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A DIMENSÃO CONSTITUTIVA DO MEIO: IMPLICAÇÕES POLÍTICAS E PRÁTICAS EM EDUCAÇÃO ESPECIAL

THE CONSTITUTIVE DIMENSION OF THE ENVIRONMENT: POLITICAL AND PRACTICAL IMPLICATIONS IN SPECIAL EDUCATION

LA DIMENSIÓN CONSTITUTIVA DEL MEDIO: IMPLICACIONES POLÍTICAS Y PRÁCTICAS EN EDUCACIÓN ESPECIAL

RESUMO

O objetivo deste texto é discutir como a definição das políticas e a legislação vigente em educação especial integram a ambiência sociocultural e afetam as relações e as posições sociais dos sujeitos envolvidos no interior da escola. Refletimos sobre as múltiplas dimensões do meio com base na teoria histórico-cultural e trazemos para análise uma situação de ensino no 5º ano de uma rede pública municipal. Acompanhamos o movimento interacional e enunciativo-discursivo, dando visibilidade analítica aos modos de participação de um aluno com deficiência intelectual. Argumentamos sobre a realização do trabalho pedagógico tendo em vista o desenvolvimento cultural do aluno e enfatizamos a função da escola no processo de humanização, pontuando as contradições das políticas que orientam o contexto macroestrutural.

Palavras-chave
Educação especial; Educação inclusiva; Desenvolvimento humano

ABSTRACT

The objective of this text is to discuss how the definition of policies and current legislation in special education integrate the sociocultural environment and affect the relationships and social positions of the subjects involved within the school. We reflect upon the multiple dimensions of the environment based on the historical-cultural theory, as well as bring to analysis a teaching situation in the 5th year of a Brazilian municipal public school. We follow the interactional and enunciative-discursive movement, giving analytical visibility to the ways of participation of a student with intellectual disabilities. We argue about the pedagogical work in view of the student’s cultural development and we emphasize the social function of school in the humanization process, pointing out the contradictions of the policies that guide the macrostructural context.

Keywords
Special education; Inclusive education; Human development

RESUMEN

El objetivo de este texto es discutir cómo la definición de políticas y legislaciones vigentes en la educación especial integran el entorno sociocultural y afectan las relaciones y posiciones sociales de los sujetos involucrados dentro de la escuela. Reflexionamos sobre las múltiples dimensiones del entorno a partir de la teoría histórico-cultural y traemos al análisis una situación de enseñanza en el 5º año de una red pública municipal brasileña. Seguimos el movimiento interaccional y enunciativo-discursivo, dando visibilidad analítica a los modos de participación de un alumno con discapacidad intelectual. Argumentamos sobre la realización del trabajo pedagógico en vista del desarrollo cultural del alumno y destacamos la función de la escuela en el proceso de humanización, señalando las contradicciones de las políticas que orientan el contexto macroestructural.

Palabras clave
Educación especial; Educación inclusiva; Desarrollo humano

Introdução

A recente democracia no Brasil, instituída nos últimos trinta anos, traz em sua estrutura fragilidades e disputas dissonantes no campo dos direitos humanos. Nos anos 2000, presenciamos esforços no campo social, com a instituição de políticas de Estado e de governo muitas vezes contraditórias para o enfrentamento às desigualdades. Nesse cenário, com uma importante atuação de movimentos sociais, vivenciamos a intensificação de discursos nos planos político e legislativo em prol da universalização da educação e da garantia dos Direitos Humanos que concernem às pessoas com deficiência (LANNA JÚNIOR, 2010LANNA JÚNIOR, M. C. M. História do movimento político das pessoas com deficiência no Brasil. Brasília, DF: Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, 2010. Disponível em: https://www.slideshare.net/RosaneGafa/histria-do-movimento-poltico-das-pessoas-com-deficincia-no-brasil#:~:text=Na%20hist%C3%B3ria%20do%20Movimento%20das%20Pessoas%20com%20Defici%C3%AAncia,reunidos%2C%20elegeram%20como%20estrat%C3%A9gia%20pol%C3%ADtica%20privilegiada%20a%20. Acesso em: mar. 2017.
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; KASSAR, 2011KASSAR, M. C. M. Educação especial na perspectiva da educação inclusiva: desafios da implantação de uma política nacional. Educar em Revista, Curitiba, n. 41, p. 61-79, 2011. https://doi.org/10.1590/S0104-40602011000300005
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).

Após um longo período de ditadura cívico-militar (1964-1985), na luta por um Estado democrático, destaca-se a efetiva participação do movimento das pessoas com deficiência na elaboração e no lançamento da Constituição Cidadã de 1988 (BRASIL, 1988BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Presidência da República, 1988.). Na Constituinte, em meio a muitos embates, uma conquista importante foi a mudança do modelo assistencialista para o paradigma dos direitos humanos. Ou seja, de um modelo sedimentado em estratégias caritativas, que objetivavam suprir as necessidades, reiterando a dependência e a tutela, para uma perspectiva de política pública em que as pessoas com deficiência passassem a ser concebidas como sujeitos de direitos (SIEMS-MARCONDES; CAIADO, 2013SIEMS-MARCONDES, M. E. R.; CAIADO, K. R. M. Educação especial: da filantropia ao direito à escola. In: CAIADO, K. R. M. (org.). Trajetórias escolares de alunos com deficiência. São Carlos: EDUFSCar, 2013. p. 35-64.).

O capítulo intitulado “Tutelas especiais”, inicialmente previsto para pessoas com deficiência, foi retirado do texto perante a demanda de igualdade de direitos. A principal reivindicação foi de que os “dispositivos constitucionais voltados para as pessoas com deficiência deveriam integrar os capítulos dirigidos a todos os cidadãos” (LANNA JÚNIOR, 2010LANNA JÚNIOR, M. C. M. História do movimento político das pessoas com deficiência no Brasil. Brasília, DF: Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, 2010. Disponível em: https://www.slideshare.net/RosaneGafa/histria-do-movimento-poltico-das-pessoas-com-deficincia-no-brasil#:~:text=Na%20hist%C3%B3ria%20do%20Movimento%20das%20Pessoas%20com%20Defici%C3%AAncia,reunidos%2C%20elegeram%20como%20estrat%C3%A9gia%20pol%C3%ADtica%20privilegiada%20a%20. Acesso em: mar. 2017.
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, p. 65).

Um importante marco da Constituição de 1988 é a explicitação da responsabilização do Estado pela educação da pessoa com deficiência e a formulação, em lei, do atendimento educacional especializado, preferencialmente, na rede regular de ensino. Se a formulação em termos de lei visa garantir a oferta do atendimento educacional especializado no âmbito da educação pública, o termo preferencialmente deixa espaço para a participação das instituições privadas-assistenciais, as quais historicamente disputam o financiamento público junto com uma forma de atendimento educacional que traz implicada a marca da filantropia e o caráter de tutela.

