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MESTRES IGNORANTES E PROFESSORES EXPLICADORES EM TEMPOS DE PANDEMIA E DE CULTURA DIGITAL

IGNORANT MASTERS AND EXPLICATOR TEACHERS IN TIMES OF PANDEMIC AND DIGITAL CULTURE

MAESTROS IGNORANTES Y TUTORES EXPLICADORES EN TIEMPOS DE PANDEMIA Y CULTURA DIGITAL

RESUMO

Este artigo versa sobre a relação entre a obra de Rancière e os escritos de Jacotot, sobre os quais a primeira se debruça. Para Jacotot, observa-se que o ato de educar deve ser revestido pelo pressuposto da igualdade, o que constitui antes um postulado político do que uma orientação de caráter pedagógico. O educador inscreve-se em um programa de ação voltado para a criação de cenas de igualdade, mediante uma perspectiva educacional passível de ser fundada em um princípio universalizável. Procurar-se-á cotejar esse debate, não apenas com a literatura pedagógica contemporânea, mas também com a maneira pela qual os próprios contemporâneos interpretaram a experiência de Jacotot.

Palavras-chave
Jacotot; Rancière; Ensino universal; Escola pública; Filosofia da educação

ABSTRACT

This article deals with the relationship between Rancière’s work and Jacotot’s writings, on which the first focuses. For Jacotot, it is observed that the act of educating must be covered by the assumption of equality, that which constitutes rather a political postulate than an orientation of a pedagogical character. The educator is enrolled in an action aimed at the verification of equality, through an educational perspective founded in a universal principle. We will try to compare this debate, not only with the contemporary pedagogical literature, but also with the way in which the contemporaries themselves interpreted Jacotot’s experience.

Keywords
Jacotot; Rancière; Universal teaching; Public school; Philosophy of education

RESUMEN

Este artículo trata de la relación entre la obra de Rancière y los escritos de Jacotot, en el que se centra la primera. Para Jacotot, se observa que el acto de educar debe estar amparado por el supuesto de igualdad, lo que constituye más bien un postulado político que una orientación pedagógica. El educador se inscribe en un programa de acción orientado a crear escenarios de igualdad, a través de una posible perspectiva educativa basada en un principio universal. Intentaremos comparar este debate, no solo con la literatura pedagógica contemporánea, sino también con la forma en que los propios contemporáneos interpretaron la experiencia de Jacotot.

Palabras-clave
Jacotot; Rancière; Enseñanza universal; Escuela pública.; Filosofía de la educación

Introdução

O título deste artigo faz menção a uma obra escrita há mais de trinta anos e cujo protagonista é um educador do século XIX. Herdeiros que somos da crença iluminista no progresso – para a qual o passado sempre tende à obsolescência –, propor uma reflexão acerca da inovação educacional a partir de referências tão distantes no tempo pode soar, no mínimo, paradoxal. Esse aparente paradoxo, no entanto, dissipa-se quando abandonamos a noção, bastante reducionista, de que a inovação em educação se vincula necessária e exclusivamente ao desenvolvimento de novas técnicas ou abordagens de ensino ou à transposição para o domínio educativo das últimas vertentes e perspectivas no mundo acadêmico.

O campo da prática, da pesquisa e de reflexão em educação tem suas peculiaridades, entre as quais está o fato de que, tal como nas artes e na filosofia, as produções do passado não perdem seu valor heurístico. Sempre é possível uma leitura inovadora de um texto de Aristóteles. Uma tragédia de Shakespeare, uma narrativa ancestral dos Bantos ou uma experiência educacional perdida no passado sempre pode inspirar novas reflexões para aqueles que se disponham a interrogá-la a partir das questões do presente.

É, pois, com esse espírito que indagamos: em que medida as experiências de Jacotot – e a narrativa por meio da qual Rancière as retoma – guardam um potencial inovador para o presente? Por que Jacques Rancière, que conhecia a figura de Jacotot desde a década de 1970, decide narrar sua história só uma década mais tarde e precisamente no momento em que a sociedade francesa debatia calorosamente as reformas educacionais propostas por Mitterand?

Jacques Rancière, em Le Spectateur Émancipé (O Espectador Emancipado, 2008RANCIÈRE, J. Le spectateur émancipe. Paris; La Fabrique, 2008.). retoma algumas das razões que o levaram a escrever O Mestre Ignorante, em que narra as aventuras intelectuais do professor francês Joseph Jacotot, que, exilado nos Países Baixos, passou a praticar e difundir suas ideias acerca do Ensino Universal. É por meio da narrativa de Rancière que ficamos sabendo que o entusiasmo de seus alunos e o êxito de suas práticas trouxeram a Jacotot fama e adeptos. Contudo, sabemos, também, que ele causou a fúria de parte da comunidade acadêmica ao afirmar que um professor pode ensinar aquilo que ignora e – o que talvez soe ainda mais escandaloso – que a ignorância desse professor poderia ser, na verdade, um elemento crucial para o processo de emancipação de seus alunos. Por que um pensador como Rancière – historicamente vinculado a escritos sobre estética, movimento operário e emancipação política – se propõe, pois, a narrar a história de um pedagogo que o pensamento educacional francês havia condenado ao silêncio e à escuridão? Que sentido faria trazê-lo à luz da cena política mais de um século depois de seu desaparecimento?

Rancière afirma, no texto em questão, que decidiu reavivar aquele personagem singular da pedagogia do século XIX com o propósito de lançar, “no lago dos debates acerca das reformas educacionais dos anos 80, a pedra do tema da igualdade intelectual” (2008, p. 7, tradução nossa). A imagem à qual recorre – lançar uma pedra ou paralelepípedo (pavé) nas águas de um plácido lago (la mare) – parece sugerir um duplo sentido. Ela poderia simplesmente significar, no uso coloquial da língua francesa, algo como lançar o tema da desigualdade no debate público. Todavia, poderia também sugerir o significado político que Rancière atribui a sua escrita: fazer emergir o dissenso onde reina a paz do consenso das falas e dos agentes legitimados, turvando as águas imóveis do estabelecido e embaralhando a cena política com um elemento inesperado. Nesse sentido, a história de Jacotot irrompe, como um elemento estrangeiro (a pedra), a sugerir a denúncia de um dano, ou seja, um erro ou omissão, na repartição consensual da legitimidade dos discursos. Um novo elemento que chega do passado para trazer à cena pública a palavra confiscada daqueles e daquelas cujos discursos são ignorados e tratados como ruídos que se imiscuem no fluxo do debate ao qual não foram chamados.

Rancière cria, por meio desse e de outros personagens, uma forma própria e inusitada de lidar com as palavras confiscadas, com narrativas silenciadas, com imagens obliteradas pelo consenso social, que estipula quem tem direito à palavra e quem só produz ruído (“balbúrdia” ou “mimimi”, no recente discurso estatal brasileiro). Contudo, diferentemente do que sói acontecer nas ciências sociais, Rancière não toma esses discursos confiscados ou obliterados como um material bruto, cujo significado seria dado pela palavra acadêmica, erigida em porta-voz desses sujeitos. Tampouco reivindica para si o papel daquele que seria capaz de conferir inteligibilidade a palavras, discursos, imagens e metáforas que ele recolhe nos arquivos. Ao contrário, Rancière tende a misturar as vozes, desierarquizando lugares, narrativas e falas, a fim de criar cenas de igualdade nas quais a escrita embaralha os lugares sociais de enunciação. Tal como Jacotot faz com seus alunos, cujas palavras não se submetem à inteligência do professor para serem reconhecidas como igualmente válidas. Por isso é tão difícil distinguir Rancière de Jacotot ou de seus companheiros operários do século XIX.

