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SOBRE AVÓS, NETOS E CIDADES: ENTRELAÇANDO RELAÇÕES INTERGERACIONAIS E EXPERIÊNCIAS URBANAS NA INFÂNCIA

About grandparents, grandchildren and cities: intergenerational relationships and urban experiences in childhood

A propos des grands-parents, des petits-enfants et des villes: les relations intergénérationnelles et les expériences urbaines de la petite enfance

Resumos

O presente artigo analisa as experiências urbanas das crianças em relação ao convívio com seus avós, buscando compreender três aspectos principais: como as crianças apreendem as distâncias e os seus deslocamentos na cidade e entre cidades quando vão visitar seus avós; de que modo as distâncias geográficas interferem no convívio e na proximidade afetiva entre essas duas gerações e como os netos significam as experiências urbanas vividas na casa dos mais velhos. Por meio de relatos verbais, desenhos, fotografias e representações cartográficas, as crianças nos mostram que as relações entre proximidade geográfica e afetiva são bastante complexas e que a casa dos avós representa um espaço importante de socialização, sendo talhada no convívio pessoal e virtual entre essas duas gerações.

Infância; Cidade; Avós; Netos; Experiências Urbanas


This article analyses the urban experiences of children regarding spending time with their grandparents, trying to understand three main aspects: how children perceive distances and their movement in the city and between cities when they visit their grandparents; how the geographical distances interfere with socializing and with emotional closeness between these two generations, and how grandchildren give meaning to urban experiences lived in their grandparents' home. Through verbal reports, drawings, photographs and cartographic representations, children show us that the relationships between geographic and emotional proximity are quite complex and that their grandparents' home is an important area of socialization, which is shaped by personal and virtual interactions between these two generations.

Childhood; City; Grandparents; Grandchildren; Urban Experiences


L'article actuel analyse les expériences urbaines des enfants en ce qui concerne la convivialité avec leurs grands-parents, dans une tentative pour comprendre trois aspects principaux: comment les enfants s'aperçoivent les distances et leur déplacement dans la ville et entre les villes quand ils rendent visite à leurs grands-parents; comment les distances géographiques interfèrent avec la convivialité et la proximité affective entre ces deux générations et comment les petits-enfants donnent un sens à des expériences urbaines vécues dans la maison de leurs grands-parents. Grâce aux rapports verbaux, dessins, photographies et représentations cartographiques, les enfants nous montrent que les relations entre la proximité géographique et affective sont très complexes et que la maison de leurs grands-parents est un espace important de socialisation, qui est formé par l'interaction personnelle et virtuelle entre ces deux générations.

Enfance; Ville; Grands-parents; Petits-enfants; Expériences Urbaines


Falar sobre Infância, Socialização e Cidade implica adentrarmos nos diferentes espaços de circulação das crianças, dando visibilidade às suas experiências de habitar, transitar e modificar o ambiente em que vivem. Como aponta Bronfenbrenner (1979BRONFENBRENNER, U. The ecology of human development: experiments by nature and design. Cambridge: Harvard University Press, 1979.), as experiências socioculturais de meninos e meninas estão diretamente relacionadas aos seus contextos de vida, daí a importância de conhecermos seus tempos e espaços de ação. Para o autor, a relação das crianças com o ambiente é caracterizada pela reciprocidade: ao mesmo tempo em que o modificam são afetadas por ele, em um processo de construção contínua de suas vidas sociais.

Durante a infância um dos espaços de maior circulação das crianças é a casa dos avós: nela os netos despendem grande parte do seu dia a dia, vivenciando experiências significativas de socialização. Quando não estão na escola, é muitas vezes sob o cuidado dos avós que brincam, desenvolvem temas escolares e realizam tarefas. Mais que isso, durante a primeira infância, quando os pais trabalham fora do ambiente doméstico e muitos meninos e meninas não têm acesso a instituições de Educação Infantil, os avós constituem-se como um recurso familiar importante na guarda das crianças, ensinando-lhes as primeiras palavras, as primeiras letras e os primeiros passos. Por isso, os avós não são apenas 'representantes da família' das crianças: eles são figuras centrais, que contribuem diretamente para o seu crescimento e desenvolvimento.

Dados da pesquisa Idosos no Brasil, realizada em 2006 pela Fundação Perseu Abramo em parceria com o Serviço Social do Comércio (Sesc) Nacional e o Sesc de São Paulo, apontam que 50% das mulheres entrevistadas, com idades igual ou superior a 60 anos, cuidavam de seus netos regularmente, enquanto 20% afirmaram inclusive tê-los criado. (ALVES, 2007) O suporte fornecido pelos avós nas redes de amparo familiar também é significativo em outros contextos sociais, evidenciando que eles não apenas 'complementam', mas muitas vezes 'substituem' a provisão de cuidado do Estado. (TIMONEN; ARBER, 2012TIMONEN, V.; ARBER, S. A new look at grandparenting. In:; TIMONEN, V. ARBER, S. (Orgs.). Contemporary grandparenting: changing family relationships in global contexts. Bristol: The Policy Press, 2012. p.1-26.) A pesquisa SHARE (Survey of Health, Ageing and Retirement in Europe), feita na Europa no mesmo ano de 2006, mostrou que 1/3 das pessoas entrevistadas com 65 anos ou mais ajudava os filhos no cuidado dos netos, empregando, em média, 4,6 horas por dia nessa atividade.

