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POR QUE DEVEMOS ABANDONAR A IDEIA DE EDUCAÇÃO INCLUSIVA

WHY WE SHOULD ABANDON THE IDEA OF INCLUSIVE EDUCATION

POR QUÉ DEBEMOS ABANDONAR LA IDEA DE EDUCACIÓN INCLUSIVA

RESUMO

O texto é um ensaio teórico erigido mediante revisão literária integrativa, o qual objetiva destacar contradições fundantes da ideia de inclusão, tornada princípio orgânico da modernidade no que se refere à construção de uma sociedade igualitária. Analisa historicamente a origem e a formação da categoria inclusão, desde seu significado primevo como ato de colocar algo ou alguém em um espaço fechado até a evolução do conceito no tempo presente, demarcando fendas existentes em sua compreensão como derivadas das antíteses constituintes da própria formulação inicial. Finaliza ao asseverar a importância de superar por incorporação dialética essa categoria mediante a apropriação do conceito de acessibilidade como nova gramática de uma sociedade democrática e justa.

Palavras-chave
Inclusão; Exclusão; Acessibilidade; Educação especial; Equidade

ABSTRACT

The text is a theoretical essay built through an integrative literary review, which aims to highlight the founding contradictions of the idea of inclusion, which has become an organic principle of modernity in terms of building an egalitarian society. It historically analyzes the origin and formation of the inclusion category, from its primeval meaning as the act of placing something or someone in a closed space to the evolution of the concept in the present time, demarcating existing gaps in its understanding as derived from the constituent antitheses of the initial formulation itself. It ends by asserting the importance of overcoming this category by dialectical incorporation through the appropriation of the concept of accessibility as the new grammar of a democratic and just society.

Keywords
Inclusion; Exclusion; Accessibility; Special education; Equality

RESUMEN

El texto es un ensayo teórico construido a través de una revisión literaria integradora, que tiene como objetivo resaltar las contradicciones fundamentales de la idea de inclusión, que se ha convertido en un principio orgánico de la modernidad em términos de construcción de una sociedad igualitaria. Analiza históricamente el origen y formación de la categoría inclusión, desde su significado primigenio como acto de colocar algo o alguien en un espacio cerrado hasta la evolución del concepto en el tempo presente, demarcando las fisuras existentes en su comprensión derivadas de las antítesis constitutivas de la propia formulación inicial. Termina afirmando la importancia de la superación de esta categoría por incorporación dialéctica a través de la apropiación del concepto de accesibilidad como nueva gramática de una sociedad democrática y justa.

Palabras clave
Inclusión; Exclusión; Accesibilidad; Educación especial; Equidad

Introdução

Desde a década de 90 do findado século XX, a ideia de inclusão insurgiu como marco projetivo na configuração de sistemas de ensino efetivamente democráticos e igualitários, ganhando relevo, especialmente, a partir da promulgação das Declarações de Jomtien e Salamanca, ambas arquitetadas pela Unesco (1990UNESCO [ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA]. Declaração Mundial sobre Educação para Todos: satisfação das necessidades básicas de aprendizagem. UNESCO: Jomtien, 1990., 1994)UNESCO [ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA]. Declaração de Salamanca: sobre princípios, políticas e práticas na área das necessidades educativas especiais. Salamanca: Espanha, 1994. e de ampla repercussão global. A partir de então, uma série de políticas educacionais objetivou tornar o acesso e a permanência de públicos anteriormente excluídos do ensino regular (mulheres, negros, favelados, pessoas com deficiência, indígenas, migrantes etc.) como compromisso de Estado em variadas nações. Com o Brasil não foi diferente, uma vez que tal compromisso, assumido desde a Constituição da República de 1988 (BRASIL, 1988BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.), viu-se catalisado por outros instrumentos normativos quando da promulgação das declarações supracitadas, cujo intento foi expandir os interiores escolares para o recebimento dos mais diversos sujeitos.

Destacado isso, é importante pontuar que, quando aludimos à ideia de Educação Inclusiva, estamos nos referindo a todos os sujeitos da educação, em especial aos mais vulneráveis. Com o correr do tempo, tornou-se nítida uma aproximação equivocada que resumia a materialidade da Educação Inclusiva como atinente única e exclusivamente ao público-alvo da Educação Especial. Termos como “alunos da inclusão” ou “incluídos” para se referir à presença de pessoas com deficiência em escolas regulares testemunham aludido paralelo e demonstram empiricamente esta associação indevida, presente, inclusive, no léxico nacional ao entender por inclusão, no que se refere à área educacional, a “política educacional que consiste em incluir indivíduos com necessidades especiais em turmas consideradas regulares, fazendo-os participar de atividades não só educacionais, mas também comunitárias, esportivas e sociais” (MICHAELIS, 2022MICHAELIS. Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, 2022. Disponível em:. Acesso em: https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/inclus%C3%A3o/. Data de acesso: 23 de janeiro de 2022.
https://michaelis.uol.com.br/moderno-por...
).

Tal equívoco decorreu em virtude de as pessoas com deficiência terem sido as últimas a adentrarem os sistemas regulares de ensino, conferindo a errônea impressão de que resumiam a sinédoque do público total da Educação Inclusiva. Nesse terreno, a última aparência foi aquela que restou marcada, daí as junções extemporâneas que objetivaram como verdadeira uma relação falseada pela sua própria incompletude constitutiva. Esse cenário se materializou no Brasil, mas também em diversos outros países, conforme relata Connor (2014)CONNOR, D, J. Social justice in education for students with disabilities. The SAGE handbook of special education. Thousand Oaks: Sage, 2014. p. 111-128..

A existência desse equívoco necessita ser desvelada em suas contradições constituintes, inclusive no que tange ao possível esgotamento da própria ideia de inclusão como conceito operativo na projeção de sistemas gerais igualitários.

De angular importância na confecção de novas relações sociais quando transposto à esfera educacional, o conceito de inclusão se mostrou de grande valia na proclamação fática do entendimento da escola como espaço de todos. Contudo, no atual estágio histórico, destacada representação tem se corporificado mais como fonte de confusão no planejamento de políticas públicas igualitárias do que propriamente bússola orientadora na produção de uma educação de qualidade que catalise a redução de desigualdades sociais.

É chegado o momento de promover transformações que se mostram inadiáveis e que fundem uma nova geografia do espaço escolar, a qual permita a todos participarem de maneira paritária na plêiade de relações que envolvem esse universo. Para tanto, a ideia de inclusão soa como um mantra pouco operativo no terreno da prática, além de gerar uma série de mal-entendidos que abrem fendas, inclusive, na produção de discursos que contestam os benefícios da presença de estudantes com deficiência em escolas regulares, como presenciamos de maneira expressa nas linhas do Decreto n. 10.502, de 30 de setembro de 2020, o qual buscara instituir uma nova Política Nacional de Educação Especial vociferada como equitativa, inclusiva e com aprendizado ao longo da vida, mas que, de maneira intencional ou acidental, abria janelas extensas para a volta da segregação institucionalizada (BRASIL, 2020BRASIL. Decreto n. 10.502, de 30 de setembro de 2020. Institui a Política Nacional de Educação Especial: equitativa, inclusiva e com aprendizado ao longo da vida. BRASÍLIA, DF: Presidência da República/Casa Civil/Subchefia para Assuntos Jurídicos, 2020.). O regramento em questão foi revogado em 01 de janeiro de 2023 por meio do Decreto n. 11.370 (BRASIL, 2023BRASIL. Decreto n. 11.370, de 1º de janeiro de 2023. Revoga o Decreto n. 10.502, de 30 de setembro de 2020, que institui a Política Nacional de Educação Especial: equitativa, inclusiva e com aprendizado ao longo da vida. Brasília, DF: Presidência da República, 2023.). Entretanto, para além da revogação da medida infraconstitucional – necessária e urgente –, não se pode esquecer do imperativo de se transformar a atual Política Nacional de Educação Especial (BRASIL, 2008BRASIL. Política Nacional de Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva. Documento elaborado pelo Grupo de Trabalho nomeado pela Portaria Ministerial n. 555, de 5 de junho de 2007, prorrogada pela Portaria n. 948, de 09 de outubro de 2007. Brasília, DF: MEC/SEE, 2008.), que precisa de ajustes para cumprir as promessas de nossa Constituição. Como parte desse intento propomos o abandono da ideia de Educação Inclusiva.