É na virada do século XXI que os princípios da educação inclusiva, baseados no respeito aos direitos, na valorização da diversidade, no atendimento das necessidades individuais e na acessibilidade (CAIADO; LAPLANE, 2009CAIADO, K. R. M.; LAPLANE, A. L. F. Programa Educação Inclusiva: direito à diversidade – uma análise a partir da visão de gestores de um município-polo. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 35, n. 2, p. 303-315, 2009.https://doi.org/10.1590/S1517-97022009000200006
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), passam a reger de forma mais contundente os textos das políticas públicas. Em decorrência dessas políticas, foi lançada, em 2008, a “Política Nacional de Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva” (PNEEPEI) (BRASIL, 2008BRASIL. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Documento elaborado pelo Grupo de Trabalho nomeado pela Portaria n. 555/2007, prorrogada pela Portaria n. 948/2007, entregue ao Ministro da Educação em 07 de janeiro de 2008. Brasília, DF: Ministério da Educação, 2008.). Alinhada ao discurso da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) (BRASIL, 2009BRASIL. Decreto n. 6.949, de 25 de agosto de 2009. Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007. Brasília, DF: Presidência da República, 25 ago. 2009.),1 1 O texto da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência já repercutia no Brasil desde 2007, após a assinatura na ONU e, posteriormente, no trâmite da ratificação. ratificada com valor de emenda constitucional, a PNEEPEI tinha o objetivo de assegurar um sistema educacional inclusivo, garantindo o direito à matrícula de alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação nas escolas de ensino regular. Para tal, as principais ações estavam organizadas em três eixos: 1) formação de professores; 2) acessibilidade; e 3) organização e oferta do Atendimento Educacional Especializado (AEE), o qual passa a nomear um serviço, descrito e regulamentado no Decreto n. 6.571 (BRASIL, 2008BRASIL. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Documento elaborado pelo Grupo de Trabalho nomeado pela Portaria n. 555/2007, prorrogada pela Portaria n. 948/2007, entregue ao Ministro da Educação em 07 de janeiro de 2008. Brasília, DF: Ministério da Educação, 2008.), posteriormente revogado pelo Decreto n. 7.611 (BRASIL, 2011BRASIL. Decreto n. 7.611, de 17 de novembro de 2011. Dispõe sobre a educação especial, o atendimento educacional especializado e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 17 nov. 2011.).

O AEE é conceituado como um serviço prestado por um “conjunto de atividades, recursos de acessibilidade e pedagógicos, organizados institucional e continuamente” (BRASIL, 2011BRASIL. Decreto n. 7.611, de 17 de novembro de 2011. Dispõe sobre a educação especial, o atendimento educacional especializado e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 17 nov. 2011., p. 2), de caráter complementar ou suplementar ao ensino regular, a ser ofertado na Sala de Recursos Multifuncionais em instituições públicas e/ou de caráter privado-filantrópico. Nessa estrutura, as atribuições do professor do AEE abarcam um amplo espectro de ações, que podem ser agrupadas em: ações de caráter técnico-pedagógico, voltadas para avaliação da funcionalidade e confecção de materiais e estratégias educacionais adequadas; ações de formação continuada junto à equipe escolar e aos responsáveis; e ações de cunho gerencial, com responsabilidade pelas parcerias intersetoriais, organização do serviço AEE e disponibilização de recursos tecnológicos e de acessibilidade. Percebe-se, nesse rol de atribuições, um esvaziamento do conteúdo pedagógico, pelo qual o professor da modalidade educação especial passa a ser um gestor dos recursos de aprendizagem dos alunos (GARCIA, 2013GARCIA, R. M. C. Política de educação especial na perspectiva inclusiva e a formação docente no Brasil. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 18, n. 52, p. 101-239, 2013. https://doi.org/10.1590/S1413-24782013000100007
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).

Vale destacar que essa organização do trabalho na modalidade educação especial, que tem como lócus a Sala de Recursos Multifuncionais, manteve a oferta de um serviço educacional de caráter técnico, paralelo à sala de aula regular, com foco na acessibilidade, não necessariamente no caráter pedagógico (SOUZA; PLETSCH, 2015SOUZA, F. F.; PLETSCH, M. D. Atendimento educacional especializado: das diretrizes políticas à escolarização dos alunos com deficiência intelectual. Educação e Fronteiras On-Line, Dourados, v. 5, n. 13, p. 237-258, 2015. Disponível em: http://r1.ufrrj.br/im/oeeies/wp-content/uploads/2016/10/ATENDIMENTO-EDUCACIONAL-ESPECIALIZADO-DAS-DIRETRIZES-POLiTICAS.pdf. Acesso em: 10 jan. 2020.
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). Suas estrutura e forma de financiamento mantiveram a educação especial como um serviço que pode ser ofertado fora da rede pública de ensino, com repasse de verba para as instituições privadas-assistenciais (JANNUZZI, 2006JANNUZZI, G. M. A educação do deficiente no Brasil: dos primórdios ao início do século XXI. 2. ed. Campinas: Autores Associados, 2006.; LAPLANE; CAIADO; KASSAR, 2016LAPLANE, A. L. F.; CAIADO, K. R. M.; KASSAR, M. C. M. As relações público-privado na educação especial: tendências atuais no Brasil. Revista Teias, Rio de Janeiro, v. 17, n. 46, p. 40-55, 2016. https://doi.org/10.12957/teias.2016.25497
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).

Embora pretenda-se assumir uma face democratizante, remetendo-se à garantia dos direitos sociais de grupos historicamente marginalizados, a lógica operante do sistema educacional inclusivo aprofunda a ofensiva privatista sobre a educação brasileira. Ou seja, assegura o espaço de participação das instituições assistenciais privadas na educação especial (MICHELS; GARCIA, 2014MICHELS, M. H.; GARCIA, R. M. C. Sistema educacional inclusivo: conceito e implicações na política educacional brasileira. Cadernos Cedes, Campinas, v. 34, p. 157-173, 2014. https://doi.org/10.1590/S0101-32622014000200002
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).

As políticas de educação especial no Brasil têm sido, portanto, elaboradas em um território de disputas acerca dos fundamentos teórico-conceituais, da alocação de recursos públicos e do lugar de atendimento educacional, de modo que “ora a pressão das organizações especializadas é mais audível, ora o movimento em favor da participação plena das pessoas com deficiência nas instituições não especializadas é fortalecido” (KASSAR; REBELO; OLIVEIRA, 2019KASSAR, M. C. M.; REBELO, A. S.; OLIVEIRA, R. T. C. Embates e disputas na política nacional de Educação Especial brasileira. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 45, p. 1-19, 2019. https://doi.org/10.1590/S1678-4634201945217170
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, p. 5).

Nesse cenário, houve o movimento de ser instituída uma nova política de educação especial, que se apresentou como atualização da PNEEPEI. Trata-se do Decreto n. 10.502 (BRASIL, 2020BRASIL. Decreto n. 10.502, de 30 de setembro de 2020. Institui a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 30 set. 2020.), que institui a “Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida”. Ao referir que há alunos com deficiência que não se beneficiam das escolas regulares, esse texto retoma o modelo médico de deficiência, o qual se ancora no pressuposto do impedimento orgânico – ou seja, parte do princípio de que as dificuldades encontradas na vida estão cunhadas na própria deficiência, atribuindo, portanto, ao estudante o fracasso escolar (CAIADO; BERRIBILLE; SARAIVA, 2013CAIADO, K. R. M.; BERRIBILLE, G. R.; SARAIVA, L. A. Educação e deficiência na voz de quem viveu essa trama. In: CAIADO, K. R. M. (org.). Trajetórias escolares de alunos com deficiência. São Carlos: EDUFSCar, 2013. p. 17-34.). Ratifica, nessa perspectiva, a necessidade de escolas especiais, induzindo a processos de segregação e discriminação das pessoas com deficiência. Aponta, ainda, para o estreitamento de relações com as instituições privadas-assistenciais, de modo a ampliar o papel delas na educação dos sujeitos com deficiência. Entre os atores citados no texto que compõem o corpo docente da educação especial, não há referência ao professor do ensino regular. Tais preceitos destacados colocam em xeque a educação escolar pública como bem comum, conforme estabelecido na Constituição de 1988 (BRASIL, 1988BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Presidência da República, 1988.) e na LDBEN/96 (BRASIL, 1996BRASIL. Ministério da Educação. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Brasília, DF: Presidência da República, 20 dez. 1996.).