Os momentos de guarda, assim como as férias escolares e as reuniões familiares normalmente acontecem no domicílio dos mais velhos, o que faz com que este ambiente ocupe uma posição singular no cotidiano dos netos. É por isso que "[...] nas evocações dos adultos, a casa dos avós é sempre um rico lugar de memória". (ATTIAS-DONFUT; SEGALEN, 2001ATTIAS-DONFUT, C.; SEGALEN, M. Les habits neufs des grands parents. In: _______. (Org.). Le siècle des Grands-parents: une génération phare, ici et ailleurs. Paris: Autrement, 2001. p. 18-31., p. 22) Todavia, olhar para essa casa e para as lembranças que ela nos traz quando adultos é diferente de olhar para ela quando ainda somos crianças. Enquanto os depoimentos dos adultos são relatos acerca da infância, nos quais revisitam suas histórias para resgatar acontecimentos marcantes de seus primeiros anos de vida, as crianças elaboram relatos da infância, falando de suas vivências mais imediatas. (CHRISTENSEN; JAMES, 2008CHRISTENSEN, P.; JAMES, A. Introduction: Researching Children and Childhood Cultures of Communication. In: _______. (Org.). Research with children: perspectives and practices. 2. ed. New York: Routledge, 2008. p.1-9.) Nesse caso, elas são autoras contemporâneas de suas próprias biografias: traduzem as experiências de 'ser criança' pelos sentidos que lhes dão enquanto sujeitos dessa categoria geracional.

O presente artigo analisa as experiências urbanas das crianças em relação ao convívio com seus avós, buscando compreender três aspectos principais: [1] como as crianças apreendem as distâncias e os seus deslocamentos na cidade e entre cidades quando vão visitar seus avós; [2] de que modo as distâncias geográficas interferem no convívio e na proximidade afetiva entre essas duas gerações e [3] como os netos significam as experiências urbanas vividas na casa dos mais velhos. Para tanto, parte do relato de 36 meninos e meninas, com idades entre sete e dez anos, pertencentes à classe média da cidade de Porto Alegre, na região sul do Brasil 1 1 O presente artigo é parte de uma pesquisa maior, que buscou analisar as relações das crianças com seus avós em diferentes contextos familiares. A distância geográfica e o modo como essas duas gerações mantêm contato em curtas ou longas distâncias são fatores fundamentais para se entender as relações entre avós e netos.

As crianças participaram desta pesquisa por meio de técnicas mistas de entrevista (GRAUE; WALSH, 2003GRAUE, E.; WALSH, D. Investigação etnográfica com crianças: teorias, métodos e ética. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003.; O'KANE, 2008O'KANE, C. The Development of Participatory Techniques: Facilitating Children's Views about Decisions Which Affect Them. In:; CHRISTENSEN, P. JAMES, A. (Org.). Research with children: perspectives and practices. 2. ed. New York: Routledge, 2008. p. 125-155.; SCOTT, 2008SCOTT, J. Children as Respondents: the Challenge for Quantitative Methods. In:; CHRISTENSEN, P. JAMES, A. (Org.). Research with children: perspectives and practices. 2. ed. New York: Routledge, 2008. p. 87-108.), pautadas não somente em suas expressões verbais, mas em suas produções escritas, representações cartográficas, fotografias e desenhos. As entrevistas foram feitas ao longo de seis encontros e sempre com três crianças de cada vez. Oriundas de famílias nucleares (que viviam com o pai e a mãe na mesma casa), monoparentais (que viviam com apenas um dos genitores), reconstituídas (que viviam na presença do padrasto ou da madrasta) e conviventes (que viviam com ao menos um dos avós na mesma residência). As crianças entrevistadas possuíam não apenas avós biológicos, como avós sociais, com os quais nutriam contatos mais ou menos estreitos, dependendo da proximidade afetiva, da distância geográfica e do próprio contexto familiar em que viviam.

Inserido no campo teórico-metodólogico da sociologia da infância, este estudo compreende as crianças como sujeitos ativos na construção de suas vidas sociais. (JAMES; JENKS; PROUT, 2007JAMES, A.; JENKS, C.; PROUT, A. Theorizing Childhood. 7. ed. Cambrigde: Polity, 2007.; QVORTRUP, 1993QVORTRUP, J. Societal position of childhood: the International project Childhood as a Social Phenomenon. Childhood, Norway, v. 1, p. 119-124, 1993., 1994; CORSARO, 1997CORSARO, W. The Sociology of Childhood. 2. ed. Thousand Oaks, CA: Pine Forge, 1997.; SARMENTO, 2005SARMENTO, M. J. Gerações e alteridade: interrogações a partir da sociologia da infância. Educação & Sociedade, Campinas, n. 91, v. 26, p. 361-378, mai.-ago., 2005.) Nesse sentido, difere-se das concepções pré-sociológicas da infância e dos modelos deterministas e reprodutivistas de socialização, que as percebem como sujeitos frágeis e passivos, socializados pelas gerações mais velhas num processo vertical de transmissão e internalização da cultura. As crianças são vistas aqui como atores sociais plenos, capazes de exprimir perspectivas próprias que são relevantes não apenas para os seus cotidianos, como para a sociedade globalmente considerada. (SARMENTO, 2005)

Deslocamentos: a experiência do trajeto na cidade e entre cidades

As relações de convívio e cuidado entre avós e netos frequentemente implicam no deslocamento das crianças à casa dos avós. Porém, esse trajeto nem sempre é curto ou rápido. Se algumas vezes as crianças podem "ir a pé" (Gabriella) 2 e "de bicicleta" (Marcelo), "não precisando usar tanto o carro" (Catarina), outras vezes as distâncias podem aumentar e o uso de meios de transporte se faz necessário. O caminho para a casa dos avós é longo quando "o tempo demora e a gente começa a ficar entediado" (Lion), "não tem nada pra gente fazer dentro do carro" (Gabriella), "a gente tem que ficar lá parado esperando" (Luca), "me enjoa" (Érica), "eu tenho que tomar pastilhas" (Natasha) ou "me faz vomitar" (Catarina).

As crianças também entendem a distância entre suas casas e a casa dos avós questionando as pessoas que viajam com elas: "Eu pergunto pro meu vô se vai demorar muito pra chegar" (José), "eu pergunto que horas são e mais ou menos a que horas a gente vai chegar, daí eu sei se vai demorar" (Gabriella), "eu pergunto pro meu vô, que tá dirigindo, ou eu fico toda a hora perguntando 'Tamo chegando? Tamo chegando na tua casa?'" (Yasmin), "eu pergunto pros meus pais, se eles dizem que demora bastante tempo, então eu sei que a gente tá longe e que eu posso dormir" (Alice).

