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NO CORAÇÃO DO OFÍCIO: APRENDIZAGEM DA DOCÊNCIA E SENSIBILIDADE PEDAGÓGICA

AT THE HEART OF THE OCCUPATION: TEACHING LEARNING AND PEDAGOGICAL SENSITIVITY

EN EL CORAZÓN DEL OFICIO: ENSEÑANZA APRENDIZAJE Y SENSIBILIDAD PEDAGÓGICA

RESUMO

O artigo teve o objetivo de apresentar os resultados de uma pesquisa que buscou compreender a aprendizagem da profissão docente no momento inicial da formação profissional, particularmente no momento do estágio supervisionado obrigatório. Fundada no quadro teórico-metodológico da ergologia, a pesquisa buscou responder à seguinte questão: quais saberes e elementos os professores envolvidos na atividade de estágio supervisionado – os professores universitários e os professores de escolas – consideram importantes, devendo ser apropriados pelos estudantes estagiários? A investigação foi realizada no âmbito das turmas de estágio do curso de Pedagogia de duas universidades e permitiu revelar a complexidade do processo formativo situado na interface entre estagiários, professores das escolas e da universidade, como também levantar aspectos a serem reposicionados na formação inicial dos professores.

Palavras-chave
Estágio supervisionado; Formação de professores; Trabalho docente; Saberes docentes; Ergologia

ABSTRACT

The article aimed to show the results of an investigation that sought to understand the learning of the teaching occupation at the beginning of professional training, especially at the time of supervised internship. Based on the theoretical-methodological framework of ergology, the research sought to answer the following question: what knowledge and elements do the teachers involved in the supervised internship activity–university professors and schoolteachers–consider important and should be appropriated by intern students? The investigation was carried out in the context of the internship classes of the pedagogy course of two universities and allowed to reveal the complexity of the training process located at the interface between interns, school, and university teachers, as well as to raise aspects to be repositioned in the initial education of teachers.

Keywords
Supervised internship; Teachers’ education; Teachers’ work; Teaching knowledge; Ergology

RESUMEN

El artículo tiene como objetivo mostrar los resultados de una investigación que buscó comprender el aprendizaje de la profesión docente en el inicio de la formación profesional, en particular en el momento de la pasantía supervisada. Con base en el referencial teórico-metodológico de la ergología, la investigación busca responder a la siguiente pregunta: ¿qué conocimientos y elementos los docentes involucrados en la actividad de pasantía supervisada – profesores universitarios y docentes de escuelas – consideran importantes y deben ser apropiados por los estudiantes en pasantía? La investigación se realizó en el contexto de las clases de pasantía del curso de pedagogía de dos universidades y permitió develar la complejidad del proceso de formación ubicado en la interfaz entre pasantes, docentes escolares y universitarios, así como plantear aspectos a ser reposicionados en la formación inicial de los estudiantes.docentes.

Palabras clave
Pasantía supervisada; Formación de profesores; Trabajo docente; Saberes docentes; Ergología

Introdução

E ste texto inscreve-se em um longo debate sobre os professores, seu trabalho e sua cultura profissional. Nesse domínio, pesquisas evidenciaram a dificuldade da formação inicial em mudar nos professores suas concepções prévias de educação escolar (LORTIE, 2002LORTIE, D. Schoolteacher: a sociological study. 2. ed. Chicago: University Chicago Press, 2002.); mostraram que, na sala de aula, o professor se move com uma inteligência nos atos muito complexa no que tange ao que a formação profissional precisa se interrogar (SHULMAN, 1987SHULMAN, L. Knowledge and teaching: foundations of the new reform. Harvard Educational Review, v. 57, n. 1, p. 1-23, 1987. https://doi.org/10.17763/haer.57.1.j463w79r56455411
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); e também revelaram que a formação profissional tem papel de grande relevância para o desenvolvimento profissional docente, mas que isso não se fará ignorando a cultura profissional nem o conhecimento partilhado na escola pelos professores (NÓVOA, 1992NÓVOA, A. Formação de professores e profissão docente. In: NÓVOA, A. (org.). Os professores e sua formação. Lisboa: Dom Quixote, 1992. p. 15-33.). Essas aquisições são muito importantes. Elas vão ao âmago da discussão atual sobre a formação de professores, colocando no centro de suas preocupações a problemática da relação entre a formação e o exercício profissional. É nesse sentido bastante preciso que esta investigação se inscreve nessa longa tradição de estudos acerca da formação e do trabalho docente.