Le Maître Ignorant (O Mestre Ignorante, 1987RANCIÈRE, J. Le maître ignorant. Paris: Fayard, 1987. (Edição brasileira: RANCIÈRE, J. O mestre ignorante. Trad. Lilian do Vale. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.)) embaralha, pois, presente e passado, narrativa e análise, ao adicionar ao debate político contemporâneo uma voz dissonante que ecoa através do tempo e se atualiza. No entanto embaralha também o tema da discussão, porque alerta para o consenso que subjaz ao debate entre as posições então autorizadas na partilha tácita de quem pode falar e do que pode contar como fala legítima. Se havia debate, claro, havia discordância. Entretanto, havia também um consenso subjacente a essa discordância. Ora, para uma parcela importante de intelectuais vinculados às ideias de Pierre Bourdieu, o compromisso da escola com a superação das desigualdades deveria implicar uma profunda reforma das práticas e dos currículos, de forma a adaptá-los às culturas, aos hábitos e às necessidades dos segmentos menos favorecidos da sociedade. Essa era a reforma que pretendia vincular a escola ao princípio da igualdade sob novas formas. Já para intelectuais republicanos – como Jean Claude Milner (1984)MILNER, J.-C. De l’école. Paris: Éditions du Seuil, 1984. –, a superação dessas mesmas desigualdades exigia precisamente o contrário: a difusão de um conhecimento clássico – concebido como universal – por meio de práticas escolares fundadas nos ideais republicanos de impessoalidade, os quais almejavam e realizavam a igualdade. O consenso não jazia, pois, nos argumentos e nas posições em disputa, mas em seus pressupostos.

O primeiro deles era conceber a igualdade como um objetivo a ser alcançado pela escola, uma meta a ser atingida ao final de um longo percurso. Nesse sentido, a palavra de Jacotot abre um dissenso. A igualdade não é uma meta, uma realidade à qual se quer chegar ou da qual queremos gradativamente nos aproximar, diz Jacotot. Ela não é um horizonte de expectativas, mas uma pressuposição que tem efeitos na configuração do presente. Rancière, por sua vez, complementa: igualdade e desigualdade não são crenças, mas formas de se tecer e viver o presente. Assim, o mestre ignorante ignora, sobretudo, a desigualdade como um pressuposto compartilhado e ordenador das relações entre alunos e professores. Ignora o que seu aluno sabe e o que ele não sabe, interrogando-o, por isso, como um igual: como pessoa, não como aluno. Cria, assim, uma cena de igualdade que não abole as demais desigualdades sociais, mas realiza um plano de igualdade que não espera pelo amanhã, e o faz porque crê na capacidade de todos – aqui e agora – de romperem com o círculo da impotência que os enclausura – a homens e mulheres – em seus “devidos lugares”: de sábios ou ignorantes, de espíritos maduros ou imaturos; que os reparte entre aqueles que possuem uma ciência e dominam as técnicas de sua transmissão e aqueles que delas estão despojados e a elas se sujeitam.

Jacotot, em vez de prometer a igualdade como recompensa de um longo e incerto percurso, tece um plano para verificá-la em sua eclosão no presente, atualizando-a nas cenas do cotidiano escolar; e o faz porque crê na igualdade de todas as inteligências, porque crê que a inteligência é um atributo humano indivisível e incomensurável, embora sempre se manifeste em uma diversidade de formas. Porque a inteligência é uma capacidade una e comum: todos podem aprender tudo, desde que o queiram. Para além disso: podem fazê-lo por seus próprios meios e métodos, sem a necessidade da explicação de um mestre. Tal como todos um dia aprenderam a dominar uma língua sem que para isso fosse preciso qualquer sorte de explicação acerca de sua gramática, de sua sintaxe.

Todavia, há ainda um segundo consenso com o qual Jacotot rompe: o do lugar da pedagogia – ou, ao menos, da forma escolar por ela orientada – na efetivação da igualdade e da emancipação intelectual. Para Jacotot, a emancipação não decorre da posse de uma verdade nem do domínio de um saber, como pregavam certas tendências iluministas à sua época (nem da superação da consciência ingênua ou do desvelamento da ideologia, como pregam educadores da França e do Brasil nas décadas em que Rancière publica seu livro sobre Jacotot). Ela se constitui a partir de um tipo específico de relação, que cada um estabelece com as obras da inteligência humana. Emancipa-se aquele que crê que sua inteligência não é menor – nem maior – do que a de qualquer outra pessoa; aquele que tem coragem de traduzir livremente e enunciar, para si e para outros, o sentido que atribui a uma obra humana (um livro, um poema, uma escultura, uma peça de piano...); que se lança à aventura de dominar uma linguagem ou forma de saber sem recorrer a outra fonte que não sejam os recursos de sua própria inteligência.

A emancipação implica, pois, aceitar a aventura intelectual de se crer capaz de tudo que a inteligência humana é capaz. Todavia, a escola – crê Jacotot – embrutece, quando pedagogiza as aprendizagens sociais, ou seja, quando estabelece sequências didáticas que enumeram e controlam o que e em que gradação se deve aprender; quando fixa o que deve ser compreendido de uma obra e por meio de quais exercícios. Ao estabelecer etapas e pontos de chegada, as práticas pedagógicas criam a distância – entre o aluno e o conhecimento – que afirmam querer abolir, o que não significa, como veremos, que o papel do mestre seja de pouca importância nesse processo.

Ao selecionar o conteúdo supostamente apropriado ao aluno, a escola pedagogizada assevera haver um lugar que lhe é próprio e outro que lhe é impróprio; que ele é hoje inferior, mas que amanhã poderá ser superior e ter seus próprios inferiores. Pouco importa a Jacotot que os métodos pedagógicos de explicação e hierarquização de aprendizados sejam tradicionais ou renovados, pois a própria proposição de um método e de um caminho gradual e controlado atesta, por si mesma, a crença da pedagogia na desigualdade. Mais do que isso: cria a desigualdade que afirma querer combater; embrutece aqueles a quem promete emancipação. Pode-se concordar ou discordar das teses de Jacotot, mas não se pode negar que sua reatualização desaba sobre as águas plácidas dos debates educacionais como um paralelepípedo que cria ondas de incertezas e questionamentos ao seu redor. Ondas de incertezas que podem soprar com uma inovação no modo como pensamos, escrevemos e criamos as formas de orientar práticas educativas.

Biografia como Trajeto da Vida em Profissão

Joseph Jacotot (1770-1840) nasceu em Dijon, onde também cursou universidade, da qual se tornou professor de retórica aos 19 anos, quando se preparava para se tornar advogado. Com a mesma idade, presenciou a Revolução Francesa, da qual seria militante, liderando um grupo de jovens. Em 1792, lutou na Bélgica, onde se destacou na defesa da república francesa. Na Convenção, foi instrutor da Seção das Pólvoras, Secretário do Ministro da Guerra e substituto do diretor da Escola Politécnica. Em 1815, tornou-se deputado. No entanto, com a volta dos Bourbons ao poder, foi levado a exilar-se e se dirigiu aos Países Baixos. Em 1818, foi designado professor de francês na Universidade de Lovain, onde sistematizou os princípios de Ensino Universal.

O método panescástico – como também o chamava – parte de alguns pressupostos. O primeiro, e mais importante, é conceber a inteligência como um atributo uno, comum e igualmente partilhado entre todos os seres humanos. Tal como, poderíamos aqui sugerir a título de analogia, a capacidade de contar na aprendizagem das matemáticas: não se pode dizer que uma criança conte melhor do que outra o número de objetos sobre a mesa. Uma pode ser mais lenta ou mais rápida do que a outra. Contudo, ambas têm precisamente a mesma capacidade e, nesse sentido, não há gradação ou hierarquia entre elas a não ser aquelas que arbitrariamente estabelecemos. O mesmo se passa em relação à capacidade de falar uma língua. Podemos até reconhecer a diferença entre o desempenho retórico ou poético de duas pessoas, mas isso não implica que uma saiba falar mais ou melhor do que a outra. Apenas torna patente que o uso que cada um faz da igual capacidade de falar produz um resultado distinto, o qual não atesta uma hierarquia quanto à capacidade comum de falar, apenas o grau de dedicação ou apreço que cada indivíduo consagra a essas diferentes formas de manifestação da mesma capacidade comum. Daí porque um grande poeta pode ser um péssimo narrador de futebol e um grande retórico pode ser um péssimo poeta.

Um segundo princípio adotado por Jacotot é a crença de que toda pessoa recebe de Deus a faculdade de se instruir a si própria; que podemos, portanto, aprender tudo recorrendo apenas a nossos próprios recursos intelectuais, tal como aprendemos nossas línguas maternas: por imitação, repetição, testes, inferências etc. Daí o terceiro princípio: “podemos ensinar o que não conhecemos”, bastando para isso que rompamos com o círculo da impotência e ajamos na vontade de cada aluno de emancipar-se, fomentando nele a disposição para servir-se livremente de sua inteligência, como afirmava Kant. Por último, sua afirmação de que “tudo está em tudo”, pois toda obra humana é uma manifestação singular da mesma inteligência comum, que se revela em formas distintas, mas não hierarquizáveis: da confecção de uma luva à descoberta de uma lei física; da criação poética à prática culinária.