Dormir no caminho é uma referência importante para algumas crianças, principalmente quando se trata de apreender a distância entre cidades: "Eu sei que é longe ir pra casa dos meus avós porque eu durmo no carro e, quando não é, eu sempre fico olhando", diz Alexandra. Quando elas dormem, "o tempo [também] passa mais rápido" (Alexandre); "Quando eu vou pra casa das minhas avós e eu durmo, aí eu nem sinto", explica Luca, "mas quando a gente não consegue dormir, a gente tem que ficar horas e horas. E, putz, a gente ainda não chegou!" (João).

A própria estrada é informativa da distância desse percurso, permitindo que as crianças construam suas noções de tempo e espaço entre cidades: "Quando eu vou pra São Luiz [onde moram seus avós paternos, a 523 km de Porto Alegre], eu sei que é longe porque eu vou vendo, vendo, vendo, vendo e, quando eu vejo, tá tudo bem longe assim", relata Maria. Para Pedro, a explicação está no número de casas e árvores que ele vê passar ao longo do percurso: "Eu vejo passar muita casa e muita árvore. Quando eu vejo passar pouca casa e pouca árvore daí eu sei que é um caminho curto, senão é bem longo", explica o menino. Placas de trânsito, horas de viagem e informações sobre os quilômetros percorridos também são formas importantes de avaliar as distâncias: muitas crianças fazem uso desses elementos para descrever os trajetos que as levam até a casa dos avós: "Eu vou lendo as plaquinhas na rua, daí eu sei que eu tô quase chegando lá!", diz Yasmin. "Pra casa dos meus avós eu sei até os quilômetros! São 65!", exclama Adriana.

Além disso, a dinâmica da viagem sugere a dimensão do deslocamento. Luca sabe que sempre que sua família planeja viajar a Cruz Alta (a 350 km de Porto Alegre) para visitar suas avós é preciso seguir um rito: "Meu pai sai de madrugada pra não pegar trânsito. Recém raiando o sol a gente já tá na estrada". Alex sente a intensidade do percurso pelas paradas: "Quando a gente vai pra casa da minha abuela de carro, a gente não vai direto. Por isso eu também sei que é longe. Daqui até lá são 12 horas de viagem, eu acho. Só que a gente não consegue ir, daí a gente dorme num hotel antes".

Representando distâncias geográficas e afetivas

No papel, a percepção de um trajeto que é "bem rapidinho" (Érica) ou de um "que demora demais" (Carol) foi demonstrada pelas crianças por meio da relação entre representações de casas e percursos. Diante de uma folha tamanho A3 (297mm de altura e 420mm de largura), foi proposto que elas fixassem miniaturas de casas e edifícios para representar tanto a sua residência, como a de seus avós, distribuindo-as conforme a distância que pressupunham existir entre elas. Para cada moradia, elas escreviam o nome dos avós que lá habitavam e o lugar correspondente: no caso, a indicação do bairro (quando em Porto Alegre) ou da cidade.

Figura 1
Miniaturas de casas e edifícios em borracha EVA utilizadas pelas crianças para comporem suas cartografias

A segunda proposição era que elas traçassem um caminho entre as respectivas casas, de acordo com a noção de distância e o meio de transporte utilizado. Providas de miniaturas em borracha EVA representando pés, bicicletas, carros, ônibus e aviões, elas precisavam encontrar uma forma de comunicar se aquele deslocamento era longo ou curto, indicando com flechas a direção de quem vai à casa de quem:

---> quando são os netos que vão à casa dos avós; <--- quando são os avós que vão à casa dos netos e <--> quando ambos se deslocam.

O caminho era desenhado com a mesma cor do meio de transporte utilizado, facilitando a visualização; percursos longos normalmente assumiam a forma de muitas voltas e curvas, ao passo que percursos menores ganhavam pequenas linhas. No exemplo abaixo, podemos observar como Alexandre representa [1] o trajeto que o leva à casa da avó paterna e [2] o que o leva à casa da avó materna: o primeiro, bastante curto, ele costuma fazer a pé ou de carro; já o segundo, identificado pelo tortuoso caminho e pela polaridade das miniaturas de edifícios na folha de papel, ele realiza de ônibus ou de carro.

A repetição desses percursos e o uso variado de meios de transporte possibilitam que as crianças construam novas relações com o tempo e o espaço. Assim, José representa o caminho que o leva à casa de sua avó materna [casa no canto superior direito da folha], em Brasília, a cerca de 2.200km de distância de sua residência, muito mais curto do que aquele que o leva à casa de seu avô materno [edifício no centro da folha], a apenas 290km: "é que o ônibus para demais", escreve em sua cartografia. Como ele costuma ir à casa de sua avó materna de avião, o tempo despendido no trajeto é muito mais curto e menos tortuoso do que o tempo necessário para levá-lo à casa do avô: "pra ir pra casa do meu avô a gente tem que dar muitas voltas", explica o menino.

Figura 2
Cartografia de Alexandre, mostrando a distribuição das residências e a representação de trajetos longos e curtos

Em um segundo momento, após essa atividade, as crianças eram convidadas a traçar, com uma canetinha hidrocor preta, de acordo com os códigos da Figura 4 uma linha entre a casa delas e a casa dos avós, buscando representar a intensidade desse convívio. Na sequência, preenchiam uma tabela com outras formas de contato que estabeleciam com seus avós, para as quais pintavam 'um quadradinho' para pouco, 'dois' para médio e 'três' para muito, avaliando, de acordo com seus próprios critérios, o tipo e a intensidade do contato estabelecido.

Figura 3
Fragmento cartográfico de José, mostrando as suas experiências de tempo e espaço no uso do carro e do avião

Por fim, elas eram convidadas a mensurar a afetividade dessa relação, indicando o quanto se sentiam próximas de seus avós (no sentido de saberem um sobre a vida do outro, nutrirem uma amizade, terem cumplicidade, entre outros) e o quanto gostavam deles, seguindo a mesma combinação de preenchimento da tabela: um (pouco), dois (médio) e três (muito). Neste momento, muitas crianças quiseram diferenciar o avô da avó, o que evidencia um importante recorte de gênero nas relações intergeracionais.

