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EDITORIAL

Mais uma edição, a quarta, do Seminário de Educação Brasileira (SEB) acaba de ser realizada em Campinas, na Unicamp, nos dias 20 a 22 de fevereiro de 2013. Ressalta-se que este acontecimento está acoplado à Conae 2014 como Conferência Livre (ver www.conae2014.mec.gov.br). A temática esteve muito adequada aos grandes desafios contemporâneos à educação brasileira: focada no PNE com temas candentes - alguns ali apenas esboçados -, que foram aprofundados no evento, a partir da concepção do Estado brasileiro de direitos, da responsabilização na educação, dos regimes de colaboração e da estrutura (em construção) de um sistema nacional da educação e seu conteúdo. A programação do Seminário em torno dessa problematização desdobrou-se em três conferências magistrais, um colóquio, seis simpósios, seis mesas redondas, cinco sessões temáticas, comunicações distribuídas em nove eixos, contando com a participação de pesquisadores nacionais e internacionais do campo da Educação e das Ciências Sociais e Políticas. O Seminário Brasileiro de Educação vem se afirmando historicamente como um evento qualificado para pesquisadores e estudiosos do campo da educação e sociedade e da gestão educacional, contando, inclusive, com ampla participação de professores da rede pública de educação básica.

Os textos serão publicados na revista Educação & Sociedade e num E-Book a ser disponibilizado, oportunamente, no site do Cedes.

As intervenções do IV SEB, de uma maneira geral, apontaram para os evidentes limites das políticas educacionais brasileiras, incapazes de assegurar ensino de qualidade às crianças e jovens do país, bem como de atender às demandas de vagas, em especial na educação infantil, no ensino técnico-profissional e na educação superior, e deixaram manifesto o absenteísmo do poder público. A responsabilização do Estado pela garantia do direito à educação de qualidade assume dramática urgência. No Brasil, à questão da evolução das políticas de responsabilização associa-se uma importante discussão sobre formas de responsabilizar quem ou o quê. Não se trata de retirar a responsabilidade de entes federados, gestores e profissionais da educação sobre os processos e resultados escolares. Cabe discutir, contudo, a natureza e as características presentes nas formas de responsabilização adotadas: serão de recorte autoritário e gerencialista, ou participativo e democrático?

As políticas gerencialistas de caráter autoritário, em muitos dos locais onde foram implantadas, têm enfatizado o uso de uma pretensa meritocracia como ferramenta de conformação da educação e da escola a padrões determinados externamente, bem como a geração de novas formas de privatização. Estas podem ser baseadas tanto na transferência de recursos públicos para a iniciativa privada, para que esta "gerencie" a educação pública, quanto na privatização da gestão das redes públicas, pela adoção de assessorias privadas, muitas vezes acopladas a sistemas privados de avaliação de desempenho das escolas. Tais processos coincidem com a introdução de medidas de "responsabilização" direcionadas aos profissionais da educação (gestores escolares e professores), materializadas sob o argumento de melhorar a qualidade da educação nas escolas públicas. Têm sido adotadas estratégias de incentivo - a exemplo dos bônus - que, sob o pretexto de induzir à melhoria da qualidade educacional, estimulam a competitividade entre docentes e escolas e limitam a qualidade ao cumprimento de metas de desempenho de seus alunos.

Esta concepção alinha-se com a compreensão de que o problema da qualidade das escolas públicas brasileiras decorre de uma gestão ineficaz, que não está focada na obtenção de resultados educacionais, medidos através do desempenho dos alunos em testes padronizados, tampouco seja decorrente do resultado do acesso, permanência e aprendizagem dos alunos. Dentro desta lógica, o setor privado é tomado como exemplo de eficiência e melhor razão de custos/benefícios. Por outro lado, são pouco divulgadas pela mídia as políticas baseadas em responsabilização participativa e democrática, por meio do investimento no crescimento e no fortalecimento da escola, que tenham como foco o "pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho" (art. 205 da CRFB), e do trabalho qualificado dos profissionais da educação, assim como o fortalecimento do papel dos pais e alunos na avaliação da qualidade do ensino.