Tendo em vista o retrocesso que se anuncia em relação às conquistas no campo dos direitos humanos, diante de uma proposta de política pública que retoma os espaços segregados como possibilidade educacional para pessoas com deficiência, reduzindo o convívio social e o acesso aos bens culturais, consideramos a necessidade de explicitar conceitos que se tornam chave para a compreensão das relações entre desenvolvimento humano e função social da escolarização pública, estatal, laica, gratuita e de qualidade socialmente referenciada.

Dessa forma, temos como objetivo neste texto discutir como a definição das políticas e a legislação vigente em Educação Especial integram a ambiência sociocultural e afetam as relações e as posições sociais dos sujeitos envolvidos no interior da escola. Para tanto, buscamos argumentar sobre as múltiplas dimensões do meio a partir das contribuições de autores da teoria histórico-cultural do desenvolvimento humano e trazemos para análise uma aula registrada em vídeo no 5º ano de uma rede pública municipal. Colocando em foco as relações de ensino, acompanhamos o movimento interacional e enunciativo-discursivo (BAKHTIN, 2003BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.), procurando dar visibilidade analítica aos modos de participação de um aluno com deficiência intelectual.

Encontramos, nas teses e nos pressupostos defendidos por Lev S. Vigotski no início do século XX, respaldo à reinvindicação de que os dispositivos constitucionais voltados às pessoas com deficiência sejam comuns a todos os cidadãos. Ao elaborar as leis gerais de desenvolvimento humano, levando em conta a condição de deficiência, e ao defender a função social do meio escolar no desenvolvimento do psiquismo, Vigotski (1997; 2018)VIGOTSKI, L. S. 7 aulas de L. S. Vigotski: sobre os fundamentos da pedologia. Tradução Zoia Prestes; Elizabeth Tunes. Rio de Janeiro: E-papers, 2018. fundamenta teórica e conceitualmente a participação de toda e qualquer criança na produção da cultura, ressaltando a contribuição singular de cada uma na dinâmica social. Nesse sentido, a problematização da criança e do meio apresenta-se para nós como lócus de discussão e aprofundamento pela dimensão política implicada.

Encontramos, também, nos diálogos com Stephen Ball (2001)BALL, S. J. Diretrizes políticas globais e relações políticas locais em educação. Currículo sem Fronteiras, Braga, v. 1, n. 2, p. 99-116, 2001. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/255629336_Diretrizes_Politicas_Globais_e_Relacoes_Politicas_Locais_em_Educacao/link/54339bdd0cf22395f29e1b3a/download. Acesso em: 10 jan. 2020.
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, sociólogo contemporâneo que analisa a micropolítica das escolas em relação às redes globais das políticas educacionais, inspirações para analisar as relações entre o global e o local, entre a política fixada no texto das leis e os espaços de atuação dos sujeitos na prática cotidiana. Por um prisma foucaultiano, o autor elabora sobre as políticas como textos e discursos que circulam entre espaços e atores, os quais produzem distintas traduções e interpretações circunscritas ao texto e ao contexto. O autor argumenta que as políticas não são implementadas, mas atuadas. “A política é feita pelos e para os professores; eles são atores e sujeitos, sujeitos e objetos da política. A política é escrita nos corpos e produz posições específicas dos sujeitos” (BALL; MAGUIRE; BRAUN, 2016BALL, S. J.; MAGUIRE, M.; BRAUN, A. Como as escolas fazem políticas: atuação em escolas secundárias. Ponta Grossa: UEPG, 2016., p. 13).

Vemos como urgente e necessário debater os fundamentos, reiterar princípios e analisar as condições e as práticas em contextos de educação pública, desenvolvendo argumentos que possam sustentar, de maneira consistente, o posicionamento e o comprometimento ético-político com relação a uma práxis educativa transformadora.

Discutindo o Conceito de Meio na Perspectiva Histórico-cultural

Ao perscrutar a natureza social do psiquismo humano buscando estabelecer as leis gerais de desenvolvimento, Lev S. Vigotski trouxe importantes contribuições para pensarmos a educação da criança com deficiência diante das condições sociais concretas, historicamente constituídas. Profundamente envolvido na proposta de reconstrução de uma sociedade anunciada e proclamada pela Revolução Russa de 1917, o autor teorizou sobre os processos de ensino e aprendizagem, tendo em vista a formação do homem novo. Já no ano de 1925, liderou a criação de um instituto associado à Universidade de Moscou para o estudo do desenvolvimento humano junto a uma equipe de professores e profissionais de diferentes áreas. Tal instituto tinha como objetivo o ensino a crianças com múltiplas deficiências e realizava estudos quase experimentais com base em pressupostos teórico-metodológicos que destacavam a importância da mediação social, a dinâmica interfuncional das funções psíquicas e a centralidade da linguagem nessa dinâmica. Em seu incansável percurso investigativo, o autor reelaborou o conceito de compensação em circulação na época (W. Stern, T. Lipps, A. Adler), argumentando sobre uma concepção dialética do desenvolvimento humano e da condição humana de deficiência (DAINEZ; SMOLKA, 2016DAINEZ, D.; SMOLKA, A. L. B. Vygotskian-inspired research on the developmental implications of organic impairment. Mind, Culture and Activity, New York, v. 1, p. 1-14, 2016. https://doi.org/10.1080/10749039.2016.1181183
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; DAINEZ, 2017DAINEZ, D. Desenvolvimento e deficiência na perspectiva histórico-cultural: contribuições para educação especial e inclusiva. Revista de Psicología, Santiago de Chile, v. 26, p. 1-10, 2017. (Sección Temática: Psícologia Histórico-cultural.) https://doi.org/10.5354/0719-0581.2017.47948
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; STETSENKO; SELAU, 2018STETSENKO, A.; SELAU, B. A abordagem de Vygotsky em relação à deficiência no contexto dos debates e desafios contemporâneos: mapeando os próximos passos. Educação, Porto Alegre, v. 41, n. 3, p. 316-324, 2018. https://doi.org/10.15448/1981-2582.2018.3.32668
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).

A partir das experiências nesse instituto, Vigotski (VYGOTSKI, 1997VYGOTSKI, L. S. Fundamentos de defectologia. Obras Escogidas. Madrid: Visor Distribuiciones, S. A., 1997. v. V.) problematizou a organização da educação nacional2 2 Proposição do Ministério da Educação nacional para a organização de uma educação pública nacional regida por princípios democráticos, que aspirava à construção de uma nova escola, única para todos os cidadãos em todos os níveis, com vistas à formação do novo homem (ver KRUPSKAYA, 2017). daquele momento histórico e considerou que o ensino para as pessoas com deficiência deveria fazer parte do trabalho educativo comum, integrando um sistema nacional de educação. As contribuições desses estudos e do trabalho realizado ainda ressoam fortemente um século depois. O potencial de sua teorização está, assim, em assegurar uma concepção do humano que subsidie processos educacionais referenciados em uma práxis transformadora regida por princípios de igualdade e justiça social (STETSENKO, 2010STETSENKO, A. Teaching-learning and development as activist projects of historical becoming: expanding Vygotsky’s approach to pedagogy. Pedagogies: An International Journal, New York, v. 5, n. 1, p. 6-16, 2010. https://doi.org/10.1080/15544800903406266.
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).

