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CONSUMO DE SERIADOS ENTRE JOVENS ESTUDANTES: NARRATIVAS E INDÍCIOS À INDIVIDUAÇÃO* * Artigo resultante da pesquisa “Tempos versados: éticas e capitais nas narrativas da alegria”, coordenado pelo autor na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (FACED/UFRGS). O trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior Brasil (CAPES). Código de Financiamento 001.

CONSUMO DE SERIES ENTRE JÓVENES ESTUDIANTES: NARRATIVAS E INDICIOS A LA INDIVIDUACIÓN

RESUMO

Buscamos discutir a relação entre processos de individuação e consumo cultural em plataformas de streaming por jovens estudantes de diferentes níveis de ensino, em estabelecimentos públicos sediados em periferias de Porto Alegre (RS). Contribuições de Danilo Martuccelli e Martín-Barbero são as referências centrais do estudo que, em campo, desenvolvemos com base na aplicação de questionários, grupos de discussão e entrevistas semiestruturadas. Constatada a elevação do consumo de seriados associada à ampliação da escolarização, identificamos que as preferências graduam elementos narrativos melodramáticos e configurações reflexivo-identitárias, infletindo para individuações sociais construídas entre certa inconsistência contextual e a figuração de singularizações.

Palavras-chave
Juventudes; Narrativas; Seriados; Escola; Individuação

RESUMEN

Buscamos discutir la relación entre los procesos de individuación y el consumo cultural en plataformas de streaming por jóvenes estudiantes de diferentes niveles educativos, en establecimientos públicos ubicados en las periferias de Porto Alegre, Brasil. Las aportaciones de Danilo Martuccelli y Martín-Barbero son los referenciales centrales del estudio que, en campo, desarrollamos a partir de la aplicación de cuestionarios, grupos de discusión y entrevistas semiestructuradas. Verificado el aumento en el consumo de series asociado a la expansión de la escolaridad, identificamos que las preferencias gradúan elementos narrativos melodramáticos y configuraciones reflexivo-identitarias, incidiendo para las individuaciones sociales construidas entre una cierta inconsistencia contextual y la figuración de singularizaciones.

Palabras-clave
Jóvenes; Narrativas; Series; Escuela; Individuación

ABSTRACT

We seek to discuss the relationship between individuation processes and cultural consumption of series by young students from different levels of education in public institutions in the peripheries of Porto Alegre, Brazil. Contributions by Danilo Martuccelli and Martín-Barbero are the main references for this study, which was developed based on the application of questionnaires, discussion groups and interviews. Given the relationship between the increase in the consumption of series and the expansion of schooling, we identified that preferences comprise melodramatic narrative elements and reflective-identity configurations, inflecting social individuations towards a certain contextual inconsistency and the figuration of singularization.

Keywords
Youth; Narratives; Series; School; Individuation

Introdução

As problematizações que propomos aqui aproximam-se de leituras macrocontextuais que vêm assinalando crescente diferenciação social, diversificação de trajetórias pessoais e/ou singularização dos processos de individuação na atualidade (MARTUCCELLI, 2010aMARTUCCELLI, D. La société singulariste. Paris: Armand Colin, 2010a.). Registramos a expressão de tais abordagens no estudo de experiências e itinerários juvenis, inclusive, seja pela produção de pertenças sócio-simbólicas plurais, seja pelo incremento de recursos para coprodução da socialização entre jovens, a exemplo das tecnologias de informação e comunicação.

Aspecto igualmente destacado nas pesquisas sobre práticas e identidades juvenis concerne à importância do consumo cultural. O acesso ampliado a bens simbólicos, se comparado aos ascendentes, constituiria parte dos paradoxos experienciados pelos jovens hoje, cujas possibilidades estruturais de inclusão (no mercado de trabalho, notadamente) não coadunam necessariamente com os consumos de artefatos culturais (MARTÍN-BARBERO, 2017MARTÍN-BARBERO, J. Jóvenes entre el palimpsesto y el hipertexto. Barcelona: Ned Ediciones, 2017.). Setton (2004)SETTON, M. G. A educação popular no Brasil: a cultura de massa. Revista USP, São Paulo, n. 61, p. 58-77, mar./maio 2004. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i61p58-77
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já assinalava, nesse sentido, a antecedência dos artefatos produzidos pela indústria cultural em relação à massificação da presença da instituição escolar entre segmentos populares brasileiros, logo a precedência na produção social de saberes e nas formas de apropriação simbólica cotidiana.

Dessarte, nossa escrita se dedica à problematização de aspectos do consumo cultural entre jovens, observados nos resultados das pesquisas que temos conduzido com estudantes de instituições públicas sediadas em localidades de periferia de Porto Alegre (RS). Dada a ampliação de acesso ao conteúdo a plataformas de streaming entre esses atores, pretendemos discutir a crescente audiência de seriados, de modo a indiciar ali elementos concernentes aos processos de individuação das juventudes, particularmente daquelas residentes em contextos urbanos socialmente empobrecidos.

Contexto e Referentes

Já há alguns anos, Renato Ortiz (2007)ORTIZ, R. Mundialização e cultura. São Paulo: Brasiliense, 2007. trazia análises acerca do que denominava modernidade-mundo e, nesse sentido, sobre a produção de uma cultura internacional popular, cujo fulcro estaria na produção de um mercado consumidor. Assinalava o autor o quanto nossa memória se mostra perpassada pelos ícones da produção cultural massiva, que se dissemina em cenário globalizado, desterritorializando as referências ético-morais. Na pulverização das relações sociais em espaços urbanos metropolitanos, o mercado cultural e a mídia, em particular, operariam como uma espécie de regulador social.

Nesse contexto, podemos situar duas discussões atuais. Primeiramente, o que Silva (2014) denomina uma “cultura das séries”, ambientada na expansão do consumo por plataformas de streaming, na apropriação reconfiguradora de formas clássicas (como o melodrama, e o gênero policial) e no fomento a comunidades de engajamento e interpelação ao consumo.

A segunda discussão concerne propriamente a processos de individuação. Souza e Maçaneiro (2018)SOUZA, C. C.; MAÇANEIRO, M. Jovens, midiatização da leitura e narrativas de sentido: implicações para a escola. Educação em Revista, Belo Horizonte, e153786, 2018. https://doi.org/10.1590/0102-4698153786
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indicam que as narrativas ficcionais consumidas por jovens, apoiando-se em mundos mágicos e de heroísmo épico, interpõem uma relação entre adversidades e agência, estabelecendo, em articulação, discernimentos morais (bem e mal). Nesse sentido, os autores afirmam que a “ficção científica dos anos 1970 e 1980 enfatizava o controle e uso das tecnologias para o bem da humanidade e do planeta [...] já a narrativa mitológica hoje reeditada enfatiza o amadurecimento do herói por uma via de provas, com dramas cotidianos” (SOUZA; MAÇANEIRO, 2018SOUZA, C. C.; MAÇANEIRO, M. Jovens, midiatização da leitura e narrativas de sentido: implicações para a escola. Educação em Revista, Belo Horizonte, e153786, 2018. https://doi.org/10.1590/0102-4698153786
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, p. 15).

A consecução de uma indústria cultural de ampla disseminação e intensiva integração ao cotidiano é parte e um dos agentes promotores de dinâmicas reflexivas engendradas na modernidade, especialmente nas últimas décadas. Diferente da introspecção, a reflexividade consiste em capacidade diferencialmente difratada de tomar a si mesmo como objeto, de modo a acompanhar e enunciar as próprias ações desde referenciais de peritos, diretamente deferidos ou capturados em redes de vulgarização informacional – TV, amigos, redes sociais de Internet etc. (MARTUCCELLI, 2006MARTUCCELLI, D. Fogé par l’épreuve. Paris: Armand Colin, 2006.).