Figura 4
Código do contato estabelecido entre avós e netos

Figura 5
Código das relações afetivas entre avós e netos

A observação dessas cartografias, portanto, permite visualizar, a partir da percepção das crianças, não apenas a distância geográfica entre a casa dos avós e a dos netos, como a intensidade do contato, a afetividade existente e as formas de comunicação utilizadas por eles.

Crianças, avós e cidades: relações geográficas e afetivas

A distância geográfica tem seu principal impacto na periodicidade do contato pessoal. No gráfico 1, é possível aferir a distância geográfica existente entre a residência das crianças que participaram da pesquisa e a residência de seus avós não-conviventes 3 3 Das 36 crianças que participaram desta pesquisa, nove moravam com seus avós, não sendo incluídas neste gráfico. O eixo das ordenadas (y) indica o número de residências dos avós e não o número de avós. O eixo das abscissas (x) indica onde os avós moram em relação aos netos entrevistados. . Um número expressivo de avós mora na mesma cidade que seus netos (40 das 68 habitações informadas), possibilitando que a maioria deles (25 dos 40) se encontre, em média, ao menos uma vez por semana. Contudo, o número de avós que reside em outras cidades também é representativo (28 das 68 habitações informadas) e, para esses, o contato se dá preferencialmente nas férias escolares.

Quando os avós moram na mesma cidade, existe uma forte probabilidade que eles sejam avós cuidadores, ficando com os netos enquanto os pais trabalham ou durante os finais de semana. Nesses casos, o cotidiano das crianças pode ser bastante dinâmico, sendo caracterizado pelo contínuo deslocamento pela cidade, principalmente quando os pais são divorciados e as crianças se dividem entre a casa do pai, a da mãe e a dos avós paternos e maternos. Esse é o caso de Diego, que vive sob a guarda compartilhada do pai e da mãe, sendo cuidado por suas avós:

Diego - Eu fico dois dias da semana com a minha mãe, dois dias com o meu pai e um final de semana com cada um. Na minha vó paterna eu vou todas as terças e quintas porque eu estudo de manhã e aí eu almoço lá. Na minha vó materna eu vou sempre que eu estou na minha mãe.

Gráfico 1
Distância residencial entre a casa dos netos e a cada dos avós versus intensidade do contato pessoal

No fragmento cartográfico da Figura 6, podemos observar que o contato de Diego com ambos os lados é bastante intenso (representado pelo traço mais espesso). Como a mãe e a avó moram no mesmo prédio, ele visita a avó materna sempre que vai à casa da mãe. No caso dos avós paternos, "tem dias que [ele vai] da casa do pai e tem dias que [ele vai] da casa da mãe", deslocando-se por diferentes bairros de Porto Alegre.

A proximidade física possibilita as relações de cuidado entre gerações, bem como o fortalecimento de vínculos afetivos. Mas ela não é, necessariamente, sinônimo de afinidade ou comprometimento. Alguns avós podem viver fisicamente próximos e afetivamente distantes de seus netos, enquanto outros podem estar sentimentalmente próximos e geograficamente distantes. (PEIXOTO, 2000PEIXOTO, C. E. Avós e netos na França e no Brasil: a individualização das transmissões afetivas materiais. In: _______ et al. (Org.). Família e individualização. Rio de Janeiro: FGV, 2000, p. 95-111. ) É o caso de Baiano, que decide não pintar nenhum coração para seus avós sociais, a quem ele vê "quase todos os dias" (observemos que ele se desloca a pé até a casa deles), por não se sentir afetivamente próximo.

Figura 6
Fragmento da representação cartográfica de Diego, mostrando o seu contínuo deslocamento pela cidade de Porto Alegre para estar com seu pai, sua mãe e seus avós

Figura 7
Fragmento cartográfico de Baiano, mostrando que proximidade geográfica não é sinônimo de proximidade afetiva

No caso de avós e netos que vivem em cidades diferentes, embora o encontro aconteça preferencialmente durante as férias escolares, ele tende a ser condensado, fazendo com que muitas crianças passem mais de um mês na casa de seus avós, tendo com eles um tempo qualitativamente importante: "Na casa dos meus avós paternos [a 190 km de Porto Alegre], eu vou nas férias de inverno por uma semana e, nas férias de verão, por um mês, dois meses", explica Marcelo. "Eu vou pra São Paulo nas férias de verão e eu fico lá até acabar as férias", comenta Yasmin. É porque Felipe passa todas as suas férias na casa da avó materna que ele também avalia esse contato pessoal como intenso: "A minha vó [Rita] é a vó de quem eu me sinto mais junto. É que eu sempre vejo ela, eu sempre vou pra lá nas férias. Eu fico nas férias de julho e de janeiro. Então eu vejo ela muito!", explica o menino. Na sua representação cartográfica, podemos observar que é desta avó que Felipe se sente mais próximo e com quem julga ter o contato físico mais intenso [edifício em destaque], mesmo que ela more na região nordeste do País, a cerca de 4.000km de distância da sua casa.

Figura 8
Representação cartografia de Felipe, na qual podemos ver um forte contato com a avó materna

Figura 9
Fragmentos das representações cartográficas de Felipe, Yasmin, Alex e José, nos quais podemos observar um forte uso de tecnologias como forma de comunicação

O mesmo acontece com José, que apesar de ter sua avó materna residindo na capital federal, Brasília, avalia ter com ela um contato físico intenso: "Eu vejo ela em todas as minhas férias e isso é bastante, né?". Quando os laços são fortes e existem outras possibilidades de comunicação, as crianças também conseguem estar na casa de seus avós virtualmente, explorando os espaços urbanos a partir de outras perspectivas e relações com o tempo e o espaço: "Eu sei tudo o que acontece na casa da minha avó: todo o dia eu sei que ela vai lá cuidar da bisavó, ver como ela está, porque eu sei que ela tá ruim. Eu sei quando ela vai pagar as contas no banco, que ela foi no supermercado ou se ela tem visita", explica Felipe. "É que a gente tá toda hora se falando pelo telefone, a gente se manda e-mail, a gente se fala pelo MSN", complementa. Com Yasmin é a mesma coisa: "A minha vó, mesmo morando em São Paulo, ela sabe da vida gente. [...] Ela fica me mandando recadinho pelo Orkut e eu mando de volta pra ela", diz a menina.

