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A COLONIALIDADE DO SABER: PERSPECTIVAS DECOLONIAIS PARA REPENSAR A UNIVERS(AL)IDADE

THE COLONIALITY OF KNOWLEDGE: DECOLONIAL PERSPECTIVES TO RETHINK THE UNIVERS(AL)ITY

LA COLONIALIDAD DEL SABER: PERSPECTIVAS DECOLONIALES PARA REPENSAR LA UNIVERS(AL)IDAD

RESUMO

O ensaio tem por objetivo questionar as relações coloniais do saber fixadas por meio de um modelo humanista eurocentrado. Para isso, adota-se uma lente de análise centrada na crítica às categorias que reforçam o racismo epistêmico como mecanismo social determinante das relações coloniais do saber e do poder. Busca-se pensar como as resistências são organizadas diante do silenciamento dos saberes, das práticas e das narrativas de corpos racialmente designados como inferiores. Trata-se, por fim, de analisar o potencial emancipatório desse movimento de resistência, teórico e prático, produzido a partir de outras corpo-políticas do conhecimento, fruto das lutas históricas contra racismo/sexismo eurocentrados.

Palavras-chave
Colonialidade; Racismo; Geopolítica do conhecimento; Epistemicídio; Universidade

ABSTRACT

This essay aims to discuss the colonial relations of knowledge established through an Eurocentric humanist pattern. For that reason, we adopt a lens of analysis that focuses on criticizing categories that reinforce epistemic racism as a social mechanism determining colonial relations of knowledge and power. It seeks to discuss how resistances are organized considering the silencing of knowledge, practices and narratives of bodies racially designated as inferior. Finally, we analyze the emancipatory potential of this resistance movement, theoretical and practical, produced by other body-politics of knowing and resulted from historical struggles against Eurocentered racism/sexism.

Keywords
Coloniality; Racism; Geopolitics of knowledge; Epistemicide; University

RESUMEN

El ensayo pretende cuestionar las relaciones coloniales de saber establecidas a través de un modelo humanista eurocentrado. Para esto, adoptamos una lente de análisis centrada en la crítica de las categorías que refuerzan el racismo epistémico como mecanismo social que determina las relaciones coloniales de saber y poder. Buscase pensar cómo se organizan las resistencias frente al silenciamiento de los saberes, las prácticas y las narrativas de los cuerpos racialmente designados como inferiores. Finalmente, se trata de analizar el potencial emancipatorio de este movimiento de resistencia, tanto teórico como práctico, producido a partir de otras corpo-políticas del conocimiento, resultado de luchas históricas contra racismo/sexismo eurocéntricos.

Palabras-clave
University; Racismo; Geopolítica del conocimiento; Epistemicidio; Universidad

Introdução

O Brasil foi “inventado” de cima para baixo, autoritariamente.

Precisamos reinventá-lo em outros termos.

Paulo Freire

Os estudos das relações raciais no Brasil, nas últimas décadas, têm sido impulsionados por uma série de abordagens que atestam um deslocamento importante nas pesquisas. A emergência de novas pautas e de sujeitos políticos que tensionam as agendas da educação superior brasileira pode ser entendida, nesse contexto, a partir do esforço de repactuação político-epistêmica e de construção de alternativas que impõem problematizar as premissas, os privilégios e os silêncios do campo, institucionalizado por perspectivas eminentemente eurocentradas. Para além de reduzir os sujeitos racializados ao problema sobre o qual os estudos se debruçam, os movimentos e os agentes sociais das pesquisas reivindicam uma relação sujeito-sujeito que, por si mesma, questiona a verticalidade hierarquizada dos enfoques teóricos e confere projeção aos movimentos de resistência protagonizados pelos próprios sujeitos implicados nas lutas.

Nesse horizonte, esse ensaio inscreve-se na tentativa de pensar as implicações do debate acerca da modernidade/colonialidade em relação à educação superior e às disputas político-epistêmicas travadas por diversos movimentos de descolonização contra as estruturas de poder do sistema-mundo capitalista moderno/colonial/patriarcal (BERNARDINO-COSTA; GROSFOGUEL, 2016BERNARDINO-COSTA, J.; GROSFOGUEL, R. Decolonialidade e perspectiva negra. Sociedade e Estado, Brasília, DF, v. 31, n. 1, p. 15-24, abr. 2016.; WALLERSTEIN, 2004WALLERSTEIN, I. Capitalismo histórico y movimientos antisistémicos: un análisis de sistemas-mundo. Barcelona: AKAL, 2004.). Trata-se de situar o projeto de descolonização do saber e sua agenda, de modo a contestar modelos epistemológicos e pedagógicos hegemônicos, pautados por uma lógica colonial que cria, reproduz e mantém hierarquias epistêmicas, sociais, raciais, sexuais.