Este artigo teve o objetivo de apresentar os resultados de uma pesquisa que buscou compreender a aprendizagem da profissão docente no momento inicial da formação profissional, particularmente no momento do estágio supervisionado obrigatório (MELO, 2019MELO, K. A. A complexa relação entre trabalhar, aprender, saber: um estudo sobre o trabalho docente no âmbito do estágio curricular obrigatório do curso de Pedagogia. 305f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2019.). A referida pesquisa buscou responder à seguinte questão: quais saberes e elementos os professores envolvidos na atividade de estágio supervisionado – os professores universitários e os professores de escola – consideram importantes, devendo ser apropriados pelos estudantes estagiários? Essa indagação é pertinente por mais de um título. Primeiramente, porque, como destacado no parágrafo anterior, a relação entre a formação inicial e o trabalho docente na escola envolve uma problemática que está no centro do debate atual sobre a formação docente. Em segundo lugar, porque, se levarmos em conta a cultura profissional, seria possível dizer que os professores universitários e os professores do ensino básico possuem a mesma profissão, mas não o mesmo métier1 1 A noção de profissão remete-se às formas históricas de organização social e categorização das atividades de trabalho, e o sentido do termo é variável conforme as distintas realidades das nações e dos dispositivos estatais que lhes conformam. A noção de métier não está desconectada dos usos que se faz do termo profissão na linguagem corrente, mas tem o condão de sublinhar, no ponto de partida, uma cultura profissional comum e partilhada entre os pares. Esse é o aspecto que buscamos explorar aqui. Sobre as relações e as distinções entre os termos profissão e métier, ver Dubar e Tripier (2005), especialmente a introdução do livro (p. 1-11). . Termo antigo na língua francesa, métier – comumente traduzido aproximativamente por ofício – remete-se ao saber e ao saber-fazer de determinada especialidade laboral, mas também à cultura partilhada entre pares e a um aprendizado. Essa questão nos interessa, pois ela está ligada às práticas, ou melhor, aos gestos profissionais, aqueles mesmos que a literatura acadêmica, na área da educação, apontou como fundamentais e que estão a exigir serem mais bem conhecidos, investidos e valorizados (SHULMAN, 1987SHULMAN, L. Knowledge and teaching: foundations of the new reform. Harvard Educational Review, v. 57, n. 1, p. 1-23, 1987. https://doi.org/10.17763/haer.57.1.j463w79r56455411
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; NÓVOA, 1992, 2017; TARDIF, 2002TARDIF, M. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes, 2002.; GAUTHIER et al., 2013GAUTHIER, C. et al. Por uma teoria da pedagogia: pesquisas contemporâneas sobre o saber docente. 3. ed. Ijuí: Editora Unijuí, 2013.; ALVES, 2018ALVES, W. F. A invisibilidade do trabalho real: o trabalho docente e as contribuições da ergonomia da atividade. Revista Brasileira de Educação, v. 23, e230089, 2018. https://doi.org/10.1590/S1413-24782018230089
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).

No texto a seguir, em um primeiro momento, apresentamos a base teórica e a estrutura metodológica da pesquisa. Em um segundo momento, trazemos os resultados da pesquisa tendo como base as três grandes categorias analíticas que emergiram da investigação. Em um terceiro são desenvolvidas algumas reflexões sobre aspectos centrais presentes nos achados da investigação. Por fim, as considerações finais apontam para uma breve síntese das questões tratadas e avançam em algumas indicações para a interface formação/trabalho no âmbito da formação de professores.

Base Teórica e Aspectos Metodológicos da Pesquisa

Dois autores estão na base de nossa pesquisa: Yves Schwartz e Maurice Tardif. Filósofo, estudioso do trabalho in situ, Yves Schwartz é alguém que, ao dispor de uma abordagem original do trabalho – a abordagem ergológica –, permite uma análise detida e aprofundada sobre a atividade humana nas situações laborais (SCHWARTZ; DURRIVE, 2007SCHWARTZ, Y.; DURRIVE, L. (org.). Trabalho e ergologia: conversas sobre a atividade humana. Niterói: EdFF, 2007.). Apoiada na distinção fundante da ergonomia francesa, a distinção entre o trabalho prescrito (o que deve ser feito) e o trabalho real (o realizado na situação de trabalho), a ergologia interroga pelo que a atividade, individual e coletivamente, engaja e mobiliza nos meios de vida e trabalho dos homens e mulheres2 2 Na filosofia e nas ciências, a atividade tem uma longa história e não pertence exclusivamente a nenhuma disciplina. Sob a denominação inicial de tätigkeit, ela se apresenta, com diferentes conteúdos, em Kant, Hegel e Marx, como também está na base da psicologia histórico-cultural, de abordagens importantes na sociologia do trabalho, na psicologia do trabalho e no cerne da ergonomia francesa, também conhecida como ergonomia da atividade. A tätigkeit, conforme o termo em alemão, tem a ver com um fazer, um instituir, o que permite pensar a industriosidade dos atos humanos, a transformação que estes instituem no mundo e, em retorno, a transformação dos próprios seres humanos. Para uma breve introdução à problemática que cerca a noção de atividade, ver Schwartz (2005). . Trata-se de uma perspectiva de análise e de intervenção nos meios laborais que busca considerar o ponto de vista dos homens e mulheres no trabalho, seus saberes e seus valores; uma abordagem que considera em alta conta os saberes formais (saberes em desaderência) e, ao mesmo tempo, tem como fundamento se interrogar e interrogar sobre o que os homens e mulheres tecem no terreno enquanto saberes ligados aos locais de trabalho (saberes em aderência) e inscritos, por vezes, no próprio corpo daqueles e daquelas que trabalham.

Maurice Tardif é sociólogo. Suas pesquisas tratam especialmente do trabalho e da formação docente. Se há aspectos na obra de Tardif (2002)TARDIF, M. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes, 2002. que podem ser vistos com reserva3 3 Nossa pesquisa fundamenta-se em perspectivas teóricas que têm a problemática da atividade como questão central. Em Tardif (2002), no entanto, é a ação que comporta o caractere sobre o qual ele se interroga na interlocução com os professores. Como demonstraram Cunha e Alves (2012), tal noção de ação, cuja orientação de fundo está na corrente epistemológica do pragmatismo, não consegue apreender a dinâmica nem a complexidade das situações de trabalho. Todavia, reconhecer tal limite não implica subestimar as contribuições do autor, mas reconhecer criticamente diferenças entre matrizes teóricas. Contra qualquer dogmatismo, seguimos de perto uma lição importante da epistemologia e da história das ciências, sobretudo tratando-se de ciências sociais: a cumulatividade do conhecimento não exige a unificação dos referenciais (REVEL, 2009; TANGUY, 2012). , é forçoso reconhecer nele um autor que aporta questões importantes sobre temas pouco desenvolvidos na área da educação. É nesse ponto que ele nos parece pertinente, pois suas investigações pontuam o processo de aprendizagem do trabalho no ensino e os saberes que informam esse aprendizado. Nisso, faz interface com outros pesquisadores com contribuições importantes no debate a respeito dos saberes da profissão docente, como Shulman (1987)SHULMAN, L. Knowledge and teaching: foundations of the new reform. Harvard Educational Review, v. 57, n. 1, p. 1-23, 1987. https://doi.org/10.17763/haer.57.1.j463w79r56455411
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e Nóvoa (1992NÓVOA, A. Formação de professores e profissão docente. In: NÓVOA, A. (org.). Os professores e sua formação. Lisboa: Dom Quixote, 1992. p. 15-33., 2017)NÓVOA, A. Firmar a posição como professor, afirmar a profissão docente. Cadernos de Pesquisa, v. 47, n. 166, p. 1106-1133, out.-dez. 2017. https://doi.org/10.1590/198053144843
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. Tardif (2002)TARDIF, M. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes, 2002. tem clara consciência da importância do trabalho quando se pensa a formação. Ele compreende que o saber dos docentes deve ser analisado em sua estreita relação com o trabalho na escola e na sala de aula. Não se trata, então, de uma relação meramente cognitiva, tampouco circunscrita ao saber teórico, mas de uma relação de aprendizagem mediada pelo trabalho, termo acerca do qual o autor tira inúmeras consequências, seja no que toca ao aprendizado profissional – afinal, “trabalhar remete a aprender a trabalhar” (TARDIF, 2002TARDIF, M. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes, 2002., p. 57) –, seja quanto à compreensão do lugar da cultura profissional para aquele que aprende: “A vida é breve, a arte é longa”, diz o provérbio (TARDIF, 2002TARDIF, M. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes, 2002., p. 57).