Em uma série de sete conferências denominadas “Fundamentos de Pedologia”, proferidas entre 1933 e 1934, Vigotski (2018)VIGOTSKI, L. S. 7 aulas de L. S. Vigotski: sobre os fundamentos da pedologia. Tradução Zoia Prestes; Elizabeth Tunes. Rio de Janeiro: E-papers, 2018. chama a atenção para a importância de se considerar a relação da criança com o meio nos estudos do desenvolvimento. O autor apresenta o conceito de vivência/perejivanie como uma unidade de análise para se compreender essa relação. Ao elaborar sobre o conceito de vivência/perejivanie, ele fala não somente sobre como o meio influencia a criança, mas como a criança significa o meio a partir de uma história de relações constitutiva de sua personalidade. O conceito de meio, no entanto, não é explicitado e fica em aberto, convocando-nos a adensar conceitual e analiticamente as contribuições dessa proposição.

À medida que vêm se divulgando novas traduções e novos trabalhos desse autor, tal conceito tem mobilizado o interesse de estudiosos contemporâneos. Entre esses, os estudos de Pino (2010)PINO, A. A criança e seu meio: contribuição de Vigotski ao desenvolvimento da criança e à sua educação. Psicologia USP, São Paulo, v. 21, n. 4, p. 741-756, 2010. https://doi.org/10.1590/S0103-65642010000400006
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e Meshcheryakov (2010)MESHCHERYAKOV, B. G. Ideias de L. S. Vigotski sobre a ciência do desenvolvimento infantil. Psicologia USP, São Paulo, v. 21, n. 4, p. 703-726, 2010. https://doi.org/10.1590/S0103-65642010000400004
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buscam examinar a noção de meio no pensamento de Vigotski e esclarecer aspectos teóricos e metodológicos nele implicados. Pino (2010)PINO, A. A criança e seu meio: contribuição de Vigotski ao desenvolvimento da criança e à sua educação. Psicologia USP, São Paulo, v. 21, n. 4, p. 741-756, 2010. https://doi.org/10.1590/S0103-65642010000400006
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atenta-se à elaboração desse constructo em diferentes áreas do conhecimento e elucida o papel do habitat ou ambiente na existência e na sobrevivência de qualquer organismo. Explica como o meio natural é indispensável ao e indissociável do ser vivo, sendo sua especificidade o que determina a peculiaridade de cada espécie. A partir disso, o autor salienta que, na perspectiva do humano, a dimensão natural é transformada pelo trabalho social que constitui as condições concretas de vida (PINO, 2003aPINO, A. A psicologia concreta de Vigotski: implicações para a educação. In: PLACCO, V. M. N. S. (org.). Psicologia & educação: revendo contribuições. São Paulo: Educ, 2003a. p. 33-62.). Na dinâmica das relações e no processo de produção material e simbólica, o ser humano modifica o meio, cria novos meios/modos de existência e se constitui nesse processo. O meio é, assim, criado e transformado pela história e pela cultura.

Nessa mesma linha de argumentação, encontramos as importantes contribuições de Henri Wallon, pesquisador e educador francês contemporâneo de Vigotski que, como ele, compartilha os pressupostos epistemológicos de base materialista histórico-dialética. Wallon (1975)WALLON, H. Psicologia e educação da infância. Lisboa: Editorial Estampa, 1975. também elaborou sobre a relação da criança com o meio e afirmou, como Vigotski, que o estudo da criança exige o estudo do meio no qual ela se desenvolve. O autor nos fala de meios no plural. Muitos meios podem se encontrar num mesmo indivíduo e podem mesmo entrar em conflito (BAUTIER; ROCHEX, 1999BAUTIER, E.; ROCHEX, J.-Y. Henri Wallon. L’enfant et ses milieux. Paris: Hachette, 1999.).

A coexistência de muitos meios na vivência da criança demanda explicitação. Como podemos conceber essa pluralidade? Podemos pensar que a pluralidade de meios implica a composição de diversas redes de relações entre pessoas, que se configuram de diversas maneiras – mais, ou menos estáveis –, cujos vínculos se mantêm pelas práticas de convivência formalmente instituídas – por exemplo, família, escola, comunidade, igreja etc. Podemos também pensar ainda as dinâmicas e variadas reconfigurações de grupos, de caráter mais provisório, que podem, contudo, persistir no cotidiano, como um conjunto de circunstâncias duráveis, por tempos variados com objetivos específicos, e que se delineiam em função das condições concretas de vida.

Podemos, assim, dizer que é nos entre-meios, nas interseções e sobreposições dos diferentes meios, nas demandas de identificação-diferenciação nas relações interpessoais (WALLON, 1971WALLON, H. As origens do caráter na criança. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1971.), as quais emergem nos conflitos e tensões vivenciados, que a pessoa, a criança, conhece o mundo, conhece-se e se reconhece, num movimento incessante de (inter)constituição.

Uma questão relevante, então, é como o meio, em sua pluralidade, “opera em função da dinâmica do desenvolvimento da criança” (PINO, 2010PINO, A. A criança e seu meio: contribuição de Vigotski ao desenvolvimento da criança e à sua educação. Psicologia USP, São Paulo, v. 21, n. 4, p. 741-756, 2010. https://doi.org/10.1590/S0103-65642010000400006
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, p. 747). Nesse particular, o esforço de elaboração teórica e metodológica de Vigotski nos parece ímpar, quando problematiza e se indaga sobre como o coletivo produz indivíduos singulares ou como as relações sociais se transformam em funções psíquicas mediadas (VYGOTSKI, 1995VYGOTSKI, L. S. Problemas del desarrollo de la psique. Obras escogidas. Madrid: Visor Distribuiciones, S. A., 1995. v. III.), bem como quando se propõe investigar o desenvolvimento cultural da criança, isto é, o processo que “corresponde ao desenvolvimento psíquico que se produz no curso do desenvolvimento histórico da humanidade” (VYGOTSKI, 1996VYGOTSKI, L. S. Psicología infantil (incluye Paidología del adolescente, problemas de la psicología infantil). Obras Escogidas, Madrid: Visor Distribuiciones, S. A., 1996. v. IV., p. 35).

Todavia, conceber a dinâmica da ontogênese relacionada ao desenvolvimento histórico da humanidade nos leva a considerar, além da pluralidade dos meios coexistentes, a multidimensionalidade que permeia esses meios na vivência da criança. Implica pensar como a produção humana, material e simbólica, repercute, afeta e é apropriada pelos indivíduos em interação. Ou seja, demanda levar em conta (e integrar no estudo e nas análises do desenvolvimento cultural) a confluência de múltiplas dimensões – biológica, social, econômica, política, jurídica, ideológica etc. Ao mesmo tempo, suscita a discussão do aspecto constitutivo do meio no desenvolvimento da criança ou de como o meio, em suas pluralidade e multidimensionalidade, participa da constituição – social e singular – da personalidade da criança.