Compreendida como matriz de poder que funda a modernidade, a colonialidade assenta-se na ideia da raça como aspecto estruturante da lógica moderno/colonial (QUIJANO, 2005QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, E. (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e Ciências Sociais. Perspectivas Latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005. p. 227-278.). Ela sustenta-se no racismo como sistema de poder, que afiança não só a supremacia racial branca em relação a outros corpos racialmente inferiorizados, mas demarca também os modos de produção e disseminação de conhecimentos considerados verdadeiros e válidos, culturalmente valorizados. Ao conceber a raça como o eixo determinante das relações sociais, é preciso ressaltar que o racismo opera como elemento fundamental na manutenção da diferença subontológica e nas hierarquizações do conhecimento (REIS, 2020bREIS, D. S. Saberes encruzilhados: (de)colonialidade, racismo epistêmico e ensino de filosofia. Educar em Revista, Curitiba, v. 36, 2020b. https://doi.org/10.1590/0104-4060.75102
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), via processos de desumanização e sistemas de extermínio. É à luz dessas ideias que nos interessa pensar tanto o impacto do capitalismo e do colonialismo na construção das epistemologias dominantes quanto a relação desigual entre saberes, que reforça determinadas perspectivas e subalterniza outras, deslegitimando-as intelectual e institucionalmente.

Matrizes Coloniais e Relações Raciais

Os processos de racialização, historicamente, ao recorrerem à “substancialização” das diferenças entre o colonizado e o colonizador, fixaram uma série de vantagens, danos e privilégios entre as raças, que estariam supostamente inscritos na própria “natureza humana” dos grupos (REIS, 2020aREIS, D. S. O governo da emergência: Estado de exceção, guerra ao terror e colonialidade. Rio de Janeiro: Multifoco, 2020a.). Essa diferenciação seria materializada nas características fenotípicas e mentais expressas por cada um deles. Convertida em desigualdade, a diferença colonial modula subjetividades segundo as posições que ocupam a partir de uma classificação binária, referenciada pelo paradigma eurocentrado de humanidade, definido como superior em oposição aos sujeitos extraocidentais e não brancos, sujeitos à tutela de seus “soberanos” e à violência das missões civilizatórias. Como destaca Aníbal Quijano:

O fato de que os europeus ocidentais imaginaram ser a culminação de uma trajetória civilizatória desde um estado de natureza levou-os também a pensar-se como os modernos da humanidade e de sua história, isto é, como o novo e ao mesmo tempo o mais avançado da espécie. Mas já que ao mesmo tempo atribuíam ao restante da espécie o pertencimento a uma categoria, por natureza, inferior e por isso anterior, isto é, o passado no processo da espécie, os europeus imaginaram também serem não apenas os portadores exclusivos de tal modernidade, mas igualmente seus exclusivos criadores e protagonistas. O notável disso não é que os europeus se imaginaram e pensaram a si mesmos e ao restante da espécie desse modo – isso não é um privilégio dos europeus – mas o fato de que foram capazes de difundir e de estabelecer essa perspectiva histórica como hegemônica dentro do novo universo intersubjetivo do padrão mundial do poder.

(QUIJANO, 2005QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, E. (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e Ciências Sociais. Perspectivas Latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005. p. 227-278., p. 122).

Pautado pela dissimetria das relações raciais e geopolíticas, a universalidade do discurso e dos repertórios ocidentais reafirma-se pela deslegitimação de conhecimentos, formas de vida, lógicas de pensamento e experiências não ocidentais, pela via de um “processo persistente de produção da indigência cultural” (FANON, 2008FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Tradução Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008., p. 97). Desse modo, a supressão sistemática da capacidade cognoscente dos sujeitos racializados, diante da matriz dominante do conhecimento, difundida como superior, é naturalizada. Afinal, o modo de conhecimento socialmente valorizado será aquele vinculado ao poder impositivo da ordem colonial hegemônica, monocultural, e “fora das suas fronteiras está o não-ser, o nada, o bárbaro, o sem-sentido” (DUSSEL, 1986DUSSEL, E. Filosofia da libertação na América Latina. Tradução Luiz João Gaio. Rio de Janeiro: Edições Loyola, 1986., p. 11).

Proscritos da zona do ser e do círculo da humanidade, os sujeitos racialmente inferiorizados são alvo de práticas sistemáticas de desumanização e de violação de direitos, na medida em que a predação colonial usurpa, sobretudo, o reconhecimento da humanidade e da agência das populações subalternizadas. A “mitologia branca”, por sua vez, institui a figura do homem europeu, branco, proprietário, cristão e cisheteropatriarcal como representação universal do modelo de humanidade (DERRIDA, 1991DERRIDA, J. Margens da Filosofia. Tradução Joaquim Torres Costa. São Paulo: Editora Papirus, 1991.). O solipcismo branco (OYÈWÚMI, 2000OYÈWÚMI, O. Family bonds/conceptual binds: African notes on feminist epistemologies. Signs, Chicago, v. 25, n. 4, p. 1093-1098, summer 2000. (Feminisms at a Millennium.) https://doi.org/10.1086/495526
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) acaba por fazer desaparecer até mesmo as representações da branquitude atreladas à identidade racial branca, conferindo a essa última o status de paradigma, isto é, de identidade universal, não determinada por qualquer marcação e, em função disso, padrão de referência a partir do qual sucedem-se a classificação e a hierarquização das humanidades. Em relação à branquitude, de acordo com BentoBENTO, M. A. S. Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. 2002. Tese (Doutorado em Psicologia) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2002.:

[...] tudo se passa como se houvesse um pacto entre brancos, aqui chamado de pacto narcísico, que implica a negação, o evitamento do problema com vistas à manutenção de privilégios raciais. O medo da perda desses privilégios e o da responsabilização pelas desigualdades raciais constituem o substrato psicológico que gera a projeção do branco sobre o negro, carregada de negatividade. O negro é inventado como um outro inferior, em contraposição ao branco que se tem e é tido como superior; e esse outro é visto como ameaçador. Alianças inter-grupais entre brancos são forjadas e caracterizam-se pela ambiguidade, pela negação de um problema racial, pelo silenciamento, pela interdição de negros em espaço de poder, pelo permanente esforço de exclusão moral, afetiva, econômica e política dos negros no universo social. Neste contexto é que se caracteriza a branquitude como um lugar de privilégio racial, econômico e político, no qual a racialidade, não nomeada como tal, carregada de valores, de experiências, de identificações afetivas, acaba por definir a sociedade.

(2002, p. 7).

Reitera-se, assim, a relevância de historicizar os processos de produção do conhecimento em seus contextos específicos, para problematizar as estruturas racializadas e genderificadas dos paradigmas epistemológicos hegemônicos, monoepistêmicos, monoculturais e localizados geopoliticamente, mas compreendidos como modelos universais a serem disseminados. O deslocamento em relação aos centros privilegiados de produção do conhecimento impõe discutir e dimensionar os processos contra-hegemônicos de afirmação das epistemologias subalternizadas, além de realizar um exercício crítico “sobre os sistemas de posições e lugares geopolíticos da produção filosófica, isto é, a problematização da invisibilidade do lugar histórico e político na construção de conhecimento e da pressuposição da neutralidade de um ‘sujeito universal’” (NOGUERA, 2014NOGUERA, R. O ensino de filosofia e a Lei 10.639/03. Rio de Janeiro: Pallas/Biblioteca Nacional, 2014., p. 22).

Imbricados nas estruturas de dominação colonial, racismo e sexismo epistêmicos garantem a naturalização da exclusividade da tradição de pensamento ocidental, disseminada como forma sobrevalorizada de cultura em prejuízo de práticas, cosmologias e conhecimentos não ocidentais. Esse processo culmina na naturalização de uma gama de justificativas, assentadas em estereótipos essencializados, com intuito de efetivar a inferiorização epistemológica e ontológica de grupos sujeitos à violência discricionária das missões “civilizatórias”, reguladas pelas “hierarquias raciais, binárias e essencialistas do fundamentalismo eurocêntrico hegemônico” (GROSFOGUEL, 2011GROSFOGUEL, R. La descolonización del conocimiento: diálogo crítico entre la visión descolonial de Frantz Fanon y la sociología descolonial de Boaventura de Sousa Santos. In: Formas-Otras: saber, nombrar, narrar, hacer. Barcelona: CIDOB Edicions, 2011. p. 97-108., p. 346).

Ao questionar as estruturas do padrão de poder dominante e o paradigma colonial do saber, a descolonização, como pensamento e prática, recusa as díades e binarismos do pensamento dominante, que concebe a modernidade e a racionalidade “como experiências e produtos exclusivamente europeus” (QUIJANO, 2005QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, E. (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e Ciências Sociais. Perspectivas Latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005. p. 227-278., p. 111). Rejeita-se, ademais, a cisão ontológica que desvalora o corpo, no qual inscrevem-se as narrativas biográficas, da memória ancestral e da resistência, forjadas na luta antirracista e anticolonial. Contrariamente, problematiza-se o dualismo, elemento central do eurocentrismo, que opera a desintegração entre corpo e razão, natureza e sociedade, apontando o reducionismo dessa perspectiva, por meio da qual o corpo colonizado é entendido como destituído de agência, subjetividade e voz (hooks, 1995hooks, b. Intelectuais negras. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 3, n. 2, p. 464-469, 1995. https://doi.org/10.1590/%25x
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).