Ao realizar devido sugestionamento, não estamos compactuando com quaisquer raciocínios e matizes que reverberam a segregação institucional como possibilidade primeva/adequada de atendimento ao público-alvo da Educação Especial. Muito pelo contrário. Defendemos que a presença de estudantes com deficiência nos espaços escolares correntes é componente fundamental do desenvolvimento psíquico do coletivo dos estudantes, dado que permite a criação de inéditas zonas de aprendizagem, as quais ampliam e dinamizam as possibilidades de intervenção social; ademais, a permanência desse público no ambiente escolar regular enriquece as relações humanas como um todo. Uma escola sem a presença de pessoas com deficiência possui menor capacidade projetiva de plasmar a transformação espacial/atitudinal/relacional como parte do processo humano de estar no mundo. Nesse sentido, o que é aqui objetivado não se consubstancia na ação de aceitar ou tolerar as pessoas com deficiência nos espaços coletivos, mas de tomar o conhecimento manifestado mediante sua relação com o mundo como parte do patrimônio histórico-cultural da humanidade. Esta é uma obra que condena tanto a normalização como a inferiorização e o esquecimento desses sujeitos, um ato afirmativo desses corpos, experiência e inteligência, fenômeno que escapa na projeção inicial coberta pelo conceito de inclusão. Em virtude desses elementos, entendemos que as fissuras manifestas hodiernamente pela utilização do conceito de inclusão carecem ser reordenadas pelo emprego de uma noção integrativa mais vigorosa e radical na valorização expressa pela diferença da deficiência.

Poderá se objetar que, ao propor o abandono da ideia de Educação Inclusiva, estaremos desconsiderando os aspectos positivos que seu sentido exerceu no imaginário social, inquirição pertinente e salutar. Contudo, entendemos que as lacunas encontradas e aqui denunciadas no que tange à estreiteza assumida por determinadas proposições/posições/didáticas educacionais no trato com aqueles historicamente excluídos dos palcos escolares são orgânicas ao próprio conceito de inclusão expresso pela modernidade, cuja modelagem inicial é notoriamente assimilacionista. Sendo assim, a resolução dessa contenda demanda a ultrapassagem da representação corporificada pela ideia de inclusão. Afinal, não se pode construir algo novo a partir de um alicerce carcomido.

Desvelando a Ideia de Inclusão: Escovando a História a Contrapelo

O termo inclusão tem sua raiz etimológica no latim inclusio, que significa encerramento, prisão. Desdobra-se de includere, expressão que denota o ato de colocar algo ou alguém em um espaço fechado (FERREIRA, 1999FERREIRA, A, B, H. Novo Aurélio século XXI: o dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.). Sua utilização como ligado às práticas de aceitação e inserção social data do século XVII, vinculando-se ao desenvolvimento do sistema capitalista de produção e à profusão do conceito de norma como ordenador dos vínculos estabelecidos em sociedade.

Trata-se de um conceito moderno por excelência, surgido como salvaguarda de um projeto que aspirava desencantar o mundo medieval, conjurar o trabalho como nova religião dominante e conferir igualdade de direitos a todos, posicionando a expressão “ordem e progresso”, lema do positivismo, como protoforma sobre a qual se desenvolveriam as novas interações sociais. A primazia da ordem sobre o progresso não se dá por acaso e revela a obsessão desse tempo na busca de arranjos e disposições arquitetadas conforme critérios previamente estabelecidos.

Não é de estranhar, que sob esse território, a ideia de norma se converteu em gramática moral de reconhecimento social. Aqueles que se desviavam do quantum considerado normal eram apartados da população para que pudessem, mediante processo de reabilitação, retornar à vida ordinária e somente assim contribuir nos mais diversos papéis sociais, processo nominado inclusão. Isso posto, o conceito de inclusão está diretamente ligado a um processo que parte do princípio de que o corrigir precede o participar, tomando como pressuposto que a transformação dos corpos/funções é estruturante nas possibilidades de se inserir no mundo do qual fazem parte em todas as dimensões. Nesse diapasão, não havia qualquer presunção de transformar o espaço, mas somente o indivíduo, pois seu destino é de sua responsabilidade, marca representativa de um tempo que anunciava o rompimento com os laços sanguíneos do medievo e consagrava o individual como medida de todas as coisas.

Isto posto, a maneira dadivosa pela qual temos tomado a tese da inclusão acaba por acobertar as arbitrariedades orgânicas de seus constituintes vinculantes. Não por acaso, tal imagem se tornou quase sinônimo de uma democracia forte que valora a presença dos mais diversos sujeitos em variados espaços e instituições, daí o fato de ser utilizada massivamente em pensamentos progressistas. Tal ocorrência deriva da plasticidade do conceito de inclusão, que se transformou ao longo do tempo de forma a aparentar compostos mais libertários. Entretanto, destacada maleabilidade não anuviou o advento de contradições nucleares que tornam instável sua utilização em termos epistemológicos. Para além disso, importa ressaltar que a aparência democrática e benfazeja assumida pela ideia de inclusão faz parte do próprio projeto da modernidade como tempo histórico popularizado pela confiança no avanço do inexorável progresso econômico com a proteção de formas variadas de exclusão e marginalização social. Afinal, as luzes não poderiam conviver com a escuridão da barbárie.

Por conseguinte, segregar e reabilitar determinados sujeitos para reinseri-los em momento oportuno nos tecidos sociais não necessariamente significou o fim das medidas supressivas em relação àqueles que se desviavam de certo tipo tido como normativo. Muito pelo contrário. Estamos diante de uma nova tecnologia de exclusão. Mais sútil, capilar, às vezes até revestida de uma capa benevolente. Todavia, nem por isso menos eficaz como mecanismo de sujeição e, em certo sentido, de punição à corporalidade definida como outra. No caso das pessoas com deficiência, este processo foi amplamente retratado na literatura e ficou conhecido sob a alcunha de institucionalização.

A institucionalização, tão duramente criticada desde a segunda metade do século XX por ativistas de diversos movimentos sociais, foi tomada nos alvoreceres da modernidade como apanágio de um tratamento humanizado em contraposição ao infanticídio, à expiação, ao suplício ou às fogueiras inquisitoriais, eventos equivocadamente tomados como a maneira única pela qual tempos pretéritos se comportaram em relação ao outro desviante. Sob esse realce se configura a representação primeva da inclusão, tida como marca do progresso em práticas situacionais quando comparada às temporalidades pretéritas – portanto, não um ponto final na projeção de sistemas igualitários e equitativos, como acabou por ser apropriada. Contudo, de tanto contada e difundida, a fotografia abstrata da inclusão materializou em nós hodiernamente não uma passagem de fatos históricos ou um conceito transitório, como de fato o era, mas a própria coisa em si.

Desprezando a dimensão documentada dos acontecimentos sob o pretexto de que os meios para os avaliar se mostravam insuficientes, fomos acostumamos a ouvir os ordenamentos da história pelos vértices dos reis e rainhas, tomando como ordinário o raciocínio de que, no caso do relacionamento das sociedades para com pessoas tidas como desviantes, caminhamos em uma trajetória escalar perceptível da exclusão à inclusão. Sobre este canto de sereia moldamos a forma pela qual interpretamos a categoria deficiência e as maneiras de se relacionar com ela.