Há tensão dialética entre a dinâmica do meio e do desenvolvimento da criança: se a criança muda, o meio também muda. É impossível separar o que pertence à criança e o que pertence ao meio. Como reitera Pino, “[a]s condições das quais faz parte a criança com suas peculiaridades genéticas se combinam desde o nascimento de forma variável de acordo com as mudanças das condições histórico-culturais em que a criança se desenvolve” (2010, p. 746).

O meio não só proporciona as condições histórico-culturais para o desenvolvimento da criança, mas provoca o desenvolvimento, na medida em que apresenta objetivos, expectativas, predições, prescrições e avaliações relacionados ao que se considera pertinente a cada idade, em cada época. O meio convoca as crianças a agirem de acordo com certa organização e certas demandas sociais. Nesse sentido, o meio é fonte de desenvolvimento (VIGOTSKI, 2018VIGOTSKI, L. S. 7 aulas de L. S. Vigotski: sobre os fundamentos da pedologia. Tradução Zoia Prestes; Elizabeth Tunes. Rio de Janeiro: E-papers, 2018.).

Ao explorar o argumento vigotskiano de que o meio é fonte de desenvolvimento, Meshcheryakov (2010)MESHCHERYAKOV, B. G. Ideias de L. S. Vigotski sobre a ciência do desenvolvimento infantil. Psicologia USP, São Paulo, v. 21, n. 4, p. 703-726, 2010. https://doi.org/10.1590/S0103-65642010000400004
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realça a intrínseca relação entre as peculiaridades do meio e as peculiaridades da criança e discute como as mudanças nas situações sociais podem repercutir na formação da personalidade. Na dinâmica do desenvolvimento, certas atividades, em determinadas situações, mobilizam e viabilizam a emergência de algumas peculiaridades da criança, mas não outras. Assim sendo, o meio tende a orientar, sugerir, influenciar, determinar, regular, controlar, instigar ou coibir certos modos de as crianças agirem e se comportarem. Na rede de relações, produz-se uma tensão entre a homogeneidade e a heterogeneidade de práticas, na qual se configura a singularidade de cada criança nos modos de apropriação da cultura e na significação da existência, resultante da vivência do meio nas condições concretas de vida.

A Dinâmica das Relações e os Modos de Participação de um Aluno com Deficiência no Ensino Regular: uma Aula em Foco

A formulação das políticas públicas de educação inclusiva no Brasil viabilizou a ampliação do número de matrícula de alunos com as mais diversas deficiências em todos os níveis e modalidades da educação. Gustavo é uma dessas crianças que frequentaram a escola pública e participaram da dinâmica da sala de aula regular. O aluno entrou na escola em 2006, no 1º ano do Ensino Fundamental. Acompanhamos esse aluno no 4º Ano, em 2010, e no 5º ano, em 2011. Nesse período, a escola municipal, com cerca de novecentos alunos, registrava a matrícula de 21 alunos com diversas deficiências (deficiência física, deficiência auditiva, visão subnormal, autismo, deficiência intelectual e deficiência múltipla). Realizava-se nessa escola, por demanda de algumas professoras que nela atuavam, um projeto colaborativo de pesquisa e intervenção – envolvendo professoras em exercício na rede pública e pesquisadoras na universidade –, o qual tinha como objetivo o estudo e a análise conjunta das condições de desenvolvimento humano e das relações de ensino à luz da teoria histórico-cultural.

Gustavo, com diagnóstico de Síndrome de Down e deficiência intelectual, comunicava-se por meio de gestos, expressões faciais, poucas palavras monossilábicas e emissões sonoras incompreensíveis. O fato de o aluno não usar uma forma convencionalizada de linguagem provocava constantes mal-entendidos, gerando atitudes restritivas por parte dos agentes escolares e comportamentos agressivos de sua parte. Circulava no ambiente escolar uma interpretação de que essa condição comunicativa era impeditiva dos processos de compreensão e aprendizagem, ou seja, expressava a deficiência intelectual.

A professora de Educação Especial (PEE) da escola, que já havia assumido a regência de classes especiais em tempos de políticas anteriores, encontrava-se, de acordo com as Diretrizes Municipais vigentes, deslocada da sala de aula, com novas atribuições de caráter técnico-gerencial alinhadas à PNEEPEI. Apesar de a tradução local da política prescrever como uma de suas atribuições o acompanhamento de alunos com deficiência junto à professora regente (PR) na sala de aula regular, a principal estratégia de atuação da PEE na escola era organizar e realizar o atendimento especializado individualizado a todos os alunos com deficiência em forma de rodízio. Em paralelo ao trabalho dessa professora, em 2009, a escola foi contemplada com uma Sala de Recursos Multifuncionais, com equipamentos tecnológicos do Governo Federal para o AEE direcionado a alunos com deficiência visual e auditiva.3 3 A falta de professor capacitado e a demora na instalação dos equipamentos atrasaram, até 2011, a implementação do serviço. A professora de educação especial não podia assumir a sala de recursos multifuncionais por ser professora da unidade de ensino e não estar alocada para o trabalho de AEE.

A situação que elegemos para análise insere-se no âmbito do projeto de coletivo e envolve duas professoras pesquisadoras, a PR do 5º ano e a PEE, que dele participavam voluntariamente. A aula em foco, registrada em vídeo, reúne algumas condições específicas de organização do trabalho pedagógico, o que nos permite tomá-la como prototípica pelas possibilidades de análises das interações e da realização de processos de ensino-aprendizagem que apresenta.

No trabalho analítico, buscamos compreender a aula como um acontecimento, isto é, como aquilo que se realiza em uma história de relações interpessoais e institucionais (GERALDI, 2010GERALDI, J. W. A aula como acontecimento. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.). A situação em foco ocorreu no início do ano letivo, quando a PR assumiu o 5º ano. Gustavo integrava o grupo de 32 alunos de 10 a 11 anos que compunham a turma. O tema da aula nesse dia era a “História dos Números”. A PEE havia participado do planejamento e estava presente na aula. O planejamento das professoras incluía dois filmes que abordavam o tema. A escolha por esse recurso audiovisual levou em consideração o interesse de Gustavo por filmes. Uma das pesquisadoras encontrava-se também na sala de aula, com uma filmadora, o que já fazia parte do cotidiano das crianças e das professoras. Nessa aula, as carteiras móveis estavam agrupadas de diversas maneiras, possibilitando o trabalho em duplas ou trios de crianças. Gustavo sentou-se na primeira carteira, próximo do telão que exibia o filme e ao lado da PEE que manuseava os equipamentos, o computador e o datashow. A PR, sentada à frente da sala, estava próxima das crianças e voltada para elas.

A aula teve a duração de aproximadamente 1h. O excerto transcrito da situação narrada refere-se a 34 minutos. Optamos por marcar os minutos ao longo da transcrição para dar aos leitores a dimensão do tempo transcorrido. O excerto é longo e tem como objetivo ressaltar os modos de participação de Gustavo na dinâmica das interações em aula. A participação social plena é um dos pontos centrais nas políticas sociais voltadas para as pessoas com deficiência. Nessa aula, ressaltamos os gestos mínimos nas relações interpessoais, que se tornam constitutivos de Gustavo como aluno:

    (00:00:00 – 00:00:28)
  • 01. Começa o primeiro filme, narrado em inglês e legendado em português. As crianças estão sentadas em suas carteiras e não conseguem acompanhar as legendas. A professora pergunta se estão enxergando ou se querem sentar no chão, na frente da sala. Gustavo faz gesto de positivo com a mão e permanece em sua carteira. Alguns alunos sentam-se próximos do telão.