Univers(al)idade

A universidade, por sua vez, como instituição de produção, circulação e reprodução do conhecimento, historicamente, alijou de seus espaços as práticas, as experiências e os saberes subalternizados pela razão ocidental-cêntrica. Para compreender a história da institucionalização de suas práticas e da consolidação de um único repertório a ser universalizado, revestido pela legitimidade dos critérios de cientificidade instituídos pela modernidade europeia, é preciso colocar em questão o seu reverso: que epistemologias, vivências, práticas e conhecimentos foram deslegitimados para que se afirmasse como exclusiva a matriz epistêmica produzida por essa razão hegemônica? Que humanidades foram ontologicamente desconsideradas para que o cânone moderno/ocidental se impusesse em sua suposta autoevidência? E, finalmente, qual é a função desempenhada pelo racismo e pelo sexismo na consolidação dessa geopolítica do conhecimento, que instituiu centros e periferias, hierarquias ontológicas, epistêmicas e raciais?

Se universalizar, como afirma Muniz SodréSODRÉ, M. A verdade seduzida – por um conceito de cultura no Brasil. Rio de Janeiro: DP&A, 2005., “significa reduzir as diferenças a um equivalente geral, um mesmo valor”, é “a universalização racionalista” (2005, p. 27-28) do conceito de humanidade que oferecerá suporte para negação ontológica de sujeitos racializados e hierarquização de suas culturas. Na sua forma institucional, isso resulta no descompasso entre a realidade extraocidental e as narrativas e repertórios eurocentrados, que encobrem o caráter local de todo conhecimento, na defesa da universalidade de saberes e práticas vinculados à tradição europeia. Por isso, a prática política e epistêmica da descolonização endereça sua crítica ao regime monocultural de (re)produção do conhecimento, apontando na uni-versalidade seu caráter etnocêntrico, situado e excludente, que toma o local – Europa – como global (GILROY, 2001GILROY, P. O Atlântico Negro. Modernidade e dupla consciência. São Paulo/Rio de Janeiro: Ed. 34/Universidade Cândido Mendes/Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001.). Esse processo de universalização de uma matriz particular de conhecimento como a única válida e verdadeira, que passa a conferir valor a acervos, currículos e repertórios ensinados nas instituições, atravessa estruturalmente as universidades brasileiras e os itinerários formativos propostos por elas – o que Nascimento, em O genocídio do negro brasileiro, já indagava, ao afirmar que

[...] em todos os níveis do ensino brasileiro – primário, secundário, universitário – o elenco das matérias ensinadas, como se executasse o que havia previsto Sílvio Romero, constitui um ritual da formalidade e da ostentação das salas da Europa, e, mais recentemente, dos Estados Unidos. Se consciência é memória e futuro, quando e onde está a memória africana, parte inalienável da consciência brasileira no currículo escolar?

(2016, p. 113)

O problema apontado por NascimentoNASCIMENTO, A. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectiva, 2016. permanece quando analisamos quais são os conhecimentos que a universidade se vê como instituição responsável a transmitir, organizar e distribuir e quais, em contrapartida, silencia, invisibiliza e inferioriza (GOMES, 2017GOMES, N. L. O Movimento Negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis: Vozes, 2017.), pois a cultura universitária hegemônica segue reiterando um pacto narcísico que se firma, desde Europa, ao reconhecer esse paradigma civilizatório e epistêmico como única racionalidade verdadeira a ser disseminada pelas instituições de Ensino Superior. Contestar a univers(al)idade instituída em moldes eurocêntricos, patriarcais e coloniais, erigida a partir dos padrões de humanidade que conferem privilégio à supremacia branca e masculina, de um lado, demanda considerar esses espaços de produção e reprodução do conhecimento como marcados por suas localizações epistêmicas, isto é, espaços não neutros, imparciais e objetivos, como historicamente buscaram se definir; de outro lado, questionar a economia de privilégios que institui a valorização simbólica e material da cultura ocidental impõe redimensionar as consequências das desigualdades epistêmicas resultantes da desqualificação de outras matrizes de conhecimento e dos sujeitos que as produzem – notadamente, dos segmentos negro-africanos, das mulheres, dos indígenas, dos povos diaspóricos e latino-americanos, lançados na indigência epistêmico-ontológica. É nesse contexto que o eurocentrismo torna-se

[...] uma metáfora para descrever a colonialidade do poder, na perspectiva da subalternidade. Da perspectiva epistemológica, o saber e as histórias locais europeias foram vistos como projetos globais [...], narrada de uma perspectiva que situa a Europa como ponto de referência e de chegada.

(MIGNOLO, 2003MIGNOLO, W. Histórias locais/projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Tradução Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003., p. 41).

Marginalizados das esferas socialmente reconhecidas e legitimadas do saber pelo projeto moderno/colonial, isso não se dissocia do fato de que a colonialidade atua sobre os corpos marcados pela geopolítica racializante, concebendo-os como territórios de extração que, esvaziados de humanidade, convertem-se em objetos de discriminações negativas, encarceramento em massa ou extermínio sistemático – ou tão somente objetos de estudos antropológicos. Pois a hierarquização racial e sexual tem a função de operar gradações nas escalas de humanidade, de modo que as mulheres negras, na base da pirâmide de opressões, experimentem a violência e o extermínio subjetivo de modo mais intenso e extenso.