Outra dimensão que norteou as discussões do IV SEB referiu-se ao entendimento do Estado brasileiro. Diferentemente dos Estados da Europa, no Brasil não ocorreu a consolidação do Estado de bem-estar social. A Constituição de 1988 caminhou na pretensão da construção de um Estado que garantisse a efetivação dos direitos sociais. Contudo, esses direitos mal se insinuam na vida do país, considerando que uma parte significativa da população brasileira continua na condição de não sujeito de direitos. Que processos acontecem no país que dificultam a construção de um Estado de direito, no patamar já atingido por outros países com níveis equivalentes de riqueza? Como se coloca nesse cenário o desafio de se entender os fundamentos do conceito de regime de "colaboração", considerando um país onde as desigualdades sociopolíticas e econômicas são como marcas de origem de sua herança colonial? Como construir um regime de colaboração em um cenário de desigualdades de poderes em que entes federados possuem poderes tão diferentes, tão desiguais? Como garantir igualdades de direitos em um sistema no qual o poder dos atores é tão assimétrico? Caminha o Estado brasileiro na direção do fortalecimento dos direitos políticos e sociais no contexto de uma democracia participativa, tendo por base uma cidadania ativa, ou avança, pelo contrário, para o fortalecimento do controle da coisa pública no interesse do setor privado, sob a égide da regulação? Como pensar a construção de um sistema nacional de educação, tendo por referência uma cultura "cooperativa" entre os entes federados? Na correlação contemporânea de forças, como contribuir para reforçar a esfera pública e a escola pública?

São perguntas para as quais não existem respostas fáceis e imediatas, o que, talvez, explique as possíveis razões que têm travado a clara definição e regulamentação do regime de colaboração entre os entes federados, cujas relações têm assumido um caráter mais competitivo do que cooperativo, no que se refere tanto à proposição como à viabilização de políticas nacionais em diferentes áreas, entre elas a educacional. São perguntas que remetem, para além da temática em foco, para a questão central, ou seja, a necessidade de recolocar em debate a natureza do Estado brasileiro que permeou a calorosa discussão das perguntas elencadas no IV SEB.

Cabem comentários sobre o caráter propositivo que marcou as diferentes sessões do evento. Boa parte dos palestrantes e conferencistas, bem como dos participantes, trouxe a preocupação de, a partir das exposições e debates, levantar propostas concretas de políticas educacionais, tendo em vista o momento atual em que é elaborado no Congresso Nacional mais um Plano Nacional de Educação e a proximidade da realização da Conae 2014. Dentre as proposições levantadas, destacam-se aqui algumas sínteses:

• Garantia de aprovação do PNE ainda em 2013 e que o Senado Federal recupere no texto final os princípios do documento da Conae 2010;

• que o MEC incorpore efetivamente, em suas ações e planos, as deliberações que vierem a ser tomadas pela Conae 2014, o que não aconteceu no que se refere à proposta de PNE que foi enviada ao Congresso Nacional;

• ampliação imediata dos recursos para a educação, garantindo-se a aplicação já em 2014 de 7% do PIB de recursos públicos para o ensino público;

• melhorar a qualidade dos indicadores educacionais, incorporando novas dimensões ligadas às condições de oferta e ao processo educacional;

• utilização dos indicadores educacionais com objetivos exclusivamente de diagnóstico para a formulação de políticas públicas, sempre levando em conta o efeito do nível socioeconômico dos alunos no resultado dos testes padronizados;

• Custo Aluno-Qualidade como referência da política de financiamento da educação no Brasil;

• o fortalecimento do estudo dos métodos quantitativos de pesquisa nos cursos da área de Educação, aliados e integrados ao das metodologias qualitativas;

• o desenvolvimento por parte do MEC e do Inep de ferramentas que tornem acessíveis a gestores, pesquisadores e à comunidade em geral as ricas informações constantes nas bases de dados nacionais;

• a elaboração democrática de uma lei nacional que institua diretrizes e parâmetros comuns para a produção de planos de cargos, carreira e remuneração dos profissionais da educação básica pública, tendo como referência a efetivação do Piso Salarial Profissional Nacional (PSPN), Lei n. 11.738, de 16 de julho de 2008, e a instituição de condições para valorização dos educadores, contemplando nas carreiras a formação, a remuneração e as condições de trabalho e tendo em vista a realização de uma educação de qualidade para o país;