A abordagem ergológica do trabalho baliza a concepção teórica e metodológica da pesquisa. A investigação constituiu-se em um estudo de caso múltiplo desenvolvido nos campos de estágio supervisionado do curso de licenciatura em Pedagogia de duas universidades públicas situadas no estado de Goiás, sendo uma universidade estadual (Uni A) e a outra federal (Uni B).

A pesquisa foi realizada no período do segundo semestre de 2017 ao primeiro semestre de 2019. Ela contou com a participação de professores universitários orientadores de estágio (identificados neste artigo pela sigla PU), professores das escolas que atuam supervisionando o estágio (identificados neste artigo como PE) e estudantes estagiários (identificados no texto pela letra E). A Tabela 1 discrimina o conjunto dos sujeitos participantes.

Tabela 1
Participantes da pesquisa.

Como se pode depreender, a pesquisa é bastante representativa nos campos de estágio das instituições universitárias participantes: a Uni A possui dois grupos de estágio nas escolas e ambos fizeram parte da pesquisa; a Uni B possui quatro grupos, dos quais três participaram da pesquisa. Nesses campos de estágio todos os professores universitários (professores orientadores) integraram a investigação, o que compreendeu dois professores da Uni A e três da Uni B. Desta última, um dos professores atua em dois campos de estágio.

Nas escolas, o estágio é supervisionado diretamente em sala de aula pelas professoras das próprias escolas. A pesquisa contou com a participação de seis professoras das escolas que são campo de estágio da Uni A e 11 professoras das escolas da Uni B. O número de professores das escolas participantes foi delineado pela própria viabilidade identificada nas primeiras incursões da pesquisa de campo, visto que de um lado havia professores mais receptivos e dispostos a se integrarem às exigências do tipo de pesquisa em curso (deixar-se observar em sala, dispor-se a falar sobre o trabalho que realiza etc.) e, por outro, por vezes, havia concomitância entre os dias e horários de estágio dos estudantes, o que nos obrigava a fazer escolhas em relação aos professores das escolas que poderiam de fato participar da pesquisa.

No tocante aos estagiários, participaram da pesquisa sete estudantes da Uni A e 12 da Uni B. O critério para a identificação e definição do quantitativo de estagiários participantes foi buscar entrevistar aqueles que atuaram sob a supervisão das professoras das escolas participantes. Todos os estagiários convidados aceitaram o convite.

A pesquisa contou com observações do trabalho realizado na escola, incluindo em sala de aula, e com a observação do trabalho preparatório desenvolvido nas universidades envolvendo os estudantes e os professores universitários orientadores do estágio. Guiados pela consciência da complexidade da atividade humana e das situações de trabalho, delineamos dois gêneros de entrevistas com o conjunto dos participantes da pesquisa:

  • Entrevistas com o objetivo de conhecer os sujeitos – tempo de trabalho no ensino, itinerário de formação etc. – e sua avaliação sobre os processos nos quais estavam implicados;

  • Entrevistas de explicitação, técnica esta comum no âmbito da ergonomia da atividade e que consiste em buscar entre os trabalhadores breves relatos após eventos julgados merecedores de atenção.

É oportuno acrescentar que também foram usadas fotografias como meio para evidenciar o ponto de vista do trabalhador sobre seu trabalho, ocasião em que foi solicitado às professoras das escolas que tirassem fotografias que caracterizassem o trabalho que realizavam. Tais fotos foram posteriormente objeto de discussão com cada uma das professoras e permitiu compor o conjunto das análises sobre as situações de trabalho na escola e suas exigências.

No que tange à análise dos dados, nossos procedimentos foram inspirados na análise de conteúdo desenvolvida por Laurence Bardin (1977)BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1977.. Em afinidade com nossa base epistemológica e com os propósitos da pesquisa, foram definidas as dimensões da análise a ser empreendida. Interessam-nos três dimensões: a formação humana e o exercício profissional, as suficiências e as insuficiências entre instituições e sujeitos e, por fim, as relações entre o fixado ex-ante e a realidade sempre singular que o confronta pela atividade dos homens e mulheres no trabalho.

As balizas descritas, amplas e abertas, guiaram-nos em um exame preliminar sobre o conjunto dos dados construídos pela pesquisa. Essa análise global configurou-se como uma pré-análise destinada a discernir elementos comuns, perscrutar aspectos recorrentes e singulares, para estabelecer as categorias a serem configuradas e os aspectos a serem objeto de reflexão mais acurada. Em seguida, procedeu-se à identificação dos temas categoriais – núcleos de aspectos significantes que, mediados pela teoria, emergem do conjunto material analisado – a serem explorados e desenvolvidos (ver adiante no texto). Por fim, na etapa de síntese e interpretação dos dados da pesquisa, traçaram-se a apresentação dos resultados e a elaboração de inferências construídas com base nos dados globais da investigação.