À reflexividade reportamos ainda a produção social de narrativas individuadas. Melucci (2001) mencionava que a narração das experiências se converte em elemento significativo da cultura informacional contemporânea, sendo essa prática social um dos meios para fazer frente aos desafios da identidade, apoiando o jogo de delimitação provisória e as buscas por continuidade diante das descontinuidades do percurso individual e/ou da realidade social. Daí, depreendermos também que a narração é uma dinâmica entre consumos e usos, entre sintonia com os enredos socialmente engendrados e os enunciados de si.

Dos Processos de Individuação

Ao ponderar as condições de diferenciação e individualização social nas relações sociais contemporâneas, Martuccelli (2007)MARTUCCELLI, D. Cambio de rumbo: la sociedad a escala del individuo. Santiago: LOM Ediciones, 2007. propõe uma aproximação às experiências que os indivíduos constroem em suas interações sociais, de modo que possa ampliar a compreensão dos movimentos que os atores fazem na produção de suas existências. Em outras palavras, a especificação de unidades relativamente independentes, individuadas, é analisada na relação entre elementos e mudanças estruturais de determinados contextos sociais e os agenciamentos construídos pelos atores ao afrontarem desafios historicamente dados, como a noção de “prova social” procura articular aliás. Martuccelli (2007; 2010a) a define como “desafios históricos, socialmente produzidos, culturalmente representados, desigualmente distribuídos, que os indivíduos estão obrigados a enfrentar no seio de um processo estrutural de individuação” (ARAUJO; MARTUCCELLI, 2010ARAUJO, K; MARTUCCELLI, D. La individuación y el trabajo de los individuos. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 36, p. 77-91, 2010. https://doi.org/10.1590/S1517-97022010000400007
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, p. 83).

Eis que, entre as características das “provas-sociais”, apresenta-se uma dimensão narrativa a partir da qual os sujeitos entendem seus percursos e dispõem desafios constituintes, como herdeiros de uma aventura propriamente moderna (MARTUCCELLI, 2007MARTUCCELLI, D. Cambio de rumbo: la sociedad a escala del individuo. Santiago: LOM Ediciones, 2007.). Esse nos parece o primeiro elo heurístico para a interpretação da associação entre “usos e consumos de narrativas” e “processos de individuação”, ao entender possível que sejam figurados em tal interrelação elementos dos desafios afrontados pelos atores sociais.

Em Forgé par l’Épreuve, Martuccelli (2006)MARTUCCELLI, D. Fogé par l’épreuve. Paris: Armand Colin, 2006. analisa um elenco de oito desafios estruturais principais, organizados em dois grandes grupos: aqueles relativos aos domínios sociais – a marca escolar; o trabalho; as ruas da cidade; vidas em família –; e os que concernem às dimensões do laço social – a história entre os indivíduos; a relação com o coletivo; o labirinto da alteridade; a prova de si. Em relação a essa última, o autor dispõe provações e sentidos sócio-existenciais, a indicar a partir de que registros os indivíduos têm interpretado suas experiências (“a busca pela realização pessoal”, “a vida como uma luta”, por exemplo). Destarte, tomaremos especialmente a relação entre processo de individuação e usos/consumos de narrativas em atenção à “prova de si”, aqui estabelecendo o segundo elo heurístico dessa inter-relação, ao abarcar o trabalho reflexivo dos indivíduos.

Há, ademais, uma tarefa complementar à identificação das provas sociais, consubstanciada, então, na análise das bases que sustentam o cotidiano dos indivíduos, o que o autor denomina “suportes”. Martuccelli (2007)MARTUCCELLI, D. Cambio de rumbo: la sociedad a escala del individuo. Santiago: LOM Ediciones, 2007. procura designar o conjunto de apoios que sustentam as experiências dos atores, não na forma de um inventário das condições e dos recursos disponíveis a eles conforme a posição social, mas como uma ecologia existencial dos elementos apropriados e que se inscrevem na trama de interdependências efetivas das histórias individuais. Podemos, nesse sentido, considerar apoios institucionalizados e/ou legitimados, de fácil identificação, mas também aqueles discretos e de presença oblíqua no cotidiano, em articulação aos quais situamos o consumo e a produção de narrativas pelos atores.

Cabe mencionar ainda que, por esse caminho, esse autor propõe dois grandes processos de individuação passíveis de apropriação no estudo das relações sociais na América Latina. Por um lado, Martuccelli (2010)MARTUCCELLI, D. La société singulariste. Paris: Armand Colin, 2010a. ensaia a hipótese da existência de um “hiper-ator” nas sociedades latino-americanas, de forma que o individualismo latino-americano não se erigiria na ficção de um contrato social entre indivíduos preconcebidos, produzido por organizações e programas institucionais, como na Europa; constituir-se-ia por práticas e habilidades de pessoas que, para se integrarem à sociedade, precisam, antes de tudo, atuar e garantir existência e reconhecimento. Condição que se explicaria, em parte, pela forma como o poder se instaura em nossos países. Algo que não se estabelece tal como no “Norte”; algo que se indica, mas não se efetiva totalmente, como a lei que não se cumpre sempre, que varia nas circunstâncias, com uso da violência se necessário. De tal forma, esse indivíduo precisa atuar (diante do incerto, do não funcional das instituições ou do arbitrário do poder) e a manutenção dos laços sociais torna-se fundamental à organização da experiência, sendo que, historicamente, redes bastante delimitadas sustentariam as trajetórias.

De outro lado, Martuccelli (2010a)MARTUCCELLI, D. La société singulariste. Paris: Armand Colin, 2010a. analisa um “processo social de singularização”, modo de individuação pelo qual o ideal para os indivíduos consiste em ser alguém reconhecido à diferença dos outros, por sua incomparabilidade ordinária e concreta. A valoração do “singular” tornar-se-ia uma forma de relação com o “comum”. Não menos sujeito a relações de poder, entre os principais fatores da tendência (numa lista não exaustiva), o autor situa: a customização e a diversificação da produção e do consumo; a personalização de atendimentos e demandas institucionais; a responsabilização individual, especialmente no mundo do trabalho; e o teor interativo (e menos estatutário) das relações de sociabilidade. Nesse sentido, o autor argumenta ser preciso considerar não só os processos de individualização institucionalizados, mas também ações em espaços não institucionais e, além disso, o “trabalho” dos próprios indivíduos adiante das provações que se estendem ao longo dos itinerários de vida.

Resumidas as proposições que configuram a interpretação de processos de individuação, podemos estabelecer os referentes de interpretação das narrativas, nesse caso, enredos em artefatos audiovisuais. Doravante, podemos assentar brevemente algumas das contribuições de Martín-Barbero (1992MARTÍN-BARBERO, J. Televisión y melodrama: géneros y lecturas de la televisión en Colombia. Bogotá: Tercer Mundo, 1992.; 1997)MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997. no que tange a meios, mediações e identidades na América Latina.

Das Narrativas e Mediações

Martín-Barbero (1992MARTÍN-BARBERO, J. Televisión y melodrama: géneros y lecturas de la televisión en Colombia. Bogotá: Tercer Mundo, 1992.; 1997)MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997. preocupava-se em discutir as mediações entre os sistemas de produção no marco do capitalismo (tributários de padronizações e estereotipias narracionais e de buscas por lucratividade) e as dinâmicas de apropriação cultural. Nesse sentido, propunha que a produção audiovisual na América Latina se assentava na mercantilização da fórmula do “melodrama”, cujo potencial de adesão se engendrava desde a relação estabelecida com a moralidade cotidiana e, em articulação, com as possibilidades de identificação e projeção lançadas aos telespectadores. A “telenovela” seria o exemplo mais proeminente, ao mestiçar enredos que nos remetem aos antigos folhetins, compondo temas e tecnologias atuais, evocando do popular formatos conhecidos para usos industrializados (MARTÍN-BARBERO, 1992MARTÍN-BARBERO, J. Televisión y melodrama: géneros y lecturas de la televisión en Colombia. Bogotá: Tercer Mundo, 1992.).

