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Entrevista com Willian Corsaro

JORNAL DA EDUCAÇÃO

Entrevista com Willian Corsaro* * Tradução de Alain François e revisão técnica de Fernanda Müller.

Fernanda Müller

Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pesquisadora-visitante do Centro de Estudos da Família da Universidade de Cambridge. E-mail: fernanda.muller@gmail.com

Conhecido por seus alunos, colegas e informantes como Bill, William Arnold Corsaro é professor titular da cátedra "Robert H. Shaffer class of 1967", da Faculdade de Sociologia, Universidade de Indiana, Bloomington, Estados Unidos. Bill obteve seu bacharelado em sociologia pela Universidade de Indiana, em 1970, e seu doutorado pela Universidade da Carolina do Norte, em 1974. Entre seus principais interesses de pesquisa estão a sociologia da infância, as culturas de pares, as relações entre adultos e crianças e entre crianças, os métodos etnográficos e o processo de socialização. Há mais de 30 anos, Bill vem realizando pesquisas transculturais sobre as culturas de pares e a educação inicial das crianças na Itália, na Noruega e nos Estados Unidos.

Bill é o autor de Friendship and peer culture in the early years (1985) (Amizade e cultura de pares nos primeiros anos), co-organizador de Children's worlds and children's language (1986) (Mundos e linguagem das crianças), e Interpretative approaches to children's socialization (1992) (Abordagens interpretativas da socialização das crianças). The sociology of childhood (1997, 2005a – segunda edição) (A sociologia da infância) foi o primeiro texto nesta área a apresentar uma análise teórica baseada em dados produzidos com crianças, e não apenas sobre elas. As mais recentes publicações de Bill, We're friends, right?: inside kids' cultures (2003) (Somos amigos, né?: no interior das culturas das crianças), e I compagni: understanding children's transition from preschool to elementary school (2005c) (Os companheiros: entendendo a transição das crianças da pré-escola para a escola primária), escrito com Luisa Molinari, reúne um extraordinário conjunto de idéias teóricas e pesquisas empíricas sobre e com as crianças, oriundo de uma pesquisa longitudinal.

Bill ainda vem sendo um importante colaborador no desenvolvimento de projetos de pesquisa no Brasil sobre a infância, a sociologia e as metodologias de pesquisa com crianças. Visitei Bill em Bloomington, em 2005, e conversamos sobre as semelhanças e diferenças da infância no Brasil, na Itália e nos EUA. Recentemente, ele publicou um importante artigo no Brasil (Corsaro, 2005b) e espero que seja apenas um início, pois poderemos escutar suas idéias ao vivo quando ele visitar o Brasil, em maio de 2007.

Entrevistadora: Bill, existem alguns grupos no Brasil que vêm realizando pesquisas com crianças, mas ainda é um campo relativamente novo. Embora Florestan Fernandes, um sociólogo brasileiro de renome, tenha realizado um trabalho impressionante com crianças em São Paulo, nos anos de 1940, esse tipo de pesquisa sociológica foi abandonado por quase 60 anos. Embora tendo iniciado pesquisas com crianças há mais de 30 anos, seu trabalho é muito inovador e você têm uma abordagem teórica e experiências únicas para compartilhar conosco. Primeiro, por que você decidiu fazer pesquisas sobre e com crianças?

Bill: Decidi fazer pesquisa com crianças pequenas porque estava interessado em estudar a aquisição da linguagem. No começo dos anos de 1970, as pesquisas sobre aquisição da linguagem estavam desafiando seriamente as teorias comportamentalistas de desenvolvimento e aprendizagem das crianças, as quais, para mim, sempre foram simplistas e subestimaram as ações das crianças. Essas pesquisas motivaram o meu interesse pelas teorias construtivistas de Piaget e Vigotski. Influenciado por esses teóricos, quis ir além da aquisição da linguagem e estudar o desenvolvimento social e cultural das crianças de um modo mais geral. Ao contrário de Piaget, acreditava que as crianças pequenas eram capazes de manter uma interação contínua entre si e que seu desenvolvimento social era influenciado por interações com pares. Em 1974-75, realizei um estudo de um ano sobre crianças numa pré-escola em Berkeley, Califórnia, o qual serviu de base para meu primeiro livro, Friendship and peer culture in the early years (1985) (Amizade e cultura de pares nos primeiros anos). Tanto nesse livro como em outros artigos, eu discuti meus achados, ou seja, que as crianças não apenas contribuíam para sua própria socialização, mas que criavam e participavam de suas próprias culturas de pares. Esse primeiro trabalho também serviu de base para a minha abordagem alternativa do conceito de socialização, que eu chamei de reprodução interpretativa.