• articular movimentos para pressionar os organismos educacionais responsáveis por programas e políticas referidas à valorização dos educadores, no que tange a formação e carreira;

• a recomendação de amplo debate, na academia e nos movimentos sociais, com o Congresso Nacional sobre o Projeto de Lei n. 4.372, de 18/12/2012, referente à criação do Instituto Nacional de Supervisão e Avaliação da Educação Superior (Insaes), preservando em sua formulação e em suas atribuições o caráter público da educação superior;

• a ampliação do debate sobre as diferentes concepções de responsabilidade educacional em discussão no Congresso Nacional, com o propósito de relacioná-lo intrinsecamente ao debate sobre a regulamentação do regime de colaboração interfederativa para a garantia do direito à educação com eliminação das profundas desigualdades nas condições de ofertas educativa no Brasil, e de estabelecer diferenças entre concepções de responsabilização social e aquelas decorrentes de avaliação do rendimento escolar por meio de testes padrionizados;

• a necessidade de atuar decididamente sobre o conteúdo da regulamentação em Lei Complementar do artigo 23, da Constituição Federal, apontada como demanda do PNE para os próximos dois anos;

• incidir para que a conformação do SNE não seja matéria de adesão voluntária de estados e municípios, mas norma vinculante e clara para a organização da educação nacional;

• atuar para que os chamados Arranjos de Desenvolvimento da Educação (ADE) não configurem a substitutição institucional dos consórcios públicos instituídos em lei, nem a terceirização dos processos de gestão, planejamento, execução, assessoramento e avaliação da educação básica em âmbito municipal;

• a necessidade de examinar e debater as questões de macrorregulação e suas implicações para a educação;

• a articulação entre movimentos nacionais e locais com o objetivo de ação direta sobre as prefeituras, no que se refere ao atendimento dos direitos à educação, à transparência e disponibilização de recursos públicos para o desenvolvimento da educação;

• levar em consideração as evidências de que tanto a qualidade dos insumos educacionais, quanto as condições socioeconômicas dos alunos impactam consideravelmente o desempenho dos alunos e as avaliações das escolas, quando estas são realizadas considerando-se apenas os resultados das avaliações de larga escala atualmente promovidas no país. Dentro do contexto da avaliação escolar e da possível implementação de políticas de responsabilização na realidade educacional brasileira, é fundamental que esses resultados sejam considerados na definição da medida de avaliação utilizada por essas políticas.

• a "qualidade" do ensino não pode ser medida somente pelo resultado de uma avaliação em larga escala, conclusão decorrente, principalmente, da própria definição de educação de qualidade prescrita na Constituição Federal, e que outras variáveis, como o desenvolvimento da cidadania, por exemplo, também devem ser avaliadas.

• recomenda-se que sejam pesquisadas e propostas medidas de avaliação objetivas que considerem as diferenças de qualidade dos insumos educacionais e das condições socioeconômicas dos alunos no resultado aferido nos exames de larga escala. Assim, poder-se-ia avaliar mais precisamente a contribuição real que cada escola oferece para o resultado dos alunos, evitando comparações inadequadas entre escolas com distintos padrões de infraestrutura.

• privilegiar ações de afirmação territorial como estratégia de superação das desigualdades entre escolas de diferentes regiões do país, de escolas de territórios rurais, urbanos e rurbanos, de escolas de centro e de periferia nos territórios urbanos e rurbanos; de escolas em territórios indígenas e não indígenas do campo, de escolas quilombolas e escolas não quilombolas do campo;

• enfatizar nos processos de reterritorialização a instituição de novos e renovados controles e regras, considerando-se as sociodiversidades dos grupos sociais e culturais específicos;

• tratar os territórios educacionais como esfera pública, na perspectiva de relações democráticas nas ações de ordenamento territorial pelo Estado e pelas comunidades;

• considerar os territórios educacionais na perspectiva dos sujeitos coletivos em suas experiências do existir territorial - culturais, políticas, econômicas e sociais;