As imbricações entre a reprodução do formato “melodrama” e as buscas identitárias latino-americanas, conforme a tese de Martín-Barbero (1997)MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997., baseiam-se na atualização da oralidade popular (contar a) junto às tecnologias audiovisuais (uma oralidade secundária). Seria justo o texto televisivo o principal elemento de interpelação, já que a tela da TV ou do computador concorre com outros apelos no espaço privado ou doméstico (diferentemente do que ocorre no cinema). Ademais, a narrativa melodramática audiovisual se caracterizaria por certo diálogo com as reações do público, mostrando-se porosa a temas e fatos do momento e se constituindo por um tempo narrativo aberto. Esses aspectos tornariam significativas as produções de teor melodramático, por um efeito de imbricação entre experiências e ficção: a configuração narrativa do melodrama faz a mediação entre sistemática produtiva de massa e os ciclos do cotidiano popular (MARTÍN-BARBERO, 1997MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997.).

Em suas análises sobre a produção dos folhetins e suas reverberações na produção cultural de massa, Martín-Barbero (1992)MARTÍN-BARBERO, J. Televisión y melodrama: géneros y lecturas de la televisión en Colombia. Bogotá: Tercer Mundo, 1992. discute alguns dos recursos que organizavam a mediação ao consumo popular. Dada a notoriedade das contribuições do autor, reiteramos apenas aqueles tomados para as interpretações empreendidas na sequência. Primeiramente, entre os dispositivos de fragmentação, o autor assinala a organização por episódios, adequada às rotinas populares. Essa também nos leva aos dispositivos de sedução, apoiando a incorporação de temas atuais e a mescla entre trama e vida cotidiana.

Em relação aos dispositivos de reconhecimento, aqueles que provocam a identificação, Martín-Barbero (1992)MARTÍN-BARBERO, J. Televisión y melodrama: géneros y lecturas de la televisión en Colombia. Bogotá: Tercer Mundo, 1992. analisa a lenta e dupla narrativa melodramática, no curso progressivo das peripécias e regressivo das revelações identitárias e morais. Nesse sentido, a configuração melodramática estabelece uma articulação estético-ética a partir dos golpes dramáticos e, assim, aborda medos e desejos de vingança-justiça conhecidos de seus destinatários. Se há uma prioridade para a ação e os desajustes de ordem moral (e não dilemas existenciais), esse é o caminho pelo qual o melodrama movimenta arquétipos culturais.

A partir de nossas incursões, então, empreendemos a interpretação de consumos culturais, buscando fazê-lo via contextualização de mediações, para chegar, por fim, a hipóteses acerca das características da individuação indiciada. Nesse sentido, cabe esclarecer, não se tratará de afirmá-las mediante a leitura dos enredos, mas sim de indiciar aspectos de consistências relacionais e desafios sociais em jogo desde as partilhas estéticas em curso.

Sobre nossas Incursões

Realizamos nossas incursões entre os anos de 2017 e 2019, em localidades socialmente vulnerabilizadas de Porto Alegre (RS). Nos três bairros (Cruzeiro, Lomba do Pinheiro e Restinga) considerados aqui, trabalhamos com quatro técnicas articuladas: a aplicação de questionários; a análise de narrativas audiovisuais; a realização de grupos de discussão; e a efetivação de entrevistas semiestruturadas.

No que tange aos questionários, esses consultavam sobre consumos de bens culturais, trajetórias laborais e estudantis, redes de apoio e desafios regulares nos itinerários pessoais. Os resultados que abordaremos aqui decorrem de 583 observações (em ordem de realização: 257 para Restinga; 146 para Cruzeiro; e 180 para Lomba do Pinheiro). A amostragem foi intencional e não probabilística, sendo o acesso aos alunos realizado conforme conseguíamos a anuência das instituições educativas, atentando, entretanto, para que tivéssemos estabelecimentos públicos municipais, estaduais e federais (quando existiam nas localidades) e presença expressiva de jovens alunos (Tabela 1). Esse tipo de amostra não permite extrapolações estatísticas, mas se presta a análises significativas, particularmente se usada com apoio de outras técnicas (FIELD, 2009FIELD, A. Descobrindo a estatística usando o SPSS. Porto Alegre: Artmed, 2009.). O instrumento utilizado foi um formulário estruturado e autoaplicável.

Tabela 1
Distribuição de observações por local de aplicação

Operamos, então, uma análise descritiva das respostas, ensaiando, depois, cruzamentos concernentes aos consumos culturais. Então, antes de realizarmos os grupos de discussão, dedicamo-nos a assistir episódios dos artefatos mais citados (aproximadamente 85 horas de trabalho), com vistas a conhecer os enredos e melhor compreender a relação dos jovens com as narrativas que têm merecido sua deferência. Nesse caso, a análise se pautou, de um lado, pela delimitação de elementos a sistematizar, pelo que caracterizamos: personagens e arranjo relacional dos enredos; configuração narrativa recorrente nos episódios; e, brevemente, efeitos de fotografia apropriados às narrações. De outro lado, operamos a partir do contraste com a configuração melodramática, observando os dispositivos propostos por Martín-Barbero (1992)MARTÍN-BARBERO, J. Televisión y melodrama: géneros y lecturas de la televisión en Colombia. Bogotá: Tercer Mundo, 1992..

A imersão nas localidades se deu de forma sequencial, de modo que, ao observarmos a recorrência das preferências por narrativas audiovisuais, quando no segundo bairro, passamos a conduzir também grupos de discussão nesse sentido. Para tanto, pautamo-nos nas contribuições de Weller (2006)WELLER, W. Grupos de discussão na pesquisa com adolescentes e jovens: aportes teórico-metodológicos e análise de uma experiência com o método. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 32, n. 2, p. 241-260, maio-ago. 2006. https://doi.org/10.1590/S1517-97022006000200003
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, de modo a tomar grupos cujos integrantes tivessem experiência comum a debater e que, nesse sentido, pudessem trazer mais elementos e interpretações acerca dos consumos explicitados no levantamento descritivo. Fizemos quatro encontros em escolas estaduais, um em unidade municipal (EJA) e um em estabelecimento federal (cursos PROEJA e Tecnólogos), entre aquelas onde aplicamos os questionários, sendo que cada edição contou com cerca de dez integrantes. A escolha das unidades escolares atendia ao propósito de diálogo com jovens estudantes, considerando níveis de ensino diferentes e turnos distintos de aula (diurno e noturno).

Em última etapa, efetivamos as entrevistas. Dessa forma, promovemos narrações sobre o cotidiano no bairro e na escola, bem como perguntamos pelas escolhas e interpretações relativas aos consumos de narrativas audiovisuais. Foram seis entrevistados com idades entre 15 e 29 anos, selecionados nos grupos de discussão conforme tinham se destacado nas argumentações sobre seus consumos culturais.

Junto aos grupos de discussão, as entrevistas representavam uma maneira de nos aproximarmos dos “leitores populares”, como assinala Martín-Barbero (1992MARTÍN-BARBERO, J. Televisión y melodrama: géneros y lecturas de la televisión en Colombia. Bogotá: Tercer Mundo, 1992.; 1997)MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997., buscando qualificar o reconhecimento das mediações em jogo. Nesse sentido, a análise dos depoimentos tomou as referências aos artefatos, destacando o que viabilizava ou instigava o acesso por parte dos jovens, bem como os laços sociais e desafios interpretados por eles nas tramas e personagens.

Consumos Culturais e Escolarização: Problematizações Iniciais

Iniciemos nossas análises com uma pequena contextualização. A televisão segue como mídia hegemônica no acesso a informações no Brasil, sendo os noticiários e as novelas em TV aberta os itens mais consumidos. Contudo, a frequência semanal e o número de horas dedicadas à TV é inferior entre pessoas com Ensino Superior. Por outro lado, canais por assinatura, nos quais se encontram muitos seriados, são mais acessados por aqueles com mais renda e escolaridade. Ademais, as pesquisas da Secretaria Federal de Comunicação indicavam também um crescimento do acesso à Internet, particularmente entre aqueles com mais escolaridade (SECOM, 2014; 2016).