Entrevistadora: Você poderia me explicar como as crianças vêm sendo estudadas nos EUA a partir de um ponto de vista sociológico?

Bill: Embora a maioria das pesquisas sobre crianças nos EUA seja realizada por psicólogos, existem cada vez mais estudos sociológicos. Nos anos de 1970 e 1980 meus trabalhos sobre crianças pequenas foram os primeiros feitos por um sociólogo, mas os sociólogos vêm estudando os adolescentes já há algum tempo. Hoje em dia existem muito mais trabalhos de sociólogos sobre crianças pequenas também. Temos até uma sessão na American Sociological Association1 1 . Informações podem ser acessadas no site < http://www.asanet.org>. (Associação Sociológica Americana) sobre crianças e jovens, e, hoje em dia, muitos cursos são ministrados sobre a sociologia da infância. Meu livro The sociology of childhood está na sua segunda edição e é amplamente citado e utilizado em cursos. Então essa situação tem mudado drasticamente. Contudo, a sociologia da infância continua recebendo muito menos atenção que a dos adultos, aos quais se dedica um imenso leque de trabalhos sociológicos. Assim como aconteceu com as mulheres durante muitos anos, a sociologia não apresentava interesse pelas crianças. Contudo, com o desenvolvimento das teorias feministas, as mulheres e seu lugar na sociedade atual acabaram ficando no cerne das atenções. Logo, pode-se esperar que uma mesma atenção seja finalmente dada aos trabalhos sobre e com as crianças.

Entrevistadora: Que trabalhos atuais você considera importantes na área das pesquisas sobre crianças e infância?

Bill: Considero alguns dos melhores trabalhos sobre crianças e infância dos eua e do mundo inteiro no meu livro, The sociology of childhood. Outro livro muito importante é o de Barrie Thorne, Gender play (Jogos de gênero) e o livro Theorizing childhood (Teorizando a infância), dos autores britânicos Alison James, Alan Prout e Christopher Jenks. Meu livro We're friends, right?: inside kid's cultures traz uma revisão dos meus trabalhos nesses 30 últimos anos. Ainda existem trabalhos muitos importantes do sociólogo dinamarquês Jens Qvortrup e dos sociólogos britânicos Berry Mayall, Alison James, Alan Prout e Chris Jenks. Também considero o trabalho da socióloga finlandesa Leena Alanen muito importante. Em suma, existem muitos trabalhos importantes sobre crianças e jovens na Europa (especialmente na Grã-Bretanha, na Alemanha e na Escandinávia). Neste momento, estou co-escrevendo Handbook of child studies (Manual de estudos das crianças) com Jens Qvortrup, Michael-Sebastian Honig e Gill Valentine. Jens é o organizador responsável e o livro abrangerá um imenso conjunto de assuntos sobre estudos das crianças escritos por autores do mundo inteiro. Ele será provavelmente publicado pela Palgrave Press, em 2008.

Entrevistadora: Tanto em seminários na UFRGS como no grupo de pesquisa CIC (Crianças, Infância e Cultura), estive envolvida em intensas discussões sobre alguns de seus livros. Em The sociology of childhood nos concentramos em conceitos como reprodução interpretativa, culturas de pares e questões metodológicas. Nossas discussões serão obviamente enriquecidas com as suas respostas. Em The sociology of childhood, você apresentou e criticou certas teorias sobre socialização. Embora eu concorde com os seus argumentos, gostaria que você explicasse um pouco melhor o orb web model (modelo de teia circular). Ele parece bastante restritivo e, com base na minha pesquisa, venho entendendo que existem complexas interações entre gerações a partir do momento em que uma criança nasce. O que você pensa a respeito?

