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Alguma memória do futuro

Some memory of the future

Resumos

Uma escola tradicional localizada numa avenida tradicional mostra um pastiche visual típico de bairros residenciais que se transformam em bairros comerciais em cidades que degradam seu patrimônio visual.

Arquitetura escolar; Memória; Ideologia visual


A traditional school settled in a traditional avenue reveals a visual pastiche typical of residential districts transformed into commercial zones in cities that do not care for their visual patrimony.

School architecture; Memory; Visual ideology


ARTIGOS

Alguma memória do futuro* * Os textos que compõem este artigo foram escritos a pedido e para subsidiar pesquisas do Centro de Memória da Educação, da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (unicamp).

Some memory of the future

Milton José de Almeida** ** Doutor em Educação, professor e pesquisador do Laboratório de Estudos Audiovisuais (olho) e do Departamento de Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte, da Faculdade de Educação da unicamp. E-mail: miltonpisani@gmail.com ; Alan Victor Pimenta*** *** Doutorando no Laboratório de Estudos Audiovisuais (olho), da Faculdade de Educação da unicamp, e professor do ensino fundamental e médio no Colégio Antares. E-mail: russo333@hotmail.com

RESUMO

Uma escola tradicional localizada numa avenida tradicional mostra um pastiche visual típico de bairros residenciais que se transformam em bairros comerciais em cidades que degradam seu patrimônio visual.

Palavras-chave: Arquitetura escolar. Memória. Ideologia visual.

Abstract

A traditional school settled in a traditional avenue reveals a visual pastiche typical of residential districts transformed into commercial zones in cities that do not care for their visual patrimony.

Key words: School architecture. Memory. Visual ideology.

O Colégio (por Milton José de Almeida)

Aqui se trata do Colégio Progresso, em Campinas.

Evidentemente, não se fotografa o futuro, mas essa ideia aparentemente de ficção científica tem a graça paradoxal de movimentar o pensamento para apreender em fotos, detalhes ou conjuntos visuais que mostrem suas passagens anacrônicas e discrônicas, seus caminhos que mais parecem desvios, seus detalhes presentes que parecem premonições visuais, autoprevisões do seu futuro. O futuro é uma imaginação do presente, ao mesmo tempo um desejo. A sua inexistência pode estar ali, como ausência, permanência, mutação. O passado vem ao futuro do presente como fantasma. Aparição que se mostra ao olhar de quem está vivo como fantasma, do grego, imagem que se apresenta ao espírito como objeto.

Fotografar o Colégio sem um plano inicial que organizasse o olhar. Como alguém que fosse convidado a entrar e ver o que quisesse. Assim fomos, Alan, que iria fotografar, e eu, conduzidos pela gentileza da Lúcia e da Sílvia. A ideia era não fotografar planos gerais, que dessem uma aparência de conjunto, mas sim detalhes, proximidades, aberturas, móveis, chãos... como alguém que não tivesse nada a fazer no Colégio a não ser andar, olhar coisas aqui, ali, mais no alto, para baixo, entrar e sair dos locais sem nenhuma preocupação com um itinerário preconcebido. Olhar o Colégio na matéria visual de que é feito, como se estivéssemos perante quadros de pintura, e captar as imagens como quadros.

Passo inúmeras vezes em frente do Colégio, e minha impressão foi sempre a de estar vendo um pastiche.

Nos anos de 1700, surgiram obras musicais e teatrais feitas de trechos de diferentes autores, de composições diversas. Em sua maioria eram feitas a partir de obras cômicas, como paródias de obras "sérias", que, por sua vez, já haviam modificado textos, personagens, música. Já antes houvera uma moda arquitetônica nos palácios aristocráticos que consistia em ornamentar suas paredes com fragmentos de ruínas romanas, recém-desencavadas, e integrá-los à construção com imitações de estuque. A essas obras teatrais e a esses ornamentos é dado o nome de pastiche. Em italiano se usa a palavra pasticcio, com os sentidos acima, e, dada sua impressão visual insólita, também com o sentido de algo decadente, desordenado, confuso, descuidado.

