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Representações sociais da música: aliadas ou limites do desenvolvimento das práticas pedagógicas em música?

Social representations of music: allies or limits for the development of music education?

Resumos

O presente trabalho tem como objetivo abordar os fenômenos perceptivos presentes nos processos de negociação de significados de música. Esses processos de negociação são mediados por processos simbólicos e representacionais, tal como apresenta Moscovici na teoria das representações sociais. Nesta perspectiva, afirmamos que as diversas práticas pedagógicas em música são produtos de representações sociais de música e podem aproximar ou mesmo afastar professores e alunos.

Representação social; Pedagogia da música; Percepção


The present work aims at tackling the perceptive phenomenon present in the negotiation processes of the meaning of music. Such negotiation processes are mediated by symbolic and representational processes, as Moscovici presented them in his social representation theory. In this perspective, music education practices are products of the social representations of music and can approximate or separate teachers and students.

Social representation; Music pedagogy; Perception


ANÁLISE DAS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS

Representações sociais da música: aliadas ou limites do desenvolvimento das práticas pedagógicas em música?

Social representations of music: allies or limits for the development of music education?

Mônica de Almeida DuarteI; Tarso Bonilha MazzottiII

IDoutora em educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professora adjunta do Departamento de Educação Musical da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). E-mail: mdmjb@terra.com.br

IIDoutor em educação pela Universidade de São Paulo (USP) e professor titular de Filosofia da Educação da UFRJ. E-mail: tarsomazzotti@uol.com.br

RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo abordar os fenômenos perceptivos presentes nos processos de negociação de significados de música. Esses processos de negociação são mediados por processos simbólicos e representacionais, tal como apresenta Moscovici na teoria das representações sociais. Nesta perspectiva, afirmamos que as diversas práticas pedagógicas em música são produtos de representações sociais de música e podem aproximar ou mesmo afastar professores e alunos.

Palavras-chave: Representação social. Pedagogia da música. Percepção.

ABSTRACT

The present work aims at tackling the perceptive phenomenon present in the negotiation processes of the meaning of music. Such negotiation processes are mediated by symbolic and representational processes, as Moscovici presented them in his social representation theory. In this perspective, music education practices are products of the social representations of music and can approximate or separate teachers and students.

Key words: Social representation. Music pedagogy. Perception.

Professores são artistas... Esta é uma afirmação que ainda podemos ouvir em encontros acadêmicos voltados para o debate sobre as práticas pedagógicas em música. Se evidenciarmos o pensamento de Aristóteles, tal como fez Mazzotti (2003), verificaremos que as ciências poéticas ou produtivas são um tipo de ciência que coincide com a arte. A arte (tékhne) ocupa-se da poética, da produção de objetos, e é um saber. A partir desse ponto de vista podemos afirmar que os professores são artistas no sentido de que a educação é uma poética (Mazzotti, 2003).

Daí afirmarmos que uma das limitações das intenções de um autor está no modo pelo qual se dá o processo perceptivo de seu trabalho, por parte do auditório. Há, aqui, uma tensão entre estes dois momentos ou dimensões – orador/criação, auditório/recepção –, uma vez que o auditório não recebe passivamente a mensagem, ele a reconstrói, tornando-se um dos agentes da criação.

Definimos percepção fundamentalmente como apreensão dos significados, dos sentidos. Estes são socialmente partilhados, produtos de um processo de negociação. Ou seja, as respostas perceptivas são o resultado da negociação de significados tanto compartilhados quanto divergentes a respeito de diversos objetos sociais. Essas negociações ocorrem no e entre os grupos sociais – "grupos reflexivos" para Wagner (1998).

Esse ponto de vista ultrapassa o entendimento da percepção como resposta eliciada por algum estímulo, em nosso caso o sonoro, pois consideramos o trabalho de produção do conhecimento desenvolvido pelas pessoas. E, no que tange aos aspectos estruturais do processo perceptivo, há uma forte analogia entre aquele processo e o da criação, como pretendemos mostrar a seguir por meio da explicitação de alguns elementos da teoria das representações sociais desenvolvida por Moscovici (1978, 1985).

O trabalho que ora apresentamos inscreve-se em um extenso programa de pesquisas que busca identificar os esquemas perceptivos ou de significação apresentados pelos alunos como um primeiro passo para se promover a mudança conceitual e, conseqüentemente, de atitudes (Mazzotti, 2003), a partir da teoria das representações sociais. Tal teoria tem-se mostrado relevante nas pesquisas em diversas áreas (Alves-Mazzotti, 2000; 2003; Jodelet, 2001; Moreira, 2001; Moreira & Oliveira, 1998). Além disso, apresenta significativa contribuição para os estudos da pedagogia geral e das pedagogias específicas, como a da música, uma vez que propicia um tratamento mais adequado dos problemas relacionados com a construção do conhecimento, entre eles o da eficácia do ensino, como veremos a seguir.