Outro dado que merece destaque para efeito de nossa análise diz respeito à condição etária. O uso da Internet é mais recorrente entre jovens (SECOM, 2014; KUBOTA, 2016KUBOTA, L. C. Uso de tecnologias da informação e comunicação pelos jovens brasileiros. In: SILVA, E. (org.). Dimensões da experiência juvenil brasileira e novos desafios às políticas públicas. Brasília: IPEA, 2016. p. 199-220.) e o acesso a bens culturais e entretenimento tende a se ampliar conforme a escolaridade desses (SOUTO, 2016SOUTO, A. L. S. Uso do tempo livre e acesso à cultura. In: PINHEIRO, D. et al. (orgs.). Agenda juventude Brasil: leitura sobre uma década de mudanças. Rio de Janeiro: Unirio, 2016. p. 191-214.), dados esses pertinentes ao estudo dos usos e consumos populares, se tivermos em mente a ampliação histórica da escolarização juvenil. Para segmentos historicamente excluídos, o incremento da frequência à escola foi sensivelmente superior entre 2004 e 2014 (2,5% de forma geral contra 10,6% para jovens de famílias do primeiro quintil de renda) (SPOSITO, 2018SPOSITO, M. et al. A pesquisa sobre jovens no Brasil: traçando novos desafios a partir de dados quantitativos. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 44, e170308, 2018. https://doi.org/10.1590/S1678-4634201712170308
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).

Isso não altera a recorrência de percursos truncados ao longo da escolarização, com casos de reprovações, desistências e/ou adesão a políticas de correção de fluxo. Entretanto, se considerarmos que se mantém, mesmo assim, um quadro de extensão histórica do acesso à escola e à vivência como estudante entre jovens, cabe problematizar seus efeitos ao consumo de artefatos culturais nas periferias.

Sobre os Consumos Culturais Indicados

Quanto às informações de nossa amostra, realçaremos de início os acessos mais frequentes e as correlações pertinentes ao esforço empreendido aqui. Em primeiro lugar, destacamos que, para Internet, os mais citados (em questão de múltipla escolha) foram: “redes sociais” (83,2%), “músicas” (50,4%), “filmes” (36,4%) e “seriados” (32,8%). Já para TV, os mais recorrentes foram: “filmes” (60,2%), “noticiários” (51,6%), “seriados” (45,3%), “novelas” (36,5%) e “programas esportivos” (29,2%) Para ambos, predominavam opções de entretenimento conhecidas; entretanto, vale destacar que as “novelas” estariam com menos frequência que “filmes” e “seriados”.

No cruzamento entre acessos à Internet e níveis de escolaridade alcançados, constatamos uma ampliação de “redes sociais”, “estudos”, “seriados” e “jornais eletrônicos” junto da escolarização, mas redução para “músicas” e “filmes”. A oscilação mais acentuada se dava entre aqueles que cursavam o Ensino Superior (tecnólogos), figurando “estudos” (52%), “seriados” (42%) e “jornais eletrônicos” (36,8%) entre as quatro principais priorizações, junto a “redes sociais”. Em suma, indicava-se que, entre pessoas em tal etapa de escolarização à época da consulta, o consumo de seriados na Internet tendia a ser superior ao dos demais níveis.

No que tange aos acessos à TV (na qual a grade de programação permite menos navegação, comparativamente), as oscilações significativas concernem ao já mencionado em relação aos levantamentos nacionais (SECOM, 2014SECOM [SECRETARIA DE COMUNICAÇÃO SOCIAL DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA]. Pesquisa brasileira 2014: hábitos de consumo de mídia pela população brasileira. Brasília, DF: SECOM, 2014.; 2016SECOM [SECRETARIA DE COMUNICAÇÃO SOCIAL DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA]. Pesquisa brasileira 2016: hábitos de consumo de mídia pela população brasileira. Brasília, DF: SECOM, 2016.). Observamos que, com o aumento da escolaridade (especialmente no Ensino Superior) ocorria uma diminuição das citações para consumo de “novelas”, e aumento para “noticiários” e “seriados”.

Tomemos, agora, alguns dados complementares. Quando perguntamos os assuntos preferenciais para conversas (múltipla escolha), houve considerável dispersão. Os respondentes destacavam vários elementos, em percentuais aproximados. Contudo, se tomássemos os temas em associação com a escolaridade em curso, itens como “seriados”, “estudos” e “política” ampliavam (em cerca de quinze pontos percentuais) suas citações entre aqueles que cursavam Ensino Superior. Se, de outra parte, relacionássemos as diferentes opções entre si, podíamos constatar um agrupamento específico mediante a recorrência mútua de citações para seriados e filmes nas opções para conversas, situação essa observada também nos consumos na Internet. Nesse caso, tal coletivo também seria formado especialmente por pessoas que cursavam graduação (mais de 50% dos integrantes do grupo, contra cerca de 20% para o conjunto da amostra), associando ainda uma condição de renda relativamente superior. Consideramos, com isso, a possibilidade da criação de hábitos de interlocução dirigidos a artefatos culturais específicos, supondo-se a constituição de uma prática de partilha e cultivo cultural justamente entre aqueles cuja relação com a instituição escolar é mais duradoura.

Os dados analisados até aqui permitem considerar a hipótese de que o consumo de seriados se associa à escolarização (sem que se possa descartar condições econômicas – acesso qualificado à rede de Internet e a plataformas de streaming, por exemplo). Assim, dirigimo-nos à tese notória de Bourdieu (2008)BOURDIEU, P. Gostos de classe e estilo de vida. A distinção. São Paulo: EDUSP, 2008. p. 240-275., incluindo-se aí disposições ao capital cultural preconizado pela escola, de um lado, e a experiência de redes de sociabilidade e cultivo cultural, de outro. No entanto, ponderações de teor qualitativo sobre narrativas audiovisuais e os depoimentos dos jovens estudantes podem nos indicar mais elementos para a compreensão da inflexão na apropriação de bens culturais, dado que falamos, de todo modo, de artefatos de consumo popular massivo.

A Relação com as Narrativas: o que se Consome e o que se Diz a Respeito

A consulta realizada por questionário solicitava a indicação de exemplos dos artefatos consumidos, incluindo-se aí as narrativas audiovisuais. Em consonância com o observado anteriormente, percebemos que a citação de nomes de seriados era mais frequente entre aqueles que cursavam o Ensino Superior. Ainda assim, obtivemos menções em todos os níveis.

Nesse sentido, poderíamos resumir uma caracterização dos gostos em certo gradiente, movendo-se da valorização de laços de solidariedade e reciprocidade, a evocar interações familiares, muitas vezes, e sob indícios de uma estrutura melodramática, até opções com densidade informacional elevada nos diálogos, com destaque a enredos políticos e/ou reflexividades identitárias entrelaçadas às tramas. De certa forma, nessa polaridade, ocorre uma aproximação mais patente a categorias interpretativas associadas a abstrações de poder e à produção da identidade-diferença, ainda que elas perpassem de alguma forma todas as narrativas audiovisuais consideradas.

Se o gradiente se mostra correlacionado à escolarização em curso, remetendo-nos à tese da relação com capitais culturais, há elementos que perpassam os possíveis extratos. De fato, para essa amostra, seria difícil fazer atribuições estritas de consumos conforme as classes socioculturais. Ademais, uma análise das narrativas indica configurações e dispositivos em comum em artefatos direcionados, a priori, a diferentes nichos.

O que se Consome, Indícios às Mediações

No que tange aos seriados, é comum se acentuar como atrativos à audiência a customização das produções, a intensidade com que são engendrados fatos, atos e dilemas, a qualidade da fotografia e os aprimoramentos dos roteiros, aos quais se associa a utilização de recursos estéticos antes privilegiados nas produções de cinema. Contudo, acreditamos poder aprofundar alguns aspectos adicionais.