Adentrar na casa dos avós virtualmente é uma forma muito utilizada pelas crianças. Analisando os índices de contato de Felipe, José, Yasmin e Alex - cujos avós vivem a pelo menos 700 km de distância -, podemos observar que eles fazem um expressivo uso do telefone, do e-mail e do MSN/Orkut, meios que possibilitam a vivência de uma intimidade à distância (ROSENMAYR; KOCKEIS, 1963ROSENMAYR, L.; KÖCKEIS, E. Propositions for a sociological theory of ageing and the family. International Social Science Journal, Paris, v. 15, p. 410-437, 1963.) e de um novo tipo de relacionamento e suporte entre as gerações. (WILDING, 2006WILDING, R. 'Virtual' intimacies? Families communicating across transnational contexts', Global Networks, New Jersey, v. 6, n. 2, p.125-142, apr. 2006.)

A gente se fala pela webcam e eu também falo bastante pelo telefone!", explica José. "Então a gente também se vê, eu vejo a minha mãe [que mora com a avó, em Brasília], a minha vó, a casa delas..." (José). O mesmo ocorre com Alex, que tem sua avó morando em outro país, no Uruguai: "A gente não se fala tanto pelo telefone, mas pelo MSN é muuuuito". Por telefone, Marcelo fica informado não apenas sobre seus avós, mas sobre o contexto em que vivem: "Por telefone a gente fala bastante. A gente liga às vezes ou eles nos ligam. Aí eu pergunto deles, de como estão os cachorros, o que está acontecendo lá, o que estão fazendo as ovelhas...", explica o menino. Por meio do contato virtual, as crianças elaboram uma nova forma de interação com os avós, com a casa, com a rua, com a vizinhança e com a cidade, que as permite fazer parte daquele espaço a partir de um outro lugar. Mas tecnologias de comunicação não são utilizadas apenas para encurtar simbolicamente as distâncias. O uso do telefone, e-mail, Skype, MSN e redes sociais como Orkut e Facebook também integram o cotidiano de avós e netos que vivem na mesma cidade, explicitando uma nova forma de se relacionar e interagir na contemporaneidade. Os relatos das crianças evidenciam que há, no cotidiano das famílias, essa nova cultura de comunicação. Isso faz com que as crianças tenham acesso a outras formas de imaginar, sentir, pensar e construir sua realidade infantil. Ao fazer uso dessas possibilidades virtuais interativas, os cyberinfantes (DORNELLES, 2005DORNELLES, L. V. Infâncias que nos escapam: da criança na rua à criança cyber. Petrópolis: Vozes, 2005.) têm a possibilidade de se comunicar com seus familiares próximos e distantes, encontrando novas formas de se socializar e de se produzir como sujeitos infantis. Por outro lado, os avós "descobriram que estar por dentro das tecnologias de informação e de comunicação permite o relacionamento com os netos" (PEIXOTO; CLAVAIROLLE, 2005PEIXOTO, C. E.; CLAVAIROLLE, F. Envelhecimento, políticas públicas e novas tecnologias. Rio de Janeiro: FGV, 2005., p. 92), fazendo com que, muitas vezes, as crianças socializem seus avós nesse contexto tecnológico, ensinando-os a mexer no computador, a usar a webcam ou a se comunicar por meio de mensagens escritas.

Quando a distância é muito grande e há dificuldades econômicas, comunicativas ou temporais, resta a vontade de consumar o encontro. Baiano, que não tem nenhum contato com seus avós paternos, vive esse desejo:

Baiano - Toda a família do meu pai mora na Bahia. Eu tenho até uma bisa que mora lá, só que eu nunca fui lá. Nunca deu tempo e, também, porque o meu pai não tem dinheiro pra gente ir. [...] Se eles morassem perto seria mais fácil porque aí eu poderia ir conhecer ela. [...] eu queria muito conhecer ela, eu queria muito ir na casa dela, ir brincar com ela lá.

Por isso, nada como fazer as malas e viver essa experiência pessoalmente: "Quando eu chego lá em Natal é muito bom!", suspira Felipe. Algumas crianças vão até mesmo sozinhas para esse encontro, deslocando-se entre cidades, estados e países: "Agora eu vou pra casa da minha vó de avião e eu vou sozinha", explica Yasmin. "Quando minha mãe não pode ir, daí eu vou sozinho", diz Felipe. "Às vezes acontece... eu já fui sozinho de avião [para o Uruguai] com meu irmão de doze anos", conclui Alex. As crianças mostram como vão constituindo suas aprendizagens de si e do mundo e como essas são possíveis a partir do entendimento de que esses espaços, suas arquiteturas e estradas configuram-se como lugar de ocupação humana e como território para aprendizagem. Segundo Viñao Frago:

A constituição do espaço como lugar [...] é o resultado de sua ocupação pelo ser humano. O espaço se projeta, se vê ou se imagina, o lugar se constrói. [...] Nesse sentido, a instituição, [seja ela a escola, a casa dos pais, dos avós ou, mesmo, as interações que as crianças fazem utilizando as novas tecnologias de comunicação e informação], possibilita que um espaço se torne um lugar. Um lugar específico, com características determinadas, aonde se vai, onde se permanece umas certas horas de certos dias, e de onde se vem. [...] Desse modo é que surge, a partir de uma noção objetiva - a de espaço-lugar -, uma noção subjetiva, uma vivência individual ou grupal, a de espaço-território. (VIÑAO FRAGO, 2005, p. 17)

Figura 10
No desenho de Pedro Henrique, o avião, objeto que, simbolicamente, promove os encontros e os reencontros familiares

