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APRESENTAÇÃO DO DOSSIÊ

DOSSIER PRESENTATION

PRESENTACIÓN DEL DOSSIER

Este dossiê propõe-se a debater o tema da escolarização contemporânea à luz dos desafios colocados pelas perspectivas históricas e sociais que o cercam. Nesse sentido, compreende-se que a escolarização tem um formato todo próprio, que lhe foi dado como requisito para a formação de uma sociedade democrática. Desde o fim do século XIX, a pauta da inovação inscreve-se na disputa pela escolarização. Havia quem entendesse que o formato da escola era obsoleto e que ela necessitava ser modernizada para acompanhar os tempos. Havia, porém, uma resistência grande quanto a quaisquer esforços de mudança.

O fato é que a escola moderna, tal como engendrada no mundo ocidental desde o século XVI, acompanha uma sociedade da cultura impressa. As escolas e as universidades sempre incorporaram as tecnologias do seu tempo, com maior ou menor atraso e impactos considerados melhores ou piores. Isso ocorre desde a escolarização moderna, com o ensino em classe e o livro impresso – cruciais para as propostas de Coménio (1976)COMÉNIO, J. A. Didáctica magna: tratado da arte universal de ensinar tudo a todos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1976. na sua Didáctica Magna –, até hoje, com a chamada “revolução digital”, e amanhã, com a inteligência artificial. Como não há tecnologias nem processos de educação neutros, é necessário observar criticamente os impactos tecnológicos na educação e analisar os seus efeitos democráticos, culturais e pedagógicos.

Estão em emergência, há já bastante tempo, escolas e universidades de tipo digital, seja em termos de processos de governação eletrônica e de instrumentos digitais de administração, seja ainda em termos de materiais didáticos, modalidades de “ensino a distância” e cursos virtuais, frequentemente com disseminação em larga escala. Em tempos de pandemia, alguns desses recursos digitais conheceram protagonismo e constituíram alternativas de tipo emergencial – nuns casos, provavelmente, com natureza complementar e circunstancial; noutros, porém, não apenas reforçando processos de digitalização já antes em curso, mas também introduzindo novos instrumentos de administração eletrônica e de racionalização formal-instrumental.

O desafio que se coloca hoje vem exatamente do fato de a tradicional cultura impressa ser interpelada por uma cultura digital, que tem pedido para “entrar na escola”. Os tempos de pandemia aceleraram esse movimento. Internacionalmente, a discussão que se coloca sobre a escola hoje é sobre como as tecnologias entram no chão da escola. Pode-se transformar uma tela de computador em uma sala de aula?

Os críticos vão assinalar os riscos que existem de que essa experiência em tempos de pandemia se transforme, de maneira inequívoca, em uma porta de entrada para a instauração do modelo de ensino a distância. Os defensores da ideia vão assinalar a inventividade que pode estar colocada nessa experiência histórica de dar aula por meios remotos, como um recurso para o futuro de uma educação que seguirá sendo presencial.

Esse debate, entretanto, será enriquecido se colocarmos em questão os propósitos de movimentos conservadores que, em diversos países, apontam para uma agenda neoliberal que daria nova feição à própria compreensão da ideia de escola.

No nível macrossocial, esse processo reverbera na dissolução gradativa de políticas sociais, na instauração de um modelo de “Estado gestionário” (CLARKE; NEWMAN, 1997CLARKE, J.; NEWMAN, J. The managerial state. Power, politics and ideology in the remaking of social welfare. Londres: Sage, 1997.) e na constituição de uma “sociedade plataforma” (Dijck. Poell; DE Waal, 2018Dijck, J. V.; Poell, T.; DE Waal, M. The platform society: public values in a connective world. Oxford: Oxford University Press, 2018. Disponível em: www.universitypressscholarship.com. Acesso em: 6 jul. 2021.
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), pautadas pela dinâmica do livre mercado como doutrina reguladora de novos cenários competitivos. Reverbera, também, no acirramento do desemprego estrutural e na gradativa redução dos direitos sociais dos trabalhadores; no descrédito de tudo que é público – e, por conseguinte, a escola -, com a sacralização do mercado. Tal movimento consagraria uma nova governança digital da educação (WILLIAMSON, 2016WILLIAMSON, B. Digital education governance: data visualization, predictive analytics, and ‘real-time’ policy instruments. Journal of Education Policy, London, v. 31, n. 2, p. 123-141, 2016. https://doi.org/10.1080/02680939.2015.1035758
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), a constituição de novos paradigmas organizacionais, nos quais a escola seria uma instituição privada ou de tipo híbrido, com função social outra que não a desenhada nos tempos de consolidação dos Estados nacionais.