O que faremos a seguir é um exercício limitado de sistematização complementar. Procuraremos traçar uma análise geral, articulando eventualmente aspectos de um artefato ou outro, para que, de forma ilustrativa, possamos destacar nuances entre enredos e personagens. Aqui então, tomaremos de empréstimo argumentos de Martín-Barbero (1992; 1997) em sua problematização dos dispositivos de enunciação de folhetins e novelas.

Ah, sei lá, seriado dá pra assistir num intervalo de aula, de repente; no ônibus também. A gente aproveita o tempo que fica esperando, né. Se eu quisé, fico aqui entre uma aula e outra e posso ver um episódio.

(Helen, estudante de Ensino Superior – Restinga, set. 2019).

Um primeiro ponto a levar em consideração concerne aos dispositivos de fragmentação. Como Martín-Barbero (1992) já observava em relação às novelas, a exibição em episódios de duração relativamente curta viabiliza a adesão à trama mesmo para as rotinas populares mais assoberbadas. O consumo é interpelado, além disso, por artifícios que facilitam o acompanhamento (resumos ao início do episódio, chamadas publicitárias sobre as intrigas etc.). No caso das plataformas tecnológicas em voga, porém, vemos não só uma intensificação de tal característica, mas também a possibilidade de acessar conteúdos de forma individualizada, sem as restrições temporais dadas pela grade programática de emissoras e com autonomia para seccionar o consumo conforme a disponibilidade ordinária, o que amplifica as possibilidades de fragmentação. Isso se coaduna a certa ubiquidade tecnológica, representada especialmente pelo uso de tablets, smartphones e redes de Internet.

A formatação por episódios também operaria como dispositivo de sedução. Nesse caso, articulado a uma estrutura aberta, a duração extensa propiciaria que a trama se confundisse com a vida, o que seria explicitado pela comunicação entre leitor e autor dos antigos folhetins ou entre telespectadores e artistas das mídias eletrônicas (MARTÍN-BARBERO, 1997MARTÍN-BARBERO, J. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997.). Além disso, a sequência se constitui instaurando suspenses por meio de situações problemáticas ao final de cada episódio, incitando o acompanhamento do desenlace. Entre os dispositivos de sedução das telenovelas, estaria também a redundância, que permite ao “recém-chegado” tomar pé da trama a qualquer ponto da sequência. A própria repetição da estrutura melodramática facilitaria a aproximação adiada ou intermitente. Viabilizaria a interpelação, ainda, certa inclinação à narração (contar a), que foge ao formato textual do romance, dirigindo-se ao cotidiano popular.

Nesse ponto já devemos estabelecer as primeiras diferenciações. Embora se utilizem previews, não percebemos que o dispositivo da redundância esteja presente de forma tão permeada nos seriados. Se há a repetição da estrutura de dilemas e personagens típicas a cada episódio, as cenas não preveem necessariamente intertextos relativos ao já ocorrido, nem se possibilita uma audiência apenas auditiva (como muitos dos textos de TV aberta). Em muitos casos, aliás, cada episódio guarda relativa independência dos anteriores e mesmo o suspense entre episódios não é recurso de uso generalizado para os seriados considerados. Além disso, a maior explicitação da condição ficcional em muitos seriados torna oblíqua a articulação com a vida cotidiana.

Possibilidades à Identificação

Novela representa mais ou menos o que a gente passa no dia a dia. Normalmente é o que acontece na vida da gente, o que a gente passa em família. Na verdade, em família, nada é perfeito! Sempre tem aquele “uns coloca contra o outro”. Então, a gente acaba gostando daquela trama da novela. E na série também.

(Lúcia).

Dependendo da série, a gente pensa muito. E, quando vê, muda e é bem diferente do que a gente pensa.

(Jussara).

Na série eles passam mais uma história; na novela, é mais realidade.

(Cristiano).

(Grupo de discussão com estudantes de Ensino Médio noturno – Lomba do Pinheiro, ago. 2019).

Passando aos “dispositivos de reconhecimento”, Martín-Barbero (1992)MARTÍN-BARBERO, J. Televisión y melodrama: géneros y lecturas de la televisión en Colombia. Bogotá: Tercer Mundo, 1992. afirma que havia uma dupla narrativa nos folhetins, o que poderíamos perceber também em telenovelas: uma em curso progressivo das peripécias das personagens; outra em sentido inverso, revelando os segredos, as origens e os fundamentos das injustiças, até que a história resultasse em situação justa. Na narração regressiva folhetinesca, o desvelamento se daria lentamente, no descortinar de certa hipocrisia social ou de um crime familiar, sendo que os golpes dramáticos estariam articulados aos dilemas morais, dispondo a ética em continuidade à estética, um aspecto a mais a potencializar a conexão entre narrativa e vida. Ali estariam representados, assim, o medo e o sentimento de justiça e vingança.

Nessa novela [O outro lado do Paraíso], teve uma vingança boa, mas ao mesmo tempo não, porque ela se deu bem no final. Ela ficô como rainha da prisão e pegô 15 anos, se não me engano, mas ela saiu em dois, três anos.

(Ana).

Ela prejudicô muita gente, sor, e perdeu pouco.

(Laura).

Mas tem o lado também de fazê um final diferente, né.

(Guilherme).

(Grupo de discussão com estudantes de Ensino Médio Noturno – Cruzeiro, jul. 2018).

Quando nos voltamos aos seriados analisados, não se percebe uma estrutura de personagens tipicamente melodramáticos. Consideramos haver a apropriação de tais aspectos no curso das histórias, de forma mais ou menos eventual. Na série Demolidor, oriunda das histórias em quadrinhos da Marvel, percebe-se a aproximação mais enfática, sendo o protagonista praticamente um justiceiro que usa os próprios punhos. Há, nesse caso, uma narrativa reversa inclusive, evocando a origem familiar do herói, ao que se associam suas escolhas morais.

Em Lucifer, a personagem central é conformada mobilizando um arquétipo associado ao “mal” para deslocar posições e atitudes. Sua configuração visual reúne signos legitimados de êxito social – roupas elegantes, carro veloz, capacidade de sedução etc. –, sendo que, inicialmente, destaca-se a ironia com que o protagonista opera junto às personagens (não exotéricas), indicando contradições, ridículos e insignificâncias sociais, ao mesmo tempo que se apresenta como sujeito cômico por suas gafes, sua falta de senso moral assumida ou seus equívocos sobre trivialidades. Narrativa audiovisual preferencial entre os jovens estudantes de Ensino Médio com quem dialogamos, já na segunda temporada as personagens mudam sensivelmente, passando a uma regressão melodramática: surge a mãe do demônio e os conflitos familiares nesse sentido; a ironia perde expressão; Deus, antes aludido quase como representante de um sistema incoerente, começa a ganhar a conotação de pai injusto; e a intensidade dramática de falas e gestos nas cenas se amplia.

Tiraram aquela fama de demônio dele que mata e que pica, faz e acontece. Ele só qué curti as férias dele, pegá a mulherada, pra bebê.

(Samuel).

Lucifer é muito bom! Melhor série! É um demônio que tira férias e é muito legal. Tu começa a entrar [...] É legal, não sei explicar! É, e ele ajuda os outros. E a série é meio policial, meio romance e drama. É tudo junto! E passa sentimento e te faz sentir o personagem, entendeu. Não é só o carinha lá que vai mata o outro carinha.

(Camile).

(Grupo de discussão com estudantes de Ensino Médio noturno – Lomba do Pinheiro, ago. 2019).

Vale assinalar que, muitas vezes, a configuração dos episódios em seriados difere das telenovelas, por possuir uma imbricação patente entre continuidade e descontinuidade nos enredos: as peripécias das personagens a cada fragmento exibido podem guardar independência relativa de suas intrigas, sendo a trama concernente às escolhas, aos dilemas ou às mudanças de vida dos protagonistas o fio articulador do conjunto no curso das temporadas.