Jacotot apresenta esses princípios em sua obra Enseignement Universel: Langue Maternelle, que veio a público em Dijon no ano de 1823. Ao comentar o contexto em que essa obra surge, Rancière afirmará:

Revolucionário na França de 1789, exilado nos Países Baixos quando da restauração da monarquia, Joseph Jacotot foi levado a tomar a palavra no exato momento em que se instala toda uma lógica de pensamento que poderia ser assim resumida: acabar a Revolução, no duplo sentido da palavra: por um termo em suas desordens, realizando a necessária transformação das instituições e mentalidades de que foi a encarnação antecipada e fantasmática; passar da fase das febres igualitárias e das desordens revolucionárias à constituição de uma nova ordem de sociedades e governos que conciliasse o progresso, sem o qual as sociedades perdem o elã, e a ordem, sem a qual elas se precipitam em crise. Quem pretende conciliar ordem e progresso encontra naturalmente seu modelo em uma instituição que simboliza sua união: a instituição pedagógica, lugar – material e simbólico – onde o exercício da autoridade e a submissão dos sujeitos não têm outro objetivo além da progressão destes sujeitos, até o limite de suas capacidades; o conhecimento das matérias do programa para a maioria, a capacidade de se tornar mestre, por sua vez, para os melhores

(RANCIÈRE, 2005RANCIÈRE, J. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2005., p. 9-10).

As aulas de Jacotot em Louvain eram muito disputadas e a crescente fama do professor resultou em um desafio inusitado: boa parte dos alunos que queriam frequentar os cursos de Jacotot ignorava o francês e Jacotot não sabia falar holandês. Para travar contato com seus alunos, o educador irá valer-se das Aventuras de Telêmaco, de Fénelon, que tinham sido recentemente publicadas em Bruxelas em edição bilíngue. Rancière (2005, p. 18)RANCIÈRE, J. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. nos conta que ele indicou o texto a seus alunos (por meio de um intérprete) e lhes pediu que cotejassem a tradução com o texto francês original. O fato é que os alunos conseguiram fazer isso; e aprenderam o francês em paralelo com a leitura que faziam do holandês. Jacotot se dá conta, portanto, de que a lógica explicadora que presidia a escolarização era pautada na pressuposição da desigualdade matricial entre as pessoas. Ele, ao contrário, partira da pressuposição da igualdade das inteligências e verificara sua potencialidade naquela experiência inusitada. Jacotot, com sua forma de trabalho, opõe-se a qualquer método de ensino, tradicional ou renovado, que pretenda ser um meio de transmissão do conhecimento ao aluno. Essa ruptura da forma pela qual Jacotot passa a pensar o processo educativo emancipatório foi assim descrita por Rancière:

Tal foi a revolução que essa experiência do acaso provocou em seu espírito. Até ali, ele havia acreditado no que acreditam todos os professores conscienciosos: que a grande tarefa do mestre é transmitir seus conhecimentos aos alunos, para elevá-los gradativamente à sua própria ciência. Como eles, sabia que não se tratava de entupir os alunos de conhecimentos, fazendo-os repetir como papagaios, mas, também, que é preciso evitar esses caminhos do acaso, onde se perdem os espíritos ainda incapazes de distinguir o essencial do acessório; e o princípio da consequência. Em suma, o ato essencial do mestre era explicar, destacar os elementos simples dos conhecimentos e harmonizar sua simplicidade de princípio com a simplicidade de fato que caracteriza os espíritos jovens e ignorantes. Ensinar era, em um mesmo movimento, transmitir conhecimentos e formar os espíritos, levando-os, segundo uma progressão ordenada, do simples ao complexo. Assim progredia o aluno, na apropriação racional do saber e na formação do julgamento e do gosto, até onde sua destinação social o requeria, preparando-se para dar à sua educação uso compatível com essa destinação

(RANCIÈRE, 2005RANCIÈRE, J. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2005., p. 19-20).

O método de Jacotot é, pois, o de propor ao aluno que ele siga o seu método, que se afaste de qualquer caminho proposto a partir do pressuposto de uma desigual capacidade entre ele e seu mestre. Sua obra teve grande repercussão à época e há relatos de que haja sido divulgada no Brasil (ALBUQUERQUE, 2019ALBUQUERQUE, S. L. Métodos de ensino de leitura no Império brasileiro: António Feliciano de Castilho e Joseph Jacotot. 2019. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.; ALBUQUERQUE; BOTO, 2021ALBUQUERQUE, S. L.; BOTO, C. Sons da alfabetização no Brasil Império: atualidade de Castilho e Jacotot. Cadernos de História da Educação, Uberlândia, v. 20, p. 1-14, e018, 2021. https://doi.org10.14393/che-v20-2021-18
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; CRUZ, 2018CRUZ, C. S. Caridade sem limites, sciencia sem privillegios: o ensino universal de Jacotot por Benoît Mure no Brasil (1840-1848). 2018. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, 2018.) ainda no século XIX. Em seus escritos, Jacotot qualifica a inteligência humana como relacional: “quando o homem quer se instruir, é necessário que ele compare as coisas que ele conhece e que relacione estas com aquelas que ele ainda não conhece” (JACOTOT, 1834JACOTOT, J.-J. Enseignement universel: langue maternelle. Paris: Chez Mansut Fils, 1834., p. III). O autor concebe a igualdade das inteligências de todos os homens como o elo comum do gênero humano (JACOTOT, 1834JACOTOT, J.-J. Enseignement universel: langue maternelle. Paris: Chez Mansut Fils, 1834., p. 38) e recomenda um método para ensinar os discípulos que estão em fase de aprendizagem da língua. Sugere ao professor que dê um livro aos alunos, que ele próprio leia esse livro e verifique o modo como o aluno compreende aquilo que o livro diz, por meio da leitura oralizada da mesma obra por parte do professor. O professor deverá, ainda, demonstrar a relação entre o livro e tudo aquilo que eles aprenderão em seguida. Esse percurso traçaria a rota do Ensino Universal. Trata-se de uma passagem que merece atenção, pois torna patente que o ideal de uma educação emancipadora em Jacotot dispensa a explicação, mas não o firme engajamento do professor, cujo papel é por ele concebido como central – uma centralidade que, contudo, não incide sobre a compreensão do aluno acerca do objeto de estudo e sim sobre sua vontade de tecer seu caminho em direção à emancipação.

Talvez por isso, na narrativa de Rancière, Jacotot surge quase como um anti-pedagogo, ao se contrapor ao “mestre explicador” e ao desafiar o princípio estruturante da forma escolar: o controle sobre a gradativa apropriação dos saberes e procedimentos. Assim, em Rancière, a experiência de Jacotot reveste-se de um profundo caráter político, pois se trata de atestar e verificar a igualdade não como um objetivo a ser alcançado no futuro, mas como um princípio que guia as ações do presente. É nesse sentido que Rancière recorre à experiência de Jacotot a fim de se contrapor às perspectivas então dominantes acerca das relações entre educação e igualdade: a superação da desigualdade socioeconômica pela escola e o ideal da igualdade de oportunidades.