Em nível microssocial, os efeitos do movimento conservador têm, portanto, impactos expressivos em políticas nacionais privatistas, autocráticas, tecnocráticas e não laicas, colocando em risco conquistas históricas traduzidas na implantação de diversos elencos de direitos, no sentido público da educação estatal, na liberdade de expressão, na autonomia docente e nos princípios da gestão democrática. Temos, portanto, uma oscilação pendular entre as potencialidades da instituição escolar e seus limites, entre a inventividade que o ingresso das novas tecnologias da informação pode representar e o risco de que tudo isso seja apropriado pelos esforços privatistas que cercam a escola atual.

Diante das desigualdades estruturais presentes no tecido social e na dinâmica escolar, há que se pensar as assimetrias do acesso aos bens culturais e às mídias digitais. Como, diante da desigualdade do acesso, será possível assegurar os direitos à educação e à igualdade de oportunidades, substantivados nos dispositivos constitucionais da maioria dos países? Nesse sentido, o presente dossiê tem o intento de interpelar esse tema a partir de ângulos analíticos diversos, oriundos de distintas realidades, uma vez que esses fenômenos sociais parecem se manifestar em diferentes contextos, quais sejam: a relação entre as políticas públicas de escolarização e as investidas do mercado sobre o campo da educação, em especial no contexto da era digital; os desafios do impacto das novas tecnologias da informação sobre a formação das novas gerações, a organização das escolas e instituições de educação superior, o papel dos professores, as novas formas de accountability digital e a administração educacional, especialmente a partir da desordem ocasionada pela situação da pandemia e suas repercussões pedagógicas; o advento de propostas de escola virtual e escola a distância; e a crise da escolarização tradicional.

A escola tem sido muito criticada há tempos por seu caráter conservador. Diz-se que ela não tem acompanhado o desenvolvimento das novas tecnologias. Com as tecnologias digitais, efetivamente, a escola ficou descontextualizada? Será? Essas são as perguntas colocadas por Irlen Antônio Gonçalves e Luciano Mendes Faria Filho no seu artigo. Nele, os autores constatam que havia, no século XIX, uma intenção de que fossem adotados os recursos tecnológicos considerados inovadores no período: banco, mesa de areia, suportes, sinetas, quadros etc. Depois disso, com a chegada do cinema à escola, ele foi apresentado como a grande inovação tecnológica, que efetivamente mudaria a face daquela instituição tão arcaica e obsoleta. Agora, o computador é posto como a grande panaceia que poderá regenerar a escola de sua impotência. Trabalhando com fontes variadas, compostas por legislação, artigos de jornais e revistas, além de bibliografia especializada, o artigo intitulado “Tecnologias e Educação Escolar: a Escola Pode ser Contemporânea de seu Tempo?” responde à pergunta que coloca.

José Sérgio Fonseca de Carvalho e Carlota Boto, no artigo “Mestres Ignorantes e Professores Explicadores em Tempo de pandemia e Cultura Digital”, abordam a temática do Ensino Universal desenvolvido por Jacotot em 1818, na cidade de Louvain. Tal experiência pedagógica tomou como princípio a hipótese da igualdade das inteligências, o que possibilitaria um ensino capaz de abranger a todos os alunos. Esse método de ensino tinha como finalidade a busca de emancipação intelectual, contrariando o que supunha ser a pedagogia do mestre explicador. Essa narrativa sobre a experiência pedagógica de Jacotot é muito marcada em nossa contemporaneidade pela interpretação de Jacques Rancière. A tese aqui apresentada por Carvalho e Boto é que Rancière, ao evocar a perspectiva educativa de Jacotot, não se atém necessariamente à busca da verdade factual, dado que estaria mais interessado em participar do debate francês dos anos 1980. Tratar-se-ia, assim, de uma narrativa que veicula um ideal programático. É isso que o artigo propõe-se a demonstrar. Finalmente, procura-se verificar a atualidade dessa concepção de igualdade das inteligências para se pensar os meios de ensino remoto e de aprendizagem digital com suas potencialidades e seus horizontes.

