até que um outro - mundo possível? - chegasse, foi identificado à existência primordial. Em função de tal proveniência, através dos tempos, foi considerado como o humano em geral. E, só muito recentemente, viu-se que a sua ação transcorre de forma selvagemente sentida; logo, na antípoda do que é entendido por humano.

Infância; Criança; Desejo; Afirmação


One does not know if its life consists in an individual existence, if its nature consists in a biological fact, or if its culture consists in a social way of being. There exist no further indications apart from the fact that it is absolutely not a rationale animal or an imago Dei. Until another -possible world? - arrived, it was identified to primordial existence. Because of this origin, it was considered, along the ages, as the general human being. Only recently was it perceived that its action can only be felt feel as something savage; thus situated at the antipodes of what is understood as being human.

Childhood; Child; Desire; Affirmation


DOSSIÊ: "ENTRE DELEUZE E A EDUCAÇÃO"

Não se sabe...

One does not know...

Sandra Mara Corazza

Doutora em Educação e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (ufrgs). E-mail: sandracorazza@terra.com.br

RESUMO

Não se sabe se a sua vida consiste numa existência individual; se a sua natureza consiste num fato biológico; ou se a sua cultura consiste num modo de ser social. Não há indicações a respeito, a não ser que, de jeito algum, trata-se de um animal rationale ou de uma imago Dei. Até que um outro – mundo possível? – chegasse, foi identificado à existência primordial. Em função de tal proveniência, através dos tempos, foi considerado como o humano em geral. E, só muito recentemente, viu-se que a sua ação transcorre de forma selvagemente sentida; logo, na antípoda do que é entendido por humano.

Palavras-chave: Infância. Criança. Desejo. Afirmação.

ABSTRACT

One does not know if its life consists in an individual existence, if its nature consists in a biological fact, or if its culture consists in a social way of being. There exist no further indications apart from the fact that it is absolutely not a rationale animal or an imago Dei. Until another —possible world? — arrived, it was identified to primordial existence. Because of this origin, it was considered, along the ages, as the general human being. Only recently was it perceived that its action can only be felt feel as something savage; thus situated at the antipodes of what is understood as being human.

Key words: Childhood. Child. Desire. Affirmation.