Gosto muito de ver séries de heróis. Eles têm também sua parte fantasiosa, mas têm seus dramas, a parte humana. E na parte do herói a gente consegue fugir um pouco da realidade. No caso do Demolidor, ele é um super-herói cego, mas os outros sentidos dele são bem mais aguçados, né. E ele é advogado e tem muito senso de justiça [...] Aí, acho que atrai a parte séria dele, de ele tê seus próprios problemas pessoais e tê que coincidir isso com a parte de sê um vigilante, né.

(Ricardo, estudante de Ensino Médio diurno – Cruzeiro, ago. 2018).

Para os casos em tela, tal imbricação enfatiza intensa agência dos sujeitos diante de um mundo incerto, perigoso e/ou injusto, sendo que as capacidades protagonizadas não compõem superpoderes necessariamente (mesmo que a apresentação da personagem preveja a possibilidade). Queremos realçar com isso que a opção narrativa parece ser a de caracterizar papéis também pelas fragilidades e pelos equívocos.

Percebem-se, todavia, nuances no campo de ação em que se erigem os dilemas e escolhas dos protagonistas. Há aqueles cujo argumento se situa sobretudo entre problemáticas morais, com recorrência de temas e intrigas familiares e/ou jurídico-policiais (como Demolidor, Flash, Lucifer, Supernatural, Walking Dead), e outros que, embora contemplem atos nesse campo, vertam questões sócio-identitárias ou atuações políticas (Game of Thrones, Sense8). Os matizes se diversificam, ainda, pelo teor dos dilemas das personagens. Se, via de regra, não falamos de figuras seguras de suas escolhas, há casos em que as angústias e oscilações experimentadas se dirigem especialmente aos juízos do que seria correto/justo–incorreto/injusto, ao passo que, noutros, o assunto tende à busca de reconhecimento pessoal e ao enfrentamento individual de certo desajuste em relação ao contexto de ação (de que seriam exemplos Grey’s Anatomy e Sherlock).

Nesses contextos, via de regra, diversificam-se as personagens, suas caracterizações minoritárias (por condição étnica ou de gênero etc.) e, conforme a importância no enredo, os detalhes biográficos. Então, como mencionado, os sujeitos são apresentados também por suas fragilidades. Em alguns casos, apresenta-se personagem com capacidade diferenciada, que pode inclusive ser fruto de uma fragilidade diagnosticada, nem sempre reconhecida socialmente, mas cuja singularidade opera como um recurso relevante para a ação. Não lidaríamos, assim, com personagens estáveis e coesos na representação de valores éticos; os artefatos tendem a expor figuras atravessadas por dilemas e incompreensões, como já assinalava Martuccelli (2016)MARTUCCELLI, D. Condición adolescente y ciudadanía escolar. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 41,n. 1, p. 155-174, jan./mar. 2016. https://doi.org/10.1590/2175-623660050
https://doi.org/10.1590/2175-623660050...
.

No entanto, aqui também há nuances. Tomemos alguns exemplos. Em Sherlock, o detetive reconhecido pela inteligência e a perspicácia ganha aqui características psicológicas adicionais, sendo retratado como uma pessoa rechaçada, rotulado como esquisito. Watson, em contraste, retrata circunstâncias de um cidadão comum, entre contas a pagar e tentativas amorosas. Às personagens de Conan Doyle se assomam as trivialidades cotidianas e as buscas por reconhecimento. Em Sense8, há vários protagonistas de diferentes nacionalidades, distintas identidades de gênero e étnicas e diversas capacidades, com a peculiaridade adicional de certa conexão sensitiva que resulta em suporte concreto mútuo. A metáfora encaminha o tema da interface entre diferença e igualdade, fazendo da caracterização de personagens um artifício de narração de singularidades. Já em Supernatural ou Walking Dead, embora precisem tomar decisões difíceis e se equivoquem, os protagonistas tendem a versar suposta firmeza de caráter e retidão moral.

É preciso ressaltar, nesse sentido, que a identificação de predominâncias não elimina as interfaces entre os consumos desde as categorizações que propomos. As intrigas retratadas a cada episódio podem trazer configuração de personagens melodramáticas combinada com uma expressão de dilemas reflexivos dos protagonistas que atravessam as peripécias (combinação cujo exemplo mais claro talvez seja a série Lucifer).

Ademais, as opções de fotografia, incluindo a vivacidade de luzes e cores, tendem a realçar intensidades de forma complementar. Sherlock opera tramas investigativas policiais em meio a cores sóbrias, tendendo a tons acinzentados e escuros. Certa obscuridade londrina se faz presente em enredos, cuja visualidade agrega elementos informacionais e tecnológicos. Já seriados como Demolidor, Lucifer, Supernatural ou Walking Dead investem em efeitos especiais e/ou em tons escuros e sombrios que, além de compor uma atmosfera de perigo ou insegurança, associam-nos à mobilização nada sutil de arquétipos religiosos.

Novela é como alguns filmes. Tu já sabe o que vai acontecê e isso aí tira a graça da coisa [...] E não gosto dos filme da Marvel. É que os heróis que ganha sempre, entendeu. Tipo assim, eu tô vendo Walking Dead. Vejo vários episódio. Ali tem derrota, tem vários personagem ali que eu gostava que morreu. Quando um morre, é foda, sor! [...] Mas eu sô mais do realismo assim.

(Guilherme, estudante de Ensino Médio noturno – Lomba do Pinheiro, set. 2019).

Ainda que reconheçamos que o mercado de audiovisuais hoje atua na busca e produção de nichos de consumo singularizados, o que esboçamos aqui são elementos em comum e nuances nas escolhas de jovens em diferentes situações de escolaridade. De forma geral, os seriados analisados comungam, com níveis de explicitação diversos, a exibição de realidades sociais inseguras, quando não perigosas ou caóticas, nas quais os protagonistas exercem forte agência para sobreviver ou fazer valer seu senso de justiça. Expressa-se certa estética da instabilidade.

Bah, eu gosto de histórias que falem de coisas que acontecem no mundo assim, tipo Unsolved. Séries que coisas de contextos mundial acontecem e aí tem uma virada, entende. Tipo num país tal uma mulher é eleita presidente e daí não se sabe como vai ser a questão do poder, daí.

(Rafael, estudante de Ensino Superior – Restinga, jun. 2017).]

As instituições que poderiam amparar as personagens se apresentam ausentes ou insuficientes, de modo que os sujeitos tendem a compensá-las por seus atos individuais ou em pequenos coletivos. Nesse sentido, alguns casos evocam a família e o sistema jurídico-policial como suporte; noutros, são amigos e colegas apenas. Alguns realçam dilemas de ordem moral diante da instabilidade cotidiana; noutros, as agências diante de um sistema político-social opressor para garantir a expressão da diferença e da singularidade. Uns carregam elementos folhetinescos; outros tendem a um teor individualizado de narrativas irônicas e psicologizadas, sendo o mundo uma espécie de pano de fundo. Todavia, de modo geral, os enredos tendem a posicionar as personagens a partir de suas trajetórias, de maneira que mesmo o vilão figure como antagonista, não como simples expressão do “mal a combater”.

Enfim, consideramos lidar com tendências reflexivas diversas e mistas, que ora são dirigidas a urgências morais e éticas (com mobilização de arquétipos religiosos inclusive), ora são perpassadas por deambulações políticas e identitárias de forma mais específica, ainda que haja interpenetrações entre as propensões. Se, para a amostra em análise, percebemos uma adesão mais regular de pessoas com menor escolaridade ao primeiro tipo de argumento e, de outra forma, a adesão ao segundo entre aqueles que cursavam Ensino Superior, é preciso perceber também os sentidos de instabilidade e singularização que perpassam as narrativas consumidas em ambos os casos.