A seguir, o artigo se debruçará sobre a obra do próprio Jacotot e sobre o debate que provocou em seu tempo, com a finalidade de averiguar quais seriam as ideias e as referências do próprio estudioso em termos de pedagogia e da própria filosofia da educação por ele preconizada. Mukhopadhyay e NarayananMUKHOPADHYAY, R.; NARAYANAN, V. The ignorant schoolmaster: Jacotot/Rancière on equality, emancipation and education. Contemporary Education Dialogue, Los Angeles, v. 11, n. 2, p. 221-234, 2014. https://doi.org/10.1177/0973184914529037
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argumentam que Jacotot e, por decorrência, Rancière partem da crítica a uma “concepção binária de inteligência” (2014, p. 223), a qual se apresenta como a premissa da desigualdade. Lilian do ValleVALLE, L. Pedra de tropeço: a igualdade como ponto de partida. Educação & Sociedade, Campinas, v. 24, n. 82, p. 259-266, abr. 2003. https://doi.org/10.1590/S0101-73302003000100016
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destaca que a arbitrariedade da nossa ordem social também se evidencia na arbitrariedade das relações escolares, a qual tende a alimentar o que a autora chama de “ficção desigualitária” (2003, p. 264). Alejandro Cerletti, por sua vez, dirá que Joseph Jacotot “problematiza uma questão política fundamental: a igualdade” (2003, p. 299). A igualdade em Jacotot seria, pois, no parecer do autor em questão, um postulado, um axioma, não algo que está no fim do caminho, uma meta longínqua que jamais poderá ser alcançada (CERLETTI, 2003CERLETTI, A. A. La política del maestro ignorante: la lección de Rancière. Educação & Sociedade, Campinas, v. 24, n. 82, p. 299-308, abr. 2003. https://doi.org/10.1590/S0101-73302003000100021
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, p. 305). Também Simons e MasscheleinSIMONS, M.; MASSCHELEIN, J. Hatred of democracy... and the public role of education? Introduction to the special issue on Jacques Rancière. Educational Philosophy and Theory, Oxford, v. 42, n. 5-6, p. 509-522, 2010. https://doi.org/10.1111/j.1469-5812.2010.00682.x
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dirão que a “igualdade não é nem uma promessa nem um fato, mas uma hipótese prática para se começar” (2010, p. 512).

O mestre ignorante não teria, por ser assim, o que Inés Dussel chama de “saber sábio do professor” (2003, p. 214). Pelo contrário, “ao supor seus alunos como iguais, pode ensinar-lhes a usar seus próprios saberes, isto é, a desenvolver suas capacidades de comparação, de contraposição, de argumentação” (DUSSEL, 2003DUSSEL, I. Jacotot o el desafio de una escuela de iguales. Educação e Sociedade, Campinas, v. 24, n. 82, p. 213-219, abr. 2003. https://doi.org/10.1590/S0101-73302003000100011
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, p. 214). Se – continua Dussel – “todos temos a mesma capacidade de inteligência, é a vontade que a subordina, que a distrai, que a sujeita” (2003, p. 214). Assim, “a educação emancipatória não constitui matéria de transferência de conhecimento de um professor que sabe para um estudante que ainda não sabe, embora seja um processo no qual professores e seu ensino sejam indispensáveis” (BIESTA, 2017BIESTA, G. Don’t be fooled by ignorant schoolmasters: on the role of the teacher in emancipatory education. Policy Futures in Education, Oxford, v. 15, n. 1, p. 52-73, 2017. https://doi.org/10.1177/1478210316681202
https://doi.org/10.1177/1478210316681202...
, p. 52). Para Biesta, o que singulariza o modelo de um ensino emancipador é o fato de ele “iniciar com a assunção de que todos os estudantes podem falar” (BIESTA, 2010BIESTA, G. Learner, student, speaker: why it matters how we call those we teach. Educational Philosophy and Theory, Oxford, v. 42, n. 5-6, p. 540-552, 2010. https://doi.org/10.1111/j.1469-5812.2010.00682.x
https://doi.org/10.1111/j.1469-5812.2010...
, p. 540). No que se segue, procuraremos, de forma análoga, deixar os documentos “falarem”, interrogando a obra de Jacotot a fim de nos aproximarmos mais dessa experiência específica, historicamente circunscrita, mas potencialmente fecunda para nossas interrogações do presente.

O Ensino Universal como Princípio

Na obra Enseignement Universel: langue maternelle, publicada pela Librairie Spéciale de l’Enseignement Universel em 1834, Jacotot principia sua reflexão destacando aquilo que chama de “Ensino Universal”. Um dos pressupostos nele adotado é o da capacidade de a racionalidade humana operar estabelecendo relações: “quando o homem quer se instruir, ele precisa comparar as coisas que ele conhece e as relações que elas têm com as coisas que ele não conhece ainda” (JACOTOT, 1834JACOTOT, J.-J. Enseignement universel: langue maternelle. Paris: Chez Mansut Fils, 1834., p. III, tradução nossa). Esse paralelo estabelecido entre as coisas que se sabe e aquelas que não se conhece ainda é pré-requisito para outra suposição, bem mais ousada:

[...] eu suponho uma inteligência igual em todos os homens, meu projeto não é sustentar essa tese contra quem quer que seja. É minha opinião, isso é fato; essa opinião me dirigiu a uma sucessão de exercícios que compõem o conjunto do método, e eis porque eu acredito ser útil colocar em princípio: todos os homens têm uma inteligência igual

(JACOTOT, 1834JACOTOT, J.-J. Enseignement universel: langue maternelle. Paris: Chez Mansut Fils, 1834., p. IV).

Percebe-se aqui, claramente, que a proposta de Jacotot não constituía propriamente uma metodologia de ensino. Tratava-se, antes, de uma filosofia do ato de ensinar que propõe um experimento muito simples: que seja dado um livro ao aluno e que esse livro seja lido pelo educador para que os estudantes possam ir acompanhando a leitura. Os alunos devem procurar memorizar o que foi lido e relacionar as palavras escutadas com aquelas que eles iriam acompanhando no texto. Esse era o princípio por meio do qual Jacotot operacionalizou o “Ensino Universal”. Porém, se o exercício fosse outro, fosse substituído por uma atividade diferente, não haveria problema. O método de Ensino Universal terá sido seguido sempre que se criar uma forma de liberar a inteligência para operar seus caminhos de relação e comparação, para isso recorrendo a qualquer obra ou procedimento próprio. Isso porque, para Jacotot “tudo está em tudo” (JACOTOT, 1834JACOTOT, J.-J. Enseignement universel: langue maternelle. Paris: Chez Mansut Fils, 1834., p. VII), ou seja, toda e qualquer obra fabricada por um humano revela essa inteligência comum e igualmente partilhada por todos; acessível, portanto, a todos que se dispuserem a interagir de forma atenta com uma obra da inteligência humana e traduzi-la para si mesmo, por seus próprios recursos. Talvez por isso a repetição fosse um elemento importante no projeto de ensino da língua materna. As atividades seriam constantemente repetidas e, da repetição, nasceria a verificação do aprendizado.

O aluno repete e escreve desde o começo. Verifica-se observando o que o aluno esqueceu para fazê-lo repetir. Quando o aluno esqueceu alguma coisa, anote-se para lhe perguntar outra vez. O espírito não aprende, dizemos. Se, no entanto, a criança tem seu próprio espírito, ela não tem necessidade do vosso. Se ela não tiver, você não saberá lhe entregar o seu. Mas a ciência se aprende. O professor deve, portanto, se ocupar sobretudo de enriquecer a memória de seus alunos

(JACOTOT, 1834JACOTOT, J.-J. Enseignement universel: langue maternelle. Paris: Chez Mansut Fils, 1834., p. 16, tradução nossa).

O aluno deveria atentar para as palavras, identificar os termos que lia, bem como ser capaz de reconhecer as sílabas e as letras. Jacotot entende que a ortografia da palavra deveria ser perfeitamente reconhecível. Ele evocava a “a anatomia exata da composição das palavras” (JACOTOT, 1834JACOTOT, J.-J. Enseignement universel: langue maternelle. Paris: Chez Mansut Fils, 1834., p. 18). A língua – diz o educador – seria intérprete de nosso pensamento. Jacotot recomenda que o mestre verifique cuidadosamente se o aluno sabe ortografia: “a ortografia é a base de uma infinidade de reflexões que o espírito não fará jamais se a memória não lhe apresentar diretamente todas as letras, todas as sílabas” (JACOTOT, 1834JACOTOT, J.-J. Enseignement universel: langue maternelle. Paris: Chez Mansut Fils, 1834., p. 24). Para Jacotot, o aluno deverá aprender de cor o texto estudado a fim de escrever pelo exemplo e de memória. O aluno saberá ler suficientemente para decifrar e compreender o livro, verificando o que ainda ignora e o que já aprendeu. Como fazer o aluno aprender o livro de cor?

Todos os dias, em horas determinadas, deve-se fazer a repetição inteira; não se deve recortar a obra sem uma absoluta necessidade. Por exemplo, é impossível recitar todos os dias os seis primeiros livros de Telêmaco; mas é necessário fazer essa repetição uma vez por semana, como é de hábito nos estabelecimentos de Ensino Universal

(JACOTOT, 1834JACOTOT, J.-J. Enseignement universel: langue maternelle. Paris: Chez Mansut Fils, 1834., p. 28-9).