Explorando os espaços: a casa dos avós e sua vizinhança

Seja durante a semana, nos feriados ou nas férias, a casa dos avós representa um "espaço privilegiado para a construção e a vivência das relações de amizade, cumplicidade, afeto e brincadeira". (LINS DE BARROS, 1987LINS DE BARROS, M. Autoridade e Afeto: avós, filhos e netos na família brasileira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1987., p. 125) "É um lugar onde moram os pais dos nossos pais ou os pais das nossas mães, que são pessoas muito especiais pra nossa família" (Alexandra), que são "as pessoas que cuidam da gente com muito carinho e amor" (Érica). Por isso, para a maior parte das crianças, a casa dos avós "é um segundo lar" (Baiano): "Eu moro com a minha mãe, mas se acontecer alguma coisa com a minha casa eu tenho a minha segunda casa, que é a casa da minha vó", explica o menino. Alex também compartilha desta opinião: "É uma segunda casa porque se der uma ventania na minha casa, assim, e a gente não tiver mais casa, então a gente tem a casa da minha vó pra ir".

Para muitos meninos e meninas, a casa dos avós é um lugar tão representativo que acaba se tornando uma extensão de suas próprias moradias, fazendo com que os limites domiciliares entre "a casa de seus pais" e "a casa de seus avós" se borrem. Melissa, que mora com a sua mãe, mas passa o dia inteiro na casa dos avós paternos, ficando lá pela manhã, durante o almoço e depois da escola, é um exemplo desse tipo de situação. O fato dela "fazer os temas, fazer tudo e só depois ir pra casa da mãe" faz com que ela se sinta habitante de dois lugares. No fragmento de sua representação cartográfica podemos observar que ela escreveu "eu" nos dois edifícios, mostrando residir na casa da mãe e na casa dos avós paternos contemporaneamente.

Estar na casa dos avós significa estar "onde a gente pode fazer a mesma coisa ou mais coisas ainda do que a gente faz na nossa casa", diz-nos Érica. De fato, os relatos das crianças nos mostram que a casa dos avós se destaca em muitos aspectos: se na casa dos pais, a brincadeira se limita ao quarto (onde geralmente estão autorizadas a fazer 'bagunça'), na casa dos avós a brincadeira se espalha por todos os cômodos, e as regras de comportamento tendem a ser mais flexíveis. Além disso, muitos avós moram em cidades situadas no interior do Rio Grande do Sul 4 4 Vale destacar que o Rio Grande do Sul é caracterizado por paisagens naturais e abriga no seu interior regiões florestais e de campos limpos. Grande parte da criação de bovinos e ovinos do Brasil, bem como de seus derivados, vem da pecuária extensiva do estado. Plantações de arroz, trigo e soja também fazem parte do cenário rio-grandense. ou em residências que ainda conservam grandes pátios e jardins, lugares muito apreciados pelas crianças. Nas cidades do interior ou nas áreas centrais de pequenos vilarejos, os netos podem habitar territórios desconhecidos e experimentar prazeres e aventuras pouco usuais para os que vivem na capital, Porto Alegre. Alexandre conta que adora ir à cidade de sua avó materna, no interior do estado, porque lá pode "ir na praça brincar, ir na farmácia e [até] fazer as compras pra vó sozinho". Ouçamos seu depoimento:

Aqui em Porto Alegre eu não faço isso nunca. Se eu fiz isso foi uma vez só, no mercadinho ao lado da minha casa. Lá na minha vó eu faço isso sempre. Não é que nem aqui em Porto Alegre, que tem que sair se cuidando, com um olho pra cada lado. Lá é muito mais tranquilo! [...] Se eu quero, eu levo 50 pila [reais] no bolso e vou!

Figura 11
Fragmento da representação cartográfica de Melissa. Podemos ver, à direita, a casa dos avós; à esquerda, o edifício no qual ela mora com a sua mãe.

Figura 12
Alexandre brincando na praça da cidadezinha onde mora sua avó materna

João também comenta que, quando visita o avô, sente-se "bem livre" para se aventurar sozinho pela cidade: "A minha mãe lá me diz assim: 'Filho, vai ali no R$1,99!'; 'Filho, vai ali no poço!'; 'Filho, vai ali no teu avô!', daí eu vou... E lá eu posso ir sozinho! Sozinho com o cavalo ou a pé", comenta o menino.

"O mundo em que vivemos hoje é um mundo carregado e perigoso" (GIDDENS, 1991GIDDENS, A. As consequências da modernidade. São Paulo: Unesp, 1991., p.19), permeado pelo medo, símbolo da insegurança e das nossas incertezas. Para Bauman (2006BAUMAN, Z. Medo líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.), os seres humanos vivem uma espécie de medo derivado, que orienta o modo como nos comportamos e transitamos pelo mundo. Esse medo é, nas palavras do sociólogo polonês, "[...] uma estrutura mental estável que pode ser mais bem descrita como o sentimento de ser suscetível ao perigo; uma sensação de insegurança [...] e vulnerabilidade". (BAUMAN, 2006BAUMAN, Z. Medo líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006., p. 7) Podemos pensar que as crianças entrevistadas, habitantes de grandes centros urbanos, conseguem perceber nos lugares interioranos a possibilidade de se aventurar sem medos, vivendo a singular experiência de 'estar só'.

Figura 13
Desenho de Felipe: lugar onde ele costuma passear: "A gente vai no shopping, toma sorvete e fica conversando"

Acostumadas a um tipo de lazer em pequenos centros comerciais ou em grandes shoppings centers (locais onde habitualmente passeiam, fazem compras e vão ao cinema, como revelam as Figuras 13 e 14), essas crianças, ao visitarem seus avós no ambiente rural ou nas pequenas cidades, podem experimentar o frescor da natureza, ter contato com tratores, árvores frutíferas e animais diversos. Nesses contextos, podem viver memoráveis aventuras, fazendo do espaço externo da casa de seus avós um importante lugar de descobertas: "Lá nos meus avós eu posso andar a cavalo, andar no trator do meu vô e, às vezes, até ajudar a fazer o churrasco", explica Marcelo. Érica conta que quando ela vai visitar seus avós paternos, que moram em um sítio a cerca de 40km de Porto Alegre, ela troca os sapatos por um par de tênis e percorre as trilhas entre as árvores: "O meu avô mora num sítio, daí ele gosta de fazer mais coisas de sítio com a gente. [...] A gente faz trilhas na floresta e eu saio de lá toda arranhada!"