Por esse motivo, a ideia de inclusão é tão cara a nós. Sintetiza aos olhos cartesianos ocidentais a vitória sobre a barbárie. Não é de se estranhar, por conseguinte, que boa parcela dos textos e livros que versam historicamente sobre deficiência comecem suas linhas a partir de fenômenos de exclusão, com especial destaque para os gregos e a bradada prática do infanticídio; perpassando pela expiação romana, pela caça às bruxas na Idade Média e pelo abandono perpetrado em leprosários. Ora, mas será que as práticas de exclusão podem efetivamente ser tomadas como um universal nos tempos pré-modernos no trato para com a deficiência e o desvio? Haveria outra forma de pensar para além desse cenário?

Novas respostas principiam de inéditos questionamentos. Neste sentido, primeiramente é preciso refletir sobre a deficiência não como categoria a ser descoberta, mas produto da história que é construído ao longo de diversas relações. A deficiência não pode ser tomada como um dado acabado ou uma categoria a ser dissecada qual um cadáver. Trata-se de um fenômeno contingente, moldado pelo tempo e, na maioria das vezes, arquitetado por olhares não deficientes.

Visualizar a deficiência como categoria universal constituída por estáveis relações existentes em distintas culturas não parece uma boa alternativa quanto à compreensão do fenômeno (GROCE, 1999GROCE, N. E. Disability in cross-cultural perspective: rethinking disability. Lancet, London, v. 254, p. 756-764, 1999.). E é exatamente isso que o olhar escrutinador do modernismo tem feito quando a descreve. Um olhar violento, que descaracteriza seus sujeitos pelo silenciar de suas vozes e pela inviabilização da narrativa de suas histórias. Refazer essas paisagens seguramente não é das tarefas mais simples. Contudo, faz-se necessário, uma vez que, sem tal processo, continuaremos a formar nossa opinião por um recorte enviesado que empobrece as muitas formas pelas quais corpos com comprometimentos se relacionaram em sociedade.

Dada a predileção por acontecimentos trágicos e negativos, a literatura, via de regra, tem concentrado sua atenção, no caso das pessoas com deficiência, na manifestação dos processos sociais de exclusão que tornaram citada experiência uma fonte de tragédia pessoal, desconsiderando, assim, contradições permeadas em contextos múltiplos ao simplificar uma manifestação complexa e multifacetada, concatenação cuja superação dialética exige a produção de uma nova síntese sobre o fenômeno, somente possível a partir de uma tese que se coloque ao avesso do entendimento ordinário. Daí a necessidade de escovar a história a contrapelo.

Se desejamos novas respostas sobre a deficiência, urge invertermos a pergunta comumente feita por historiadores sobre como as sociedades e culturas de outrora excluíam as pessoas com deficiência de suas práticas diuturnas. É preciso permitir pensar antiteticamente a esaa lógica e perquirir, em vez dos processos de exclusão e extermínio, as práticas e atividades que integraram as pessoas com deficiência nas culturas pré-modernas com questões como: “Por que culturas integravam as pessoas que hoje caracterizamos como deficientes e como o faziam?”

Se olharmos atentamente ao longo da história, veremos que os processos de integração e afiliação se mostram mais constantes e equilibrados do que os fenômenos de exclusão, abandono e desfiliação. Davis (2013)DAVIS, L. The disability studies reader. London: Routledge, 2013., Finkelstein (2001)FINKELSTEIN, V. A personal journey into disability politics. Leeds: University of Leeds, 2001. e Oliver (1990)OLIVER, M. The politics of disablement. London: Macmillan Education, 1990. destacam tal complexo de forma clarividente. Por óbvio que havia fenômenos de exclusão, alguns dos quais acarretavam, inclusive, a morte desses sujeitos, mas eram exceções, não regra, como equivocadamente se fazia parecer.

O próprio infanticídio, dos processos de exclusão mais documentados sobre as pessoas com deficiência na Grécia antiga, quando analisado de maneira abrangente, envolveu menos pessoas do que se imagina comumente, o que não amaina sua brutalidade. Garland (1995)GARLAND, R. The eye of the beholder: deformity and disability in the Graeco-Roman world. Ithaca: Cornell University Press, 1995. destaca que o infanticídio não se aplicava a todas as crianças com deficiência, como se costumou acreditar, mas somente àqueles que apresentavam comprometimentos visíveis ao nascimento, concentrando-se, sobretudo, no que tange aos meninos com comprometimentos físicos. Não há registro de meninas que tenham sido alvo dessa horrenda prática, tampouco de cegos, surdos ou deficientes mentais.

Para Garland (1995)GARLAND, R. The eye of the beholder: deformity and disability in the Graeco-Roman world. Ithaca: Cornell University Press, 1995., o infanticídio se estruturou a partir do entendimento de que homens com comprometimentos físicos teriam problemas adicionais de se mostrarem úteis à sociedade em uma cultura que tinha na guerra sua principal atividade. Ademais, cabe ressaltar que tal prática consistia, no mais das vezes, no abandono dessas crianças em locais específicos, tais como encostas de rios e desfiladeiros. Se as crianças sobrevivessem, seriam incorporadas à sociedade.

O mito de Édipo, dos fundadores da sociedade ocidental, é dos mais salutares quanto a esse entendimento. Édipo, que significa pé inchado, é um dos sobreviventes do infanticídio grego. Situação análoga pode ser encontrada em Esparta, tida como das sociedades mais cruéis no trato a qualquer tipo de comprometimento físico: Agesilau II, rei de Esparta de 400 a.C a 360 a.C, um dos mais brilhantes militares da Antiguidade e responsável pela maior expansão territorial realizada por espartanos, possuía um comprometimento físico congênito. Agesilau II não apenas escapou da morte pelo infanticídio como governou a cidade-Estado por quatro décadas (GARLAND, 1995GARLAND, R. The eye of the beholder: deformity and disability in the Graeco-Roman world. Ithaca: Cornell University Press, 1995.). Cabe ainda ressaltar que, de acordo com Garland (1995)GARLAND, R. The eye of the beholder: deformity and disability in the Graeco-Roman world. Ithaca: Cornell University Press, 1995., os gregos e romanos que contraíam comprometimentos diversos em etapas mais avançadas da vida participavam da sociedade e contribuíam com ela na forma como se mostrava possível, sendo que, quando não podiam, dada a extensão das limitações, recebiam auxílio destinado à sobrevivência.

Curiosamente, tais elementos se fazem inauditos na literatura corrente, o que inviabiliza uma compreensão minimamente concreta no que se refere ao tratamento conferido por essas sociedades às pessoas com comprometimentos diversos. Inadvertidamente, atentamo-nos a apenas uma das teses, a da exclusão, esquecendo, intencional ou acidentalmente, a complexa teia dialética que compõe os mais diversos esquemas societais. As contradições no trato com as pessoas que hoje seriam nominadas deficientes aparecem também em abundantes relatos nos textos bíblicos e demais escritos religiosos, como o Alcorão e o Talmude, os quais mesclam passagens que tangem da integração da pessoa com deficiência até retratos de discriminação explícita, como a proibição da participação em rituais ou a vinculação dessa corporalidade a aspectos malignos e demoníacos (BRADDOCK; PARISH, 2001BRADDOCK D. L.; PARISH, S. L. An institutional history of disability. In: ALBRECHT, G.; SEELMAN, K. D.; BURY, M. (eds.), The handbook of disability studies. Thousand Oaks: Sage, 2001. p. 11-68.).

Ao apontar esses achados, não estamos intuindo que a sociedade não se transformou na maneira pela qual se relacionou com a deficiência a partir da modernidade, muito pelo contrário, pois existe uma clara mudança no trato com o fenômeno, dado que, tal qual pontua Canguilhem (2011)CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011., esse não é mais encarado em fronteiras de bem e mal, de divino e maligno, mas de sanitário/mórbido ou de higiênico/insalubre. Nesse universo, ainda que presente, o modelo mágico de pensar a deficiência se tornaria secundário em comparação aos lineamentos tracejados pelo saber médico.