Trata-se de uma passagem importante, não porque sugira um procedimento necessário, mas porque desfaz qualquer tentativa de sugerir que a proposta de Jacotot seria uma pré-figuração das tendências não diretivas de um aprendizado no qual o papel do professor seria minimizado. Por outro lado, ela reforça sua noção de unidade da inteligência, pois Jacotot acredita que o conhecimento de um único livro levaria ao estabelecimento de relações e à descoberta do próprio funcionamento da inteligência humana. O aluno aprenderia de cor e haveria sabedoria nessa técnica de aprendizado, que dispensaria o papel de um professor explicador: “quando o aluno sabe de cor, ele deve repetir sem cessar com os outros. A repetição se faz em comum; cada um recita na sua vez sem interrupção, e o mais rapidamente possível para se poupar tempo” (JACOTOT, 1834JACOTOT, J.-J. Enseignement universel: langue maternelle. Paris: Chez Mansut Fils, 1834., p. 32). Em seguida, passa-se a dirigir a atenção para o sentido das palavras. Jacotot pondera: será que o Telêmaco, a ser usado nesse processo, constitui um livro indispensável para o Ensino Universal? Ele chega à conclusão de que não. Nada é indispensável. Contudo, trata-se de uma história bem-escrita e plena de reflexões, o que facilitaria o aprendizado.

Jacotot chama ainda a atenção do professor sobre as reprimendas que esse poderá dar nos alunos considerados indóceis. Diz ele que o orgulho da criança se irrita com as reprimendas: “se o professor tem qualquer defeito, qualquer coisa ridícula, qualquer tique imperceptível para todas as outras pessoas, a criança imediatamente descobre e o exagera” (JACOTOT, 1834JACOTOT, J.-J. Enseignement universel: langue maternelle. Paris: Chez Mansut Fils, 1834., p. 35). Reforçar a repetição sem repreender excessivamente os alunos seria o grande segredo do ensino. Nesse sentido, percebe-se que, se Jacotot recusa a ideia de um mestre explicador, ele não recusa sua responsabilidade. É o professor quem determina as atividades; e o exercício da memória deve ser incentivado a efetuar “repetições perpétuas” (JACOTOT, 1834JACOTOT, J.-J. Enseignement universel: langue maternelle. Paris: Chez Mansut Fils, 1834., p. 36). O livro de Fénélon é apresentado como um exemplo para a juventude, seja pelo estilo, seja pelo conteúdo. A ideia de Jacotot era fundamentalmente que o texto de Fénélon fosse mobilizado para desenvolver as habilidades concernentes ao conhecimento, mas também à dimensão dos costumes.

A razão, que não nos abandona jamais, nos foi dada para desenvolver nossas virtudes e para eliminar nossos vícios; mas seu triunfo não pode jamais ser completo. Felizes aqueles que podem compreender a sabedoria de Fénélon! Seu livro, como sua pessoa, seus costumes como seu estilo, podem ser propostos como modelos à juventude. Além disso, essa minha opinião não é exclusiva. Há exatidão, mas também imprecisão em tudo que eu digo, como também nas objeções de meus adversários. O tom que eles dão, por vezes, faz crer que eles se veem como infalíveis. Se eles exercitarem sua memória, eles se recordarão que o homem se engana muito frequentemente. [...] Isso é o que nós fazemos no Ensino Universal: nós não somos mais razoáveis que os outros em virtude dele; mas nós temos necessidade de que a experiência seja exitosa e nós faremos isso com atenção

(JACOTOT, 1834JACOTOT, J.-J. Enseignement universel: langue maternelle. Paris: Chez Mansut Fils, 1834., p. 38-39).

Jacotot recomenda, ainda, que as questões a serem feitas para o aluno não sejam aquelas impressas no livro. É necessário ensinar o aluno a abstrair, o que ele chama de generalizar. Isso, porém, não se dá pelo comando de um mestre. É uma faculdade que se exercitará vencendo o fenômeno da distração, a qual é vista como grande causa dos erros e nossa grande inimiga. É importante observar que Jacotot diferencia o modo de aprendizado da infância em relação àquele da idade adulta, chegando a dizer, acerca disso, que “se é verdade que os homens são crianças grandes, e que as crianças são homens pequenos, não há nada mais parecido com a criança do que o homem que não faz uso de sua razão” (JACOTOT, 1834JACOTOT, J.-J. Enseignement universel: langue maternelle. Paris: Chez Mansut Fils, 1834., p. 46). Sendo assim, se a criança não compreender um dos personagens de Fénélon, será em virtude de atributos abstratos, como a sabedoria, a prudência e outras virtudes. Todavia, a criança, pouco a pouco, fortalecerá o sentido da razão e alcançará essa dimensão do que Jacotot compreende por generalização.

Jacotot observa que aquilo que de fato sabemos somos capazes de repetir de inúmeras formas. Repetir, copiar e imitar era método de aprendizado. Diz o educador que “tudo está em tudo”. O aluno deveria comparar as coisas, após repeti-las, de modo a verificar suas diferenças e semelhanças entre si. O objeto, então, deveria se apresentar sob diferentes formas. A tese primordial de Jacotot é que “a inteligência é igual em todos os homens; ela é o elo comum do gênero humano” (JACOTOT, 1834JACOTOT, J.-J. Enseignement universel: langue maternelle. Paris: Chez Mansut Fils, 1834., p. 38). Jacotot considerava que a igualdade é natural na espécie e todas as desigualdades seriam adquiridas pelas circunstâncias: “é precisamente porque nós somos todos iguais pela natureza que nós nos devemos tornar desiguais pelas circunstâncias” (JACOTOT, 1834JACOTOT, J.-J. Enseignement universel: langue maternelle. Paris: Chez Mansut Fils, 1834., p. 119).

Aprender, comparar e verificar: esse era o modo do Ensino Universal – e a formação de uma inteligência que é comum, partilhada pela espécie, dar-se-á por uma educação pelo ouvido. Supõe Jacotot que se aprende pelo ouvido antes de se aprender pelos olhos. O Ensino Universal, preconizado pelo educador, supunha, assim, não apenas o aprendizado pela visão, mas, sobretudo, um aprender de ouvido. Além disso, se os alunos precisassem ler, deveriam também elaborar seus próprios textos, construir a obra de sua própria autoria. Diz, sobre isso, Jacotot que “tudo está em tudo é a mnemônica do Ensino Universal” (JACOTOT, 1834JACOTOT, J.-J. Enseignement universel: langue maternelle. Paris: Chez Mansut Fils, 1834., p. 105). Jacotot não considera inédita sua descoberta:

O Ensino Universal não é nada. Ele não é uma novidade. É o método antigo [a explicação] que é uma novidade, uma verdadeira descoberta, cujos aperfeiçoamentos sucessivos são lugares de repouso que alongam a rota mais e mais. A gente se esforça para se aperfeiçoar e a cada dia nós conseguimos tornar o estudo mais fastidioso. Para saber exclusivamente a regra dos particípios, é necessário devorar volumes. O infinito está lá, sem dúvida, como em toda parte; eu o sei bem. Mas todos esses princípios constituem o começo ou o fim de um caminho mais curto? Eis a questão, e eu afirmo que eu a resolvo não por mim, mas pela natureza. Eu imito sua marcha, e os outros a modificam. É necessário que isso seja assim, porque nós chegamos seis vezes, sete vezes, oito vezes antes deles

(JACOTOT, 1834JACOTOT, J.-J. Enseignement universel: langue maternelle. Paris: Chez Mansut Fils, 1834., p. 128-129).

Jacotot provoca o professor ao dizer que “o aluno irá bem sem vós” (JACOTOT, 1834JACOTOT, J.-J. Enseignement universel: langue maternelle. Paris: Chez Mansut Fils, 1834., p. 150). Se um adulto deseja aprender, ele deveria ser colocado na estrada, seria necessário apenas protegê-lo para que não tombasse no caminho. Se é uma criança que deseja aprender, o procedimento é o mesmo recomendado para os adultos, embora, caso fosse necessário, o mestre deveria sim tomar o aluno pela mão e desafiar a preguiça de seu espírito. Os esforços do educando deveriam ser encorajados, seus sucessos deveriam ser reconhecidos por meio de elogios. Nessa direção, o estudo poderia, a partir dali, tornar-se objeto de elogios. Jacotot age, pois, na vontade do aluno não em sua inteligência; coloca-o a caminho de sua própria emancipação ao se recusar a direcionar o caminho de sua inteligência.