A teoria das representações sociais

A teoria das representações sociais é uma forma sociológica, mais do que psicológica, de psicologia social e dá conta das questões relativas às diferentes percepções que sujeitos socialmente configurados constroem de um mesmo assunto, tema, objeto.

Como já apresentamos em trabalhos anteriores (Duarte, 1997, 1998, 2002, 2004; Duarte & Alves-Mazzotti, 2001; Duarte & Mazzotti, 2002, 2003, 2004a, 2004b, 2004c), e remetendo-nos a Jodelet (2001, p. 12), a representação social é definida como um tipo específico de conhecimento que tem por função a elaboração de comportamentos e a comunicação entre indivíduos. É um conhecimento socialmente elaborado e partilhado, com objetivo prático, concorrendo para a construção de uma realidade comum a um conjunto social.

Toda ocorrência musical é percebida, representada e reapropriada pelo indivíduo ou pelo grupo, reconstruída em seu sistema cognitivo, integrada no seu sistema de valores, dependente de sua história e dos grupos sociais e ideológicos que o cercam (Abric, 1998, p. 27). Entendemos por ocorrência a efetivação material de qualquer padrão sonoro entendido como musical. Portanto, as ocorrências musicais o são para os grupos sociais, são objetos para eles, logo se apresentam como tais por serem representações socialmente constituídas. O dado observável e perceptível é o resultado da interpretação que o sujeito constrói. Os membros de um grupo social percebem os seus objetos dando-lhes significados e realidade, elaborando e compartilhando regras, justificativas e razões para suas percepções e comportamentos em suas práticas diárias relevantes. Há representação social toda vez em que os membros de um determinado grupo social têm uma concepção das condutas "normais" ou das respostas "corretas" de seus pares. Os membros de um grupo reflexivo, ligados a uma determinada instituição de ensino musical, sabem qual é o conjunto de ações adequadas para essa instituição e conhecem o comportamento socialmente racional em face dos objetos musicais ligados a ela, assim como a constituição do elenco de disciplinas referentes a determinado curso e a seleção dos conteúdos mais adequados a uma determinada disciplina. Caso se faça uma análise do currículo dos cursos de graduação em música, deve-se chegar à representação que o grupo de especialistas constrói sobre o que considera ser seu objeto de ensino válido – música popular brasileira, por exemplo – e que tipo de profissional pretende formar.

Mas não estamos excluindo a existência de um conhecimento privado, conhecimento pessoal ou teorias subjetivas que justificam as experiências e comportamentos individuais. A importância das idéias idiossincráticas presentes no pensamento psicossocial vem do fato de elas explicarem a criatividade e a inovação (Wagner, 1998). Porém, mesmo o conhecimento idiossincrático está baseado e relacionado com um conhecimento social e/ou cultural preexistente. Nenhum pensamento individual criativo acontece sem referência a um alicerce mental formado social e culturalmente (Wagner, 1998; em outro registro, Vigotski, 1989a, 1989b).

Então, como se formam e como funcionam os sistemas de referência próprios do processo de percepção?

O processo perceptivo

Na percepção – e também na criação – uma informação sonora é selecionada e recontextualizada. A seleção é parcial, mas não ao acaso, uma vez que os elementos selecionados são os que "coincidem" com o sentido que o sujeito pode ou quer atribuir ao som. É feita uma triagem em função de condicionantes culturais – acesso diferenciado às informações – e, sobretudo, de critérios normativos – guiados pelo sistema de valores do grupo –, com o fim de proporcionar uma imagem sonora coerente e facilmente reconhecível do objeto da percepção. Por meio da recontextualização, os sujeitos dão um novo valor e significado aos elementos selecionados. A seleção e recontextualização explicam por que o mesmo objeto musical pode ser percebido e, logo a seguir, representado de diferentes maneiras, uma vez que são processos relacionados a cada grupo especificamente.