    (00:01:18 – 00:04:30)
  • 02. Alguns alunos registram questões sobre o filme. Gustavo pega o lápis, olha para o filme, olha para a PEE, registra algo em um papel.

  • 03. PR: Ela (refere-se à narradora do filme) está falando de que povo aí?

  • 04. Aluno: Egípcios.

  • 05. PR: Os egípcios, isso! Eles precisavam calcular o tempo. Porque eles, ó, plantavam.

  • 06. Gustavo continua assistindo ao filme e registrando algo em sua folha

  • 07. PR: Está vendo, ó. As pessoas precisavam da matemática pra quê? Calcular o pedaço da terra que elas tinham.

  • 08. Gustavo aponta para o filme e diz: Ó lá.

  • 09. PR: Isso. Eles usavam pau, olha lá.

    (00:06:07 – 00:10:43)
  • 10. PR: Eles faziam conta igual a gente faz hoje?

  • 11. Alguns alunos, entre os quais Gustavo, respondem: Não. Outros alunos respondem: Sim.

  • 12. PR: A gente faz assim?

  • 13. Alunos: Não. Não.

  • Gustavo: Não, não (faz movimento com a cabeça e gesto com o dedo indicando não).

  • 14. PR: Eles faziam conta de um jeito diferente do nosso.

    (00:11:27). Termina o filme legendado.
  • 15. PR: Vocês querem ver esse mais uma vez ou podem ir pra outro?

  • 16. Alguns alunos respondem: Sim. Outros alunos respondem: Não.

  • Gustavo, em tom elevado de voz, diz: Não (bate na carteira).

  • 17. PR: Olha para Gustavo e diz: Não, né, Gu...

  • 18. Alguns alunos continuam dizendo: Sim. Outros alunos, entre os quais Gustavo, dizem: Não.

  • 19. Alunos: Votação. Faz votação.

  • 20. PR: É, vai ter que fazer votação, como tem muita gente falando sim e muita gente falando não...

  • 21. A votação acontece e o resultado é favorável à exibição do próximo filme. O próximo filme começa.

    (00:13:00 – 00:13:58)
  • 22. O filme explica que a palavra “cálculo” significa “pedrinha”.

  • 23. Gustavo aponta para o filme e diz: Ó lá. Olha para a PEE e diz: Ó lá. Doi (faz o número dois com os dedos).

  • 24. PR: A palavra “cálculo” significa...?

  • 25. Alunos: Pedrinha.

  • 26. PR: Anota isso que é legal, ó.

    (00:14:18 – 00:18:25)
  • 27. Alguns alunos pedem para a PR voltar o vídeo. Uma aluna sugere dar uma pausa em um determinado trecho do filme para poderem copiar os algarismos romanos.

  • A PR coloca o filme para rodar desde o início. Os alunos se preparam para registrar.

    (00:18:44 – 00:19:57)
  • 28. Gustavo olha para a PEE e diz: Mão, mão.

  • 29. PEE: O quê, a pedrinha?

  • 30. Gustavo aponta para o filme e diz: Ó lá, mão.

  • 31. PEE: As mãos? (mostra as duas mãos).

  • 32. Gustavo, sorrindo, mostra as mãos para PEE. Olha para uma colega que estava sentada no chão, próxima à sua carteira, e aponta para o filme.

  • 33. A colega, assistindo ao filme, dá a mão para Gustavo, que continua apontando para o telão, e faz gesto positivo com a cabeça.

    (00:20:34 – 00:21:50)
  • 34. A PR pausa o filme para que os alunos possam registrar os algarismos romanos.

  • 35. PEE: Gu, copia também na sua folha.

  • A PR conversa com a turma sobre alguns pontos do filme.

  • 36. Gustavo pega o lápis e o papel e vai até o telão. Coloca o papel em cima do número no telão.

  • 37. PEE: Copia esse.

  • 38. PR: Copia, Gustavo (aponta para a carteira do aluno, como se estivesse solicitando para que ele se sentasse).

  • 39. Alunos: Dá licença, Gustavo. Gustavo, dá licença.

  • 40. A PR se levanta, vai em direção a Gustavo e diz: Ó, vamos lá (aponta para a carteira do aluno), o pessoal está copiando.

  • 41. PEE: Copia o seu também. Senta ali.

  • 42. Gustavo vai até a sua carteira e senta-se.

  • 43. PEE: Pega o caderno.

  • 44. Gustavo olha para a PEE e diz: Ó (aponta para os números no telão e mostra as mãos).

  • 45. PEE: É. Copia.

  • 46. PR: É a mão (mostra a mão).

  • 47. Gustavo pega o seu caderno na mochila, olha para a PR, aponta para os números no telão e diz: Ó.

  • 48. PR: Você vai escrever?

  • 49. Gustavo aponta para si e em seguida para os números no telão. Pega o caderno da mochila, olha para os números no telão e copia no caderno.

  • 50. Aluna: Pode mudar (referindo-se ao filme).

  • 51. PR: O Gu está escrevendo. Ó, enquanto o pessoal vai terminando, deixa eu perguntar uma coisa. Tem algumas regrinhas para usar os algarismos romanos. Quem sabe me dizer uma regra. Por exemplo, eu quero escrever o número vinte, como é que eu faço?

  • 52. Gustavo termina de copiar o número um em algarismos romanos, olha para a PEE, para a PR, para a pesquisadora, que estava com a câmera, e aponta para sua atividade dizendo Ó i ó. (Olha aí.)

  • 53. PEE: Aí, Gu.

  • 54. Pesquisadora dá um zoom com a câmera na atividade realizada por Gustavo e diz: Copiou, Gu? O número um?

  • 55. PEE: Isso. Agora o outro, o cinco. O número cinco.

  • 56. Gustavo continua registrando os números romanos em seu caderno. Olha para a tela e copia.

    (00:30:16 – 00:31:22)
  • 57. PR: Podemos continuar? (Refere-se ao filme)

  • 58. Alunos: Sim.

  • 59. PEE: Gu, eu vou continuar, tá? Tá, Gu?

  • 60. PR: Pode continuar?

  • 61. Alunos: Pode.

  • Gustavo continua concentrado, olha para a tela e copia.

  • 62. PR: Enquanto o Gu está terminando... ó, turminha, 5º ano, 5º ano, eu tô falando com vocês. Leonardo, Gabriel... Enquanto o Gu está terminando, eu vou fazer mais um desafio. Eu perguntei do quarenta. E o oitenta? Como que escreve oitenta?

  • 63. Gustavo termina de copiar enquanto a turma responde ao desafio proposto pela professora. Olha para a PEE, olha para a pesquisadora e diz em tom elevado de voz: Ó, ó (apontando em seu caderno). Depois, olha para a PR e, em tom elevado de voz e prolongamento da vogal i, chama: Ciiiii (parte do nome da professora). A PR estava tirando uma dúvida de um aluno e não atende Gustavo, que levanta o caderno e vocaliza (ininteligível). A PR continua conversando com o aluno. Gustavo vocaliza (ininteligível), com a mão fechada bate na carteira, como se estivesse zangado por não obter a resposta da professora. Levanta-se de sua carteira, posiciona o seu caderno na direção de PR e diz: Ó. Mostra a sua atividade para a professora, que o elogia e sugere em prosseguir o filme.

    (00.34.00)
  • 64. O filme, então, continua.