Sob esse escrutínio, as formas mais violentas de exclusão e eliminação de pessoas com deficiência não são mais toleradas e vão sendo paulatinamente substituídas por mecanismos de controle mais sutis, muitas vezes imperceptíveis e revestidos sob uma capa benevolente. Todavia, ainda que a racionalidade burguesa tenha tentado sepultar manifestações tidas como bárbaras em tempo anteriores, pois representariam imagens de uma época que haveria de ser superada, as paisagens modernas e contemporâneas ainda retratariam uma série de eventos que transmutavam marginalizações explícitas às pessoas com deficiência, como os freak shows, caracterizados pela espetacularização da diferença da deficiência (GARLAND-THOMSOM, 1996GARLAND-THOMSON, R. Freakery: cultural spectacles of the extraordinary body. New York/Chicago: New York University Press, 1996.) ou até o extermínio nazista daqueles que apresentassem comprometimentos identificados. Aliás, especificamente sobre o nazismo, cabe ressaltar que o Reich alemão teve nas pessoas com deficiência o público dileto do início das experiências eugênicas, as quais confluiriam no horror do Holocausto (GERSTEIN, 2017GERSTEIN, K. The nazi slaughter of the disabled: the euthanasia program T4. Chicago: American Bibliographical Press, 2017.), vitimando mais de 250 mil pessoas com deficiência e aproximadamente 6 milhões de judeus.

Isso posto, podemos asseverar que, ao longo da história, presenciamos, de maneira sintética, em todos os períodos considerados, várias formas de exclusão e integração de pessoas com comprometimentos diversos (físicos, sensoriais, psíquicos, psicológicos etc.). Quanto às formas de exclusão, podem ser divididas imageticamente em quatro grupamentos: 1) exclusão por aniquilação: a qual consubstancia, no mais das vezes, a morte daquele que se rejeita e cujas práticas mais conhecidas são o infanticídio, a caça às bruxas e as práticas eugênicas; 2) exclusão por abandono e distanciamento: compreende práticas que abandonam ou apartam pessoas com deficiência à própria sorte ou em instituições como os antigos leprosários, orfanatos e asilos, entre outras – ao contrário do que possa parecer é um fenômeno muito presente hodiernamente, já que, de acordo com Groce (1997)GROCE, N, E. Women with disabilities in the developing world: arenas for policy revision and programmatic change. Journal of Disability Policy Studies, v. 8, p. 177-193, 1997., um terço do total de moradores de rua é de pessoas com deficiência; 3) exclusão por normalização: conhecida como institucionalização e que consiste na colocação de pessoas com deficiência em aparatos clínicos para que, mediante processo de reabilitação, possam se amoldar ao corpo desejado nas relações produtivas e comunicativas; e 4) exclusão por impedimento de participação: traduz-se na criação de barreiras físicas, atitudinais e legais que impedem pessoas com deficiência de acessar os espaços e participar das atividades desenvolvidas em sociedade de forma paritária no trabalho, na saúde, na educação, no lazer, na política ou nas esferas culturais.

Já no que tange às formas de integração social, estas podem variar daquilo que poderíamos nominar aceitação por indiferença, cenário caracterizado por um ambiente que não dispõe qualquer atenção especial às necessidades das pessoas com deficiência (seja no campo de cuidados médicos, seja no das transformações sociais/políticas/atitudinais/arquitetônicas), até compostos que tomam como primordiais a confecção de relações/ambientes que favoreçam o desenvolvimento das pessoas com deficiência mediante esforços de acessibilidade.

A conjunção desses elementos nos permite idear uma complexa arqueologia pela qual a categoria deficiência foi sendo desenhada em distintos contextos sociais, sendo que o estudo sobre aludido conceito contribui para o entendimento da própria cultura tomada em análise, pois retrata em muito a maneira pela qual as gramáticas de reconhecimento se estruturaram ao longo dos tempos. Contudo, para que tais relações possam ser mais bem-compreendidas, mostra-se fundamental tecer considerações sobre o próprio conceito de deficiência.

Inicialmente, cabe destacar que a ideia de que deficiência significa um conjunto de comprometimentos físicos, sensoriais, cognitivos ou psicológicos não existiu através das épocas, como se poderia objetar. Como aponta Davis (2013)DAVIS, L. The disability studies reader. London: Routledge, 2013., tal terminologia data do século XVIII e está ligada a processos transformativos operados no capitalismo, os quais vincularam a produção econômica eficiente como um processo caracterizado pela subjugação do corpo à máquina. Para Ingstad e WhyteINGSTAD, B.; WHYTE, S. R. Disability and culture. Berkeley: University of California Press, 1995., “em muitas culturas, não se pode ser deficiente pela simples razão de que deficiência como uma categoria reconhecida não existe, não se traduzindo facilmente em muitos idiomas” (1995, p. 07). Claro está que pessoas com comprometimentos existiram em toda e qualquer coletividade humana, independentemente do tempo histórico que utilizemos como parâmetro. Todavia, em vez de deficientes, eram nominados surdos, cegos, coxos, aleijados, leprosos, retardados, loucos, entre outros termos.

Esse é um aspecto importante para entendermos a maneira pela qual as sociedades se relacionavam com o fenômeno da deficiência. Para Groce (1999)GROCE, N. E. Disability in cross-cultural perspective: rethinking disability. Lancet, London, v. 254, p. 756-764, 1999., toda e qualquer sociedade possui um complexo sistema de crenças, conceitos e práticas relacionado à deficiência, que molda o entendimento de por que algumas condições são encaradas sob a perspectiva de impedimento e outras não, as quais disciplinam as formas de tratamento, quais as funções são permitidas e quais direitos e responsabilidades determinadas culturas têm para com tais pessoas.

A valorização cultural de determinados atributos e propriedades se mostra fundamental no processo de definição da deficiência. Em sociedades que prezam pela utilização da força física e de resistência corpórea, como em contextos de guerra, pessoas com comprometimentos físicos tendem a ser desvalorizadas. Já em lugares que exigem como princípio de incorporação a utilização de esforços intelectuais, destacada condição pode não ser tomada sob a insígnia do estigma. Groce (1999)GROCE, N. E. Disability in cross-cultural perspective: rethinking disability. Lancet, London, v. 254, p. 756-764, 1999. destaca que, em algumas sociedades do Pacífico nas quais o status de um homem está diretamente relacionado à sua capacidade de falar em público, a surdez é um problema particularmente grave; já na comunidade de Martha’s Vyneard, que tomou a língua de sinais como norma, essa condição não representa uma plataforma de exclusão (GROCE, 1985GROCE, N. E. Everyone here spoken sign language: hereditary deafness on Martha’s Vineyard. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1985.). Em sociedades não letradas, por exemplo, a dislexia sequer é percebida como uma deficiência. Destarte, somente quando a sociedade desenvolve certas expectativas de comportamento em relação a seus membros é que a falta de capacidade de atender a essas expectativas se torna óbvia e problemática, implicando sistemas de definição e categorização que exercem impacto real na vida das pessoas.

As diferenças transculturais na interpretação dos comprometimentos, os quais podem ou não resultar em deficiência, dependem de critérios situacionais culturais, incluindo estigma e poder e somente se manifestam quando da experimentação de discriminação com base nas limitações funcionais percebidas. Tais pressupostos retratam de maneira clarividente que a participação de pessoas com deficiência em atividades e funções coletivas se mostra influenciada tanto pela extensão de seus comprometimentos quanto pela interpretação da deficiência e a estruturação dos espaços que as circunscrevem. Tal qual pontua Stiker, inexiste deficiência fora de estruturações organizativas específicas, uma vez que “o rótulo e a categorização provêm de estruturações sociais, bem mais que do fato bruto do dano físico ou psíquico. É a obrigação que tem a sociedade de atribuir o qualificativo de deficiente que cria, socialmente, a deficiência” (2005, p. 164).