Ao analisar esses processos, a filósofa Sueli Carneiro (2005)CARNEIRO, S. A construção do Outro como não-ser como fundamento do ser. 2005; Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005., em interlocução com Boaventura de Sousa Santos, nomeia epistemicídio a sistemática aniquilação subjetiva e epistêmica de sujeitos racialmente inferiorizados e que nega a possibilidade de realização de suas capacidades intelectuais (REIS, 2020bREIS, D. S. Saberes encruzilhados: (de)colonialidade, racismo epistêmico e ensino de filosofia. Educar em Revista, Curitiba, v. 36, 2020b. https://doi.org/10.1590/0104-4060.75102
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). O epistemicídio, como face complementar do genocídio colonial/racial, volta-se à destruição das formas de conhecimento locais, em nome da imposição de uma racionalidade exclusiva e excludente, atrelada ao processo de eurocentrização da modernidade/colonialidade. Pode-se afirmar, ainda, que o apagamento de referências, vozes e bibliotecas extraocidentais apoia-se no racismo epistêmico, que sustenta a colonialidade do saber, com suas hierarquias e critérios valorativos monoculturais.

Ora, em que medida o ensino, a pesquisa e a extensão universitários, implicados com o antirracismo, podem reconfigurar práticas educativas e propor ações que tornem possível a reversão desse quadro? Como a modificação das representações relacionadas à cultura negra, amefricana (GONZALEZ, 2020GONZALEZ, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: RIOS, F.; LIMA, M. (orgs.). Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020. p. 75-93.), LGBTTQIA+, dos feminismos e a inclusão de história e cultura africanas, afro-brasileiras e indígenas redimensionam currículos acadêmicos e os cotidianos universitários? Em que sentido essa mudança interroga os lugares, os espaços de poder e “a relação entre direitos e privilégios arraigada em nossa cultura política e educacional, em nossas escolas e na própria universidade”, nas trilhas do que aponta Nilma Lino Gomes (2012, p. 100, grifos nossos)GOMES, N. L. Relações étnico-raciais, educação e descolonização dos currículos. Currículos sem Fronteiras, Braga, v. 12, n. 1, p. 98-109, jan./abr. 2012.?

A descolonização da educação universitária e da formação humana proposta por ela não é tarefa simples. Se as revisões críticas da história da universidade brasileira têm indicado o exercício permanente – e incondicional – dessa prática, com o enfrentamento intransigente do racismo e do sexismo acadêmicos, é devido ao fato de responderem tanto aos anseios da sociedade em transformação quanto às lutas históricas de movimentos sociais e coletivos. Esses grupos elaboram proposições legais, tensionam imaginários, narrativas e repertórios coloniais e propõem agendas político-pedagógicas que reordenam os enunciados e as práticas nos espaços institucionais de saber/poder. Daí, por exemplo, a importância das políticas de ações afirmativas nesses processos:

O Brasil, em decorrência dos projetos de ações afirmativas em curso nas universidades públicas do país desde o início desse milênio, depara-se com a possibilidade de incorporar a experiência negra e indígena não apenas na formulação de conhecimento, mas também na busca de soluções para os problemas que enfrentamos. A partir desse locus epistêmico, podemos construir um pensamento decolonial em âmbito nacional, assim como podemos construir um diálogo intercultural com outros sujeitos que vivenciam processos de subordinação no Sul Global.

(BERNARDINO-COSTA; GROSFOGUEL, 2016BERNARDINO-COSTA, J.; GROSFOGUEL, R. Decolonialidade e perspectiva negra. Sociedade e Estado, Brasília, DF, v. 31, n. 1, p. 15-24, abr. 2016., p. 22).

No Brasil, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e a Universidade do Estado da Bahia (Uneb) são pioneiras na adoção de medidas destinadas à “promoção do acesso ao Ensino Superior de pessoas pertencentes a grupos socialmente desfavorecidos, especialmente dos afrodescendentes e dos indígenas brasileiros” (BRASIL, 2002BRASIL. Lei n. 10.558, de 13 de novembro de 2002. Cria o Programa Diversidade na Universidade e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 2002.), respaldadas pela Lei Federal n. 10.558, que criou o Programa Diversidade na Universidade. Em 2004, foi a vez da Universidade de Brasília (UnB) instituir um programa de ações afirmativas, tornando-se a primeira universidade federal a adotar as cotas raciais em seus processos seletivos de ingresso na graduação. Apesar dos inúmeros avanços desde então, perceptíveis nos corredores e nas salas de aula das instituições públicas de ensino, e na recente instituição das políticas de ações afirmativas para ampliar o acesso de estudantes negros/as/es, indígenas e quilombolas em cursos de mestrado e doutorado, a descolonização do Ensino Superior exige que se interroguem os princípios norteadores de um projeto étnico e racial excludente, além de viabilizar ações de reconhecimento e valorização de diferentes formas de enunciação inscritas em experiências e saberes incorporados.