O artigo de Inés Dussel e María Guadalupe Fuentes Cardona, intitulado “Los Grupos de WhatsApp y la Construcción de Nuevas Ciudadanías en las Escuelas”, aborda as novas formas de cidadania derivadas da difusão das redes sociais no espaço educativo. As fontes utilizadas são os grupos de WhatsApp de docentes e diretores da Cidade do México. Verificou-se o conteúdo dessas redes, bem como as formas de conexão, que implicam uma extensão da jornada escolar, uma vez que não há horário para a comunicação por essas novas ferramentas das redes sociais. Procurou-se observar as possibilidades de controle sobre a informação e a velocidade de emissão e recepção de mensagens. Os resultados obtidos apontam para uma intensificação do trabalho docente. Além disso, observa-se a construção de novas hierarquias e de intercâmbios inovadores na distribuição dos recursos de comunicação.

O trabalho de António M. Magalhães, sob o título de “Caminhos e Dilemas da Educação Superior na Era do Digital”, aborda a temática do Ensino Superior. Principia com um histórico acerca dos modelos de educação universitária na Europa. Em seguida, apresenta o contexto de fragmentação da atual situação da educação superior, bem como possibilidades, dilemas e limites trazidos pela digitalização dos processos de ensino e de pesquisa. O autor argumenta que estaria ocorrendo – de maneira acentuada, por causa da pandemia – uma atenuação da universidade no tocante ao espaço. O modelo remoto de educação, que agora está em curso ao longo de todo o mundo, evidencia as possibilidades das aulas on-line. Isso leva, entretanto, a que a identidade da própria universidade venha a ser perdida, com a sua substituição pelo ensino a distância, o que seria correlato a um processo de massificação e de privatização do Ensino Superior. O autor entende, em qualquer dos casos, que, na pesquisa dessa problemática, será oportuno afastar a dicotomia simplista entre a celebração, mais ou menos ingénua, das tecnologias e da digitalização da educação e a tecnofobia.

Licínio C. Lima, em “Máquinas de Administrar a Educação: Dominação Digital e Burocracia Aumentada”, recorda que as tecnologias da informação de cada época interferem na gestão dos assuntos da educação, na sua racionalidade e nos processos de distribuição do poder. Segundo o autor, o que se coloca neste momento é uma burocracia aumentada, ou hiperburocratização, da administração educacional, tanto no tocante a uma racionalização instrumental das coisas escolares quanto no que diz respeito ao início de uma assim compreendida “revolução empreendedora”. À luz de tal perspectiva, o artigo de Licínio Lima, partindo da teoria weberiana da burocracia, propõe-se a estudar os impactos da digitalização da educação mediante o recurso a ferramentas da Internet, que possuem um uso político na construção de um “Estado gestionário” e que se afirmam já hoje como poderosas máquinas de administrar a educação.

Almerindo Janela Afonso, no trabalho “Novos Caminhos para a Sociologia: Tecnologias em Educação e Accountability Digital”, parte da constatação de que a escola pública obrigatória sempre esteve subordinada e controlada pelo Estado. Um dos aspectos em que o papel do Estado se destaca na gestão da educação diz respeito a essa política de armazenamento de dados. Nas últimas décadas, com os processos de digitalização, o processo de controle de informações por parte do Estado teria se tornado exponencial, e as novas plataformas e ferramentas digitais são aliadas nesse sentido. Em nome da objetividade, tudo passa a ser quantificado. Contudo, o fato é que as tais plataformas não são um recurso neutro, mas agem no sentido de reconfigurar e recompor as ações das pessoas que nelas atuam. Daí a necessidade de se questionar tanto o processo quanto as relações de poder que nele vêm inscritas, destacando-se, entre outras, a problemática da prestação de contas digital.