Estágio, Trabalho e Aprendizado da Docência: o Que Diz a Pesquisa?

Em nossa investigação nesse peculiar espaço no qual convivem professores de distintas instituições (universidade e escola) e estudantes que estão a aprender uma profissão, o elemento central parece ser a questão da relação entre formação e saber. Essa questão, colhida entre os nossos interlocutores, compõe o fio que liga os três temas, categorias fundamentais identificadas na presente pesquisa. Tratam-se de aspectos formativos voltados para:

  • O trabalho e a prática docente em sala de aula;

  • A criança e o seu processo de aprendizagem;

  • O conhecimento da escola (MELO, 2019MELO, K. A. A complexa relação entre trabalhar, aprender, saber: um estudo sobre o trabalho docente no âmbito do estágio curricular obrigatório do curso de Pedagogia. 305f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2019.).

Esses três temas categoriais são explorados e desenvolvidos a seguir, conduzindo-nos em direção ao coração do ofício.

Aspectos formativos voltados para o trabalho e para a prática docente em sala de aula

Indagados sobre o que consideram importante ser adquirido no processo formativo para a profissão docente, nossos interlocutores – isto é, os docentes universitários, os docentes da escola e os estagiários – chamam atenção para a relevância e a potencialidade das relações construídas no trabalho realizado em sala de aula. Nessas relações, o que está em jogo é o conhecimento, mas também valores e afetos. Os ricos conteúdos dessas relações são, de vários modos, sublinhados pelo conjunto dos participantes da pesquisa.

Em seus testemunhos, a maior parte dos professores universitários (60%) faz referência ao ato do planejamento e o destaca, ressaltando então que o estagiário deve aprender a planejar seu trabalho. Com isso, salienta também a importância do conteúdo a ser ensinado (ocorrência com igual porcentagem – 60%) e os princípios mais amplos de organização do ensino, o conhecimento pedagógico em geral, conforme a denominação de Shulman (1987)SHULMAN, L. Knowledge and teaching: foundations of the new reform. Harvard Educational Review, v. 57, n. 1, p. 1-23, 1987. https://doi.org/10.17763/haer.57.1.j463w79r56455411
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. Nas palavras de um dos professores da universidade:

Olha, eu até tenho estudado muito essa questão, e a gente tem chamado de especificidade da docência. Quais são as especificidades da docência? Não é suficiente o estagiário saber o conteúdo que vai ensinar. Ele tem que saber o conteúdo, mas isso não é suficiente. Ele tem que saber o conteúdo e tem que saber para quê, para quem são esses sujeitos que vai estar trabalhando. Ele precisa saber como, como mediar para que a criança aprenda esse conteúdo. Então, essas são preocupações em torno do saber: o que ensinar, como ensinar, para quem ensinar, por que ensinar. Que articulações têm esses conteúdos com a vida

(PU3, Uni B).

Os professores universitários também tenderam (40% de ocorrências) a conferir destaque ao aprendizado das distintas metodologias de trabalho em sala de aula; ressaltaram a importância de se aprender a gerir a sala, seus desafios e organização; sublinharam o lugar de uma postura profissional adequada e das relações humanas; e fizeram referência ao conhecimento da didática e das concepções de ensino. Na fala de três professores:

As concepções de ensino, sobretudo a concepção de ensino com que vai trabalhar. A metodologia, as metodologias de trabalho e nessa perspectiva, mas tudo isso em função do aluno

(PU1, Uni A);

Eu acho que o principal é a questão das relações mesmo. Das relações humanas. Eu acho que é a relação do estagiário com o professor regente, relação do estagiário com seu aluno e com a escola. É a postura dele mesmo. É a postura profissional

(PU2, Uni A).

O manejo da sala, a gestão da sala, porque ele está lidando com pessoas, [...] gerir as relações pessoais, humanas, de conteúdo, trabalhar conflito. [...] Então, é necessário que o professor tenha essa clareza, daquilo que o plano de aula já diz, os objetivos, os conteúdos, a metodologia, os recursos, saber avaliar aquelas relações

(PU1, Uni B).

Como se depreende, os professores universitários enfatizam o desafio de se aprender a ensinar em sala de aula e, ao considerarem as exigências desse desafio, o saber planejar, isto é, a consideração prévia do que se pretende fazer e a quem se destina o que será feito. Eles destacam a importância do conhecimento do conteúdo a ser ensinado, mas também colocam em relevo o conhecimento de metodologias necessárias para a realização do trabalho em sala de aula. Em uma palavra: a tônica situa-se no que se coloca ex-ante ao trabalho real.

Por sua vez, entre os 16 professores das escolas, 81,2% fazem referência à sala de aula em seus conflitos, à heterogeneidade, à organização, à rotina, ou seja, a seus desafios cotidianos de gestão.

O conhecimento do conteúdo e o conhecimento pedagógico do conteúdo aparecem, por sua vez, nas referências feitas por 37,5% deles. Em larga medida, os professores das escolas disseram que o conhecimento do conteúdo é o mais fácil de ser construído, podendo ser adquirido pelo estudo e pela dedicação do professor. O mais relevante para esses professores é aprender a lidar com as situações novas e com os diferentes níveis de aprendizagem, porque “ele, [o professor] tendo um estudo prévio, ele tendo um planejamento prévio, ele tem como trazer [o conhecimento do conteúdo] para o aluno” (PE10, Escola B3).