Com isso, esperamos ter deixado claro que uma pessoa com comprometimentos somente é deficiente em relação a um conjunto de condições sociais e históricas. Não se trata de algo natural que sempre existiu ou resiste ao tempo. É contingente e situacional.

Dito isso e tomando a inclusão como sucedânea do progresso representado pelas luzes, é imperioso ressaltar que o saber médico edificou uma forma evolucionista de pensar as relações consubstanciadas entre deficiência e sociedade. Nesse cenário, a deficiência foi esquadrejada como derivada de um conjunto de limitações orgânicas que acarretavam impedimentos na participação de atividades, os quais somente poderiam ser desfeitos quando da correção da função ou do órgão diretamente comprometido em uma relação de causalidade orgânica quase matemática. Ledo e duplo engano.

É falsa a correlação diametral entre impedimento e deficiência, pois simplifica em demasia um fenômeno complexo quando retira sua capa histórica. Não menos incorreta é a presunção da exclusão como absoluto no trato com a deficiência expressa em sociedades pré-modernas ou tradicionais. Ainda que muitas práticas condenatórias se fizessem presentes nesses estádios históricos, não representavam o espírito da época ou dos povos, mas o sentimento que as classes hegemônicas da modernidade conferiam a tal temporalidade. Garland (1995)GARLAND, R. The eye of the beholder: deformity and disability in the Graeco-Roman world. Ithaca: Cornell University Press, 1995., Oliver (1990)OLIVER, M. The politics of disablement. London: Macmillan Education, 1990., Davis (2013)DAVIS, L. The disability studies reader. London: Routledge, 2013., Stiker (2005)STIKER, H. J. Corps infirmes et sociétés: essais d’anthropologie historique. Paris: Dunod, 2005. e Groce (1999)GROCE, N. E. Disability in cross-cultural perspective: rethinking disability. Lancet, London, v. 254, p. 756-764, 1999. retratam o caráter multidimensional em que se estabeleciam as relações entre culturas e pessoas com deficiências, as quais apontam para inúmeros processos de integração que sobrepujavam às paisagens de exclusão desenhadas pelo imaginário moderno, cuja negação compreende parte de uma lógica complexa de afirmação da própria modernidade como tempo do progresso e era das luzes. E é justamente nesse afã que ela se define como tempo de inclusão. No entanto, afinal, o que estaria por trás dessa definição?

A maneira pela qual cada sociedade situa as pessoas com deficiência e se relaciona com elas está relacionada à forma como ela constrói seus laços sociais e edifica estruturas de integração ou exclusão de determinadas categorias. Como tais estruturas são móveis, é esperado que sofram transformações com o correr dos anos, o que impacta as gramáticas dos significados e sentidos relacionados às pessoas com deficiência. Para Durkheim (2008)DURKHEIM, E. Da divisão do trabalho social. 3. ed. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008., as sociedades modernas se caracterizam pela especializada divisão social do trabalho derivada da transformação do modo econômico de produção, elemento que promoveu uma alteração significativa no que diz respeito ao incremento de pessoas que se relacionam entre si, tornando os papéis sociais cada vez mais diferenciados e inter-relacionados. A esse processo, Durkheim (2008)DURKHEIM, E. Da divisão do trabalho social. 3. ed. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008. dá o nome de solidariedade orgânica, a qual se contrapõe à solidariedade mecânica, característica das sociedades tradicionais.

Se as sociedades pré-modernas se diferenciavam por uma vida circular em relação ao coletivo, o mesmo não aconteceria com a assunção das novas formas de produção capitalistas e o abandono paulatino do campo para as cidades. O novo cenário se mostrava dinâmico em termos de possibilidades de inserção a coletivos diferentes, na medida em que as pessoas não permaneciam adstritas à comunidade ou ao espaço familiar a que pertenciam. Contudo, também se mostrava mais propenso a dissociações e, por conseguinte, desafiador no que diz respeito à integração social ao permitir a inclusão do novo, do estrangeiro, do estranho.

Tal dinâmica não se mostrava presente nas sociedades pré-modernas, visto que ali os processos de integração se configuravam, fundamentalmente, de maneira geográfica, tomando por referência um lugar fixo. Nesse quadro axiológico, aquele que não pertencesse a dado local dificilmente poderia fazer parte da sociedade. Como aponta Stiker (2005)STIKER, H. J. Corps infirmes et sociétés: essais d’anthropologie historique. Paris: Dunod, 2005., na Antiguidade e no medievo, dificilmente se pode dizer que o indivíduo é incluído em parâmetros compatíveis ao entendimento que perfazemos sobre esse termo no tempo presente. O indivíduo é constituinte de um todo irredutível, possuindo lugar fixo determinado desde o nascimento. Logo, estava, de certa forma, incluído no mainstream.

Já aqueles que não pertenciam a uma dada coletividade eram tidos como completamente outros e, com raras exceções, não poderiam fazer parte daquele grupamento. Trata-se de uma exclusão puramente negativa, sem possibilidade de regresso, tal qual pressupõem os processos de normalização. Os escravos jamais lograriam ser nativos, os bárbaros não podiam se tornar romanos, tampouco os estrangeiros se tornariam cidadãos de Atenas. O espaço de pertencimento social era rígido e com pouca capacidade de dilatação. Para Stiker (2005)STIKER, H. J. Corps infirmes et sociétés: essais d’anthropologie historique. Paris: Dunod, 2005., esses sistemas societais, por mais capazes que fossem de integrar fortemente seus cidadãos, não suportavam a ideia do estrangeiro, que então é excluído da sociedade. Sendo assim, um termo como inclusão é inadequado ou, no mínimo, muito fraco para se reportar ao ordenamento anteriormente existente. A pessoa tem o seu lugar ou não, inexistindo um processo real de ser incluído, como presenciamos, de maneira inaugural, na modernidade.

Ao romper com barreiras territoriais e implodir laços coletivos extensivos, a Idade Moderna apresenta, pela primeira vez, um novo sentido de integração que inaugura a possibilidade de inserção à coletividade daquele definido como estranho. Entretanto, não se trata de uma inserção habitual, ocorrendo somente após um meticuloso processo de suspensão social.

Essa forma característica de tratamento para com aqueles definidos como estranhos empregada pela modernidade retrata em muito a matriz pela qual se moldou a experiência de ser deficiente em um contexto que mesclava componentes antropofágicos e antropoêmicos, para nos valermos de um conceito utilizado por Lévi-Strauss (1981)LÉVI-STRAUSS, C. Tristes trópicos. Lisboa/São Paulo: Ed. 70/Martins Fontes, 1981. ao destacar as estratégias utilizadas pela humanidade ao enfrentar a alteridade dos marcados como outros.

As estratégias antropoêmicas consistem na separação ou no atravancamento de contato físico e interações daqueles tidos como desviados para com a vida ordinária, quer por práticas de encarceramento explícitas, quer pela implantação mais refinada de impedimentos que tornam o acesso a espaços públicos obstaculizados. Já os esquemas antropofágicos consistem na assimilação de corpos de forma a fazê-los semelhantes ao metabolismo normativo tornado padrão e, na medida do possível, não mais distinguível desse. Como destaca Baumam (2001)BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001., se a estratégia antropoêmica objetivava o exílio daqueles definidos como outros mediante um processo de cessação da participação em sociedade, o esquema antropofágico intuía a suspensão de sua alteridade. Segregar e, posteriormente, refazer esse outro a imagem pretendida pela normalidade constituem polos mediante os quais a modernidade configurou sua resposta política à deficiência, produto de uma intensa vontade de ordenar que percebeu aludido fenômeno em termos de invalidação e contrariedade ao corpo desejado.