A regra única do Ensino Universal precisaria, em qualquer dos casos, ser cumprida: não se deve aprender um sinal isolado dos fatos que ele representa sem respeitar as circunstâncias nas quais se encontrava seu autor. É preciso inteligência e atenção para que se possa ver tudo em tudo. Jacotot acredita que a repetição no processo pedagógico deve ser contínua. Deve ser uma estratégia; um método mesmo. Com a repetição, poder-se-á ir mais rapidamente. Jacotot destaca que os livros todos se reportam a outros livros, e que essa vasta biblioteca da cultura universal exigiu repetição de saberes e de fatos. Trata-se, pois, de criar uma comunidade de leitores, de intérpretes e narradores. Uma comunidade de iguais.

Além do mais, as pessoas que fossem educadas pelos princípios do Ensino Universal não seriam orgulhosas, até porque reconheceriam que os primeiros elementos do conhecimento estão por toda parte e são potencialmente partilhados por todos. A ideia de que “tudo está em tudo” possibilita para o sujeito a aquisição de um conjunto ilimitado de conhecimentos novos: “não se trata aqui de ensinar a matemática; esse é um objeto à parte: trata-se apenas de preparar o aluno para aprendê-la um dia, dando-lhe alguns conhecimentos positivos e verdadeiros que servirão de fundamento sólido a todos aqueles que ele adquirirá por si mesmo em seguida” (JACOTOT, 1834JACOTOT, J.-J. Enseignement universel: langue maternelle. Paris: Chez Mansut Fils, 1834., p. 206).

A compreensão de que todos os alunos e, no limite, todas as pessoas possuem a mesma inteligência é – como vimos – um axioma do pensamento de Jacotot. Trata-se de um pressuposto, um princípio. É preciso que, acima de tudo, o mestre revele confiança em seu discípulo e essa confiança decorre da ideia de que todos são iguais e, por definição, capazes de aprender. Por isso, Jacotot é taxativo em relação à suposta superioridade do sexo masculino: “vocês sabem que eu não acredito na superioridade de uma inteligência sobre uma outra” (JACOTOT, 1834JACOTOT, J.-J. Enseignement universel: langue maternelle. Paris: Chez Mansut Fils, 1834., p. 225). O princípio de Jacotot é acreditar que seus discípulos são capazes de raciocinar como ele. Daí a necessidade de interrogá-los sobre aquilo que eles tenham aprendido: uma interrogação que se volta não para um aluno – concebido como imaturo – mas a uma pessoa.

Assim, os alunos precisam falar, a fim de mostrar ao professor que raciocinam e são capazes de aprender. Jacotot dizia fazer com que os discípulos soubessem aquilo que ele ignorava. Os professores, segundo ele, seriam mais úteis se permitissem que os alunos soubessem o que eles – mestres – ignoram. Todavia, para tanto, é fundamental que se ensine o indivíduo a caminhar por si mesmo ao encontro do conhecimento. Em qualquer hipótese, havia, entretanto, a crença comeniana de um método único, passível de ensinar qualquer coisa a qualquer um:

[...] vocês reconhecem bem nosso método. Nós pegamos um livro e o relacionamos com todos os outros. Poder-se-ia perguntar por que se nomeou esse ensino com o título de universal. A resposta poderia ser a de que esse nome foi dado porque ele é aplicável a tudo, e pode ser endereçado àqueles que querem aprender seja o que for

(JACOTOT, 1834JACOTOT, J.-J. Enseignement universel: langue maternelle. Paris: Chez Mansut Fils, 1834., p. 390).

Jacotot destaca, ainda, que compreende que esse seria o único método que poderia receber o atributo de universal, dado que poderia quer ensinar lógica, quer ensinar matemática. No método de Ensino Universal, o aluno se iguala a seu mestre em inteligência e em capacidade de aprender. O reconhecimento de que todas as inteligências são iguais tem como decorrência a elevação do espírito. O emblema do método poderia ser traduzido pelas seguintes palavras de seu autor: “saiba qualquer coisa, relacione-a com todo o resto por vossa reflexão e verifique as reflexões de outro sobre aquilo que você sabia” (JACOTOT, 1834JACOTOT, J.-J. Enseignement universel: langue maternelle. Paris: Chez Mansut Fils, 1834., p. 398).

Jacotot recomenda que as crianças sejam liberadas do que ele chama de “explicadores embrutecidos” (JACOTOT, 1834JACOTOT, J.-J. Enseignement universel: langue maternelle. Paris: Chez Mansut Fils, 1834., p. 414). Além desses explicadores, Jacotot desdenha também dos examinadores, “mais embrutecidos ainda”. Enfim, a grande descoberta de Jacotot foi ser possível ensinar aquilo que se ignora, já que a tarefa do professor não é oferecer ao aluno a compreensão que lhe falta, mas mostrar que o aluno é capaz de registrar toda e qualquer obra da inteligência humana, afinal, “tudo está em tudo”. À medida, pois, que o aluno aprende sem explicações, torna-se absolutamente desnecessária a existência de um “mestre explicador” (JACOTOT, 1834JACOTOT, J.-J. Enseignement universel: langue maternelle. Paris: Chez Mansut Fils, 1834., p. 445). Todas as pessoas já aprenderam coisas em sua vida sem um mestre explicador. Diz Jacotot sobre o tema:

O Ensino Universal existe realmente desde o começo do mundo paralelamente a todos os métodos explicadores. Esse ensino, por si mesmo, realmente formou todos os grandes homens. O artesão em sua oficina, desde que ele queira refletir, se aperfeiçoa sozinho. Todo homem fez essa experiência mil vezes em sua vida, e, entretanto, jamais ele teve a ideia de contá-la a outra pessoa. Eu aprendi inúmeras coisas sem explicações, eu creio que vocês, assim como eu, também possam fazê-lo

(JACOTOT, 1834JACOTOT, J.-J. Enseignement universel: langue maternelle. Paris: Chez Mansut Fils, 1834., p. 448).

O Legado de Jacotot

O trabalho de Jacotot, reafirmado por seus contemporâneos que se apresentavam como estudiosos do método universal, deixa claro um aspecto: a ideia de universalidade do método é antes um pressuposto político do que pedagógico. A compreensão de que se pode aprender sem um mestre explicador é um axioma que tem um profundo significado político. Era necessário que todos aprendessem. Para tanto, nada melhor do que postular a igualdade primordial das inteligências. Ora, se há o princípio de que todas as inteligências são iguais, por decorrência, segue-se que todos são capazes de aprender. Essa não é uma determinação pedagógica. É antes um postulado político. Isso fica claro tanto na obra de Jacotot quanto na de seus seguidores mais próximos.

Ainda nos anos 1830, saíram obras que faziam comentários sobre o método de Jacotot. Uma delas, de autoria de Joseph Payne, saiu em Londres, no ano de 1830, editada pela R. Stephens, Southampton Row, Russel Square: A Compendious Exposition of the Principles and Practice of Professor Jacotot’s Celebrated System of Education Originally Established at the University of Louvain, in the Kingdom of the Netherlands. Essa obra enfatizava a hipótese de Jacotot, segundo a qual não é necessário explicar para ensinar, já que “o aluno pode ser preparado para descobrir por si mesmo tudo que é exigido para que possa aprender” (PAYNE, 1830PAYNE, J. A compendious exposition of the principles and practice of professor Jacotot’s celebrated system of education: originally established at the University of Louvain in the Kingdom of the Netherlands. London: Printed for R. Stephens, Southampton Row, Russell Square, 1830., p. V). Tudo poderia ser, então, aprendido sem a âncora de um instrutor. O princípio de Jacotot, aqui reproduzido, é que “as crianças mais pequenas poderiam perfeitamente compreender os termos das mais complexas noções abstratas” (PAYNE, 1830PAYNE, J. A compendious exposition of the principles and practice of professor Jacotot’s celebrated system of education: originally established at the University of Louvain in the Kingdom of the Netherlands. London: Printed for R. Stephens, Southampton Row, Russell Square, 1830., p. 4).