Todos esses sentidos me fazem ver tanto na cidade, na Avenida Júlio de Mesquita, como no Colégio a expressão de um pastiche. Sei que essa palavra traz algo de pejorativo. Mas, para além desse algo depreciativo, ela é importante para percebermos o movimento da cultura num país colonizado há alguns séculos no qual, de maneira violenta, disfarçada, ou gentil, grupos e pessoas vêm para estas terras se sobrepondo uns aos outros, misturando-se humildemente, arrogantemente, discretamente. Alguns precisam invocar constantemente suas genealogias, talvez para aliviar complexos de inferioridade e exibir um orgulho engraçado, fazendo com que suas nacionalidades europeias ou tradições familiares de um "Brasil antigo" apareçam quase como atributos raciais ou genéticos, atributos de natureza secular, por si legítimos. Ali perto há uma rotisseria que ostenta uma espécie de brasão onde se lê "Fondata em 1996"... Todos os colonizadores que por aqui têm aportado são pastiches genéticos e culturais. Talvez alguns indígenas que moram por aqui, e outros de outros lugares, ainda não o sejam, e as sociedades modernas os isolam e preservam como sementes ancestrais, restos e provas de um homem perdido, o primeiro, o mais puro. Mas que, sintomaticamente, não é aventado como antepassado.

O importante para mim neste texto é interpretar nossas expressões e memórias culturais como pastiches, o que me permitirá ver nossa história presente como sobreposições materiais, temporais, políticas, desordenadas e não como camadas ordenadas de tempo metáfora arqueológica e geológica , nem como engendramento causal e genético de mecanismos inexoráveis metáfora biológica, evolucionista e nazicientífica , nem como expressões temporais de sistemas socioeconômico-políticos metáfora marxista, econômica, liberal ou científica.

Ao assumir o pastiche, ou a visão da História como histórias de aglomerações transitórias e significativas do Caos, o intérprete, se por um lado perde a salvaguarda das instituições, da tradição, das corporações de pensamento, dos conceitos e métodos históricos, ganha a liberdade e as múltiplas possibilidades que as infinitas dimensões temporais lhe oferecem, juntamente com as infinitas expressões materiais e espirituais humanas. O que quer dizer também que a História não tem finalidade, que nós não sabemos ao certo por que existimos, que a História não é um construto metafísico em movimento infinito, um deus em eterna digestão, e que nós não somos suas meras expressões individuais, aguardando sermos subsumidos em alguma generalização. Mas isso aumenta a responsabilidade do intérprete, que conta com sua imaginação e conhecimento, e corre o risco de apresentar uma interpretação verossímil e crível e pode ser acusado justamente de praticar o pastiche... ou seja, oferecer ao leitor uma interpretação que replica em suas estruturas explicativas a própria ideologia que ele critica... não ter o distanciamento onisciente das categorias definidas a priori nas alturas metafísicas, pecar contra os monoteísmos... mas esse é um risco ínfimo, comparado com o que é viver ou andar despreocupado pela cidade...

Filho de engenheiro-arquiteto formado no Mackenzie em São Paulo, nos anos de 1920, desde cedo meu olhar aprendeu a ver construções: desde sua concepção exterior em aquarelas, perspectivas e maquetes que expressavam visualmente e imaginativamente a futura casa, edifício, até seu projeto detalhado, que expunha tecnicamente como tudo aquilo iria se concretizar, se materializar. Durante a construção, eu seguia a magia transmutativa de buracos no chão, alicerces, paredes e coberturas brutas irem se transformando em algo estético, uma forma, um estilo. Seguia o sonho arquitetônico dos seus proprietários que meu pai ajudava a realizar, a se erguer, pouco a pouco, durante meses, por meio da imaginação técnica e das inteligências e dos corpos dos trabalhadores. Via surgir algo aparentemente harmonioso, algo que queria mostrar-se com estilo, uma forma orgânica, coerente. Depois vinham os jardins, um portão... e as pessoas iam admirar o resultado. Recebiam ali uma impressão estética, um fragmento de educação visual, civil e política.

Mas, claro, essas casas, esses edifícios também eram pastiches, talvez sem expressarem claramente seu caos, sua imitação servil e deslocada: houve a moda das casas em estilo mexicano, das que imitavam o estilo mais moderno, californiano, com seus espaços mais amplos, linhas retas, e aquelas que costumamos chamar de "anos 60" com rampas e passagens curvas, detalhes em azulejos coloridos... e tantas outras modas.