É nesse sentido, igualmente, que os embates em torno da implementação das Leis n. 10.639/03 e 11.645/08, que tornaram obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-brasileira, Africana e Indígena na educação básica, ajudam-nos a problematizar continuidades e rupturas do epistemicídio e a forjar espaços de resistência ao racismo/sexismo/colonialismo epistêmicos. Quase duas décadas após sua promulgação, verifica-se que sua aplicação é ainda atravessada por uma série de conflitos e desafios. Nesse horizonte, os rearranjos do epistemicídio, do racismo epistêmico e da colonialidade do saber, na contestação de tal exigência curricular, expõem a necessidade de um exercício permanente que envolve o desenvolvimento de políticas públicas inclusivas e ações afirmativas de permanência, bem como necessária reestruturação das matrizes curriculares do Ensino Superior, especialmente nas licenciaturas. Em observância ao Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Etnicorraciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana:

A Resolução CNE/CP 01/2004, em seu Artigo 1º, dispõe que as Diretrizes tema deste Plano devem ser “observadas pelas instituições de ensino, que atuam nos níveis e modalidades da Educação Brasileira e, em especial, aqueles que mantém programas de formação inicial e continuada de professores”. O § 1º. deste artigo, estabelece que “as Instituições de Ensino Superior incluirão nos conteúdos de disciplinas e atividades curriculares dos cursos que ministram a Educação Relações Etnicorraciais, bem como o tratamento de questões e temáticas que dizem respeito aos afro-descendentes, nos termos explicitados no Parecer CNE/CP 3/2004”.

(BRASIL, 2009BRASIL. Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Etnicorraciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana. Brasília, DF: Ministério da Educação/SECAD/SEPPIR, 2009., p. 42).

As ações a serem desenvolvidas pelas Instituições de Ensino Superior adquirem relevo no âmbito de políticas públicas e legislações educacionais implicadas com a promoção do antirracismo e com a erradicação das disparidades raciais nos espaços escolares e acadêmicos. A educação das relações étnico-raciais deve ser fomentada tanto pela via de componentes curriculares específicos quanto por meio de ações acadêmicas e culturais que promovam a formação dos/as estudantes e dos/as professores/as. E isso, como evidenciam os documentos oficiais, em associação com a educação básica, em diálogo com os fóruns de educação e diversidade étnico-raciais, além dos núcleos de estudos afro-brasileiros e indígenas (NEABI), dos movimentos sociais, dos grupos culturais, das instituições formadoras de professores/as etc., com vistas a buscar “subsídios e trocar experiências para planos institucionais, planos pedagógicos e projetos de ensino” (BRASIL, 2009BRASIL. Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Etnicorraciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana. Brasília, DF: Ministério da Educação/SECAD/SEPPIR, 2009., p. 47) em níveis municipal, estadual e federal.

A importância das lutas do Movimento Negro contra os processos persistentes da colonialidade, do racismo epistêmico e da violência genocida racial-colonial no Brasil, desse modo, reflete-se nas disputas por políticas públicas de cultura e educação que contribuam para o reposicionamento das lentes analíticas e das narrativas hegemônicas propaladas pelo sistema educacional brasileiro (REIS, 2020bREIS, D. S. Saberes encruzilhados: (de)colonialidade, racismo epistêmico e ensino de filosofia. Educar em Revista, Curitiba, v. 36, 2020b. https://doi.org/10.1590/0104-4060.75102
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). Trata-se de questionar pressupostos inscritos em territórios estruturalmente atravessados pela lógica racial/sexual binária, a fim de subsidiar formas encarnadas de construção do conhecimento e um vocabulário que contribua para os enfrentamentos em curso na hora histórica:

Ao politizar a raça, o Movimento Negro desvela a sua construção no contexto das relações de poder, rompendo com visões distorcidas, negativas e naturalizadas sobre os negros, sua história, cultura, práticas e conhecimentos; retira a população negra do lugar da suposta inferioridade racial pregada pelo racismo e interpreta afirmativamente a raça como construção social; coloca em xeque o mito da democracia racial.

(GOMES, 2017GOMES, N. L. O Movimento Negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis: Vozes, 2017., p. 22).