Como resultado dessa seleção e recontextualização tem-se a formação de cognições centrais, ou seja, a estruturação ou organização dos elementos selecionados num complexo de imagens sonoras configurando um "novo objeto musical", resultado do processo de percepção ou criação desenvolvido pelo sujeito. Um produto estruturado, organizado numa ordenação hierárquica dos elementos dada pelo próprio agente da percepção ou criação, numa "construção estilizada do objeto" (Alves-Mazzotti, 2000, p. 60). Aqui está presente o processo de metaforização. A metáfora, por suas características, é uma condensação de significados produzida a partir da analogia, sendo, por isso, considerada uma analogia condensada. Essas características permitem sustentar que as metáforas se encontram no centro das representações sociais (Mazzotti, 2002).

Toda metáfora pressupõe a predicação. A predicação é o processo pelo qual determinamos, definimos, estabelecemos os contornos de algo sob exame. Esse processo recorre às qualidades que se julgam próprias a algo. Por certo, o "conhecido" é a expressão das qualidades já estabelecidas e mantidas por um grupo social, mas o mesmo não ocorre com a "novidade", o "ainda desconhecido". No caso da novidade procuramos encontrar nela predicados que conhecemos e que podem ser utilizados para perceber e assimilar o "novo" ao nosso repertório, e o fazemos por meio da verificação do semelhante e do não-semelhante com o conhecido, portanto construímos uma metáfora. Por essa via, pode ocorrer a naturalização de algo, cujos elementos passam a fazer parte da "realidade", não mais do pensamento (Duarte, 1997, 1998, 2004; Duarte & Alves-Mazzotti, 2001).

No caso da ocorrência musical percebida ou criada a partir da organização dos elementos sonoros selecionados de acordo com critérios normativos e culturais, ela se torna "real", é introduzida no mundo das coisas reais, das coisas que existem, sua natureza simbólica é deixada para trás e é entendida como um reflexo de determinada realidade. Neste sentido estão as caracterizações de acordes, cadências ou tonalidades e modos em alegre/triste, trágico/não-trágico, o modo maior incorporando o pastoral, o cômico, o triunfante, o transcendente etc., ao passo que o modo menor, o trágico ou triste. A redução do significado musical em termos de oposições pode apresentar problemas se tomarmos essas oposições de maneira estável, isto é, se elas precederem qualquer situação. Mas, se pensarmos as oposições na dinâmica por elas estabelecida, entenderemos que o já constituído em uma tradição obedece a elas e que qualquer novidade institui outras oposições.

O processo de predicação confere a determinados objetos sociais a categorização de objetos musicais, e, entre eles, as categorizações de "músicas de protesto", as "músicas românticas", as músicas "adequadas" para o uso escolar e tantas outras músicas de diferentes estilos e gêneros. Por serem produtos da predicação, configuram-se como objetos produzidos no âmbito da cultura (Cuff, cit. por Moussatché, 1998), como "produtos sócio-históricos elaborados por um processo coletivo de idealização e materialização da instituição a que se destinam" (Moussatché, 1998, p. 46).

Um grito pode ser um som habitual no pátio de uma escola e um escândalo na sala de aula ou num concerto de música clássica. Uma balada "brega" pode ser embaladora num baile popular e chocante ou exótica numa festa burguesa. Tocar um piano desafinado pode ser uma experiência interessante no caso de um ragtime e inviável em se tratando de uma sonata de Mozart. Um cluster pode causar espanto num recital tradicional, sem deixar de ser tedioso e rotinizado num concerto de vanguarda acadêmica. Um show de rock pode ser um pesadelo para os ouvidos do pai e da mãe e, no entanto, funcionar para o filho como canção de ninar no mundo do ruído generalizado. (Wisnick, 1989, p. 29)

Esse sistema de predicação ou de interpretação tem uma função de comunicação entre o indivíduo e seu meio e entre os membros de um mesmo grupo, concorrendo para afirmar a identidade grupal e o sentimento de pertencimento. A partir daí ocorrem os processos de denominação e classificação desse produto da percepção ou criação já estruturado. Denominar e classificar são ações que dizem respeito à assimilação de algo em um esquema ou estrutura cognitiva anterior e tomam lugar na esfera das criações e percepções no momento em que o agente musical determina o produto, o objeto e suas referências a uma categoria estabelecida, mesmo nas ocasiões em que ele tem de modificar e adaptar suas idéias prévias para conceber um novo objeto. Ou seja, ao deparar-se com uma ocorrência musical não-suspeitável, o compositor e o ouvinte passam a levantar hipóteses sobre os significados dessa novidade. Essas hipóteses são construídas a partir das características reconhecíveis da novidade por pertencerem a um estilo anterior, mas esse reconhecimento se dá por um processo de diferenciação, uma vez que as hipóteses não podem ser assimiladas totalmente no estilo anterior. Há, portanto, necessidade de algum tempo de negociação entre os sujeitos no estabelecimento da nova ocorrência nas diversas práticas musicais. Além disso, a afirmação da nova ocorrência dá-se por meio de seu uso e busca encontrar o que é próprio dela, para a categorizar e dar-lhe um nome. Assim ocorre a constituição de um novo estilo, pois essa nova ocorrência deixa de ser peculiar – como era com relação ao estilo anterior – e passa a ser "natural".