É pertinente destacar ainda que os professores das escolas, chamando atenção para a complexidade da sala de aula, destacam a importância do trabalho “corpo a corpo”, a relevância de aproveitar as oportunidades, a importância de conhecer a criança. Vejamos a palavra de um dos professores:

Então, você não precisa ficar preso, você tem autonomia... Chegou o momento de fazer uma aprendizagem diferente do que você planejou..., porque a gente tem que aproveitar as oportunidades. Então, eu falo, você não tem que ficar preso ao plano de aula, ao sistema, você tem que ver as necessidades da sua turma... Se de um jeito não deu certo, há várias e várias maneiras de você chegar ao ponto em que a maioria consegue andar com você. Se você não conseguir fazer isso, seu planejamento não foi e não aconteceu. [...] O professor tem que ser, antes de tudo, observador. Tem que observar a necessidade do aluno, necessidade da turma em geral

(PE7, Escola B3).

A análise dos apontamentos efetuados pelos docentes das escolas apresenta uma importante recorrência ao caráter dinâmico e, em grande medida, imprevisível da sala de aula. Ela destaca o caráter desafiador do trabalho docente diante da exigência de na sala de aula ser necessário atender ao grupo e a cada criança em sua individualidade. Nesse sentido, parece possível inferir que essa recorrência indica e explica a importância que os docentes conferem ao aprender a gerir a sala e ao aprender a gerir pedagogicamente o conteúdo.

Por fim, quando se considera o que dizem os estagiários quando indagados sobre o que avaliam ser importante adquirir no processo formativo para a docência, percebe-se que 55% deles compreendem que a gestão da sala de aula – a organização do trabalho pedagógico, disciplina etc. – é o aspecto mais significativo: 33% dizem da importância de se conhecer e saber gerir o conteúdo de ensino, como também de realizar o planejamento e aprender com a postura da professora da sala, uma postura que, segundo um dos estagiários, ensina até mesmo pelos gestos, pelo tom de voz, pela movimentação em sala:

A postura dela, o jeito de expressar e o tom de voz..., a moderação para falar. Então, quando a gente chegava lá, eu sou muito observadora nessa parte e crítica, e uma crítica construtiva, é claro, então, eu sempre avaliava o tom de voz, o jeito dela falar... Isso para mim foi muito importante [...]; a movimentação, a mediação do professor, que ela sempre movimenta na sala toda e ela pega o giz assim

(E13, Uni A).

O que esse estagiário diz nos conduz, mais uma vez, a refletir sobre a importância de não se ignorar a atividade de trabalho como uma experiência que ensina e nos faz perceber a riqueza das regras de ofício. Essas regras, como bem destaca René Amigues (2004, p. 43-44)AMIGUES, R. Trabalho do professor e trabalho de ensino. In: MACHADO, A. R. (org.). O ensino como trabalho. Londrina: Eduel, 2004. p. 35-49., “reúnem gestos genéricos relativos ao conjunto dos professores e gestos específicos relativos, por exemplo, à disciplina”, ou ainda relativos à necessidade de se conseguir a atenção dos alunos. Por essa via, pode-se perceber que por detrás do que diz o estagiário sobre a professora – “A postura dela, [...] a moderação para falar” – existem aspectos cardinais que precisam ser mais bem conhecidos e valorizados, aspectos estes que uma perspectiva que busca o ponto de vista da atividade permite revelar. Como observa Duraffourg (2007, p. 68)DURAFFOURG, J. O trabalho e o ponto de vista da atividade. In: SCHWARTZ, Y.; DURRIVE, L. (org.). Trabalho e ergologia: conversas sobre a atividade humana. Niterói: EdFF, 2007. p. 47-82., “por trás dos gestos os mais simples, há sensibilidade, estratégia, inteligência, todo um saber fazer amplamente subestimado”.

Aspectos formativos voltados para a criança e o seu processo de aprendizagem

Na condição de aspecto central para o trabalho docente, o conhecimento da criança e a maneira como ela aprende aparecem nos testemunhos de quase todos os professores universitários (quatro professores), mas também da maior parte dos professores das escolas (12 professores) e dos estagiários (11 estagiários). Isso significa que a maior parte de nossos interlocutores traz, de maneira marcante, o entendimento de que para se ensinar é preciso conhecer a criança, compreender como se dá seu processo de aprendizagem, atentando para suas reações, necessidades e dificuldades.

Ao apontarem o conhecimento da criança como um aspecto formativo essencial, professores universitários, professores das escolas e estagiários colocam em evidência o importante desafio característico do trabalho docente que lida com grupos de crianças, ou seja, o desafio da responsabilidade pela sala de aula e a exigência ética imposta de ter de garantir atenção a cada um sem perder de vista o grupo.

No entanto, se todos os participantes destacam a importância de conhecer a criança, os testemunhos dos professores das escolas trazem ênfases e nuanças específicas que merecem nota. Para além da frequência com que esse apontamento comparece em seus testemunhos, o modo como dizem, os sentidos veiculados, é um aspecto que chama a atenção. Os professores das escolas referem-se à necessidade de se desenvolver certa “sensibilidade”, de se aprender a ter um “olhar mais sensível”, de se aprender a ter “jogo de cintura”, de se “perceber as diferenças”, de se aproximar afetivamente das crianças e “aprender a ver as coisas com outro olhar”. Nas palavras dos professores:

Então, é esse olhar mais sensível de como trabalhar com os alunos. Eu acho que essa sensibilidade a gente aprende no estágio. [...] A questão do enfrentamento. Então, esse olhar mais sensível mesmo

(PE12, Uni B, Escola B2);

Aprender também a perceber diferenças daqueles alunos que aprendem em ritmo diferente, porque, às vezes, quando está lá na faculdade elas podem pensar que vão ensinar e todos vão aprender

(PE1, Uni A, Escola A1);

Eu acho que elas deveriam ser estimuladas a trabalhar isso, sabe? O afetivo dos meninos [...], porque a gente aprende a ver as coisas com outro olhar [...], porque você vê aquela criança de maneira diferente

(PE8, Uni A, Escola A2);

