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REAFIRMAR A DEFESA DO SISTEMA DE CIÊNCIA, TECNOLOGIA E ENSINO SUPERIOR PÚBLICO BRASILEIRO

O ano de 2019 veio confirmar e radicalizar tendências já delineadas no Brasil, resultantes do processo de ruptura democrática e crescente autoritarismo que marca o nosso tempo. Nos campos da educação, da ciência e da tecnologia, veem-se o esvaziamento orçamentário e os riscos de desmonte de todos os sistemas de políticas de Estado paulatinamente construídos ao longo de décadas de trabalho e investimentos públicos. Tudo isso na contramão da legislação e do planejamento público aprovado até 2016, especialmente o Plano Nacional de Educação 2014-2024 (PNE, Lei nº 13.005/2014).

A autonomia das universidades federais e a ciência vêm sendo acintosamente atacadas, em diversas frentes. Em abril, o anúncio de um corte brutal no orçamento das universidades e institutos federais colocou em risco o funcionamento das instituições e impulsionou a Greve Nacional da Educação, em 15 de maio, com grande adesão em todo o país. Tais mobilizações obrigaram o governo Bolsonaro a recuar parcialmente nos cortes, recompondo uma parcela dos orçamentos das instituições e mudando o discurso: trata-se, agora, de um contingenciamento temporário. É fato, entretanto, que o funcionamento das instituições segue ameaçado, já que de 15 a 20% dos recursos previstos na Lei Orçamentária de 2019 continuavam contingenciados até meados de outubro (ANDIFES, 2019aASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS DIRIGENTES DAS INSTITUIÇÕES FEDERAIS DE ENSINO SUPERIOR (ANDIFES). Andifes comenta descontingenciamento parcial de recursos para as universidades federais feito pelo MEC. ANDIFES, 30 set. 2019a. Disponível em: <Disponível em: http://www.andifes.org.br/andifes-comenta-descontingenciamento-parcial-de-recursos-para-as-universidades-federais-feito-pelo-mec/ >. Acesso em: 1º out. 2019.
http://www.andifes.org.br/andifes-coment...
).

Essa ameaça, contudo, não se restringe a 2019, mas tende a permanecer nos próximos anos. A Emenda Constitucional nº° 95/2016 determina uma espécie peculiar de estado de sítio fiscal (PINTO; BIASOTO JUNIOR, 2016PINTO, E. G.; BIASOTO JUNIOR, G. Suspender ou adiar custeio de direitos fundamentais nem deveria ser cogitado. Consultor Jurídico, São Paulo, 3 jul. 2016. Disponível em: <Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-jul-03/adiar-custeio-direitos-fundamentaisnem-deveria-cogitado >. Acesso em: 7 jun. 2018.
https://www.conjur.com.br/2016-jul-03/ad...
), ao estabelecer como limite para as despesas primárias da União Federal, até 2036, as despesas executadas em 2016 atualizadas pela inflação., Assim, modifica-se,inconstitucionalmente, o critério de cálculo dos mínimos obrigatórios a serem aplicados em saúde e educação, ou seja, uma

versão para o orçamento do Estado social e os DESC [Direitos Econômicos, Sociais e Culturais] do estado de sítio propriamente dito e sua prerrogativa de suspender as garantias constitucionais (CF88, arts. 137 e 138), no caso as garantias de piso de financiamento público a tais direitos no âmbito da União, inscritos na CF88 (PINTO; XIMENES, 2018PINTO, E. G.; XIMENES, S. B. Financiamento dos Direitos Sociais na Constituição de 1988: do “pacto assimétrico” ao “estado de sítio fiscal”. Educação e Sociedade, Campinas, v. 39, n. 145, p. 980-1003, dez. 2018. Disponível em: <Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-73302018000400980&lng=pt&nrm=iso >. Acesso em: 1º out. 2019. http://dx.doi.org/10.1590/es0101-73302018209544
http://www.scielo.br/scielo.php?script=s...
, p. 995).

Em função dessa medida e da opção de Bolsonaro por reduzir as despesas com educação pública, o Projeto de Lei Orçamentária Anual de 2020 (PLOA, 2020), encaminhado em agosto ao Congresso, estabelece redução da ordem de 18% nos recursos totais do Ministério da Educação (MEC). Com isso, cortam-se os investimentos na ampliação do acesso, inclusive aquele necessário à conclusão das obras já iniciadas.

Mais grave é o cenário de investimentos em pesquisa: já profundamente afetados em 2019 pelos cortes, que levaram à suspensão de editais em andamento e ao corte de bolsas em implementação, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) têm seus orçamentos reduzidos à metade no PLOA 2020 (BRASIL, 2019aBRASIL. LOA 2020: Projeto de Lei nº 22/2019-CN. Estima a receita e fixa a despesa da União para o exercício financeiro de 2020. 2019a. Disponível em <Disponível em https://www2.camara.leg.br/orcamento-da-uniao/leis-orcamentarias/loa/copy_of_2019/tramitacao/proposta-do-poder-executivo >. Acesso em: 1º out. 2019.
https://www2.camara.leg.br/orcamento-da-...
).