A existência desse processo de normalização que mescla estratégias antropoêmicas e antropofágicas como ideia operativa de mundo demarca uma das características singulares da sociedade moderna, prefigurando o caráter imanente de um tempo social que agora se fecha sobre si mesmo. Se, nas sociedades anteriores, dada a prevalência do saber religioso e mágico, a concepção e a moldura das relações e interações sociais se davam em termos de exterioridade, quase sempre vinculadas a explicações místicas, adentrando, portanto, o campo da dádiva/do divino ao explicar a deficiência a partir de uma conexão transcendental e heterotópica; na modernidade, a revolução operada pela Iluminismo faz com que a heterotopia seja implodida como patamar cognitivo aceitável. A partir de então, os fenômenos somente podem ser elucidados a partir de si mesmos e pela empiria dos fatos, dado o caráter imanente da sociedade moderna, a qual deve encontrar em seus próprios tecidos as explicações desejadas para suas perguntas. Contando somente consigo mesma, a modernidade se vê como inteiramente responsável pelas pessoas que nela habitam e pelos processos que se desenvolvem sobre suas fronteiras.

Emancipada da busca transcendental na explicação de fenômenos sociais e com os médicos desempenhando a função de autoridades oficiais, a deficiência foi tomada como ausência/falta de uma função, órgão ou aparelho que resultava em falha e limitação de atividade, cujos tratamento e classificação somente poderiam se dar no campo biofisiológico: uma explicação carnal para um evento tomado sob uma lógica empírica. Nesse diapasão, a deficiência é vista como condicionada a uma correlata restrição/limitação/incapacidade na realização de uma atividade ou função dentro dos limites tomados como normais e aceitáveis para outros humanos.

Dito isso, resta como meridiano a inexistência da validade de um quadro mental que configure que as transformações sociais tenderam da exclusão à integração e à inclusão, como operado pela modernidade. Inclusão é um conceito de nosso tempo e que não faz qualquer sentido em períodos anteriores ao século XVIII, uma vez que sua gênese se liga organicamente ao surgimento do processo de institucionalização e das revoluções geradas pelo sistema capitalista de produção.

A modernidade promoveu uma verdadeira cultura de jardinagem em tudo aquilo que diferia de certo padrão tido como normal. Aliás, essa é outra das grandes diferenças em relação às temporalidades pretéritas, pois, imanente em sua forma de se comportar para com o outro, a gramática moral dos padrões aceitos na modernidade deixa de ter como referência o conceito de ideal, vinculado a derivativos divinatórios, portanto, inalcançáveis, para se balizar a partir do conceito de norma, proveniente da ideia de homem médio, um conceito de alcance factível e matemático.

A mudança destacada reordena a forma pela qual operam as gramáticas da aparência na cultura ocidental, as quais transitaram de um ideal clássico desenhado no sentido de ser adorado a uma ideia de um padrão que deveria ser imitado, pois possível em ser alcançado, uma vez que espelha uma corporalidade mundana.

Nesse diapasão, a definição do normal é realizada não como o mais provável, tal qual um jogo de probabilidades, mas a partir de uma métrica estabelecida como normativa pelos setores hegemônicos da sociedade, via de regra prefigurada por homens, brancos, heterossexuais, saudáveis, abastados e com boa formação escolar. Dado o fato de que aqueles que têm o poder de classificar buscam para si a transcendência e a universalidade, aquilo que é definido como normal acaba por ser encarado como o tipo humano absoluto, representando tanto o aspecto positivo como neutro da relação. Citada vinculação concorreu à distinção daqueles que se desviavam significativamente desse tipo como outros, consequentemente, anormais.

A deficiência materializa, nesse ínterim, o extravagante, problemático e pouco ortodoxo ao anunciar a fisicalidade que não pode ser universalizada por se encontrar em desencaixe à noção generalizável de corpo apto. Sob o limiar da anormalidade, a pessoa com deficiência é objetivada de modo a ser levada a aspirar como projeto existencial sua conformidade ao corpo saudável/capaz, dado que tal assimilação foi tomada como preço vinculante à aceitação social.

Enclausurada em sua alteridade, a pessoa com deficiência é despersonalizada, tratada como objeto a ser administrado e possuído; é perigosa, pois ameaça a estabilidade do quadro normativo, devendo ser separada e escrutinada, velada e revelada. Não causa estranheza, nesse sentido, que a reconstrução dos universos mentais que presidiram a relação entre a sociedade e a invalidez operada por Foucault (1978)FOUCAULT, M. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 1978. mediante debruçar minucioso sobre fenômenos de exclusão como os confinamentos e encarceramentos de loucos, pobres, criminosos, deficientes, entre outros, leva-o a vaticinar a sociedade moderna como um tempo de exclusão, invertendo o raciocínio tornado hegemônico.

Como nenhuma outra sociedade na história, o ethos moderno criou limites estreitos no que tange à definição dos tipos considerados normativos, arquitetando um poder disciplinar que objetivou edificar corpos dóceis às esferas produtivas, portanto economicamente úteis. Tal ato se desdobrou em processos de monitoramento desses corpos e, posteriormente, quando constatados desvios, no desenvolvimento de controles regulatórios por meio de práticas médicas, a fim de alcançar o estágio tido como padrão. Foi justamente essa visão que permitiu ao discurso médico se difundir pelos quatro cantos do globo e se configurar como saber hegemônico no trato explicativo sobre a deficiência, afetando a maneira como as instituições e as esferas públicas se relacionam com essa experiência (STIKER, 2005STIKER, H. J. Corps infirmes et sociétés: essais d’anthropologie historique. Paris: Dunod, 2005.).

Estes estudos nos permitiram visualizar a modernidade a partir de sua capacidade particularmente difundida de produzir estranhos, denotando um tempo que se considerava prometeico, todavia ainda permeado de contradições, tal qual seu mito fundador. Contudo, embora as críticas se mostrem necessárias no descortinar das relações de um tempo que se propalava como sucedâneo da inclusão, mas que engendrou uma miríade de marginalizações por vezes anuviada ou obnubilada, temos que a compreensão destacada por Foucault (1978)FOUCAULT, M. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 1978. ao tomar a parte pelo todo não conferiu o crédito necessário ao discurso de igualdade e liberdade que moveu o tempo histórico moderno e efetivamente permeou a moldagem de uma nova tessitura social que se antepôs à estrutura hierárquica e sanguínea do medievo.

Como nenhuma outra sociedade até então, a modernidade também edificou maneiras de incorporação daqueles definidos como outros, pois a nova ética social exigia que todos fossem tratados dignamente e pudessem contribuir economicamente com sua coletividade, afinal, em terreno individualista, o assistencialismo é sempre uma condição a ser evitada. A incorporação que aqui se fala se projeta na transformação dos corpos, não da sociedade, buscando, em última instância, o alcance de um nível de competência exigido epré-estipulado em um dado contexto ou atividade. Dito processo, conduzido pelo olhar escrupuloso do saber médico, tomou a pessoa com deficiência única e exclusivamente por seu déficit, cuja materialidade residia em um produto subjetivo de sua individualidade. Esse raciocínio ficou consagrado como modelo individual/médico da deficiência e goza de primazia no campo explicativo do fenômeno até tempo presente.

Destacado quadro explicativo foi objeto de contestação consistente somente a partir do último quartil do século XX, com a profusão de uma série de movimentos ativistas identitários, entre eles o das pessoas com deficiência, que configuraram um inédito campo explicativo sobre a categoria deficiência, nominado Disability Studies (Estudos da Deficiência).