Ao colocar em xeque imaginários e representações estereotipadas dos grupos racializados, afirmam-se conhecimentos e experiências que são construídos “em diálogo com a epistemologia a partir de saberes que foram subalternizados nos processos imperiais coloniais” (MIGNOLO, 2003MIGNOLO, W. Histórias locais/projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Tradução Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003., p. 34, grifos do autor). O redimensionamento de práticas e saberes pautados exclusivamente por perspectivas eurocentradas reverbera na percepção sobre sua construção eminentemente política e histórica, revestida pelas premissas ideológicas que estão na base das estruturas de poder moderno/coloniais. A descolonização, por essa via, requer que se pense com e não sobre os sujeitos historicamente subalternizados, problematizando os sistemas de controle, dominação e opressão estruturados pela lógica da colonialidade. Na interface entre cultura, educação e práticas de liberdade, como já apontava Paulo Freire,

[a]quela [pedagogia do oprimido] que tem de ser forjada com ele e não para ele, enquanto homens ou povos, na luta incessante pela recuperação de sua humanidade. Pedagogia que faça da opressão e de suas causas objeto da reflexão dos oprimidos, de que resultará o seu engajamento necessário na luta por sua libertação, em que esta pedagogia se fará e refará.

(FREIRE, 2006FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006., p. 34, grifos nossos).

As resistências que emergem no curso de processos multifacetados de subjugação e enfrentamento interpelam os pactos civilizatórios, as premissas e as estruturas da ordem colonial. A interrogação das categorias de estratificação de humanidade não se dá, no campo teórico, desatrelada do enfrentamento às práticas de extermínio, materiais e simbólicas, e à desumanização decorrente desse apagamento no campo da produção de conhecimento. Como instituição privilegiada de produção e reprodução do conhecimento socialmente construído, a universidade pode desempenhar uma função crucial de ruptura dos processos coloniais de aculturação e assimilação violentos que ela mesma ajuda a reproduzir, com impactos notórios não só no âmbito das identidades e dos imaginários, mas também dos direitos e das representações. Em diálogo com o pensamento decolonial e afrodiaspórico, entendidos como prática de resistência e de liberdade, as corpo-políticas do conhecimento, resultantes das lutas históricas contra racismo, sexismo e universalismo eurocentrados, são fundamentais na concretização de sociedades efetivamente igualitárias e democráticas. Atentar a isso significa valorizar conhecimentos e experiências encarnados, produzidos por povos subalternizados que poderiam contribuir, inclusive, para uma nova práxis nos debates sobre educação, formação humana e sociedade, haja vista que “existem vários universos culturais, não existe um sistema único organizado em centro e periferias, mas um conjunto de sistemas policêntricos em que centro e periferias são contextuais, relativos e politicamente construídos” (NOGUERA, 2014NOGUERA, R. O ensino de filosofia e a Lei 10.639/03. Rio de Janeiro: Pallas/Biblioteca Nacional, 2014., p. 34).

A proposição de um projeto educacional comprometido com a descolonização do conhecimento mostra-se, assim, incontornável para a educação brasileira, especialmente em contextos de recrudescimento do necroliberalismo e de violentas práticas hiperconservadoras – racistas, capacististas, misóginas, LGBT-fóbicas, patriarcais. Não se deve esperar, todavia, que a descolonização epistemológica seja levada a cabo apenas pela via de políticas públicas estatais e administrativas. O projeto contra-hegemônico da descolonização coexiste na tensão com outras orientações e sistemas de ideias, como indica Mignolo (2014)MIGNOLO, W. O controle dos corpos e dos saberes. Entrevista com Walter Mignolo. Tradução André Langer. Revista IHU, São Leopoldo, jul. 2014. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/533148-o-controle-dos-corpos-e-dos-saberes-entrevista-com-walter-mignolo Acesso em: 05 dez. 2019.
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. Por isso, ele é inextrincável das lutas de movimentos sociais, do exercício crítico de desnaturalização do estabelecido e da ampliação de diálogos interculturais, entendidos como “modos de “transformação radical das estruturas, instituições e relações existentes” (WALSH, 2009WALSH, C. Interculturalidade crítica e pedagogia decolonial: in-surgir, re-existir e re-viver. In: CANDAU, V. M. Educação intercultural na América Latina: entre concepções, tensões e propostas. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009. p. 12-32., p. 22).

Considerações Finais

O desafio que se nos apresenta é: como construir e privilegiar esses diálogos interculturais e interepistêmicos, democráticos e pluriversais, em detrimento do monopólio do cânone euro-ocidental? Como fomentar uma interculturalidade crítica que promova os valores emancipatórios da justiça cognitiva, racial e social? Na América Latina, nas trilhas de Catherine WalshWALSH, C. Interculturalidad y colonialidad del poder. Un pensamiento y posicionamiento otro desde la diferencia colonial. In: WALSH, C.; GARCíA LINERA, A.; MIGNOLO, W. (orgs.). Interculturalidad, descolonización del estado y del conocimiento. Buenos Aires: Ediciones del Signo, 2006. p. 21-70., a interculturalidade assume um significado ainda mais específico, na medida em que “ela está ligada às geopolíticas do espaço e do lugar, às lutas históricas e atuais dos povos indígenas e negros e à construção de projetos sociais, culturais, políticos, éticos e epistêmicos, orientados para a transformação social e para a descolonização” (2006, p. 21). Cabe salientar, assim, que interculturalidade não significa consenso ou regulação que suprime as tensões envolvidas nas questões de gênero, sexualidades, raça e classe. É o questionamento da colonialidade e seus efeitos que se apresenta como ponto nodular dessa perspectiva, compreendida a descolonização como:

[...] uma maneira de pensar e de estar no mundo, e não um método para estudar. Pensar decolonialmente significa desatrelar-se dos pressupostos da epistemologia moderna baseados na diferença entre sujeito cognoscente e objeto a conhecer. [...] A decolonialidade são os processos de busca de se estar no mundo e fazer nesse estar, desobedecendo àquilo que a retórica da modernidade e do desenvolvimento quer que sejamos e façamos.

