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PAULO FREIRE

‘As universidades estão em estado caótico’.

Paulo Freire. Ensinando sexo para criança de 5 anos. Todo mundo... maconha, bebida, droga. Dentro da universidade. Estado caótico. Eu prevejo o mesmo fenômeno para a saúde.”

Paulo Guedes

A fala da epígrafe, emitida pelo Ministro Guedes (GUEDES..., 2021GUEDES critica Fies e reclama de bolsa para filho de porteiro. Eu Estudante.29 abr. 2021. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/euestudante/ensino-superior/2021/04/4921198-guedes-critica-fiese-reclama-de-bolsa-para-filho-de-porteiro.html. Acesso em:10 de abril de 2021.
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) e solta no escuro de uma reunião com empresários da saúde privada, evidencia o que vai na alma dos que hoje dominam o Brasil. No discurso ministerial, unem-se duas chagas purulentas da ética social imperante. De um lado, o moralismo hipócrita, que exige obediência aos seus ditames mentirosos. As universidades públicas – Guedes repete um ex-Ministro da Educação do governo Bolsonaro – seria um caos permanente, onde os vícios seriam transmitidos de modo impune. Nada mais enxerga o funcionário de Jair Bolsonaro nos campi além do que os seus preconceitos apresentam. Ele não tem olhos nem ouvidos para seguir as pesquisas dos laboratórios, o saber colhido nas bibliotecas, os trabalhos que servem à sociedade como um todo. Atualizando de modo caricato os ataques ao ensino público na ditadura de 1964, Guedes mostra desconhecer o cabedal econômico trazido pelas universidades oficiais. Conhecimentos produzidos por elas garantem a sobrevida de empresas nacionais e mesmo estrangeiras no país. O Ministro da Economia nunca leu nenhum convênio entre os campi e empresas estratégicas na suposta área por ele dominada.

A ideia de saber que determina o cérebro do Ministro – aliás, de todo o governo, incluindo os setores da educação, da cultura e das tecnologias – é a mais singela possível. Em reunião ministerial célebre pelas atrocidades pronunciadas por pessoas que deveriam ser responsáveis, Guedes se vangloriou por ter lido alguns livros sobre a crise econômica mundial de 2008. Em qualquer exame de qualificação ao mestrado das universidades públicas, ele receberia uma nota baixa, com vergonha. Representando o sistema financeiro, que vampiriza a economia nacional, o saber exibido pelo Ministro da Economia é liliputiano. Não é por outro motivo que os seus enviados na Receita Federal teimam em aumentar os impostos sobre livros, porque, dizem eles, “pobre não lê”.

É em tal vazio de cultura, saliente na fala de Guedes, que entra a lembrança de Paulo Freire. A direita ideológica, hoje dominante no Estado brasileiro em suas três vertentes –Executivo, Legislativo, Judiciário –, habituou-se a transformar em demônio os que lutam pela cultura e pelo saber como bens acessíveis a toda a população. Freire é a antítese perfeita de tudo o que se faz hoje no Ministério da Educação e nos demais ministérios.

A biografia de Paulo Freire – educador por excelência – é conhecida mundialmente. Seus feitos no campo da vida popular também. Ao contrário do que impera nas “redes sociais” de agora, ele ensinou e ensina uma atitude ética em termos epistemológicos: antes de afirmar, fazer o exame; antes de emitir palavras, buscar seus sentidos; antes de empregar frases, aprender como elas são construídas. Assim, sua personalidade é a antítese de todo o impiedoso controle social hoje reiterado no Brasil. Em seus textos e crônicas, estão postas armas adequadas para vencer o perene pesadelo nacional. Esse vem de 1500 e se torna pior e mais desumano dia a dia. No atual governo, a violência de classe chega ao ápice. Milhões de pessoas são obrigadas, pela propaganda cúmplice da mídia, à crença sem perguntas, às certezas sem dúvidas, à ignorância.

Não foi assim a guerra de Paulo Freire e de seus seguidores, desde os meados do século XX. Ele buscou propagar o pensamento que analisa antes de julgar, a prudência antes de agir. Detenho-me em apenas um detalhe relevante de sua ação educacional. Eleições são o modo predileto dos dominadores para fingir uma democracia que nada tem a ver com a justiça. Se, até o século XX, as urnas eram dirigidas a “bico de pena” por oligarcas truculentos, hoje a diferença é mínima. Em vez do capataz com o relho para intimidar os eleitores pobres, temos os métodos eletrônicos para tanger os “negativamente privilegiados” (o termo é de Max Weber). Nos tempos de João Goulart, as batalhas eleitorais ainda se marcavam pelo bico de pena. Com seu método de alfabetização, Freire poderia garantir aos partidos políticos que apoiavam o governo -derrubado pelo golpe de 1964 – uma arma eleitoral de grande alcance. Seu método de alfabetização ensinava rapidamente as bases da escrita. Foi-lhe pedido, pelos mencionados políticos, que orientasse seu trabalho para criar eleitores semialfabetizados, tendo em vista vitórias políticas. Para votar, bastaria aos pobres escrever o nome e pouco mais. Freire sempre se recusou tal prática, mesmo quando, supostamente, ela favorecesse movimentos e partidos progressistas.

É a essa dignidade que se deve atentar, sobretudo hoje, quando se pronuncia o seu nome. O ensino do alfabeto não para nas primeiras letras. Ele segue para os campos mais complexos da cultura, das técnicas e das artes. A educação dos cinco sentidos (para recordar Karl Marx) é o alvo que faz justiça à dignidade do sujeito humano. A palavra de ordem do educador Paulo Freire sempre foi a de conduzir pessoas à condição de sujeito, não de objeto da educação. É contra semelhante projeto libertário que se voltam hoje os batalhões neoliberais, fascistas e inimigos da vida humana. Enquanto indivíduos como Paulo Guedes e seus cúmplices atacarem de modo tão vil o Método Paulo Freire, sua urgência se fará sentir entre nós. O cidadão pleno, consciente de sua dignidade e seus direitos, não aceita manipulações, não tolera ser diminuído em sua humanidade. É tempo de retomar a batalha pela cultura, tal como assumida por Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro, Paulo Freire e uma plêiade de educadores que hoje estão mais vivos do que nunca, no instante em que as forças da morte rondam o povo brasileiro.

References

Editora de Seção: Ivany Pino

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Out 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    07 Maio 2021
  • Aceito
    19 Ago 2021
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