Tal campo de estudos constrói como tese angular a ideia de que a deficiência é um complexo derivado de intrincados mecanismos de criação social que inclui aportes biológicos, mas não se resume a eles. Ao se posicionar dessa forma, no entender de Linton (1998)LINTON, S. Claiming disability: knowledge and identity. New York: New York University Press, 1998., sublinhado construto desafia a ideia de que o status socioeconômico e os papéis atribuídos às pessoas com deficiência sejam resultado inevitáveis de sua condição biologicamente determinada, centrando as análises não simplesmente nas variações que existem no comportamento humano, aparência, funcionamento, acuidade sensorial e processamento cognitivo, mas, crucialmente, nos processos que deram formatação e significado particular à deficiência, determinando o tratamento e o posicionamento desses indivíduos na sociedade.

Por esse ângulo, o foco de atenção passa a recair não sobre os processos de reabilitação do indivíduo, mas sobre as maneiras pelas quais os ambientes devem se transformar no sentido de se mostrarem acessíveis a todos. Em outros termos, a deficiência é tomada como um problema coletivo e institucional que deve ser combatido por meio de intervenções sociais.

Tomando como verdadeiro o axioma de que a forma pela qual dado fenômeno é explicado exerce interferência nas intervenções conflagradas sobre ele, resta evidente que a definição materializada no seio dos Estudos da Deficiência se configura para além do escopo teórico, ao produzir efeitos na vida concreta das pessoas. Se a deficiência é vista causalmente como um derivativo de relações espirituais, é natural que se aborde a questão com manobras espirituais e mágicas, como exorcismo e cura pela fé. Já quando a deficiência é compreendida como déficit e limitação, portanto resumida a uma suposta ausência de dada função, órgão ou membro ou ainda à manifestação de um comprometimento orgânico, mostra-se como razoável a concentração de esforços em intervenções clínicas. Em contraposição, se a deficiência é encarada como produzida por um conjunto de criações estruturais, atitudinais e legais que atravancam as possibilidades de desenvolvimento e participação em sociedade, os empenhos envidados para seu tratamento residem na configuração de uma nova geografia social.

Poderá se objetar que tais desígnios se mostram mais operativos no campo teórico. Todavia, discordamos desse pressuposto por entendermos que a configuração dos mecanismos pelos quais as sociedades constroem suas paisagens de aceitabilidade está diretamente relacionada às disposições sobre como explicam o aparecimento do fenômeno, nesse caso, a deficiência.

Isso posto, é fundamental ressaltar, nesse momento, dadas as confusões que têm grassado sobre uma distinção cartesiana entre biológico e social operada pelos modelos de interpretação social e médico, que a crítica aqui apresentada diante da interpretação clínica da deficiência não deve ser comungada sob a perspectiva de reprovação das práticas de reabilitação, muito pelo contrário, pois possuem potencial de melhorar a vida das pessoas com deficiência. Não é exagero destacar que práticas médicas salvaram a vida de muitas pessoas com deficiência, as quais teriam morrido se tivessem nascido sob outro regime de conhecimento.

O problema reside em quando essas práticas partem do pressuposto de que única e exclusivamente as pessoas com deficiência precisam transformar seus corpos para que possam participar da vida em sociedade, sem conferir qualquer responsabilidade às necessárias remoções de barreiras atitudinais, legais e físicas a fim de que se reordene a geografia social existente. É sobre essa presunção que se desdobra a medicalização/normalização da deficiência, despersonalizando sujeitos e colocando-os em uma espécie de pântano social do qual dificilmente conseguem se mover.

A nós, a ideia de normalização tem ido longe em demasia ao criar limites aceitáveis tão estreitos de corporalidades e funções. Para além disso, pavimenta um horizonte irrealizável tal qual a tarefa de Sísifo ao pressupor um assimilacionismo que não se efetiva na prática, dada a complexidade das sociedades contemporâneas e dos sujeitos que nela habitam, sempre múltiplos e diversos. Como o projeto de normalização esteve, desde o princípio, a serviço da construção de uma sociedade nominada inclusiva, temos que, de maneira concomitante, o pressuposto da inclusão também parece não se sustentar mais no tempo presente.

Evidente que a ideia de inclusão exerceu impacto indiscutível na ampliação das paisagens pelas quais pensamos a diferença em sociedade ao colocar como imaginário possível a incorporação do estranho, o que era inédito até então. Contudo, em nosso entender, cumpriu o papel histórico que lhe fora proposto, por isso a necessidade de pensarmos um conceito mais operativo no campo da prática e que dialogue com as novas demandas que atualmente encontramos. O conceito que oferece maior possibilidade, nesse sentido, é sem dúvida o de acessibilidade, pois congrega, para além da mudança dos corpos, a radical e necessária transformação do ambiente de forma atender a todos.

O conceito de sociedade acessível tem por pano de fundo a reconfiguração de espaços de exclusão, estejam eles relacionados a bens, lugares, relações ou serviços, e por bússola orientadora a implosão de toda e qualquer barreira que impeça os sujeitos de participarem como iguais na vida social, barreiras essas que se mostram mais determinadas pela vontade política de governos do que propriamente por um sentido de intransponibilidade latente. Ao contrário da noção de inclusão, cuja consecução está em estreita relação a uma transformação eminentemente subjetiva, a ideia de acessibilidade se mostra de maior permeabilidade, deslocando o foco normativo da mudança dos corpos para a necessária transformação do mundo.

Trata-se de uma original gramática normativa, cujos lineamentos comungam possibilidades conquistadas no complexo domínio exercido pelos seres humanos sobre a natureza mediante utilização de signos e ferramentas de forma a modificá-la conforme seu desejo. Ao demarcar a conquista dos seres humanos sobre a natureza, a ideia de acessibilidade traduz ontologicamente a radicalidade projetada no pressuposto da humanização. Configura, portanto, uma noção mais dinâmica e desamarrada da obrigatoriedade de alinhamento e conformidade a uma norma rígida.

Quando nos referimos a um espaço ou a uma relação como acessível, está implícito que se estruturou de forma a permitir o desenvolvimento e a participação do sujeito, ou seja, jamais será tomado pela ideia da simples presença de alguém em dado lugar sem a realização das modificações necessárias, desfazendo um dos principais equívocos que mergulharam a categoria inclusão em um terreno movediço característico das relações em que alguém é recebido sem ser incorporado holisticamente àquele espaço, gestando, para nos valermos de um termo de Bourdieu (2003)BOURDIEU, P. A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, 2003., os excluídos de dentro. Essa confusão se mostra presente em documentos oficias como no agora extinto Decreto Presidencial n. 10.502, de 30 de setembro de 2020 (BRASIL, 2020BRASIL. Decreto n. 10.502, de 30 de setembro de 2020. Institui a Política Nacional de Educação Especial: equitativa, inclusiva e com aprendizado ao longo da vida. BRASÍLIA, DF: Presidência da República/Casa Civil/Subchefia para Assuntos Jurídicos, 2020.), mas também em discursos proferidos por diversos agentes públicos ou privados em variadas esferas. Nesse sentido, a representação conferida pelo conceito de acessibilidade/acessível é mais operativa sob uma perspectiva equitativa de educação, espaço e cultura, pois, para além do combate à exclusão e à marginalização social, permite condenar toda e qualquer forma de incorporação que não em iguais termos.

Outra confusão que a utilização do termo acessibilidade também desfaz diz respeito à distinção entre os termos inclusão e integração de forma escalar, sendo que, no Brasil, por algumas vezes, a integração tem sido encarada como uma etapa de menor amplitude à participação social de pessoas com deficiência, uma espécie de protoforma em direção a um ambiente verdadeiramente democrático e libertário, característico de uma sociedade supostamente inclusiva. Contudo, essa definição não é absoluta, variando em países, além de pouco organizativa, pois inexistem apoios suficientes para desenvolver essa discussão epistemologicamente, resistindo somente em um plano discursivo de rasa densidade teórica.