• criar mecanismos para mediação e vigilância de conflitos de interesses locais e nacionais na coexistência de diferentes instâncias de poder territorializadas;

• elaborar regras claras que garantam aos territórios educacionais interação articulada entre entes governamentais;

• desenvolver vigilância ética nos rituais que configuram as práticas de governança dos diferentes atores sociais implicados nas práticas de ordenamento territorial;

• avaliar sistematicamente as práticas de ordenamento territorial para que não sejam consideradas como panaceia para os problemas relacionados às desigualdades sociais e a produção da diferença cultural na educação, como formas de subalternização de grupos sociais e culturais;

• construir o controle social sobre a educação no país, com a necessidade de qualificar os instrumentos de informação sobre recursos públicos, unificar fontes de informação, de forma que a divulgação de dados seja efetivamente um instrumento de transparência e possibilite estímulo ao debate público sobre prioridades de investimento em educação;

• recomendar que na Conae 2014 a questão da laicidade da educação pública ultrapasse a forma adjetiva da anterior e a considere de forma substantiva, de modo que encaminhe, no documento básico, a necessidade de supressão do Ensino Religioso do artigo 210, parágrafo 1º da Constituição Federal, como imperativo da laicidade do Estado - e, consequentemente, da educação pública -, e que, enquanto isso não ocorrer, sejam tomadas as seguintes providências:

1- que não sejam toleradas nas escolas públicas práticas religiosas, como orações e celebrações, dentro das salas de aula e fora delas;

2- que seja eliminada a obrigatoriedade de fato da disciplina Ensino Religioso, situação prevalescente em parcela significativa das escolas públicas;

3- somente permitir a oferta da disciplina Ensino Religioso nas escolas públicas de ensino fundamental se houver alternativas pedagogicamente significativas disponibilizadas aos alunos no mesmo horário;

4- não permitir a oferta da disciplina Ensino Religioso em outros níveis que não de ensino fundamental, de acordo com a determinação constitucional;

5- não permitir que o Poder Público arque, direta ou indiretamente, com o ônus financeiro dessa disciplina, em atendimento ao disposto no artigo 19 da Constituição Federal, que veda a subvenção a cultos e igrejas;

6- vetar que os docentes de Ensino Religioso sejam representantes de instituições religiosas.

7- garantir que o conteúdo confessional e interconfessional da disciplina Ensino Religioso trate das doutrinas e das práticas religiosas, da história e de dimensões sociais das diferentes religiões, bem como de posições antirreligiosas, sem proselitismo, isto é, sem que os educadores tomem partido;

Ao elencar algumas das proposições do IV SEB, é importante apontar que este é um recorte do que o tempo nos permitiu avançar. Com a próxima etapa, a publicação dos textos apresentados e debatidos, o Cedes estará situando e completando esse passo aqui iniciado.

Dentre as temáticas discutidas nos diferentes espaços do IV SEB, destacam-se, em função de seu caráter inovador, aquelas referentes à "Laicidade do Estado e Sistema Nacional de Educação" e "Desigualdades, Sistema Nacional da Educação e direito à educação como dever do Estado". São abordagens resultantes de pesquisas atuais, em desenvolvimento no campo da Sociologia da Educação. Tais estudos, fortes na França e no Brasil, com base em metodologias diferenciadas, exa minam as desigualdades socioescolares em espaços territoriais urbanos (metrópoles) e rurais, com destaque para o tema das classes sociais e das esferas de governo nacional, estadual e local. Foram apresentados e discutidos resultados de estudos, em espaços territoriais urbanos, sobre as desigualdades de oferta escolar, a partir da investigação da relação entre a segregação residencial e a geografia de oportunidades educacionais.

O Cedes e os Editores Associados da revista chamam a atenção para o PL n. 5.395-D/2009, aprovado na Câmara dos Deputados no dia 12/03/2012, que, entre outras providências, altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996, em seus artigos 62 e 87, que tratam da formação mínima de professores, normatizando a formação de docentes em nível médio. No dia 14/03/2013, o PL foi encaminhado para a sanção presidencial.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Maio 2013
  • Data do Fascículo
    Mar 2013
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