Não gostaria de dar a impressão de algum saudosismo, apesar de ele ressoar em mim, ou propor um ideal despropositado de coerência, inconcebível. Afinal, o que é nossa política? Um pouco de Revolução Francesa, um pouco de coronelismo, um pouco de Revolução Burguesa, um pouco de Revolução Russa, um pouco de democracia americana... um pouco de direito romano... um pastiche feito de fragmentos contraditórios.

É interessante notar que o pastiche é feito de fragmentos contraditórios, mas os conflitos internos de cada sua parte não se expõem como contradições, conflitos, luta. Apresentam-se inocentemente como variedade estilística, composição, sobreposição, decoração, restauração, reforma, atualização... Seu potencial de conflito, rejeição, negação permanece em potência, pronto para ser percebido por quem presta nele uma atenção especial, mas não é o que acontece costumeiramente.

A educação visual incessante promovida pelos variados meios visuais, inclusive a própria cidade, as escolas e o viver contemporâneo, há muito tempo retirou dele qualquer potência crítica ou denunciadora. O pastiche não é percebido como tal, ele é a forma visual dominante contemporânea, é o estilo social, corporal, político e material. Tanto expressa vistosamente as pessoas ou os grupos poderosos quanto, frivolamente, o comércio leve; burlescamente bares, boates, restaurantes; a seriedade de escolas e bancos; a assepsia das farmácias e dos hospitais...

Assim, compusemos com as fotos uma sequência retirada do caos visual do Colégio que nos pareceu expressar o movimento de um olhar que se entrega voluntariamente à desordem visual, aos fragmentos de história visíveis, e ao mesmo tempo recobertos pelas constantes reformas e repinturas, em seu ritmo de esconde-revela. Foi criada uma ordem da desordem, uma possibilidade visual de ver um pastiche. Vemos detalhes e enquadramentos, fenômenos visuais da condição material e cultural. Muitas outras ordenações podem ser feitas.

Foi dado às fotos um tratamento estético, como uma tentativa de que elas saíssem de seu lugar degradado e adquirissem alguma dignidade como objeto a ser contemplado, como signos de si próprias, ao mesmo tempo emanações dos tempos e da matéria de onde foram retiradas.

Muito diferente seria um texto escrito, não poético, sobre a história do Colégio. Este iria compor uma ordem, criar uma história inteligível, instituir uma racionalidade, irreal na sua materialidade temporal, e real em seu discurso simbólico: as palavras, a sintaxe. Pasolini lembra-me que fotografar, olhar fotos, obriga a olhar as coisas. Que o olhar de um escritor, literato ou acadêmico, sobre as coisas, pessoas, uma escola, uma rua, uma paisagem, pode excluir uma infinidade de coisas, retirando só aquelas que lhe interessam. Ele diz: "para ele, o escritor, as coisas estão destinadas a se tornar palavras, isto é, símbolos". As palavras no sistema verbal são simbólicas e convencionais. Nas fotos, as coisas continuam sendo coisas: signos de si próprias, representam o real com a imagem do real.

Não se pode traduzir, por exemplo, uma imagem do português para o francês. A linguagem visual do real não se articula em símbolos verbais, orais ou escritos, como as línguas nacionais. Daí ela se confundir com o natural, o universal. O cinema mostra-nos a potência estética e política dessa transmutação. Mas, ao mesmo tempo, devemos lembrar que a imagem fotográfica do real é produto de uma escolha do fotógrafo, um artifício: arte e técnica. E também uma escolha política, que é o caso aqui, neste trabalho.

Se eu fosse, talvez, alguém que escrevesse, ou seja, fosse utilizar os símbolos da linguagem escrita, sobre o Colégio, poderia dar um sentido transformativo, de tempos que iriam se modificando, de adaptações sucessivas a novos clientes, às novas legislações, a novos poderes políticos, a novos interesses, utilizaria conceitos analíticos e categorias, iria dar a ideia de um organismo que evolui, melhor aqui, pior ali, e tem como resultado o Colégio atual. Se ao fundo estivessem os planos educacionais, iria imaginar uma linha de mudanças pedagógicas e políticas, uma certa coerência adaptativa, as pessoas que por lá passaram seriam meros atores, mais ou menos conscientes desse desdobrar temporal. Como na própria sociedade, diretores e coordenadores seriam enfatizados; professores, talvez alguns; funcionários, talvez lembrados por suas excentricidades; e os alunos, bem... seriam o povo. Seria um quadro em perspectiva. Uma articulação lógica e normal, cuja estrutura linguística "objetiva" daria toda a aparência de verdade.