Como se dá a intervenção social no processo de denominação e classificação?

Por meio da significação e utilidade que conferimos ao objeto. Essa estrutura imaginante, resultado da percepção, é a própria representação construída pelo sujeito na sua relação social, à qual classificamos por meio de um nome. Ela se torna um guia de leitura, uma referência para compreender a realidade. Por exemplo, um intervalo de terça maior que foi percebido como dissonância durante séculos, no contexto da primeira polifonia medieval, passou à consonância na música tonal, com todas as conseqüências para as diversas práticas musicais e o desenvolvimento de estilos musicais referentes a cada época histórica.

Descrevemos sucintamente o processo pelo qual o objeto emerge para cada sujeito social na representação por intermédio de sua percepção, na seleção e organização dos materiais, adquirindo um sentido e tornando-se acessível ao nosso conhecimento, à nossa interpretação. Determinamos um objeto musical em uma categoria, damos um nome a ele, pelo que ficamos aptos a integrá-lo em nosso esquema sociocognitivo, interpretando-o de maneira que se torne "familiar". O significado que atribuímos ao objeto, derivado da categoria pela qual o determinamos, orientará nossa conduta com relação a esse objeto. Assim, torna-se possível apreender como o social interfere na elaboração psicológica que constitui a percepção e como essa elaboração psicológica interfere no social. "Diz-se que esse conhecimento é socialmente elaborado porque, embora se constitua a partir de nossa experiência pessoal, serve-se de informações, crenças, modelos de pensamento que recebemos e transmitimos através da tradição, da educação e da comunicação social" (Alves-Mazzotti, 2000, p. 62).

Mas qual a funcionalidade dessa abordagem teórica do campo da psicologia social para a prática profissional mais imediata no magistério?

Contribuição para as práticas pedagógicas

Por meio dessa abordagem temos a oportunidade de verificar in loco o processo de assimilação e acomodação de conceitos que, como produto da prática pedagógica, cada um de nós elegemos como sendo os que conduzem os alunos a um estágio de maior desenvolvimento musical.

A abordagem das representações sociais investiga e apreende os processos e produtos do senso comum, ou seja, dos sentidos comuns aos sujeitos pertencentes a um determinado grupo. Logo, pode ser de grande utilidade na determinação das "concepções prévias" apresentadas pelos alunos e professores na constituição de suas teorias. Passamos, a partir dessa abordagem, a entender a educação musical como um "campo de provas" das representações que os professores e alunos têm da música, as quais são, para eles, verdadeiras teorias musicais. Esse sistema de significações orienta o trabalho de tornar-se ou tornar alguém musical, de apresentar as qualidades mais ou menos "musicais" de determinados atos ou eventos. A sistematização de um saber é uma tarefa do professor em negociação direta ou indireta com os alunos e outros professores. Tais saberes são sistematizados com vistas à exposição aos outros e, de tal maneira, que os conduza de um estado de menor saber a outro de maior saber (Mazzotti, 2002) e de aproximação ou afastamento de algum grupo social em questão.

Os grupos sociais produzem representações segundo graus diversos de rigor e confiabilidade, de acordo com suas necessidades. Por exemplo, um grupo social constituído de musicólogos orienta-se pela metodologia própria de sua área, apoiando-se em uma longa tradição de debates. Outros grupos, como o dos estudantes de música de um determinado instituto de ensino, também produzem representações sociais, ainda que menos estruturadas quando comparadas com as dos musicólogos, mas portadoras da mesma eficácia para, entre outras coisas, efetivar a coesão grupal. No primeiro grupo, a construção da representação do objeto dá origem a um processo de refinamento conceitual que eventualmente culmina em uma formalização rigorosa, meta própria daquele grupo; para o segundo, basta considerar a representação por sua eficácia imediata: a da manutenção da coesão grupal. Desta perspectiva, o papel do ethos dos grupos reflexivos apresenta-se claramente, uma vez que ele determina o grau de estruturação cognitiva requerida em cada um deles.