(MIGNOLO, 2014MIGNOLO, W. O controle dos corpos e dos saberes. Entrevista com Walter Mignolo. Tradução André Langer. Revista IHU, São Leopoldo, jul. 2014. Disponível em: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/533148-o-controle-dos-corpos-e-dos-saberes-entrevista-com-walter-mignolo Acesso em: 05 dez. 2019.
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, s. p.).

Como instituição pluridisciplinar, voltada à produção e à circulação de saberes, pesquisas e experiências, a universidade pública tem o compromisso de interrogar os repertórios que dissemina e (re)produz, com o fito de não fortalecer modelos de saber-poder que consolidam os cânones (excludentes) das disciplinas (REIS, 2022REIS, D. S. A filosofia fora das grades (curriculares): a Lei 10.639/03 e os desafios para um ensino de filosofia antirracista. Revista Teias, Rio de Janeiro, v. 23, n. 68, jan./mar. 2022. https://doi.org/10.12957/teias.2022.54025
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). Em oposição à “ordem do discurso” monocultural, que obsta a legitimação de outras epistemologias e modos de existência, a problematização contínua das dinâmicas de produção do conhecimento tem o papel de contestar a crença segundo a qual “todas as populações que vivam fora do pequeno espaço que é conhecido como ‘Europa ocidental’ sejam portadoras de um tipo de saber inferior, de uma interpretação inferior do mundo, de uma espiritualidade inferior, notadamente marcada pelo folclore e pela superstição, e não pela ‘verdade’” (FLOR DO NASCIMENTO, 2013FLOR DO NASCIMENTO, W. Entre saberes e tradições: as contribuições das filosofias africanas. In: Encontro de Teólogos e Teólogas da Tradição de Matriz Africana, Afroumbandista e Indígena da Região Sul, 1., 2013, Porto Alegre. Anais [...]. Porto Alegre: 2013. p. 1-17., p. 4).

A reavaliação crítica das epistemologias e das premissas construídas pela tradição moderna/colonial demanda a revisão dos paradigmas ocidentais universalizados, com efeitos notórios na história, na historiografia e nas práticas de ensino universitárias. A classificação racial hierarquizada da população mundial segue gerando consequências nefastas no âmbito da validação e da valorização de repertórios culturais de povos cujos conhecimentos são sistematicamente desqualificados. Esse processo reflete-se em todas as modalidades e em todos os itinerários formativos das redes educativas brasileiras, tendo no epistemicídio o “instrumento operacional para a consolidação das hierarquias raciais por ele produzidas, para as quais a educação tem dado contribuição inestimável” (CARNEIRO, 2005CARNEIRO, S. A construção do Outro como não-ser como fundamento do ser. 2005; Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005., p. 33).

É nesse sentido que o pensamento decolonial e o pensamento afrodiaspórico podem nos ajudar a repensar as relações raciais e o Ensino Superior, especialmente em relação ao modo como é concebida a temporalidade histórica; como os ciclos e as disciplinas são organizados; e quais sujeitos e agendas são privilegiados ou invisibilizados nas interlocuções propostas. Uma vez que todo sujeito e todo conhecimento são atravessados por contextos históricos, sociais e culturais específicos, uma das questões fundamentais com a qual a universidade precisa se deparar é como situar o conhecimento (re)produzido em seus espaços, para ressignificá-lo criticamente desde o local de sua produção. O que impõe, ademais, o entendimento da prática docente orientada pelo posicionamento crítico diante da disputa por representações, imagens e sentidos que não ratifiquem os pactos excludentes que marginalizam corpos, heranças e legados da maior parcela da população brasileira.

A presença e a valorização de racionalidades, conhecimentos e experiências extraocidentais abrem caminhos para a reestruturação das práticas de ensino e para o debate necessário acerca dos lastros coloniais na educação superior brasileira, e talvez se materializem na proposição de ações e repertórios mais significativos aos/às estudantes e professores/as, capazes de instaurar horizontes verdadeiramente emancipatórios e produzir a descolonização do pensamento como prática de liberdade, radicalmente democrática, imprescindível para a criação de um mundo onde outros mundos sejam possíveis.

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Editado por

Editor de Seção: Anderson R. Trevisan

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    14 Jul 2020
  • Aceito
    05 Abr 2022
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