Mas eu não deveria ver o caos pedagógico das diferentes reformas, e dos diferentes professores, da colagem de planos e projetos nunca completados e atropelados pela reforma seguinte. A mudança de orientação e direção, e a constante repintura de conhecimentos e aplicações pedagógicas... Muito diferente, por exemplo, do prospecto ou das informações que uma escola oferece aos seus clientes, que buscam expressar um quadro coerente, um sistema de ensino completo, a proposta de formar um aluno pleno em todas as suas dimensões, um plano educacional para os oito/dez anos que um aluno irá percorrer ali, uma alegoria do presente no futuro.

Como isso iria se realizar em meio àquelas salas reformadas sucessivamente, paredes derrubadas, corredores improvisados, móveis desaparelhados, móveis e objetos de plástico? Por exemplo, os objetos e as cores da parte infantil chocam com a vulgaridade das cores e das formas monstruosas dos brinquedos, iguais aos que se veem em shoppings. Novamente lembro com Pasolini "que a educação que se recebe dos objetos, das coisas, da realidade física dos fenômenos materiais de sua condição social torna alguém corporalmente aquilo que é e será sua carne é educada como forma do seu espírito".

Podemos imaginar uma pessoa, professor, aluno que frequente ali diariamente: como está sendo educado por todo esse caos visível, por aquelas coisas que ensinam por meio de um discurso pedagógico inarticulado, quase invisível?

Mesmo que surgisse ali um colégio todo novo, em cima do terreno arrasado, que estilo teria? Conhecemos essas novas construções, a padronização violenta, que ignora qualquer autenticidade. Tanto a colagem e recolagem incessante do Colégio de que estamos falando quanto essas novas escolas expõem visualmente um sistema babélico, cujo discurso aparece como articulado, lógico, naturalizado e esperado. Sua configuração visual antecipa sua transitoriedade funcional, seu arruinamento subsequente, sua reforma de amanhã, conduzida pela funcionalidade das paredes de material plástico e barato, que podem a qualquer instante compor novos ambientes. Elas são, por exemplo, o símbolo de uma degradação prevista, e revelam o ódio à História. Revelam uma educação para a incerteza em consonância com a incerteza pessoal, econômica, profissional do momento, e a falta de amor aos antigos valores estéticos que deixaram de servir ao poder. As novas-velhas escolas são instituições sem originalidade, indistinguíveis umas das outras. Seu pragmatismo elimina qualquer transcendência, qualquer ideal de educação, todas almejam participar do mesmo e ordinário futuro. Talvez envergonhadas da própria ignorância, desprezem a cultura como um valor ultrapassado, e participam alegremente da cultura de massa, a cultura de caráter tecnológico e pragmático.

Um pastiche em movimento (por Milton José de Almeida)

Ele anda pela Avenida Julio de Mesquita e sente a agressão visual equivalente aos filmes contemporâneos, os populares, comerciais, desses com cenas rápidas e violentas, ou como se estivesse vendo algum canal popular da televisão, sua sucessão picotada de publicidades e anúncios. Cenas, casas e edifícios sucedem-se em sequência visual desconexa, como se cada uma dessas construções fossem palavras soltas, sem verbos ou conjunções que as unissem em alguma frase inteligível. Como se ele escutasse um balbucio linguístico de um povo que tivesse esquecido a gramática e a arte de falar.