(Registro de Vídeogravação, 25 fev. 2011)

Modos de Interpretação e Análise pelo Prisma Histórico-cultural

Uma aula. A matéria da aula: a matemática. O tema da aula: história da matemática, os números, os algarismos romanos; os motivos e os modos de contar historicamente desenvolvidos. Os equipamentos: a lousa, o giz, o lápis, o papel, o caderno, o computador, o datashow, o telão, os filmes, a câmera e a filmagem dessa situação. Nos filmes, as duas línguas, inglês e português, e a tradução nas legendas, que demanda a leitura das crianças. As explicações, as pontuações, as questões e os desafios colocados pela professora sobre o tema durante a apresentação do filme; suas orientações e o incentivo às anotações e registros das crianças. Os comentários, respostas e solicitações dos alunos.

O que essa aula reúne e o que nos apresenta em termos de condições e relações de ensino e dos modos de participação de sujeitos nas práticas escolares? Como a presença e a participação, os gestos e as enunciações de Gustavo ganham sentido no sistema de relações sociais?

Vemos como os recursos técnico-semióticos (PINO, 2003bPINO, A. Técnica e semiótica na era da Informática. Contrapontos, Itajaí, v. 3, n. 2, p. 283-296, 2003b. Disponível em: https://siaiap32.univali.br/seer/index.php/rc/article/view/725. Acesso em: 10 jan. 2020.
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), característicos da produção humana historicamente desenvolvida, evidenciam-se no planejamento e na realização da aula, ancoram o trabalho pedagógico e integram as condições de elaboração conjunta do conhecimento pelos alunos. Essa relação com o conhecimento historicamente produzido é enfatizada pelas professoras. É dessa ambiência cultural, dessa situação escolar, com objetivos de ensino claramente definidos, que Gustavo participa.

Nota-se a preocupação da PR em incorporar na sua prática pedagógica recursos técnicos que chamem a atenção dos alunos e os envolvam na atividade. Além disso, evidencia-se o esforço compartilhado pelas professoras de construir estratégias pedagógicas para a participação do aluno com deficiência na proposta trabalhada em aula. A importância do planejamento conjunto se mostra na consideração das especificidades educacionais desse aluno por ambas as professoras. A parceria entre elas viabiliza o uso de instrumentos técnico-semióticos e cria condições de se trabalhar uma mesma atividade com a turma toda. Ou seja, o aluno com deficiência não fica à margem da aula, fazendo outra coisa (corpo presente, não atuante), mas é efetivamente convocado a nela se envolver e a dela participar.

A atitude responsiva ativa (BAKHTIN, 2003BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.) de Gustavo na dinâmica interativa se torna visível no seu modo de se engajar na atividade proposta:

  • Gesto de positivo respondendo que estava enxergando o filme (Turno 1);

  • Concentração no filme e chamada de atenção para ele (Turnos 2, 8, 23, 32, 44, 47);

  • Gesto indicativo do número dois, em algarismo romano, com as mãos (Turno 23);

  • Resposta contextualizada à pergunta da professora (Turno 13);

  • Tentativas de registro na folha ou no caderno (Turnos 2, 6, 36, 52, 56);

  • Participação na votação (Turnos 16, 21);

  • Gestos de cópia e estratégias usadas: levar a folha até o telão para copiar; escrever no caderno (Turno 36).

  • Relação estabelecida entre as mãos e os numerais romanos, indicativa do processo de apropriação do conhecimento (Turnos 28, 30, 32);

  • Modo de se implicar na atividade – gesto para si, gesto para a tela (Turno 49);

  • Solicitação do aval dos adultos na realização da atividade (Turnos 52, 63).

Gustavo nos mostra como vai compreendendo a posição de aluno no meio escolar. Mostra-se atento às instruções das professoras, observa os comportamentos dos colegas, usa adequadamente o material (caderno, folha, lápis), participa da escolha do filme e das tarefas propostas, termina o registro e mostra o seu desempenho respondendo às expectativas concernentes à atividade. Esses modos de participação de Gustavo em aula tornam-se possíveis pelo planejamento conjunto e pela ação compartilhada das professoras, pela escolha dos recursos técnicos disponíveis utilizados e pelos gestos que marcam o lugar de aprendiz do aluno com deficiência nas relações de ensino.

Palavras e gestos das professoras – orientando a atenção, convocando para a atividade, sugerindo o registro, encorajando a cópia, aguardando a realização – dirigem-se aos alunos, Gustavo aí participante/envolvido. Esses gestos sustentam Gustavo no lugar de aluno com potencial para realizar a atividade proposta, para aprender e conhecer.

Percebemos como a organização do meio/modo de ensinar transforma o modo de participação do aluno com deficiência em aula. Poder opinar, votar, copiar, registrar e fazer a lição com os colegas mobiliza a vontade de se relacionar com os outros e se engajar na atividade e dinamiza os afetos com relação ao conhecimento (VYGOTSKI, 1997VYGOTSKI, L. S. Fundamentos de defectologia. Obras Escogidas. Madrid: Visor Distribuiciones, S. A., 1997. v. V.), afetos esses que se tornam condição de produção de novas formas de disposição e da atividade voluntária do aluno na escola. Na dinâmica das relações, as professoras orientam os modos de particip(ação) de Gustavo, ao mesmo tempo que são por ele convocadas.

O reconhecimento das ações de Gustavo pertinentes ao meio escolar é constitutivo do desenvolvimento da criança. A percepção orientada, a atenção voluntária, a memória mediada e a constituição da vontade integram a formação de sua personalidade (VYGOTSKI, 1996VYGOTSKI, L. S. Psicología infantil (incluye Paidología del adolescente, problemas de la psicología infantil). Obras Escogidas, Madrid: Visor Distribuiciones, S. A., 1996. v. IV., 1997; VIGOTSKI, 2018VIGOTSKI, L. S. 7 aulas de L. S. Vigotski: sobre os fundamentos da pedologia. Tradução Zoia Prestes; Elizabeth Tunes. Rio de Janeiro: E-papers, 2018.). Sua efetiva participação no meio possibilita a vivência das relações, dos valores, das normas e do conhecimento sistematizado, que passam a integrar o seu funcionamento psíquico. No caso, as especificidades do meio escolar – orientado para as possibilidades de desenvolvimento humano – ressaltam especificidades no modo de atuação da criança.

Relações Sociais, Funções Sociais e Funções Psíquicas: em Defesa da Educação Escolar como Direito Humano Fundamental

Historicamente, crianças com deficiência dificilmente puderam ocupar efetivamente o lugar de aluno na sala de aula regular. A elas foi dificultada a participação nas práticas escolares. Partindo-se do pressuposto da incapacidade a priori, o lugar reservado a elas era o das instituições especializadas, que tinham por função social prioritária o acolhimento, o cuidado, a proteção e a tutela, num espaço segregado, o qual prioriza as atividades de vida diária num simulacro de “currículo” que circunscreve a participação das crianças nas práticas sociais, restringindo a produção de conhecimento e o desenvolvimento cultural característicos do processo de escolarização.

Com ambiguidades e contradições, a PNEEPEI (BRASIL, 2008BRASIL. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Documento elaborado pelo Grupo de Trabalho nomeado pela Portaria n. 555/2007, prorrogada pela Portaria n. 948/2007, entregue ao Ministro da Educação em 07 de janeiro de 2008. Brasília, DF: Ministério da Educação, 2008.) abriu espaço, como já vimos, para novas formas de inserção e participação das pessoas com deficiência no processo de escolarização. A lei, em sua função social, garante a matrícula do aluno e viabiliza a presença da PEE na escola regular. Como então as políticas se realizam na atuação das professoras?