Aventamos, enfim, que se configuram dispositivos de reconhecimento de teor reflexivo e singularista: todas as personagens têm itinerários a considerar, um passado que lega problemas e injustiças a partir da relação com um difuso e/ou diáfano “sistema” ou diante das relações de poder específicas (com pais, com a polícia etc.) que são iníquas. Além disso, na maioria dos casos, não se faz tanto o uso de um vetor regressivo desvelando a injustiça, a rede de intrigas e o juízo do vilão; mais bem se processa o deslindar de si numa progressão reflexiva. Assim, a identidade social não se narra pela descoberta das filiações necessariamente, mas pelo afrontar das adversidades.

Ditos e Silêncios: Intertextos entre Narrativas e Contextos

Nos trechos de depoimentos dispostos anteriormente, procuramos demarcar elementos recorrentes na relação com as narrativas. Primeiramente, aqueles que cursavam o Ensino Superior indiciavam vantagens da ubiquidade tecnológica e da fragmentação narrativa, à medida que diziam assistir episódios nos interstícios de seus compromissos diários. Convém assinalar, então, que os cursos tecnólogos ocorriam à noite e os estudantes desses eram os que mais indicavam estar trabalhando à época da consulta. No entanto, havia também nuances nas disposições à interpretação das tramas, com preferência para aquelas que incorporassem leituras contextuais de ordem política, identitária ou global.

Se contrastarmos o que afirmavam sobre novelas e seriados, é possível identificar que a primeira remete ao cotidiano e a conflitos morais, indicando clara expectativa de justiça ao final da intriga; aos segundos é reportada a condição de ficção ou história fantasiosa, cujos roteiros comportariam mais inovações e diversificações. As personagens dos seriados aportam também problemas cotidianos e um propósito de justiça. Contudo, a dinâmica figurativa não se centra em relações familiares ou, de forma mais geral, na restituição de laços sociais (com entes próximos, via de regra). Tende a projetar a ação dos protagonistas em cenário societal mais abrangente, com ênfase narrativa individualizada e agonística, sendo o apoio de redes relacionais próximas um esteio. Então, é oportuno destacar que as citações referem noções de “realismo” para os dois tipos de artefatos, como se informassem realidades distintamente experienciadas.

Retornemos, pois, a alguns dos dados quantitativos, agora sobre as redes de apoio e os desafios enfatizados pelos jovens. Quando consultados sobre os suportes para situações de rotina e/ou de dificuldade (múltipla escolha), indicavam sobremaneira os familiares, mas percentuais e ordem de priorização se alteravam conforme o grau de escolaridade atingido. Se, entre aqueles que frequentavam o Ensino Fundamental (EF), eram mais mencionados familiares (91%), Deus (34,4%), colegas de estudo (31%) e amigos (25%), para os que cursavam Ensino Superior (ES), observavam-se familiares (97,2%), amigos (62%), colegas de trabalho (46,6%) e Deus (21,3%). Já para os desafios considerados mais relevantes nas trajetórias, tivemos o predomínio de conclusão dos estudos (o que pode ser efeito do local de aplicação dos questionários), mas com a seguinte variação: para EF, concluir os estudos (74%), perda de entes queridos (43,8%), relacionamento amoroso (37,5%) e violência nas ruas (31,3%); e para ES, concluir os estudos (55,6%), obter ocupação estável (48,1%), manter relacionamento amoroso (33,3%) e violência nas ruas (26,9%).

Trata-se de nuances entre redes relacionais bastante estritas. Para aqueles que cursavam Ensino Superior, os desafios e redes de apoio enunciados sugerem mais vivências extrafamiliares e, então, a projeção de independência por via laboral. Assim sendo, a relação educação-trabalho parece ambientar uma inflexão rumo à responsabilização individual pelo itinerário de forma mais patente entre jovens e jovens-adultos. Poderíamos ponderar, primeiramente, o que Lopes (2012)LOPES, J. T. Do politeísmo cultural contemporâneo e o trabalho escolar de eliminação da dissonância. In: DAYRELL, J. et al. (orgs.). Família, escola e juventudes: olhares cruzados Brasil-Portugal. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012. p. 24-37. denomina o efeito escolar de uma “socialização por antecipação”. Percebemos que ter êxito cumulativo na escola nuançava os depoimentos relativos às expectativas que a instituição projeta: muitas vezes, os primeiros a chegarem ao Ensino Superior em seus núcleos familiares, nossos interlocutores podiam versar sentidos à escolarização na relação com o futuro e, então, na leitura do cenário ocupacional que os acolheria.

Sabe-se que pessoas com formação em nível universitário tendem a obter ocupações comparativamente melhores e a ser mais bem-remuneradas. Por outro lado, é notório também que os índices de desemprego e informalidade assolam particularmente os jovens no mercado de trabalho brasileiro (IBGE, 2019). Agrega-se a isso a realidade das rotinas empregatícias juvenis, tendentes à intensificação de ritmos e flexibilização de vínculos (CORROCHANO, 2016CORROCHANO, M. C. Trabalho e condição juvenil: permanências, mudanças, desafios. In: NOVAES, R. et al (orgs.). Agenda juventude Brasil: leituras sobre uma década de mudanças. Rio de Janeiro: Unirio, 2016. p. 155-174.). Em relação às trajetórias laborais, a associação com escolaridade sinalizava que pessoas cursando os Ensinos Médio ou Superior logravam “trabalhos administrativos”, sendo que essas últimas agregavam atividades de nível técnico. Todavia, em geral, os itinerários eram permeados por ocupações informais ou formais precarizadas, em diversas inserções intermitentes e onerosas, não raro versadas a partir de performances individualizadas.

Na interface dos dados que mencionamos, está a experiência de indivíduos que, mesmo em vias de consubstanciar expectativas institucionais, veem-se associados a espaços de ação inconsistentes, tomando por suportes redes relacionais próximas. Pensamos que aí se situa uma sintonia de ordem estética entre a individuação produzida pelos atores (acompanhada da escolarização) e o consumo e a partilha cultural de seriados. Nesse ponto, percebemos que, se aspectos da identificação com as personagens nem sempre são explicitadas, depreendemos que a condição dilemática, agêntica e singular dos “heróis” pode ser o fulcro nesse sentido.

Considerações Finais

Procuramos estabelecer a análise da relação entre acesso a artefatos audiovisuais e processos de individuação, especialmente no que concerne à experiência da “prova de si”. Ao assumir desafios e consistências afrontados pelos indivíduos como vetor heurístico, consideramos a fruição de narrativas como indiciador das tensões entre atores sociais e contextos de ação. Para tanto, partimos de levantamento descritivo que sinalizava uma ampliação do consumo de seriados em correlação positiva com a escolarização de nossos interlocutores. Observamos que, apesar das possíveis diferenças disposicionais relativas ao domínio de capital cultural, a relação com personagens e enredos apontava preferência por figurações de teor agonístico e reflexivo, ambientadas em cenários injustos e/ou incertos.

Pode-se depreender símbolos de êxito, firmeza, astúcia e superação, mas também a opção por personagens com fragilidades peculiares a serem reconhecidas e que se tornam, paradoxalmente ou não, parte de suas potências na lida com um mundo injusto, opressor ou pelo menos inseguro (ou que não lhes “contém”, acolhe ou satisfaz). Assim, no que pode nos oferecer a discussão sobre as apropriações das narrativas dos seriados, a individuação desses jovens parece atravessada por apelos à singularização, ao mesmo tempo que acentua a necessidade de agência (individual) em contextos adversos.

Se é possível que os jovens sintam nos seriados uma celebração de hiperatores conectada a seus contextos urbanos, percebemos ali particularmente a interpelação do “singular”, seja por reconhecimento da diferença, seja pelo distintivo esboçado em percursos de provações. Imbricando tessituras melodramáticas e personagens reflexivos em diferentes graus, os seriados parecem propiciar uma apropriação estética que podemos remeter à individuação agêntica. A configuração narrativa folhetinesca, em suas ênfases afetivo-relacionais junto a intrigas morais cotidianas, parece dialogar com a socialidade latino-americana. De outra parte, cabe considerar que a estetização produzida nas séries assistidas, entre enredos intensificados, peculiaridades das personagens e efeitos fotográficos, potencializa sentidos ao singular via reflexividade e ficcionalização (mais agudas que nas telenovelas).