Ele vê uma farmácia, outra, uma locadora, um banco, outro, um edifício residencial, um restaurante, o cartório mais recente... uma rua mista de comércio e habitação pessoal. Os comércios tentam cada um chamar a atenção para si próprios numa espécie de exposição autista e neurótica, luminosa e colorida. Os bancos tentam atrair clientes, em casas reformadas que já foram burguesas aproveitam restos arquitetônicos das construções, envidraçam aberturas, e tentam exibir, em cores institucionais e logotipos, a discrição e a seriedade exigidas pelo mercado financeiro. Aproveitam-se da ilusão de antiguidade e dos sinais visuais da vida burguesa: a solidez e riqueza que essas casas outrora expressavam. As farmácias são as mais iluminadas e agressivas, as cores brancas e azuis envolvem os que se sentem mal numa aura luminosa celeste, e seus vendedores em uniformes claros, tons espirituais e hospitalares. As escolas de línguas, sempre mais joviais, trazem uma iluminação empresarial para seus clientes que buscam as línguas estrangeiras necessárias para sua escalada profissional. Seus jardins estão abertos e pavimentados para o entra-e-sai constante de automóveis. Assim também os jardins e as entradas das antigas casas. Antigos jardins são constantemente pisoteados pelos veículos, num perverso soterramento da memória. Ele vê as árvores da avenida, antigas e novas, ainda existentes. São elas que atenuam o cenário, e sugerem uma vaga beleza, para quem pudesse ver a avenida de cima. Embaixo, ele vê troncos sujos, violentados, raízes se espremendo, enterradas. Correm diariamente o risco de ser eliminadas, por tamparem uma placa comercial, impedirem o cômodo estacionamento, sujarem as calçadas. Por terem crescido muito, podem incomodar as entradas dos edifícios residenciais. Ele imagina a avenida sem as árvores, e a vê em toda sua indecência arquitetônica e sujeira visual. Ainda bem que as árvores continuam por ali. Entre elas, ele vê edifícios que se fecham em concreto e outros mais antigos que se abrem em vidraças, estes os mais equilibrados visualmente. Suas linhas retas e janelas retangulares já foram modernas, e oferecem uma certa ordem visual discreta. Mas são poucos, e estão mais perto do conjunto do Centro de Convivência, que os agride constantemente com suas formas pesadas de concreto, e sua forma de animal de pesadelo. Sofrem também com as emanações de feiura e gordura dos bares ali perto. Mas ele vai para o lado oposto da avenida e vê as criações arquitetônicas mais recentes em suas múltiplas variações. Obras de uma espécie de neurose visual e arrivismo social realizam em suas fachadas aquilo que seus arquitetos imaginam ser chique e contemporâneo. Nessa ponta contrária àqueles bares há dois edifícios, por exemplo, em estilo que foi muito em moda alguns anos atrás: o mediterrâneo. E por ser mediterrâneo, é todo branco, o que faz com que destaque toda sua insensatez e desproporção, logo esquecida, pois ele atravessa a esquina e vê a famosa padaria de nome alusivamente mediterrâneo, Riviera, em seu estilo sem estilo, onde outrora fora um armazém antigo, retratado numa pintura pequena que fica dentro da padaria. Vê na outra calçada a farmácia esbranquiçada e luminosa. Mas aqueles edifícios residenciais não têm nenhum estilo, apesar de podermos falar, de maneira comum, que cada um tem um "estilo", como os comércios. Ele pensa que os menos feios talvez sejam os da geração concreto, cinzas e mais discretos.

Esses edifícios e comércios ignoram o que existe em suas laterais e gritam visualmente como se fossem camelôs. Os edifícios residenciais tentam distanciar-se da babel e recuam em pequenos jardins de estilos variados. Deixam à frente, em suas portarias silenciosas, os vigilantes escondidos atrás de vidros escuros. É uma avenida que tem muito medo, só não o tem da sua feiura. Seus dias são convulsos, como a própria instabilidade social, cada dia um negócio muda de atividade, a fachada é derrubada, e dias depois surge uma nova expressão visual da imaginação comercial.

Bem, tudo isso ele pode ver por toda a cidade. O pastiche visual esparrama-se por todo lado. Não se sabe se por ignorância, ou por ter-se perdido qualquer ideia de beleza.

Mas também podemos pensar que aqui temos uma visão privilegiada da passagem entrópica do tempo. Alterações que poderiam levar anos, e até séculos, passam por nosso olhar em algumas horas, poucos dias. Talvez aí temos um posto avançado para ver a História em seu transcorrer sem destino.

Fotografias e memórias (por Alan Victor Pimenta)

Vemos fotos por toda parte, como todo mundo hoje em dia. Elas vêm do mundo a nós sem que peçamos. Andamos na rua conduzidos por elas, passeamos por histórias ilustradas, reproduzimos as mesmas histórias aos filhos antes de dormir, confirmamos a tese de um jornalista avaliando com cuidado a "prova visual" que legitima a matéria de um jornal ou uma revista. Estamos, de um modo ou de outro, ligados a essa forma visual de comunicação. Seja pelos mais simples sinais de trânsito, grandes cartazes comerciais, seja pela atração poética das belas obras de arte, ou pelos álbuns de retratos familiares.