Essa abordagem possibilita explicar e aperfeiçoar as práticas educativas, permite coordenar as diversas teorias sobre a passagem das concepções prévias (representações) ao conhecimento confiável ou eficaz para um determinado grupo social e suas necessidades sociais específicas. Retomando o nosso exemplo, um grupo reflexivo composto por musicólogos apresenta o caminho necessário para se passar das concepções prévias para o do conhecimento eleito como mais confiável; da mesma forma, o grupo de estudantes estabelece o caminho pelo qual alguém passa a fazer parte do grupo. Há uma continuidade funcional entre as concepções prévias e o conhecimento confiável para um determinado grupo social; em ambos, concepções prévias e conhecimento confiável são representações sociais. Considere-se a diferenciação entre cientistas e não-cientistas tal como fizeram Mazzotti & Oliveira (2000). O grupo social dos cientistas sempre deve estar atento aos deslizes metodológicos próprios de sua ciência. O mesmo não se dá para os não-cientistas, pois estes podem estar orientados por outros valores, os quais sugerem que se desconsidere o rigor analítico, por exemplo. No entanto, em ambos os grupos as pessoas podem ser exatamente as mesmas. Isso nos leva a afirmar que a diferenciação entre aqueles grupos se deve ao modo de operar próprio de cada grupo e não a diferenças funcionais de seus sistemas cognitivos (Mazzotti, 2004; Mazzotti & Oliveira, 2000).

Desta perspectiva, a abordagem das representações sociais apóia-se nas teorias sobre o processo de conhecer, nas quais as pessoas são ativas produtoras de seus saberes e conhecimentos. O conhecer faz-se por meio do processo de assimilação e acomodação, tal como proposto por Piaget, sendo que, agora, podemos adiantar que tal processo se realiza pela metaforização (Mazzotti, 2002).

Conclusão

A educação, como poética, objetiva alterar de alguma maneira as crenças, os valores e as atitudes dos estudantes. Há, no entanto, uma limitação: a intenção do orador/professor tem por obstáculo imediato o trabalho de percepção, por parte do(s) auditório/estudantes, do conhecimento que se pretende ensinar, pois os operadores cognitivos próprios do trabalho de percepção – que são os mesmos da criação, se partirmos do que sustenta a teoria das representações sociais – alteram os significados comunicados. Com base nesta teoria amplia-se o conceito de percepção, uma vez que os processos de significação intervêm no reconhecimento dos objetos, interferindo no resultado da sua compreensão. Diante de algum fenômeno desconhecido, de toda ocorrência musical nova ou inesperada, de algo perceptível, mas fora do "modelo" partilhado por nós em nossos grupos reflexivos, reagimos por aproximação, procurando elementos já presentes no mesmo modelo que construímos anteriormente. E o estranhamento de algum elemento não-assimilável pode ser o ponto de partida para uma reestruturação de nossas concepções ou representações. O trabalho educativo está, então, em auxiliar a apreensão do novo para o estudante como algo que permite rever o que ele representa por música, por exemplo. Não porque possa se pensar em alguma definição/representação de música que seja "superior", mas porque o processo educativo pode evidenciar e enriquecer as dinâmicas de negociação entre as diferentes representações de música na constante interação (afastamento/aproximação) entre os grupos sociais. Os professores de música e seus alunos constituem-se em grupos sociais que alcançam certas identidades por meio da representação que constituem e mantêm. A disciplina escolar "educação musical" é, para os professores, um corpus de conhecimentos e valores e uma representação de música em um dado momento histórico. Para alguns professores, no entanto, esses conhecimentos, valores e representação podem ser considerados perenes e afastam-se, assim, esses professores, dos grupos sociais expressos nas atitudes e escolhas de seus alunos.

Por meio da abordagem que vimos apresentando, é factível investigar a gênese e os produtos dos sentidos construídos sobre algum tema, assunto, objeto, os quais são sempre produzidos em relações dialógicas. Todo orador organiza sua comunicação com o fim de convencer o seu auditório e este trabalho precisa ser evidenciado nas investigações que tomem a situação psicossocial que são as escolas.

Por isso, na pesquisa sobre a dinâmica das práticas pedagógicas em música, assim como em outras, é preciso considerar que elas são como que um "campo de provas" ou "laboratórios" de teorias musicais constituídas pelos professores/oradores. Tais teorias musicais são representações sociais da música e sobre o ensino da música que orientam o trabalho de se tornar, ou tornar alguém, (mais) musical.

Recebido em abril de 2005 e aprovado em março de 2006.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Mar 2007
  • Data do Fascículo
    Dez 2006

Histórico

  • Recebido
    Abr 2005
  • Aceito
    Mar 2006
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