Também em 1830, foi publicada, em Paris (pela gráfica do Journal d’Éducation), a quinta edição do Traité Complet de la Méthode Jacotot Rendue Acessible a Toutes Les Intelligences, por M. A. Durietz, que era um membro de várias sociedades científicas e havia sido professor de escola, diretor da instrução pública e um dos mais antigos propagadores do método de Jacotot. A obra– como era hábito na época – era dedicada aos professores, aos pais de família e a todas as pessoas que se ocupam da educação. Tratava-se de um manual prático, que ensinava os professores a fazer uso do método de Jacotot, mostrando alguns aspectos da teoria, mas, sobretudo, visando ensinar a facilitar a execução da prática de ensino preconizada pelo educador.

O método de Ensino Universal é compreendido como uma estratégia de emancipação intelectual. Tratar-se-ia de uma experiência sobre o entendimento que, embora não sendo inédita, constitui um impulso para o aprendizado das diferentes ciências, levando o aluno a se embrenhar por todos os ramos do conhecimento humano. O método é apresentado como rápido, fundado sobre princípios simples, dotado de meios adequados, passível de ser facilmente aplicado, enfim, um método excelente... Na verdade, o método repousaria sobre a natureza da inteligência humana; e daí se explicava o seu êxito. A premissa de que há uma inteligência igual em todas as pessoas seria o fundamento do método: uma “inteligência sem fronteiras” (DURIETZ, 1830DURIETZ, A. Traité complet de la méthode Jacotot rendue accessible a toutes les intelligences: ou Manuel pratique et normal. 5. ed. Paris: L. Dureuil, Place de la Bourse au Bureau du Journal d’Éducation, 1830., p. 33). Sob tal perspectiva, Durietz considerava o que discorreremos a seguir.

Achille GuillardGUILLARD, A. Biographie de J. Jacotot: fondateur de la méthode d’émancipation intellectuelle. Paris: Chez E. Dentu, Libraire-Éditeur (publié par les disciples de L’émancipation intellectuelle), 1860. publicou, em Paris, no ano de 1860, em nome dos “discípulos da emancipação intelectual”, pela Chez E. Dentu Libraire-Éditeur, o livro intitulado Biographie de J. Jacotot: Fondateur de la Méthode d’Emancipation Intellectuelle. O autor Achille Guillard era doutor em ciências, membro da Universidade da França, conhecido por várias obras de estatística e de botânica e, fundamentalmente, um antigo discípulo de Jacotot na França, responsável por introduzir e propagar seu método por trinta anos naquele país.

D’ArbelD’ARBEL, M. D. Enseignement universel – méthode de M. Jacotot: cours complet d’écriture théorique et pratique ou moyen facile et prompt d’apprende a écrire sans maître. Paris: A. Pihan Delaforest, 1829. escreveu, em 1829, o Enseignement Universel – Méthode de M. Jacotot. Cours Complet d’Ecriture Théorique et Pratique ou Moyen Facile et Prompt d’Apprendre a Ecrire sans Maitre. D’Arbel era professor de escrita, de língua francesa, de geografia, de matemática e trabalhava com escrituração comercial. Sua obra foi elaborada em Paris para ser adotada pelos estabelecimentos de ensino daquela cidade. A ideia do autor era descrever o método de Jacotot e indicar os melhores procedimentos para sua adoção. Segundo D’Arbel, o método universal consistia em uma das mais belas descobertas do século XIX, do que decorriam a admiração e o respeito que ele tinha por essa metodologia, cujo nome seria perfeitamente justificado.

O método – recorda D’Arbel – deve ser utilizado independentemente da idade e da classe social. Ele pode ser aplicado até a crianças de 5 anos ou menos. Nenhuma pessoa, qualquer que seja a idade, o sexo ou a classe social, tem necessidade de um mestre explicador. A ideia é que o professor acompanhe, mas nem critique, nem corrija. Essa ideia, de um professor que observa, registra e analisa sem criticar parece fundamental aos adeptos do método. Pode-se dizer que, pelo método de Jacotot, a emancipação intelectual se processa porque o mestre faz com que o aluno acredite que ele descobre as coisas por si mesmo – que ele constrói o conhecimento por si próprio, sem reparar nas observações e no processo de correção que, sim, o professor faz. É por acreditar em seu aluno que se cumpre o que se poderia qualificar aqui como “profecia autorrealizadora”.

Também Auguste Guyard tem um trabalho de comentário do método de Jacotot. Publicado no século XIX sob o título Jacotot et la méthode..., esse livro também se propõe ser uma explicação sobre o método que prescinde do mestre explicador:

[...] um método de ensino que, reabilitando a ignorância e a elevando ao nível da ciência, permite a todo o pai de família pobre e ignorante dirigir ele mesmo a instrução de seus filhos, lhes ensinar as artes, as ciências, tudo o que ele ignora, de lhes preparar para a escola politécnica

(GUYARD, s. d.GUYARD, A. Jacotot et sa méthode... [S. l.] : Nabu Public Domain Reprints, s. d., p. 5).

Isso elevaria o próprio nível da civilização, dado que, com o uso desse método, inclusive pelas famílias, seria possível ensinar a Europa toda a ler, escrever e contar, o que permitiria dissipar as trevas da ignorância. Segundo Guyard, Jacotot, naqueles anos, tinha discípulos em todas as partes do mundo: “o sol da emancipação intelectual se elevou sobre o horizonte intelectual para não mais se pôr” (GUYARD, s. d., p. 10).

Considerações Finais: O Postulado Político do Aprendizado de Todos

Concluir um texto que versa sobre as experiências e ideias de Jacotot – e sobre sua reconfiguração narrativa em Rancière –, sugerindo que elas possam nos oferecer algumas “lições” para o presente, pode soar paradoxal. Afinal, não só essas experiências se encontram distantes no tempo e no espaço, mas jamais se propuseram a pensar acerca das transformações a que a forma escolar teve de se submeter em função do distanciamento social que resultou na separação física entre professores e alunos; na destruição da noção de uma sala de aula como totalidade; e na inviabilização da distinção entre o espaço privado da criança e o espaço público do aluno. A isso acresce-se o fato de que ambos – Jacotot e Rancière – classificam como “embrutecedores” todos os esforços explicativos por meio dos quais um professor – ou um intelectual – atribui a si mesmo a posição de “porta-voz” – alguém cujo saber seria capaz de conduzir o outro por um caminho pré-concebido como o “mapa” para sua emancipação. Não obstante, o subtítulo da própria obra de Rancière é precisamente Cinco Lições sobre Emancipação Intelectual...

Mas há lições e lições. Em que se assemelham as lições que aprendemos ao ler um romance, ao escutar as narrativas de nossos antepassados e aquelas nas quais alguém nos explica as causas de um acontecimento ou o suposto sentido de uma obra na certeza de que, sem suas explicações, pouco ou nada entenderíamos? No primeiro caso, crê Jacotot, nós traduzimos para nós mesmos e para o nosso presente o sentido de uma obra da inteligência humana; colocamo-nos, simultaneamente, como seus destinatários e coautores. Lemos ou ouvimos uma história que nos convoca a pensar nossas experiências e nosso presente; a trilhar um caminho desconhecido com a única certeza de que somos, todos, igualmente capazes de trilhar nossos caminhos singulares. São lições despojadas de um gabarito supostamente capaz de medir a distância entre cada tradução dessa experiência e um resultado final almejado e comum. Por isso, as lições de Jacotot residem menos nas respostas que dá aos desafios que viveu do que no quanto suas narrativas agem sobre a nossa vontade de inscrever dissensos. Elas não nos ensinam como enfrentar o desafio do presente, mas transmitem a coragem para, por exemplo, não temer turvar as águas do lago plácido dos consensos pedagógicos.

Consensos esses partilhados por todos aqueles que assumem que nossos desafios residem, sobretudo, em achar novas formas de continuar a fazer o que fazíamos, embora sugiram diferentes respostas quanto a técnicas e tecnologias mais adequadas a esse fim. Consensos quanto à partilha dos lugares entre os que pensam as soluções e aqueles que devem aprendê-las para aplicá-las. Assim tem, assegura-nos Jacotot, caminhado e progredido a pedagogia: sempre prometendo caminhos novos, mais eficazes, mais suaves, mais humanitários para aperfeiçoar a distância que ela mesma cria, com a promessa de que, finalmente, estamos progredindo em direção à emancipação, à igualdade, à racionalidade, à eficácia: prometidas sempre para amanhã, como fruto de uma trajetória pensada de antemão pelos que sabem, e dirigidas aos que ignoram.