Ball, Maguire e Braun (2016)BALL, S. J.; MAGUIRE, M.; BRAUN, A. Como as escolas fazem políticas: atuação em escolas secundárias. Ponta Grossa: UEPG, 2016. nos instigam a refletir sobre como a dimensão política se constitui e se atualiza na prática, permeando o meio escolar. No trabalho analítico, podemos perceber como a confluência de múltiplas políticas no interior da escola – a Política Federal da PNEEPEI, as Diretrizes Municipais de Educação Especial e Educação Básica, o Programa para Melhoria do Ensino Público no nível estadual – cria condições específicas para a atuação das professoras e a (re)configuração das relações de ensino.

A situação analisada, que se realiza no âmbito do projeto investigativo no Programa para Melhoria do Ensino Público, mostra não só o planejamento compartilhado das professoras, mas a realização da atividade em colaboração. A dimensão pedagógica ganha primazia e se sobrepõe ao gerenciamento dos casos que são atribuídos à PEE no contexto escolar. Vemos, assim, como a atuação das políticas pelas professoras, que se expressa nas estratégias pedagógicas planejadas e nos gestos e atos cotidianos, realiza a dimensão da lei e torna-se constitutiva dos processos de ensino-aprendizagem.

Essa forma de atuação das políticas coloca também em evidência, de maneira mais clara e contundente, a função social da escola como instituição de ensino, que se contrapõe à função social das instituições especializadas assistenciais. Com função e objetivos específicos, a escola se distingue das instituições filantrópico-assistenciais e se apresenta como um microcosmo da vida humana. Ou seja, é lócus de múltiplas relações, de produção de conhecimentos (científico, artístico, histórico, filosófico), com potencial para ampliar a atuação da pessoa com deficiência na prática social mais ampla (DAINEZ; SMOLKA, 2019DAINEZ, D.; SMOLKA, A. L. B. A função social da escola em discussão, sob a perspectiva da educação inclusiva. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 45, p. 1-18, 2019. https://doi.org/10.1590/S1678-4634201945187853
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). A posição de aluno traz, assim, implicada a posição de cidadão. Deste modo, as relações de ensino vivenciadas no meio escolar tornam-se força motriz do desenvolvimento humano.

Assumindo que as funções psíquicas são relações sociais internalizadas, ou seja, que as vivências significadas são constitutivas da personalidade (VYGOTSKI, 1995VYGOTSKI, L. S. Problemas del desarrollo de la psique. Obras escogidas. Madrid: Visor Distribuiciones, S. A., 1995. v. III.; VIGOTSKI, 2000VIGOTSKI, L. S. Manuscrito de 1929. Educação & Sociedade, Campinas, ano 21, n. 71, p. 21-44, 2000. https://doi.org/10.1590/S0101-73302000000200002
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; PINO, 2000PINO, A. O social e o cultural na obra de Vigotski. Educação & Sociedade, Campinas, ano 21, n. 71, p. 45-78, 2000. https://doi.org/10.1590/S0101-73302000000200003
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), admitimos que, no processo de desenvolvimento, a estrutura funcional e a organização cerebral se distanciam dos mecanismos biológicos inatos, na medida em que se dinamizam com a criação de novas conexões, propiciadas pelas relações com os outros e mediadas pelos instrumentos técnico-semióticos, bem como pelas produções histórica e cultural. As funções psíquicas, socialmente desenvolvidas, sobrepõem-se aos mecanismos biológicos, passando a predominar na orientação do comportamento, viabilizando a (trans)formação de (novos) órgãos e a produção de uma nova organização de natureza social (VYGOTSKI, 1997VYGOTSKI, L. S. Fundamentos de defectologia. Obras Escogidas. Madrid: Visor Distribuiciones, S. A., 1997. v. V.; VIGOTSKI, 2000VIGOTSKI, L. S. Manuscrito de 1929. Educação & Sociedade, Campinas, ano 21, n. 71, p. 21-44, 2000. https://doi.org/10.1590/S0101-73302000000200002
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; AKHUTINA, 2003AKHUTINA, T. L. S. Vygotsky and A. R. Luria: Foundations of Neuropsychology. Journal of Russian and East European Psychology, v. 41, n. 3/4, p. 159-190, 2003. Acesso em: 10 jan. 2020. https://doi.org/10.2753/RPO1061-0405410304159
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).

A partir dessas discussões, entendemos que o Decreto n. 10.502 (BRASIL, 2020BRASIL. Decreto n. 10.502, de 30 de setembro de 2020. Institui a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 30 set. 2020.) vai na contramão das conquistas históricas. Coloca as pessoas com deficiência à margem do processo de escolarização regular, restringindo as possibilidades de vivência nas relações sociais. Ao induzir e legitimar formas de organização escolar (instituições e classes especiais) em substituição à escola regular e ao retomar o modelo médico de deficiência, o texto desse último decreto indica que a especificidade orgânica determinará o espaço educacional que a pessoa poderá frequentar. Ficam ameaçadas as garantias legais de participação da criança com deficiência no espaço comum da escola regular, prevalecendo as peculiaridades da função social da escola especial, como a guarda, a proteção e a tutela, na constituição das funções psíquicas. Se afirmamos, com Vigotski (2018)VIGOTSKI, L. S. 7 aulas de L. S. Vigotski: sobre os fundamentos da pedologia. Tradução Zoia Prestes; Elizabeth Tunes. Rio de Janeiro: E-papers, 2018., que o meio é fonte de desenvolvimento, vemos como as relações de forças, presentes na pluralidade e na multidimensionalidade do meio – arenas de lutas no âmbito das políticas e das práticas –, podem também se configurar como lócus de impedimento, no qual se reduzem as possibilidades de participação social, de atuação política e de emancipação humana.

O que se apresenta, então, como desafio a ser enfrentado – teórica, metodológica, política e praticamente – é a compreensão do entretecimento das múltiplas dimensões do meio, vivenciadas pelos sujeitos, que concebemos como interconstitutivas, bem como as decorrentes possibilidades que se abrem para a realização do trabalho pedagógico no interior da escola. Nesse sentido, o referencial teórico que sustenta o trabalho pedagógico faz diferença nas relações de ensino, na medida em que propicia argumentação substanciada e consistente sobre as intrínsecas articulações entre as funções sociais das instituições e o desenvolvimento cultural da criança.

Notas

  • 1
    O texto da Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência já repercutia no Brasil desde 2007, após a assinatura na ONU e, posteriormente, no trâmite da ratificação.
  • 2
    Proposição do Ministério da Educação nacional para a organização de uma educação pública nacional regida por princípios democráticos, que aspirava à construção de uma nova escola, única para todos os cidadãos em todos os níveis, com vistas à formação do novo homem (ver KRUPSKAYA, 2017KRUPSKAYA, N. K. A construção da pedagogia socialista. São Paulo: Expressão Popular, 2017.).
  • 3
    A falta de professor capacitado e a demora na instalação dos equipamentos atrasaram, até 2011, a implementação do serviço. A professora de educação especial não podia assumir a sala de recursos multifuncionais por ser professora da unidade de ensino e não estar alocada para o trabalho de AEE.

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Editor de Seção: Ivany Pino

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    15 Set 2021
  • Aceito
    24 Jan 2022
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