António Nóvoa e Yara Cristina Alvim, no artigo intitulado “Os Professores Depois da Pandemia”, apresentam uma discussão sobre o futuro da educação e o modelo escolar à luz da crise da pandemia. O uso massificado das novas tecnologias digitais teria produzido transformação e metamorfose em uma estrutura escolar que já vinha desgastada anteriormente. Para os autores, são de três níveis as mudanças postas nesse formato escolar: o que eles aqui qualificam como contrato social da educação, a estrutura organizacional da escola e a pedagogia da lição. O mundo digital teria estruturado uma nova relação com o conhecimento. O trabalho dos professores também seria, a partir disso, ressignificado. A conectividade expressa pelo modo de aprendizado na tela requer novas formas de ação do professor e um novo modo de acessar os próprios conteúdos culturais. Tudo isso estabelece novas formas de ação do professor, não apenas no sentido técnico, mas na dinâmica do próprio saber-fazer do ofício docente.

Enfim, cabe, para finalizar, recordar a observação feita por Anísio Teixeira acerca dos desafios e dos impasses de uma escola e de uma educação que, para ele, não poderiam mais ser um privilégio das elites. Anísio, em seu tempo, antevia um modelo de ensino que fosse capaz de, por um lado, dialogar com as tecnologias, sem, entretanto, se render a elas. Por suas palavras:

Algo de semelhante será o que irá suceder com a escola, com a classe e com o professor. Se a biblioteca, de certo modo, já fizera o mestre um condutor dos estudos do aluno e não propriamente um transmissor da cultura, os novos recursos tecnológicos e os meios audiovisuais irão transformar o mestre no estimulador e assessor do estudante, cuja atividade de aprendizagem deve guiar, orientando-o em meio às dificuldades da aquisição das estruturas e modos de pensar fundamentais da cultura contemporânea de base científica em seus aspectos físicos e humanos. Mais do que o conteúdo do conhecimento em permanente expansão, cabe-lhe, com efeito, ensinar o jovem aprendiz a aprender os métodos de pensar das ciências físico-matemáticas, biológicas e sociais, a fim de habilitá-lo a fazer de toda sua vida uma vida de instrução e de estudos

(TEIXEIRA, 2010TEIXEIRA, A. Coleção Educadores do MEC. Recife: Fundação Joaquim Nabuco/Editora Massangana, 2010., p. 75).

É fato que, no pós-pandemia, a escola não será a mesma. Temos todas as dúvidas e nenhuma das certezas a propósito do que restará do modelo de escola que marcou a modernidade. Todavia, quaisquer que sejam as definições da história, trata-se de um tema e de um problema que interpelam nossa contemporaneidade. Os artigos aqui reunidos foram escolhidos por pensarem nisso. Nessa oportunidade, convidamos o leitor a pensar conosco.

Referências

  • CLARKE, J.; NEWMAN, J. The managerial state Power, politics and ideology in the remaking of social welfare. Londres: Sage, 1997.
  • COMÉNIO, J. A. Didáctica magna: tratado da arte universal de ensinar tudo a todos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1976.
  • TEIXEIRA, A. Coleção Educadores do MEC Recife: Fundação Joaquim Nabuco/Editora Massangana, 2010.
  • Dijck, J. V.; Poell, T.; DE Waal, M. The platform society: public values in a connective world. Oxford: Oxford University Press, 2018. Disponível em: www.universitypressscholarship.com Acesso em: 6 jul. 2021.
    » www.universitypressscholarship.com
  • WILLIAMSON, B. Digital education governance: data visualization, predictive analytics, and ‘real-time’ policy instruments. Journal of Education Policy, London, v. 31, n. 2, p. 123-141, 2016. https://doi.org/10.1080/02680939.2015.1035758
    » https://doi.org/10.1080/02680939.2015.1035758

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Ago 2021
  • Data do Fascículo
    2021
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