Contudo podemos, de outra forma, expor nossa tradução dessa experiência como um convite. Um convite a romper esse círculo da impotência que afirma que há um lugar próprio a cada um: aqueles que, detentores de um saber distintivo, pensam e traçam caminhos para os que deles se encontram despojados. Um convite a que cada professor pense por si mesmo quais são seus desafios nesse novo contexto e como enfrentá-los, e o faça assumindo como seu pressuposto a igual capacidade de todos professores e seus alunos de encontrar seus métodos, suas formas próprias de responder às exigências do presente. Um convite a fazer da escola um tempo e um espaço, por exemplo, no qual a lógica de identificação, que preside as tecnologias de informação, seja desafiada. Essa, como bem o sabemos, é uma lógica pautada no ideal de oferecer a cada um o seu lugar próprio: os assuntos que lhe interessam, os grupos com os quais compartilha opiniões e interesses. Uma lógica, portanto, de reiteração da partilha desigual dos lugares sociais: a cada um o que lhe é próprio!

Todavia, não seria a emancipação precisamente a possibilidade sempre presente de desidentificação com o que nos é apontado como nosso lugar próprio (de intelectual, de professor, de aluno, de aluna, de mulher, de pessoa negra...)? Não seria a emancipação justamente a possibilidade de romper com o que é considerado próprio a cada um para poder habitar mundos que até então lhe eram recusados, porque tidos como impróprios? Não seria precisamente esse o movimento dos operários do século XIX que recusavam a redução de sua identidade à condição de trabalhadores para se constituírem poetas e filósofos, criando e compartilhando um tempo livre (ou seja, skholé!) que não lhes era próprio? Não seria essa mesma conquista de um tempo livre que motoboys, caixas de supermercado, prestadores de serviços gozam nos saraus da Coperifa, em que se descobrem poetas? Não seria essa mesma desidentificação que nossos alunos operam quando se tornam conscientes de sua igual capacidade de ler e se emocionar com um poema, atuar em uma peça teatral, ler e escrever contos? Ao viver a experiência de que as identidades que se lhes impõem – de favelados, comerciantes de balas nos semáforos, membros de tribos e gangues, oprimidos – são arbitrárias e podem ser desafiadas pela disposição de se tornarem alunos com igual direito e igual inteligência para fruir e criar obras que atestam seu pertencimento à comunidade dos iguais?

Para que um professor opere como emancipador, assevera Jacotot, basta que ele mesmo se emancipe da crença na desigualdade; que aja na vontade de seus alunos para que se concebam como iguais e criem cenas de verificação da igualdade. Trata-se menos de um problema técnico ou mesmo conceitual do que de uma crença política (o amor à igualdade) e um desafio à inteligência: como tecer, aqui e agora, cenas e planos de igualdade de todos com qualquer um? Trata-se, pois, de uma lição simples, acessível a todos, mas que costuma ser obliterada por questões complexas e especializadas (inacessíveis, portanto, aos leigos e ignorantes), que reiteram as hierarquias dos modos de ser, pensar, ver e viver. Uma lição que desloca o problema do âmbito das nossas relações com as coisas para o âmbito de nossas escolhas de como viver uns junto aos outros.

A pandemia do Coronavírus certamente constitui um tempo no qual a história se acelerou (NÓVOA; ALVIM, 2021NÓVOA, A.; ALVIM, Y. C. Covid-19 e o fim da educação: 1870 – 1920 – 1970 – 2020. Revista História da Educação, São Leopoldo, v. 25, e110616, p. 1-19, 2021. https://doi.org/10.1590/2236-3459/110616
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, p. 3). As anteriores convicções sobre o ensino se esboroaram com a crise aguda que foi presenciada pelas escolas no decurso de uma época na qual a própria sala de aula se converteu em uma tela de computador ou de celular. O modelo institucional, que se configurou no processo de escolarização pública a partir do último quartel do século XIX, ficou comprometido. Nos meses mais intensos de pandemia, não havia mais a sala de aula com seu edifício próprio, com seus alunos agrupados, por idades e por nível de adiantamento, “sentados em carteiras escolares, arrumadas em fileiras” (NÓVOA; ALVIM, 2021NÓVOA, A.; ALVIM, Y. C. Covid-19 e o fim da educação: 1870 – 1920 – 1970 – 2020. Revista História da Educação, São Leopoldo, v. 25, e110616, p. 1-19, 2021. https://doi.org/10.1590/2236-3459/110616
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, p. 5), escutando uma lição de um mestre explicador, que fala para todos os seus alunos como se todos fossem um só. Essa forma escolar foi substituída por um improviso da escola em casa: uma escola na qual a família ganha protagonismo e os professores agem à distância, ministrando um conteúdo todo ele no formato virtual. Seria isso o desmoronamento da “forma escolar de socialização”, como descrita por Guy Vincent (1994)VINCENT, G. (dir.). L’éducation prisionnière de la forme scolaire: scolarisation et socialisation das les sociétés industrielles. Lyon: Presses Universitaires de Lyon, 1994..

Nóvoa e Alvim assinalam que esse momento de crise trouxe também uma fértil oportunidade para a revisão de modos escolares de instituição da realidade do ensino-aprendizado. Queiramos ou não, suas sugestões são, em alguma medida, compatíveis com a proposição do mestre ignorante de Jacotot/Ranciére:

  1. Em vez de uma educação em edifícios próprios, que funcionam de forma relativamente separada do resto da sociedade, pensemos no princípio da capilaridade educativa, isto é, de uma educação numa diversidade de tempos e espaços (escolas, casas, associações, centros de arte, de ciência e de cultura, empresas, comunidades etc.);

  2. Em vez do dia a dia escolar organizado apenas dentro da sala de aula, pensemos em novos ambientes educativos, abertos e flexíveis, nos quais possa ter lugar uma grande diversidade de atividades (estudo individual, estudo em grupo, trabalho de pesquisa e de criação, escrita individual e coletiva etc.);

  3. Em vez de um programa de ensino com disciplinas fixas, pensemos em combinar disciplinas e áreas transversais ou grandes questões do mundo, como, por exemplo, os objetivos do desenvolvimento sustentável, levando a cabo um ensino por temas e problemas, por pesquisa e criação;

  4. Em vez de professores exercendo as suas funções a título individual, pensemos em professores trabalhando colaborativamente, assumindo, como coletivo, a responsabilidade pela educação do conjunto dos alunos e da escola (NÓVOA; ALVIM, 2021NÓVOA, A.; ALVIM, Y. C. Covid-19 e o fim da educação: 1870 – 1920 – 1970 – 2020. Revista História da Educação, São Leopoldo, v. 25, e110616, p. 1-19, 2021. https://doi.org/10.1590/2236-3459/110616
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    , p. 15).

Será, entretanto, chegado o momento em que o significado político e pedagógico do formato da escola de Estado deixou de existir? Não nos parece. A lição da pandemia parece-nos ser, antes, a forma inusitada pela qual uma dada tecnologia – a cultura digital – penetrou na sala de aula. Quando tudo isso passar e a sala de aula voltar para a escola, será fundamental mobilizar as ferramentas do mundo da Internet para favorecer o aprendizado dos alunos em sala de aula. As plataformas digitais nos desafiam a propor novos significados para o ato de ensinar, criando uma ruptura nos sentidos que atribuímos ao exercício docente. Em suma, abre-se a oportunidade de um dissenso, ou seja, de uma nova configuração das formas de se pensar, dizer e agir no contexto das práticas educativas. Não se trata de propor que a bandeira por uma escola pública, gratuita, laica e de todos seja concebida como plataforma do passado, mas que o presente possa vir a efetivar novas formas de se conceber sonhos e projetos de incontáveis gerações de educadores comprometidos com a edificação de cenas de igualdade. A escola pública faz parte de tudo isso.

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Editor de Seção: Licínio C. Lima

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Ago 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    29 Mar 2021
  • Aceito
    28 Jun 2021
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