Aí então talvez devamos considerar o consumo de seriados como artifícios que perspectivam as experiências, configurando suportes simbólicos oblíquos à prova de si, dado que nem sempre os indivíduos verbalizam de todo o que os instiga na fruição. Podemos evocar, em complemento, uma tese de Martín-Barbero (2017)MARTÍN-BARBERO, J. Jóvenes entre el palimpsesto y el hipertexto. Barcelona: Ned Ediciones, 2017.. Em urbanidades fragmentárias, em que a estada e a fruição do espaço citadino são obliteradas em favor da produção e dos fluxos, a conexão com as mídias sociais torna-se expressão da vinculação com o espaço público. Assim, há que se tomar em conta a importância da ubiquidade tecnológica e da possibilidade de navegação em circuitos sociais assoberbados por labor e estudos; discutir igualmente o que significa a comum estética da instabilidade e da agência em relação às narrativas.

A relação entre escolarização e consumo de narrativas audiovisuais, ainda que se associe ao domínio de capital cultural, constitui-se diante de experiências individuadas erigidas em tempos de modernidade-mundo e a partir de experiências de inconsistência contextual. Nesses termos, a instituição escolar colaboraria para infletir consumos e a tradicional dominação social exercida pelas mídias. Contudo, não parece afetar a extensão de seu poder na profusão de discursos metonímicos de responsabilização (MARTUCCELLI, 2007MARTUCCELLI, D. Cambio de rumbo: la sociedad a escala del individuo. Santiago: LOM Ediciones, 2007.). Ter que responder individualmente ao que se passa, quando associado a versões estoicas e singularistas, pode figurar um dignificante imperativo por reconhecimento existencial e resultar um modo de ação plausível à interpretação do cotidiano.

Notas

  • 1
    Nos limites deste artigo, não será possível aprofundar tais aspectos contextuais. Contudo, podemos citar como referências reconhecidas nos campos das ciências sociais e da educação, por exemplo: Castells (2013)CASTELLS, M. A transformação do mundo na sociedade em rede. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da Internet. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. p. 157-174.; Dubet e Martuccelli (1996)DUBET, F.; MARTUCCELLI, D. La experiencia colegial. En la escuela: sociología de la experiencia escolar. Buenos Aires: Losada, 1998. p. 187-223.; Leão e Carrano (2013)LEÃO, G.; CARRANO, P. O jovem Milton: a individuação entre a igreja e a educação social. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 38, n. 03, p. 895-914, jul./set. 2013..
  • 2
    A população consultada se distribui entre jovens-adolescentes (15 a 17 anos – 52%), jovens (18 a 24 anos – 29%), jovens-adultos (25 a 29 anos – 13%) e adultos (6%). Pessoas do sexo feminino representavam 58% das observações e, para a autodeclaração de cor, tivemos 47,6% brancos e 52,4% negros (pretos e pardos). Entre os que indicaram renda familiar (393 obs.), 62,5% indicaram até dois salários-mínimos (SM), 28% registraram entre dois e cinco SM e 9,5% mais de cinco SM. Análises realizadas com software SPSS.
  • 3
    Foram eles: Supernatural, Flash, Demolidor, Lucifer, Walking Dead, Sherlock, Grey’s Anatomy, Game of Thrones, Sense8 (cerca de dez episódios cada). Assistimos também a capítulos da novela O outro lado do paraíso e aos filmes Velozes e furiosos e Jogos vorazes para fins de contraste.
  • 4
    Programa Nacional de Integração da Educação Básica com a Educação Profissional na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos (Ministério da Educação).
  • 5
    Observamos oscilação para consumo de seriados, foco neste estudo, também nos cruzamentos com renda domiciliar e idade. No entanto, eram menos expressivos e não indicavam correlação no teste qui-quadrado, como ocorria com escolarização (alpha 0,05). Assim, nos limites desta escrita, optamos por aprofundar análises dessa última, o que também guarda congruência com pesquisas da área (BOURDIEU, 2008BOURDIEU, P. Gostos de classe e estilo de vida. A distinção. São Paulo: EDUSP, 2008. p. 240-275.; KUBOTA, 2016KUBOTA, L. C. Uso de tecnologias da informação e comunicação pelos jovens brasileiros. In: SILVA, E. (org.). Dimensões da experiência juvenil brasileira e novos desafios às políticas públicas. Brasília: IPEA, 2016. p. 199-220.; SETTON, 2004SETTON, M. G. A educação popular no Brasil: a cultura de massa. Revista USP, São Paulo, n. 61, p. 58-77, mar./maio 2004. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i61p58-77
    https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036....
    ; SOUTO, 2016SOUTO, A. L. S. Uso do tempo livre e acesso à cultura. In: PINHEIRO, D. et al. (orgs.). Agenda juventude Brasil: leitura sobre uma década de mudanças. Rio de Janeiro: Unirio, 2016. p. 191-214.).
  • 6
    O percentual de citações para aqueles que cursavam Ensino Fundamental era, em contraste, de cerca de 30%.
  • 7
    A saber: “relações familiares” (42%), “relações amorosas” (35%), “esportes” (33,8%), “músicas” (30%), “relações de amizade” (29%), “temas de estudo” (28%), além de “festas”, “seriados”, “filmes” e “novelas”, todos entre 20 e 30%.
  • 8
    Convém registrar que, também inscrito na sociologia dos indivíduos, Lahire (2006)LAHIRE, B. A cultura dos indivíduos. Porto Alegre: Artmed, 2006. já indicava a necessidade de considerarmos a diversidade dos consumos culturais individuais, sob o risco de tomarmos propensões gerais como segmentações estritas por classe e/ou em função da legitimidade cultural atribuída aos artefatos. Em relação a isso, o autor procura explicitar e discutir o que poderíamos considerar dissonâncias nos processos de socialização dos indivíduos em sociedades diferenciadas. Sem desconsiderá-lo, procuraremos realçar, no entanto, as experiências aludidas pelos enredos e sua potencial articulação com desafios e consistências sociais afrontados por jovens estudantes.
  • 9
    Os nomes utilizados nas citações ao longo do texto são fictícios.
  • 10
    Aqui nos referimos à Marvel Comics, editora de histórias em quadrinhos norte-americana integrante do Marvel Entertainment Group, que, por sua vez, é subsidiário da Walt Disney Company. A editora é conhecida pelo público consumidor em função de numerosos personagens (Homem-Aranha, Capitão América, Homem de Ferro, entre outros), sobremaneira visibilizados no mercado mundial de entretenimento na última década, a partir de franquias cinematográficas com elevados ganhos de bilheteria (centenas de milhões, via de regra). Ver, por exemplo: https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/cinema/noticia/2021/09/universo-cinematografico-da-marvel-ja-soma-26-filmes-confira-o-ranking-do-pior-ao-melhor-cktozq44800d1013bfwj3u9bw.html.
  • 11
    A título de esclarecimento, cabe mencionar que a “condição agêntica” referida na relação entre jovens interlocutores e personagens das narrativas analisadas alude o convencional debate sociológico da interação entre estruturas sociais e agência dos atores, mas à luz das proposições de Martuccelli (2007, 2010a). Assim, significa referir as margens de ação dos indivíduos diante de constrangimentos sócio-históricos, no limiar entre modus operandi e inventividades circunstanciadas, porém com atenção à possibilidade de os indivíduos agirem de outra forma (agir autrement), o que nos parece esteticamente intensificado na fluência dos acontecimentos narrados em seriados.
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    Artigo resultante da pesquisa “Tempos versados: éticas e capitais nas narrativas da alegria”, coordenado pelo autor na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (FACED/UFRGS). O trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior Brasil (CAPES). Código de Financiamento 001.

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Editor de seção: Antonio Alvaro S. Zuin

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    02 Jun 2021
  • Aceito
    24 Fev 2022
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