Aquele jogo de cintura para se relacionar com a turma [...]. A gente tem que aproveitar as oportunidades [...]. É observar. O professor tem que ser, antes de tudo, observador. Tem que observar a necessidade do aluno, necessidade da turma em geral

(PE7, Uni B, Escola B3);

Não pode deixar passar. A perspicácia ela tem que ser usada, você tem que ouvir todos os ruídos. Às vezes, ele não estava falando comigo, mas eu ouvi, eu tenho uma deixa ali. Isso enriquece a minha aula

(PE9, Uni B, Escola B3)

Considerando esses testemunhos, os professores das escolas parecem falar, cada um à sua maneira, de valores sem dimensão, isto é, de valores que, apesar de não poderem ser medidos ou dimensionados, permeiam toda a atividade de trabalho. Podemos inferir que eles chamam a atenção e apontam como um dos aspectos formativos essenciais para a necessidade de os estagiários perceberem a importância do desenvolvimento de certa “sensibilidade” na relação pedagógica. Inspirados em Schwartz4 4 Na abertura do IV Congresso da Sociedade Internacional de Ergologia, realizado em agosto de 2018 em Brasília (DF), Schwartz definiu a atividade humana de trabalho como uma “manifestação da vida e de valores sem dimensão”. Valores sem dimensão, porque não residem sob nenhuma métrica (saúde, compromissos éticos, laços partilhados com os colegas de profissão etc.) e que para serem compreendidos exigem certa “sensibilidade ergológica” por parte daqueles que analisam, pensam e formam para o trabalho. Inspirados em Schwartz, podemos dizer que o exercício da docência exige a constituição de uma “sensibilidade pedagógica”. , esse ato prenhe de valores sem dimensão e constituídos no exercício profissional docente chamaremos de sensibilidade pedagógica.

Trata-se de uma sensibilidade fundamental que se constrói no trabalho enquanto experiência, uma sensibilidade que se constrói dia a dia no trabalho de ensinar crianças, por meio de certo feeling, de certo refinamento do olhar, numa enigmática cooperação entre os saberes teórico-conceituais e os saberes da experiência. Nada é simples nesse domínio, e retomaremos à questão mais adiante. Nesse momento, é importante reter que esse gênero de cooperação mencionada é essencial para permitir aos professores serem capazes de, no exercício do ofício, atuarem e aproveitarem a oportunidade favorável, engendrando assim o gesto adequado para as exigências postas nas situações de trabalho na escola.

O que denominamos de sensibilidade pedagógica corresponde à expressão da inteligência do kairos no trabalho docente5 5 Denominação dada na Antiguidade pelos gregos à capacidade de escolher, decidir e agir no momento certo, capacidade de se exercer uma “escolha pertinente de ação diante da conjunção localmente particular e inédita” (SCHWARTZ, 1998, p. 109). . Trata-se, tomando as palavras de duas professoras, de se desenvolver uma inteligência, uma perspicácia no agir, que permite aqueles e aquelas que atuam na docência “aproveitar as oportunidades” (PE7), “aproveitar as deixas do momento” (PE9). Para nossos interlocutores, desenvolver essa sensibilidade pedagógica é essencial tendo em vista que efetiva as finalidades do trabalho que realizam e faz face à necessidade permanente de se atuar sobre uma invariante do seu trabalho bem identificada nos estudos de Maurice Tardif (2002, p. 145-146)TARDIF, M. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes, 2002.: o fato de que, “embora trabalhe com grupos, o professor deve agir sobre os indivíduos”.

Vale ainda registrar que, considerando os testemunhos dos estagiários, essa invariante do trabalho docente é claramente percebida por eles, que apontam para a importância de se estar lá com os alunos para aprender, para compreender aquilo que o conhecimento teórico não consegue antecipar, como bem expressa um dos estagiários:

Não tem nada que, tipo, a teoria vai explicar dessa relação, que é a hora que você chega lá e vê o aluno lá

(E5, Uni B, 2017).

Em suma, a situação em contexto traz sempre novas complexidades, novos desafios para o trabalho do professor. Complexidades e desafios que também os estagiários percebem e destacam em seus testemunhos.

Aspectos formativos relacionados à escola

Ao explicitarem seus pontos de vista, professores universitários e professores das escolas falam sobre a importância de se conhecer a escola como um todo, sua organização e características.

Levando-se em conta os cinco professores universitários que integram a pesquisa, três fizeram referência à importância do conhecimento da escola e do seu trabalho para a formação do estagiário. Entre eles, um professor destacou que, para compreender a escola, é importante conhecer as políticas públicas voltadas para a educação:

Além de saber como funciona uma escola pública, ele [o aluno] tem que saber também o que sustenta uma escola pública, quais são as políticas nossas de educação que sustentam a escola

(PU2, Uni B, 2017).

Outro professor, por sua vez, definiu o estágio como um momento de preparação para o mundo do trabalho e considerou que, ao pensar o trabalho de ensinar e aprender no espaço escolar, é relevante ter em vista não apenas a sala de aula, mas o grupo que faz a escola e a sociedade como um todo. Em suas palavras:

O processo de estágio é o processo de preparação para o mundo do trabalho, [...] um processo de ensino e aprendizagem dentro dessa relação de trabalho, que é um espaço formativo da escola, não só a sala de aula, mas até a relação desse indivíduo no meio em que ele está inserido aqui no grupo para viver numa sociedade maior

(PU1, Uni B).

Por fim, o terceiro professor apontou que, além de conhecer a realidade da escola, é imprescindível pensar o estágio como um momento de ruptura com o ensino instituído e como um momento de se produzirem novas práticas:

Vejo como um momento de ruptura com o ensino instituído [...]. Então, eu tenho uma grande preocupação: que o estágio oportunize conhecer a realidade escolar da escola pública, [...] mas dar conta de ir além dela [...]. É um pouco esse movimento de produzir novas práticas, no sentido de produzir inovações didáticas

(PU3, Uni B).