Figura 14
Desenho de Alexandre representando o dia em que ele foi passear com seu pai e seus avós no shopping Iguatemi, em Porto Alegre

Betina também interpreta as vivências na casa dos avós [na zona rural do norte do estado, a 407km de Porto Alegre] como uma grande descoberta: "Lá eu levanto bem cedinho, com o galo cantando. Às 6h30min eu já tô acordada! Mas é que lá eu tenho vontade de acordar cedo! Lá tem sol e os passarinhos cantando. Daí eu acordo, vou tomar café da manhã, daí eu me visto com um macacãozinho que tem pra mim e vou trabalhar", conta.

O fato de a casa de seus avós ficar no campo é tão marcante para ela que, ao representar o trajeto de sua casa até a casa dos avós, a menina já assinala as fronteiras entre o urbano e o rural por meio da representação de uma estrada de chão batido e um grande número de árvores que vai aumentando conforme ela se aproxima de seu destino: "Depois que sai da cidade, depois de Campinas, assim, depois disso começa a vir as pedrinhas de paralelepípedo e depois essas pedrinhas de barro, que daí a gente tá chegando na casa dos meus avós", explica.

Figura 15
Representação cartográfica da casa dos avós de Betina, que mostra a saída da área urbana e a entrada na área rural

Figura 16
Betina montada na égua de seu avô

A casa dos avós de Betina fica no "mundo das aventuras": ali "o meu vô me ensina a pegar os ovos das galinhas sem ser picada [...], ali eu ando na [Preciosa], que é a égua do meu vô" e foi ali que "eu fiz uma das coisas mais legais da minha vida: peguei uma maçã da macieira, que é bem alta, sem a minha vó me ajudar" (Figuras 16 e 17).

Figura 17
Betina colhendo maçã na casa dos avós

Alice diz que o seu lugar preferido na casa de sua avó materna, que mora em Porto Alegre, é a sacada: "É que é livre, tem planta e dá pra ver todo o terreno. Como é cheio de plantas, eu adoro ir ali!". Alice tem uma horta particular: "Eu planto cebolinha todo o ano; eu já plantei cravo, plantei cenoura e agora eu plantei alecrim!". A sua avó é uma importante figura nesse processo: "É ela quem me traz a terra, me traz a semente e eu me divirto e aprendo também", explica a menina.

Mas o entorno da casa não é divertido apenas porque os netos podem semear e regar as plantas na companhia dos avós. A natureza também propicia a brincadeira, como subir nas árvores, correr na grama ou brincar com os animais, coisas que muitas vezes as crianças não podem fazer em suas residências. Amanda, por exemplo, trouxe duas fotos da sua primeira infância na laranjeira da casa de seus avós:

Amanda - Esse era o lugar que eu mais gostava na casa deles, eu lembro... eu gostava de aprontar aqui, subir nas árvores que ficavam no jardim. Eu tinha três anos nessa foto e eu tinha medo de fazer isso aqui. Mas eu lembro. Esse era o lugar que eu mais gostava da casa deles.

Figura 18
Foto tirada da sacada da casa da avó, na qual Alice mostra o jardim onde ela se diverte plantando

Figuras 19 e 20
Amanda brincando na laranjeira da casa dos avós maternos

Já Alexandre lembra os momentos de brincadeira com os primos sob uma deliciosa chuva de verão: "Aqui sou eu e os meus primos tomando banho de chuva. [...] Minha vó ficou com o coração na mão!", conta ele.

Figura 21
Alexandre e os primos de férias na casa da avó

Calçadas, gramados, ruas e jardins. Quando as crianças podem correr ao redor da moradia de seus avós, os horizontes imagéticos se ampliam. Como destaca Cunha, viver o entorno da casa significa viver a sua culturalidade, que enreda não só o que ali acontece de imediato, mas "[...] todas as formas lúdicas e simbólicas que a vida [em grupo] propicia". (CUNHA, 2008CUNHA, H. A gente está sempre aprendendo: lembranças pedagógicas, profissionais e familiares de um operário gaúcho negro. 2008. 220f. Tese (doutorado) - Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. 2008., p.77) E como 83% das crianças entrevistadas moram em apartamentos, o exterior da casa dos avós e a vivência das pequenas cidades pode representar, para muitas delas, um espaço de importante socialização e contato com a natureza.

José - Já que eu moro num apartamento, aí não tem pátio pra eu brincar por aí. [...] Não tem quase nada pra fazer. Só os meus brinquedos.

Adriana - Eu fico no computador, como é um apartamento, aí não tem nada pra fazer lá em casa.

Reflexões finais: tempo, espaço e subjetividades infantis

A criança não para de dizer o que faz ou tenta fazer: explora os meios, por trajetos dinâmicos, e traça o mapa correspondente. [...] Os mapas não devem ser compreendidos só em extensão, em relação a um espaço constituído por trajetos. Existem também mapas de intensidade, de densidade, que dizem respeito ao que preenche o espaço, ao que subtende o trajeto. [...] É essa distribuição de afectos [...] que constitui um mapa de intensidade. É sempre uma constelação afetiva. (DELEUZE, 1997, p. 73)

Assim são os mapas das crianças. Mapas que possuem extensões geográficas, traçados, caminhos e percursos, mas que também representam afetividades. Como sugere Deleuze, os mapas mostram trajetos dinâmicos tecidos na intensidade e na densidade das relações, nos modos como avós e netos afetam e são afetados, constituindo o si e o outro reciprocamente. Portanto, "[...] não se trata mais de supor a ação de uma geração sobre outra, [...] mas de considerar que avós e netos se reconstituem e se renovam como sujeitos no desdobrar deste convívio". (OLIVEIRA, 2007OLIVEIRA, P. S. Cultura e co-educação de gerações nas classes populares. In: CONGRESSO INTERNACIONAL CO-EDUCAÇÃO DE GERAÇÕES. 2007, São Paulo. , p. 7)