Por fim, a utilização da terminologia acessível engendra responsabilidades daquilo que se propunha aceitar como uma ideia forte de inclusão, a qual se ancorava no caráter fundante da construção de uma sociedade cujas tessituras suportavam a presença de todos. Os substantivos educação, saúde, transporte, esporte, cultura, lazer, voto, entre outros, quando adjetivados pela palavra acessível, comportam relações já desdobradas a partir de gramáticas de reconhecimento, redistribuição e representação, portanto intuitivas à formação de uma sociedade democrática e igualitária.

No que se refere à educação escolar, principal área de nossa atenção, essa se faz acessível quando a estrutura física, os métodos e os compostos atitudinais se transformam no sentido de garantir aos estudantes com deficiência que se apropriem do saber historicamente acumulado pela humanidade e vivenciem o conjunto de relações componentes desse universo – elementos que perpassam pela implantação de rampas, banheiros acessíveis, pisos táteis, mas não se limitam isso, na medida em que compreendem a utilização de tecnologias assistivas, quando necessárias à adequação curricular, político-pedagógica e didática, quer pela diferenciação, quer pela universalização do processo de aprender (cabendo citar aqui exemplos como o Planejamento Educacional Individualizado, o Desenho Universal da Aprendizagem, o Ensino Colaborativo, entre outros importantes componentes pedagógicos). Isso tudo sem esquecer a valorização da experiência da deficiência como parte do patrimônio histórico-cultural da humanidade, do emprego da Libras, do braile e da construção de diálogos que não visualizem a deficiência sob a perspectiva do déficit, pois, se assim for, o corrigir acabará por preceder o educar, tornando a Educação Especial não uma modalidade do ensino regular, mas uma espécie de ortopedia mental. Escola acessível é aquela na qual todos aprendem e que produza, para nos valer de uma máxima de Saviani (2003)SAVIANI, D. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 8. ed. Campinas: Autores Associados, 2003., direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, independentemente de suas especificidades, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens. Esse é o desafio proposto.

Considerações Finais

Situado em uma perspectiva disruptiva sobre a ideia de inclusão, o presente texto buscou destacar as formas pelas quais fomos equivocadamente levados a interpretar as sociedades pré-modernas como materializadoras de cenários absolutos de exclusão. A contestação de tal pressuposto envolve um processo de imersão na história para além dos lineamentos escritos sob a perspectiva hegemônica com o consequente desenovelar de um dos mitos fundadores do tempo moderno, que persiste até os diais atuais: a ideia de inclusão.

Nesse sentido, ampliamos a análise da modernidade de forma a compreender seus processos de exclusão no tempo e na história, mas também no espaço, uma vez que sua análise é fundamental na construção de uma engenharia que supere as celeumas provocadas pelo obtuso conceito de inclusão – de importância angular ao alargar as esferas moral e de reconhecimento pelas quais nos relacionamos com o outro, todavia pouco operativo no campo de práticas hodiernas promotoras de equidade. Daí a necessidade de ser superado por contradição pela ideia de acessibilidade. O que propomos aqui, portanto, não é somente a troca de uma terminologia por outra (mesmo porque, tal qual sentenciaram Marx e EngelsMARX, K; ENGELS, F. A ideologia alemã. 4. ed. Lisboa/São Paulo: Editorial Presença/Martins Fontes, 1980. v. 1., “não é lutando contra a fraseologia de um mundo que se luta com o mundo que realmente existe” [1980, p.17]), mas um novo significado da coisa em si, que tem o condão de promover inéditos sentidos à objetivada pretensão da construção de uma sociedade mais igual e libertária, que passa certamente pela transformação dos espaços escolares, ainda que não se limite a eles.

Como o espaço é instrumental na produção, na reprodução e na sustentação de práticas e hábitos que incapacitam pessoas, sua transformação é parte da construção de uma sociedade justa. Não se pode mais admitir a existência de espacialidades distintas que funcionem exclusivamente para excluir e manter as pessoas com deficiência em uma zona segregada da vida ordinária, tornando esse seu lugar de fala, ou melhor, de silêncio. Como pontua Kitchin (1998)KITCHIN, R. ‘Out of place,’ ‘knowing one’s place:’ space, power and the exclusion of disabled people. Disability & Society, v. 13, n. 3, p. 343-356, 1998., se quisermos entender a deficiência e as experiências de pessoas com deficiência, devemos desconstruir as paisagens do poder e da exclusão, assim como as geografias de dominação e resistência.

Os espaços e paisagens de que falamos aqui compõem uma geografia que se estabelecem para além das estruturas físicas. São espaços que comutam dispositivos de infraestrutura e arquitetura, mas também versam sobre os locais da fala, das interações dialógicas e atitudinais, de dispositivos nos transportes, da consecução dos regramentos legais ou tácitos, de mecanismos pedagógicos e práticas médicas, enfim, do conjunto de relações que nos constituem como sujeitos, os quais, desde a modernidade, foram projetados de forma a renderizar certos espaços como áreas proibidas e escritos para perpetuar práticas incapacitantes/segregacionistas.

Todos esses espaços/relações devem se tornar acessíveis e, assim, revolucionar as possiblidades de existência das pessoas com deficiência ao permitir a configuração de novos patamares de desenvolvimento indisponíveis ou obstaculizados em um ambiente inacessível. Dado ordenamento se estabelece para além da categoria deficiência, desafiando os mecanismos de opressão em todas as suas formas, uma vez que, como apontam Campbell e Oliver (1996)CAMPBELL, J.; OLIVER, M. Disability politics: understanding our past, changing our future. London: Routledge, 1996., é impossível enfrentar radicalmente um tipo de opressão sem confrontar todas e, claro, os valores culturais que as criaram e sustentam.

O objetivo na construção de uma geografia social acessível, para nos valermos de um raciocínio de Oliver e Barnes (1998)OLIVER, M.; BARNES, C. Social policy and disabled people: from exclusion to inclusion. London: Longman, 1998., consiste na criação de um mundo no qual todos os seres humanos, independentemente de comprometimentos (físicos, sensoriais, mentais ou psicológicos), idade, sexo, classe social ou condição étnica minoritária, possam coexistir como membros iguais da comunidade, com a certeza de que suas necessidades serão atendidas e suas opiniões, reconhecidas, respeitadas e valorizadas. Será um mundo muito diferente daquele em que nós agora vivemos.

Um mundo que oportuniza o encontro contínuo com o outro, gerando uma modificação do olhar sobre si próprio ao abrir possibilidades de entendermos o habitual, familiar e cotidiano como quadros mentais criados histórica e arbitrariamente, evento que permite transformarmos enriquecedoramente nosso pensamento. O problema do outro sempre e invariavelmente será nosso. Nesse sentido, como pontua Hooks (2004)HOOKS, B. The will to change: men, masculinity, and love. Washington, DC: Washington Square Press, 2004., em uma sociedade crivada de opressão, não há terreno neutro. Em outras palavras, se você não é parte da solução, você é parte do problema; por isso, não basta somente não ser racista, machista, homofóbico, antissemita ou capacitista, pois, como as distribuições de riqueza e poder ainda se mostram assimétricas e ponderadas em favor de determinados tipos normativos, é fundamental àqueles que se dizem não preconceituosos desafiar abertamente essa estrutura de poder. É preciso combater todo e qualquer preconceito de forma ativista, pois a neutralidade ou a ausência de participação denota corroboração ao ideal hegemônico. Quando nos referimos a discriminação e segregação operadas contra pessoas com deficiência, tal ato consiste em batalhar quanto à configuração de espaços e relações nos quais as formas e funções dos corpos não entrem em conflito com as formas do mundo.

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Editor de seção: Claudio Dalbosco. https://orcid.org/0000-0003-3408-2975

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    25 Jan 2022
  • Aceito
    25 Jan 2023
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