Quando os professores universitários falam da importância do conhecimento da escola para a formação dos estagiários e se referem à política educacional em seus nexos com o mundo do trabalho, percebe-se que eles apontam para aspectos extraescolares que normatizam, definem e estruturam o trabalho que se realiza no interior da escola. Em suma, destacam as normas que antecedem e prescrevem o trabalho a ser desenvolvido. Além disso, os professores da universidade fazem referência a uma perspectiva que visa incentivar nos estagiários um movimento de ruptura e de inovação em relação àquilo que está instituído, que está sedimentado no trabalho educativo e pedagógico feito pela escola.

De outra parte, os docentes das escolas atribuem valor, em grande medida, aos desafios que se apresentam no contexto micro da escola e apresentam questões que são postas pela atividade de trabalho in situ. Conforme eles, “o dia a dia da escola é vivo”, e, nesse sentido, os professores consideram essencial que o estagiário conheça esse contexto. Nesses termos, pode-se apontar que os professores das escolas, ao se reportarem à sua atividade de trabalho, o fazem de dentro de seu fazer cotidiano, pois são mobilizados pela exigência de ensinar crianças e adolescentes nos anos iniciais, do ensino fundamental, em uma escola pública. Essa compreensão de que “o dia a dia da escola é vivo” e, também, de que sua dinâmica não é simples consiste para os professores das escolas em um gênero de aprendizado essencial ao estagiário. Vejamos alguns testemunhos:

Que eles [os estagiários] consigam observar e ver que o dia a dia na escola é vivo. Que, às vezes, eles estavam com aquela atividade planejada, está tudo organizado, mas pode acontecer um imprevisto

(PE1, Escola A1);

Então, eu acho que é muito importante, porque, quando a gente está fazendo faculdade e não tem experiência, você é nua, porque você não tem noção da realidade [...], da rotina, do que é uma escola. E a realidade da escola pública a gente já sabe que é diferente, o poder aquisitivo é menor, tem muita criança carente, tem criança que não tem material

(PE2, Escola B1).

Compreender as individualidades de cada criança, que elas não são iguais, que cada criança aprende no seu tempo. Que, às vezes, como é turma C, a pessoa vem para a turma C e quer que todas as crianças estejam lendo, mas não é assim que acontece. Então, compreender esse processo realmente de desenvolvimento humano, porque se não compreender dificulta muito a prática

(PE4, Escola B3).

Destacando a importância de se conhecer a escola e a forma como ela se organiza, os docentes das escolas falam dos constrangimentos, dos impasses, dos imprevistos que têm curso no desenvolvimento do trabalho, isto é, apontam para aquilo que não pode ser totalmente antecipado pelo conceito. Nesse sentido, eles chamam a atenção para o real da atividade, entendido como aquela atividade que é realizada e também aquela que, impossibilitada, não foi6 6 O conceito de real da atividade é desenvolvido no âmbito da psicologia do trabalho por Yves Clot (2008). Com base nos conceitos fundadores da ergonomia, ele retém a diferença entre tarefa (esfera do trabalho prescrito) e atividade (esfera do trabalho real). Nesse esquema conceitual a atividade corresponde ao conjunto do que foi realizado pelo trabalhador em situações. O autor acrescenta ao esquema um aspecto importante: a constatação de que o que não foi realizado também deve ser considerado. Isso implica que as atividades suspensas, contrariadas, impedidas também contam e possuem um volume que guarda grande relevância, tanto para o desenvolvimento da atividade como para a saúde do sujeito. Isso ele denomina de real da atividade. A esse respeito, ver Clot (2008). . Os professores das escolas assinalam que essa atividade é viva e, portanto, traz em si a necessidade permanente de se fazer escolhas, de se decidir, de se construir normas, conforme os termos de Schwartz e Durrive (2007)SCHWARTZ, Y.; DURRIVE, L. (org.). Trabalho e ergologia: conversas sobre a atividade humana. Niterói: EdFF, 2007..

Em relação aos estagiários, as referências voltadas para o conhecimento da escola apareceram mais timidamente. Dos 19 estagiários, apenas três mencionaram diretamente a importância do conhecimento sobre a escola como um todo. Essas referências foram feitas quando eles chamaram a atenção para o fato de como a realidade da escola pública influencia e, às vezes, compromete a prática pedagógica realizada em sala de aula.

A gente sabia que todas as crianças ali têm... Todas não, mas a maioria tem uma situação familiar diversa, uma da outra, e são situações, assim, delicadas, nesse sentido social mesmo. Então, acho que alguns aspectos disso vieram à tona, assim de olhar isso com o olhar de uma pessoa que está ali para conhecer aquele ambiente

(E15, Uni B).

Em síntese, o conhecimento do ambiente escolar é apontado pelos professores universitários e pelos professores das escolas como extremamente significativo, mas cada um desses grupos profissionais enfatiza aspectos diferentes. Para os professores da universidade, são os aspectos globais da escola e também os determinantes extraescolares, como as políticas educacionais, que parecem ganhar a primazia de sua atenção. Para os professores das escolas, a primazia de suas observações está também na escola, mas sua ênfase remete-se a uma dimensão micro, situada na esfera da dinâmica cotidiana difícil de uma instituição que parece viva, logo, inantecipável. De outra parte, o destaque ao conhecimento global da escola aparece com pouca frequência entre os estagiários, mas, a se considerar o que dizem em suas entrevistas, nota-se certa convergência com as posições dos professores das escolas.

Algumas Reflexões Sobre os Resultados da Pesquisa

Como foi possível acompanhar na seção anterior, a pesquisa evidencia que professores universitários, professores da escola e estagiários destacaram a importância de que, na condição de espaço de formação de futuros professores de profissão, o estágio possibilite conhecer e aprender sobre a escola e seus desafios, sobre a prática pedagógica em sala de aula, sua dinâmica etc. Porém, como também foi evidenciado, a bem observar o que dizem nossos interlocutores, seus apontamentos apresentaram ênfases diferentes. Tais incidências diferentes acerca de aspectos comuns revelam as nuanças do métier e trazem elementos que não são negligenciáveis acerca da dinâmica do estágio supervisionado na escola.