Bill: O modelo de teia circular serve como metáfora para substituir os "modelos de estágios" do desenvolvimento das crianças. Ele representa um modelo reprodutivo. Ele não nega que existam relações importantes entre gerações. Na realidade, os raios do modelo representam os muitos campos institucionais onde as crianças, em suas culturas de pares, são influenciadas por e influenciam as informações do mundo adulto. Contudo, cabe salientar que o "modelo redondo" é apenas um modelo para ajudar a diferenciar minha abordagem das teorias do desenvolvimento individual e não deveria ser tomado literalmente, como capturando todos os aspectos da minha teoria da reprodução interpretativa e da importância das culturas de pares das crianças. Se está pensando no conceito de atores sociais de geração em vários pontos do ciclo de vida e diferentes pontos históricos, então entendo geração e idéias sobre crescer, experiências, e contribuição ao mundo social e cultural como partes de diferentes gerações. Com cultura de pares, estou falando de crianças que produzem e criam seus próprios mundos coletivos num sentido genérico. Embora sejam afetadas pelo mundo adulto (que também afetam), as culturas de pares das crianças têm sua própria autonomia. Qualquer grupo de pares particular (que é um grupo coletivo de crianças que produz culturas de pares locais) representará uma geração particular num período histórico particular. Então estamos falando de níveis de análise e de abstração diferentes. Contudo, mais uma vez, tenho de ressaltar a autonomia das culturas de pares das crianças e dos jovens, mesmo que essas culturas de pares particulares tenham de ser colocadas num contexto histórico e cultural.

Entrevistadora: Você poderia falar sobre as vantagens e as desvantagens dos estudos longitudinais? E qual a sua opinião sobre os estudos comparativos?

Bill: Entendo que para compreender realmente os processos de reprodução interpretativa e as culturas de pares das crianças, uma meta ideal seria estudar ambos longitudinal e comparativamente. Isso nem sempre é possível, mas deveríamos fazer o máximo para consegui-lo. A maioria dos trabalhos da sociologia da infância é longitudinal e neles grupos de crianças e jovens são estudados num período de pelo menos um ano. Contudo, acredito que precisamos estudar crianças e jovens por períodos mais longos, e em transições importantes como a da família para a pré-escola, da pré-escola para a escola primária e assim por diante. Acabo de publicar um livro com minha colega italiana, Luisa Molinari, I compagni: understanding children's transition from preschool to elementary school, onde estudamos um grupo de crianças italianas durante sua transição da pré-escola para a escola primária até sua transição da escola primária para a escola de Ensino Médio, ou seja, num período de sete anos. Entendo que mais estudos longitudinais são necessários. Infelizmente, esse estudo não foi comparativo, mas comparações de achados podem ser feitas com transições de crianças nesse mesmo período em outras culturas. Não vejo qualquer fraqueza em estudos longitudinais e comparativos, mas eles são um ideal difícil de se alcançar. Precisamos de mais cooperação e trabalho colaborativo internacional e interdisciplinar para rumarmos nessa direção.

Entrevistadora: No Brasil, existem muitos materiais traduzidos de estudos italianos em educação, antropologia, psicologia, e assim por diante. Também existem filmes que nos mostram o quanto as abordagens pedagógicas nas pré-escolas italianas são inovadoras. Obviamente, isso está relacionado ao conceito de crianças como atores sociais e seres humanos capazes. Por que você escolheu fazer pesquisa na Itália?

Bill: Optei pela Itália por razões pessoais e teóricas. Por parte do meu pai, sou descendente de italianos e sempre quis aprender italiano e viver na Itália. Em teoria, queria aprofundar a idéia de que alguns aspectos da cultura de pares podem ser universais, e logo precisava fazer pesquisa fora dos EUA. A Itália era um bom lugar para começar, pois é uma sociedade industrializada, como a dos EUA, mas muito diferente em sua política sobre educação inicial da infância. A Itália tem alguns dos programas e das políticas em educação inicial mais progressistas do mundo, que atendem quase todas as crianças de 3 a 5 anos em pré-escolas mantidas pelo governo. Portanto, a Itália era uma boa escolha. Além do mais tinha alguns colegas lá e uma das doutorandas dos meus colegas Italianos, Luisa Molinari, tornou-se hoje em dia professora titular e é uma das minhas principais colegas. Também escrevi um artigo sobre o sistema pré-escolar italiano com Francesca Emiliani. E tenho relações de trabalho com outros colegas italianos, embora não tenhamos publicado juntos. Além disso, a abordagem etnográfica para estudar crianças e jovens na Itália ainda é algo muito novo e muito menos desenvolvido que em outros países europeus.

Entrevistadora: Em sua opinião, quais são as diferenças entre a educação inicial da infância americana e italiana?