Esse cenário, lamentavelmente, guarda coerência com a repetida e manifesta intenção de Bolsonaro e seu ministro Weintraub de reduzir a autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial das universidades, na medida em que se colocam, mais uma vez, contra a Constituição e a favor da censura. A demissão de Ricardo Galvão do comando do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), em represália à divulgação dos dados alarmantes sobre o desmatamento na Amazônia Legal, uma atribuição ordinária da instituição, é um marco nesse processo, mas não o único. A prática de nomear reitores não escolhidos pelas comunidades universitárias se dissemina. ­Chegou-se ao cúmulo de indicar à reitoria um candidato que obteve somente 4,6% dos votos na consulta pública a estudantes, técnicos e professores.

Não há dúvidas, portanto, sobre a intenção do governo federal de atacar ou mesmo desmontar o sistema de ciência, tecnologia e ensino superior público brasileiro. A intenção oficial de privatização não é mera especulação, mas está expressa na proposta do MEC de reforma desse setor, o Programa Institutos e Universidades Empreendedoras e Inovadoras - FUTURE-SE, uma minuta de Projeto de Lei posta em discussão em julho.

Partindo de um equivocado diagnóstico sobre os problemas do ensino e da pesquisa no Brasil, sem qualquer referência à ideia de direito à educação e às metas do PNE, o MEC propõe um amplo leque de instrumentos de privatização das instituições federais de ensino, com medidas que iriam da transferência parcial da gestão dos recursos públicos para Organizações Sociais (OS) à exploração de naming rights e mesmo à dilapidação do patrimônio público, com doações não onerosas e a cessão de uso de imóveis à iniciativa privada (BRASIL, 2019bBRASIL. Ministério da Educação. Institui o Programa Institutos e Universidades Empreendedoras e Inovadoras - FUTURE-SE, e dá outras providências. 2019b. Disponível em: <Disponível em: http://www.ufabc.edu.br/images/conteudo/pl_future-se.pdf >. Acesso em: 1º out. 2019.
http://www.ufabc.edu.br/images/conteudo/...
). Como pano de fundo, mais uma vez, está o ataque à autonomia e a manifesta intenção de quebrar o seu elemento institucional mais relevante, ou seja, a carreira docente estável e o concurso público a ela associado, permitindo-se a contratação precária de docentes via OS.

O ano de 2019, nesse contexto, é de embates decisivos em defesa da educação pública e da ciência. Constroem-se novos modos de resistência. Até setembro, a maioria das universidades já havia rejeitado o Future-se, por considerá-lo contrário aos preceitos constitucionais de autonomia. A Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), na Carta de Vitória (ANDIFES, 2019bASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS DIRIGENTES DAS INSTITUIÇÕES FEDERAIS DE ENSINO SUPERIOR (ANDIFES). Carta de Vitória. ANDIFES, jul. 2019b. Disponível em: <Disponível em: http://www.andifes.org.br/andifes-carta-de-vitoria/ >. Acesso em: 1º out. 2019.
http://www.andifes.org.br/andifes-carta-...
), dá a exata noção do que está em jogo no atual contexto:

O sistema de universidades federais é um patrimônio de nosso povo. Elas representam uma das apostas mais significativas da sociedade brasileira no conhecimento, na ciência, na formação de recursos humanos, no desenvolvimento social e tecnológico, na cultura e nas artes. A educação pública é, desse modo, uma recusa sistemática do atraso e da ignorância, uma opção atual e de longo prazo pela civilização (ANDIFES, 2019bASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS DIRIGENTES DAS INSTITUIÇÕES FEDERAIS DE ENSINO SUPERIOR (ANDIFES). Carta de Vitória. ANDIFES, jul. 2019b. Disponível em: <Disponível em: http://www.andifes.org.br/andifes-carta-de-vitoria/ >. Acesso em: 1º out. 2019.
http://www.andifes.org.br/andifes-carta-...
).

Em seus mais de 40 anos de existência, a revista Educação & Sociedade acompanhou embates decisivos no campo das políticas educacionais. ­Constituiu-se, desde sua criação, em arena de disseminação de conhecimento, divulgação científica e debates fundamentais, sempre com grande aceitação na comunidade acadêmica. A defesa da educação pública, gratuita, laica, com qualidade e socialmente referenciada, conforme inscrita na Constituição Federal de 1988, é princípio de nossa publicação. Nesse âmbito, está a educação democrática e, como decorrência, estão também as liberdades educacionais de ensinar, aprender, pesquisar e divulgar a arte e o saber, o pluralismo de ideias e de concepções.

Também enfrentamos severos desafios no atual momento e passamos por importantes mudanças no processo editorial, sempre com o propósito de excelência que nos caracteriza. Contemplando as boas práticas de edição de periódicos científicos, Educação & Sociedade E&S adotou a publicação contínua, operando exclusivamente com volume, calendário e publicação on-line na Coleção Biblioteca Eletrônica Científica Online (SciELO). As impressões e os fascículos não são mais correntes na revista.

Quando a educação pública no Brasil enfrenta os maiores ataques jamais vivenciados, por parte do governo central, Educação & Sociedade reafirma seus princípios políticos e editoriais e convida leitores, autores e corpo editorial a seguirem resistindo ativamente em defesa do patrimônio educacional duramente conquistado.

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Dez 2019
  • Data do Fascículo
    2019
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