A fotografia é usada em larga escala, como forma retórica de convencer os outros de uma análise própria, como senso estético, ou, ainda, um rito particular de guardar nossas lembranças preciosas. Seja qual for a função que atribuímos a ela o que menos importa , não podemos ignorar sua recorrência em nós, nem as utilidades conferidas a sua capacidade de informação.

É comum avaliarmos a qualidade de um produto baseando-nos na imagem que a embalagem apresenta dele, calcar nossa vontade de adquirir determinada roupa associando a ela a beleza da modelo que a vestia no outdoor. Esse mecanismo de fazer lembrar por meio da imagem, despertando vontades no espectador, foi profissionalizado e age sobre nós invariavelmente; é só ligar a televisão e atentar à quantidade de impulsos que competem por nossa atenção.

Partindo daí podemos notar que as imagens não nos chegam soltas e desprovidas de sentido. Por mais que não tenhamos aprendido na escola uma fórmula para a leitura das imagens, não é difícil deduzir o que elas querem de nós. Um sentimento de lembrança, uma vontade de consumo, etc. Seja qual for a intenção com a qual tenham sido produzidas, elas sempre poderão ser associadas a uma forma de discurso, pois o conteúdo de uma fotografia está na própria forma que ela sugere, somada aos sentimentos que nos insinua.

Claro que uma foto pode simplesmente não me comunicar nada, não me despertar interesse, não atender aos meus desejos. Isso porque uma imagem não age da mesma forma sobre todas as pessoas, e nem todas têm o mesmo peso sobre nós, sempre há as que desprezamos perante aquelas que nos chamam mais atenção. Algumas são autorizadas a fazer parte de nosso mundo particular, ao passo que outras não correspondem diretamente a nossa pessoalidade.

Talvez o que eu esteja querendo dizer seja simplesmente que os lugares possuem memórias, simples como sua materialidade, e que a fotografia evidencia essas memórias, já que não é difícil revivê-las quando paramos diante de uma foto. Supor a memória contida num sinal de trânsito é imediato, caso contrário não saberíamos distinguir sua função; a memória de um outdoor também é tão rápida quanto a vontade ou o desprezo pelo produto anunciado. Ambos atendem a objetivos claros. Já as nossas imagens prediletas, essas são mais demoradas. Essas quase nos convidam a fechar os olhos e estar dentro delas. Rever todo o lugar, ouvir suas vozes, sentir seus cheiros. Essas guardam pedaços de nós mesmos.

Quando fotografo, tenho o costume de me perder pelos lugares, mais em suas memórias possíveis que em sua forma concreta. Imantá-los com os personagens que me sugerem e narrar visualmente uma história possível que, ao mesmo tempo, seja um registro e uma marca do meu próprio trabalho imaginativo. É curioso como as paredes ganham vozes, os cantos de concreto, móveis marcados pelo uso, tudo é passível de movimentar imagens internas e se transformar num cenário para nossos personagens.

A fotografia por si não conta uma história, mas deixa-nos a liberdade de imaginá-la. Diante de uma fotografia, o espectador pode fazer sua própria viagem. Pelo mesmo motivo uma fotografia nunca permanece a mesma, está em constante transformação. Se minhas fotos conferem ao espectador o poder de interpretá-las, de mesclá-las a suas lembranças e narrar suas próprias histórias, conferindo à imagem um sentido pessoal, prefiro não dizer nada sobre elas. Apenas deixá-las à mostra para que o olhar do outro lhes insufle vida. Daí o meu não dizer nada fica como um dizer muitas coisas, só que em silêncio.