Ao visitarem seus avós, as crianças constroem percursos, entendem dis-

tâncias, vivenciam longas e curtas viagens, deslocando-se na cidade e entre cidades. Como destaca Malho (2010), as possibilidades de ação das crianças na cidade dependem da sua mobilidade e independência, da viabilidade que elas têm de percorrer distâncias sozinhas e com seus pares, e de brincar em espaços abertos, como nas ruas, nas praças ou na natureza. Nesses deslocamentos, elaboram percepções e representações sobre o ambiente, o que lhes permite criar suas próprias memórias topográficas. A pé, de carro, de bicicleta, ônibus ou avião, sozinhas ou acompanhadas, elas interagem com o espaço e com o outro, buscando o encontro com seus avós. E o tempo dedicado a esse encontro é qualitativamente subjetivo para as crianças, uma vez que elas podem estar geograficamente longe e afetivamente próximas de seus avós, assim como geograficamente próximas e afetivamente distantes. O importante, para os netos, parece estar naquilo que vivenciam com seus avós, no fato de se sentirem amados e estimados pelas gerações mais velhas. Por isso, embora os avós cuidadores estejam geograficamente próximos de seus netos e sejam os avós preferidos das crianças, as predileções também podem vir de longe. (RAMOS, 2011RAMOS, A. C. Meus avós e eu: as relações intergeracionais entre avós e netos na perspectiva das crianças. Porto Alegre: UFRGS, 2011. 463f. Tese (Doutorado em Educação). Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011.)

Com a relativa democratização dos custos dos transportes e o maior acesso ao uso de telefones, e-mails, webcams e sistemas eletrônicos de comunicação, avós e netos têm descoberto importantes formas de cuidar e conviver à distância. (WILDING, 2006WILDING, R. 'Virtual' intimacies? Families communicating across transnational contexts', Global Networks, New Jersey, v. 6, n. 2, p.125-142, apr. 2006.) Nessas circunstâncias, ambos podem ocupar o tempo e o espaço a partir de uma nova perspectiva de ação, estando aqui e ao mesmo tempo. Por isso, ainda que alguns netos só consigam visitar seus avós nas férias, muitos têm a oportunidade de manter uma intimidade à distância (ROSENMAYR; KOCKEIS, 1963ROSENMAYR, L.; KÖCKEIS, E. Propositions for a sociological theory of ageing and the family. International Social Science Journal, Paris, v. 15, p. 410-437, 1963.); e a condensação do período de férias na casa dos avós também mostra que a frequência e a intensidade do contato são, para as crianças, aspectos relativos.

Figura 22
Desenho de João. O cheiro da casa de seu avô: "Mato quando está chovendo (campo molhado)"

A investigação também permitiu perceber que a vivência na casa dos avós se potencializa quando o ambiente é distinto daquele geralmente frequentados pelos netos, como apartamentos, condomínios fechados e shopping centers. É quando a infância "indoor" (KARSTEN, 2005KARSTEN, L. It all used to be better? Different generations on continuity and change in urban children's daily use of space. Children's Geographies, Oxon, v. 3, n. 3, p. 275-290, dez., 2005.) abre as portas para novas experiências vividas no "espaço-território" (VIÑAO FRAGO, 2005VIÑAO FRAGO, A. Espaços, usos e funções: a localização e disposição física da direção escolar na escola graduada. In: BENCOSTA, M. L. A. (Org.). História da educação, arquitetura e espaço escolar. São Paulo: Cortez, 2005. p. 15-47.) dos avós, fazendo deste um rico lugar de socialização para os netos. "Pra mim, quando eu lembro da casa da minha vó lá de Cruz Alta, eu lembro do cheiro do campo, que é do interior onde ela mora, bem no interior. Eu lembro do cheiro do esterco, da grama, cheiro de bicho", conta Luca. Já para Betina, é o "cheirinho da terra, da grama, de quando a chuva chegava...", o cheiro da "terra molhada, do mato molhado" (Alexandre) que a cidade, rodeada por grandes construções, avenidas e concretos, já não pode mais oferecer. "O cheiro do campo! Como é bom o cheiro do campo!", lembra João. "Quando chove, então, daí é que é bom! Mas mesmo quando não chove... É que a gente chega lá e tem ar puro, tu pode respirar, mesmo quando teu nariz tá trancado, ele se destranca e tu pode respirar o ar de lá!", explica o menino. O aroma da terra, do mato e dos bichos, tão simbólico para essas crianças, não habita apenas a casa de seus avós; ele também fez morada em suas lembranças, constituindo as suas experiências urbanas na infância.

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  • WILDING, R. 'Virtual' intimacies? Families communicating across transnational contexts', Global Networks, New Jersey, v. 6, n. 2, p.125-142, apr. 2006.
  • 1
    O presente artigo é parte de uma pesquisa maior, que buscou analisar as relações das crianças com seus avós em diferentes contextos familiares. A distância geográfica e o modo como essas duas gerações mantêm contato em curtas ou longas distâncias são fatores fundamentais para se entender as relações entre avós e netos.
  • 2
    Os nomes das crianças são fictícios e foram escolhidos por elas durante os momentos de entrevista.
  • 3
    Das 36 crianças que participaram desta pesquisa, nove moravam com seus avós, não sendo incluídas neste gráfico. O eixo das ordenadas (y) indica o número de residências dos avós e não o número de avós. O eixo das abscissas (x) indica onde os avós moram em relação aos netos entrevistados.
  • 4
    Vale destacar que o Rio Grande do Sul é caracterizado por paisagens naturais e abriga no seu interior regiões florestais e de campos limpos. Grande parte da criação de bovinos e ovinos do Brasil, bem como de seus derivados, vem da pecuária extensiva do estado. Plantações de arroz, trigo e soja também fazem parte do cenário rio-grandense.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2014

Histórico

  • Recebido
    15 Maio 2014
  • Aceito
    24 Out 2014
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