Não se sabe se a sua vida consiste numa existência individual; se a sua natureza consiste num fato biológico; ou se a sua cultura consiste num modo de ser social. Não há indicações a respeito, a não ser que, de jeito algum, trata-se de um animal rationale ou de uma imago Dei. Até que um outro – mundo possível? – chegasse, foi identificado à existência primordial. Em função de tal proveniência, através dos tempos, foi considerado como o humano em geral. E, só muito recentemente, viu-se que a sua ação transcorre de forma selvagemente sentida; logo, na antípoda do que é entendido por humano. Pluralidade de forças em permanente tensão, o seu movimento estabelece hierarquias temporárias. Pensamentos, sentimentos e impulsos encontram-se em luta, mas também seus tecidos, órgãos e células. Atua contra sentidos estabelecidos, normas coercitivas, querer divino, ídolos axiológicos da moral, arrière-monde. Opera, antes de tudo, contra a morte. Não visa objetivos, não admite tréguas, não prevê fim. A partir do combate incessante, surgem forças dominantes, que o fazem agir, e forças dominadas, que o levam a reagir. São essas forças que constituem sua vida, natureza e cultura. Sendo um fora-da-lei, fora-do-contrato, fora-da-instituição, tem retiradas as possibilidades dos seus instintos atuarem, quando fica encerrado no âmbito da Família, do Édipo, da Escola, do Estado, dos Direitos Humanos, da Paz. Então, esses instintos voltam-se contra si mesmos e o seu desenvolvimento ruma para o espírito de gregariedade: mediano, vulgar. Ao lutar contra a desvalorização dos instintos estéticos – tanto apolíneos como dionisíacos – pela razão, é um rebelde, em face do saber consciente que diminui sua sabedoria instintiva. Em seu querer, o sentir e o pensar encontram-se imbricados e o pensamento disseminado pelo corpo. Ao articular vida e pensamento, faz experiências com todas as coisas, sobretudo consigo mesmo. Detesta o preceito Tudo o que é belo é racional e nunca subordina a poesia à lógica, por considerar que os instintos vitais é que constituem sua força afirmativo-criativa. Aliando tal força à hipertrofia da consciência e da memória, esquece. Para sentir alegria, leveza, esperança, orgulho, basta-lhe a inconsciência salutar associada ao esquecimento. Instalado no limiar do instante, apaga lembranças, já que sem esquecer não age e não vive. Nas relações com o meio, a superficialidade é um dos seus traços marcantes e até mesmo definidor. Possui a pretensão de saber como suas ações são produzidas, mesmo que elas nunca sejam o que lhe parecem ser. Mostra-se, por vezes, como uma unidade, forma mais alta, suprema espécie de ser, progresso da consciência, conhecimento absoluto, critério superior de valor; embora seja apenas conjunturalmente utilizável para a manutenção da vida em grupo. Nos conceitos, gêneros, espécies, categorias, sistemas, encontra somente anseios e necessidades humanas de sobrevivência. Assim, desmascara as ilusões das ciências humanas e sociais, da religião e da moral, mostrando que elas são sintomas de um regime utilitário do agir. Sintomas que introduzem sentidos e atribuem fixidez a seu desregramento instintual. Necessário, assegura a própria existência, na medida em que se dota de um caráter simplificador. Faz-se inteligível, ao tomar consciência de si, em relação com a comunidade. Deixa, portanto, de ser incomparável, único, ilimitadamente singular, para ir se tornando confiável e constante, raso e ralo, generalizado e indeterminado, simétrico e estúpido, falsificável e traduzível na perspectiva do rebanho. Dobrando-se a tudo o que é altivo, conquistador, dominador, torna-se brando e tranqüilo, fazendo de si uma permanência na mudança. Como rede de ligação entre os humanos, equivale à regularidade dos costumes, alma, espírito, essência, sujeito, agente, objeto, causa, efeito, substrato, ser, razão, consciência, verdade, Eu. Sua moralidade define-se pela capacidade de obedecer a leis, cujo referencial regulador encontra-se na tradição, tida como autoridade superior, à qual obedece – não porque ela lhe manda fazer algo, mas simplesmente porque ela manda. Adestrado, conceitualiza pela identificação de dessemelhantes; pensa as coisas mais simples do que são; e responsabiliza-se por suas ações, incluindo o ato de pensar. Desse modo, serve aos fracos, às almas iguais, e suprime a diferença, gerando metafísicas assentadas em falsos problemas. Caudatário de forças reativas, que se colocam em primeiro lugar, faz com que essa reatividade elimine a primazia de suas forças agressivas – criadoras de novas direções. Nesses arranjos mecânicos, regulações, funções adaptativas, expressa o poder das forças dominadas; embora realize esforços continuados por mais potência – como vitória sobre si mesmo, tendência a subir, vontade de auto-superação. Por isso, é essencialmente mutável, princípio pelo qual a sua própria vida se supera. Como uma ficção convencional – mas dotada de um caráter de realidade –, vive um processo de formação, no qual a moralidade é o meio necessário para o seu amadurecimento enquanto indivíduo soberano. Então, livre, de vontade inabalável, prescinde da moral, liberta-se dos costumes, cria valores e organiza a exterioridade mediante a introdução de formas, que têm seu respaldo na interpretação e na avaliação. Como produto dessas ações, torna-se autônomo e supramoral. Desprendido das coordenadas sociais e do poder ordenador da lei, propugna um nada de teórico e de prático, e tudo pelo trágico, fazendo o mundo à sua medida e tendo o conhecimento do mundo que merece. Não se sabe se esse desterritorializado ainda pode ser chamado infantil, como um derivado da ação genérica da cultura; ou se terá chegado o momento, em que já não tem nenhuma importância chamar ou não chamar infantil àquilo que dele é dito e pensado. Deslocado no tempo, precipitado e ativado, tornado positivo e criador, não pode deixar de existir. Só que já não é mais ele mesmo... Desligado da falsa infância que nunca houve, faz proliferarem desejos, paixões e conexões com o campo social e político. De maneira a ser irremediavelmente multiplicado, enquanto condição da própria criação: "um novo começo, um jogo, uma roda que gira por si mesma, um movimento inicial, um sagrado dizer 'sim'" (Nietzsche, s./d., p. 44).

Recebido em maio de 2005 e aprovado em julho de 2005.

  • NIETZSCHE, F.W. Assim falou Zaratustra. Um livro para todos e para ninguém. Trad. de Mário da Silva. São Paulo: Círculo do Livro, s/d.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jan 2006
  • Data do Fascículo
    Dez 2005

Histórico

  • Recebido
    Maio 2005
  • Aceito
    Jul 2005
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