Sejam fotos de caráter documental, realista, ficcional ou poético, tudo é uma grande história que contamos. A arte consiste em contá-la de modo que envolva o espectador no sentido de criar junto delas. Isso me faz lembrar as palavras de Kiarostami, cineasta iraniano, quando diz que "se uma parte é documentário e outra parte é reconstituição, isso diz respeito ao método de trabalho, não ao público. O mais importante é alinhar uma série de mentiras de modo a alcançar uma verdade maior. Mentiras irreais, mas de algum modo verdadeiras". A fotografia é um ato simbólico e convencional, quer a carreguemos com características de realismo, quer a desenvolvamos num plano mais poético, ela não se confunde com o que é fotografado, cabendo somente ao espectador uni-los. A foto não tem planos tridimensionais, nela não há sons, cheiro. Logo, o momento que distingue o clique da câmera traz o objeto da foto para um plano contemplativo e seu caráter virtual de realismo ou poesia é conferido pelo observador, não pela foto.

É por isso que podemos falar numa educação visual. A televisão, as imagens publicitárias e todo o arsenal imagético de cunho comercial traduzem histórias com o objetivo de tornar o que é visto o mais claro possível, de forma que não consigamos nos colocar. Oferecem modelos de consumo como algo literal e obrigatório, não como um exemplo entre vários possíveis. Nesse emaranhado de coisas não temos tempo para pensar sobre a imagem e o que ela nos oferece. Modelos de vida são transformados em padrões e metáforas ganham literalidade de mercado, porque somos educados a simplesmente aceitar a imagem como prova indiscutível do real. Daí dizer que as imagens, tanto quanto os lugares, são formas pensadas com uma finalidade que atende aos interesses de uma época e criam uma memória, um modelo social, econômico e político: pedagógico; que nos apontam caminhos possíveis como sendo os únicos a serem tomados, nos educam a viver nos conformes da sociedade cada vez mais unidirecionada.

O Colégio

A ideia de retratar o Colégio Progresso chegou-me de maneira encontrada às minhas últimas expectativas de produção fotográfica. Historiador, não negligenciei os impulsos de sondar os cantos do prédio e me deixar conduzir apenas pela curiosidade e os pequenos espantos que eles suscitam. Deixei-me levar pelos lugares, capturando marcas de tempo que me sugerissem pequenas histórias, como se pudesse enxergar pelos cantos os personagens passados por eles.

Um prédio antigo guarda muitos segredos, pedaços de histórias perdidos em cada corredor, cada escada, cada objeto preservado ao longo de tantas reformas, e que hoje nos parecem sem qualquer função utilitária.

A impressão maior foi a de atravessar várias camadas de memória sobrepostas. Da madeira crua ao cimento queimado num único passo. Da areia à grama sintética. Do colorido extremo aos móveis de tom lavado e pastel. Pequenos trechos com pequenas histórias isoladas que não se comunicam umas com as outras e quase nos impedem de ter uma visão clara do todo, melhor dizendo, de dar imagens a uma narrativa visual que constitua uma história homogênea do Colégio.

Pode ser que isso aconteça em contrapartida à minha vontade de encontrar um único Colégio num prédio que dá espaço a vários. Nesses vários colégios pude encontrar o de Dona Emília, em algumas partes. Em outras, a sucessiva sobreposição material dos discursos específicos de cada um de seus mantenedores, compondo um xadrez de finalidades que vai além da simples sobreposição de estilos das diferentes idades do prédio. Isso porque cada um obedeceu a uma vontade específica, seja ela de cunho pessoal ou determinada pela necessidade de seu tempo: legislação, interesses financeiros, mudanças no corpo político e pedagógico, alterações que produzem outras na forma material, já que a forma é uma plasticidade do conteúdo que a suporta, e ambos não podem estar separados.

Qualquer tentativa de unificar essas partes ocasionaria um estranhamento embaralhado. Cada pedaço de chão, cada móvel moderno com aparência antiga sugere uma ideia diferente, de modo que não é possível compreender com clareza o que cada um daqueles lugares espera de mim.

As fotografias que resultaram entrelaçam-se num jogo de memórias antigas e novas, ou novas revestidas de antigas, como me foram sugeridas pela própria concepção ladrilhada do Colégio.

Recebido em dezembro de 2009 e aprovado em janeiro de 2010.

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    Doutorando no Laboratório de Estudos Audiovisuais (olho), da Faculdade de Educação da unicamp, e professor do ensino fundamental e médio no Colégio Antares.
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Ago 2010
    • Data do Fascículo
      Jun 2010

    Histórico

    • Aceito
      Jan 2010
    • Recebido
      Dez 2009
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