Bill: Essas diferenças são muito grandes, pois, nos EUA, a educação precoce é basicamente privada e muitas pessoas acreditam que não é necessariamente a melhor coisa para as crianças, e que elas ficariam muito melhor em casa com um dos pais até começarem o jardim-de-infância no sistema escolar público, com 5 anos. De fato, o governo americano gasta milhões de dólares por ano em estudos sobre possíveis efeitos negativos do cuidado às crianças e da educação inicial das crianças com menos de 5 anos nos EUA. Essas verbas de pesquisa pareceriam absurdas para os italianos, que têm um sistema pré-escolar plenamente desenvolvido que atende quase a maioria das crianças entre 3 e 5 anos, além de uma pedagogia desenvolvida e coerente, o que é conhecido como a abordagem de Reggio-Emília. Luisa e eu falamos com mais detalhes a respeito do sistema pré-escolar e primário na Itália em nosso livro, I compagni... A Itália também tem um sistema educativo bastante desenvolvido para crianças de 18 meses a 3 anos que é bem descrito no livro Bambini: the Italian approach to infant/toddler care, organizado por Lella Gandini e Carolyn Pope Edwards (Teachers College Press, 2001). Os EUA estão muito longe atrás da Itália e de toda a Europa no que diz respeito à licença parental, aos cuidados com as crianças e à educação inicial. Os EUA vêem esses processos como responsabilidade individual da família e não do Estado.

Entrevistadora: Sei que você está interessado em começar um novo projeto sobre as festividades para crianças. Pode me dizer algo sobre seus objetivos e métodos, o tempo previsto e os países onde pretende fazer essa pesquisa?

Bill: Esse projeto ainda é muito recente e no momento estou focando principalmente no dia da Constituição na Noruega, 17 de maio, que é um dia especialmente dedicado às crianças de diversas idades. Esse feriado nacional, que tem uma longa história e celebra a independência da Suécia, foi transformado em um dia especial para as crianças e os jovens. Já que existem poucos estudos que realmente envolveram crianças e jovens sobre esse feriado, meu colega Berit O. Johannesen conduziu entrevistas com crianças e jovens com uma colega norueguesa em Trondheim, em maio de 2006. Estamos atualmente traduzindo as entrevistas e trabalhando em um artigo relacionado a esse estudo. Esperamos ampliá-lo a outras cidades norueguesas no futuro. Também estou muito interessado nas informações que você me mandou sobre o 12 de outubro (Schueler, Delgado & Müller, 2006), como sendo o Dia das Crianças no Brasil, e espero visitar o Brasil nesse dia e começar um estudo num futuro próximo. A meta geral seria obter uma ampla amostra internacional de festividades e dias das crianças nos próximos dez anos aproximadamente.

Referências bibliográficas

CORSARO, W.A. Friendship and peer culture in the early years. Norwood, N.J.: Ablex, 1985. (Reimpresso em: HANDEL, G. (Ed.). Childhood socialization. New York: Aldine, 1989, 2001).

COOK-GUMPERZ, J.; CORSARO, W.A.; Streeck, J. (Ed.). Children's worlds and children's language. Berlin: Mouton, 1986.

CORSARO, W.A.; Miller, P.J. (Ed.). Interpretive approaches to children's socialization. New Directions for Child Development, San Francisco, n. 58, p. 5-23, 1992.

CORSARO, W.A. The sociology of childhood. Thousand Oaks, California: Pine Forge Press, 1997. (Reimpresso em dinamarquês como Barndommens sociologi. Copenhague, Dinamarca: Glydendalske Boghandel, 2002. Reimpresso em italiano como Le culture dei bambini. Bolonha, Itália: il Mulino, 2003).

CORSARO, W.A. We're friends, right?: inside kids' cultures. Washington, dc: Joseph Henry Press, 2003.

CORSARO, W.A. The sociology of childhood. 2. ed. Thousand Oaks, California: Pine Forge Press, 2005a.

CORSARO, W.A. Entrada no campo, aceitação e natureza da participação nos estudos etnográficos com crianças pequenas. Educação & Sociedade, Campinas, v. 26, n. 91, p. 443-464, maio-ago. 2005b.

CORSARO, W.A.; Molinari, L. I compagni: understanding children's transition from preschool to elementary school. New York: Teachers College Press, 2005c.

QVORTRUP, J. et al. (Ed.). Handbook of child studies. London: Palgrave Press. (No prelo).

SCHUELER, A.F.M.; DELGADO, A.C.; MÜLLER, F. Festivities for children in Brazil. Porto Alegre, 2006. 20p. (Relatório).

  • *
    Tradução de Alain François e revisão técnica de Fernanda Müller.
  • 1
    . Informações podem ser acessadas no
    site <
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Maio 2007
    • Data do Fascículo
      Abr 2007
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