Se, em tendência, os professores universitários pensam o lugar do estágio com base nos elementos que conformam a instituição escolar (políticas educacionais, o mundo do trabalho, o sentido da educação...) e naqueles que devem integrar as práticas em sala de aula (o planejamento, o plano de aula, a compreensão da realidade social e de quem são os destinatários da aula...), temos a constituição de uma ênfase em aspectos situados ex-ante às situações de trabalho na escola. Se, de outra parte, os professores das escolas pensam os aspectos fundamentais que devem ser apropriados pelos estagiários, sublinhando as exigências do trabalho real e a dinâmica da sala de aula (as dificuldades da gestão da classe, o desafio de gerir o conteúdo, a importância de se observar a turma e atuar nos momentos oportunos...), isso permite inferir que os professores das escolas tendem a enfatizar aspectos que se apresentam em sua experiência de homens e mulheres, trabalhadores e trabalhadoras, na instituição social escola. No delineamento dessas duas posições, manifestadas por ambos os grupos de professores, reencontramos ao fundo uma questão epistemológica complexa, especialmente quando o que está em jogo é o trabalho humano: a relação entre conhecimento e experiência.

Nesse ponto, se pensarmos na experiência de trabalho apenas como rotina, reduzida ao fazer, à repetição, não vamos encontrar nada de mais naquilo que dizem os professores das escolas. Contudo, se considerarmos com maior rigor o que se apresenta na experiência de trabalho7 7 A questão da experiência dos homens e mulheres no trabalho seja talvez uma das mais centrais e, ao mesmo tempo, uma das mais mal colocadas nas ciências humanas e sociais, visto que encontrar a experiência das forças produtivas, conforme os termos de Schwartz (1988), é tanto um problema como uma exigência para aqueles que desejam se pronunciar sobre o trabalho. Mesmo perspectivas na qual o trabalho ocupa um lugar cardinal, como o marxismo, tiveram, e têm, dificuldade em lidar com o assunto, contudo é no seio dessa mesma tradição que, não sem uma crítica interna aos próprios pares, vão ser produzidas importantes análises e reflexões sobre a matéria, notadamente com o historiador inglês Edward P. Thompson e o médico e psicólogo do trabalho italiano Ivar Oddone, infelizmente autores menos lidos do que deveriam. A respeito desses aspectos aqui tratados, ver Oddone, Re e Briante (1981) e Thompson (1981). , podemos encontrar, nessa esfera, o lugar de uma história coletiva, tecida por aqueles professores (incluindo os professores que os precederam na escola), aprendizados inscritos em temporalidades variáveis, formas de gerir situações, gestos afinados no fio do tempo, valores partilhados etc. Essa dimensão não parece negligenciável. Ela diz respeito àquilo que Schwartz (2009)SCHWARTZ, Y. Produzir saberes entre aderência e desaderência. Revista Educação Unisinos, v. 13, n. 3, p. 264-273, set./dez. 2009. https://doi.org/10.4013/edu.2009.133.4959
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nomina saberes em aderência, isto é, os saberes tecidos por homens e mulheres nas situações concretas de trabalho.

Do mesmo modo, se nos basearmos no pressuposto de que os saberes formalizados nas disciplinas acadêmicas – com suas teorias, conceitos, proposições – podem dizer tudo o que há para ser conhecido antes de as pessoas efetivamente atuarem nas situações de trabalho, incorreremos em erro, na medida em que vai se produzir uma usurpação do prestígio da norma, como dizia Canguilhem (2001)CANGUILHEM, G. Meios e normas do homem no trabalho. Pro-posições, Campinas, v. 12, n. 2-3, p. 109-121, jul.-nov. 2001. a respeito dos usos que o taylorismo fazia dos saberes provenientes da ciência. Esses saberes formalizados – saberes presentes em protocolos, manifestados em conceitos e princípios que circulam para além das situações concretas – chamaremos, com Schwartz (2009)SCHWARTZ, Y. Produzir saberes entre aderência e desaderência. Revista Educação Unisinos, v. 13, n. 3, p. 264-273, set./dez. 2009. https://doi.org/10.4013/edu.2009.133.4959
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, de saberes em desaderência. Eles configuram a capacidade de antecipação dos seres humanos diante do meio, forma prodigiosa do gênio humano que, em diferentes níveis, se constituiu ao longo de uma história que é a própria história da humanidade. Esses saberes são, como se depreende, também muito importantes. Saberes em aderência e saberes em desaderência estão em relação um com o outro; há diferenças de níveis de gradação entre eles, não simples oposição.

Essa perspectiva de análise permite bem compreender o que mobiliza a observação que fazem os professores da universidade e os professores das escolas sobre os aspectos essenciais a serem apropriados para os estagiários. Para os professores universitários, trata-se de pensar o saber sobre o trabalho, seja na preparação para realizá-lo, seja a posteriori, nas reflexões sobre o realizado. Daí a ênfase no planejamento, nos condicionantes sociais etc. Para os professores das escolas, trata-se de pensar o saber no trabalho, visto que a complexidade das situações laborais obriga uma inteligência (incluindo corporal, como veremos em um exemplo na seção seguinte) ajustada ao coletivo dos alunos e às singularidades de cada um.

Escolher uma posição ou outra entre as relatadas anteriormente é uma falsa escolha; ambas são importantes. A mediação entre saberes em aderência e saberes em desaderência parece, esta sim, a via mais adequada para fazer avançar os processos de formação profissional docente. O modo como se vai instituir essa mediação é um desafio, porém, se não colocarmos essa problemática no primeiro plano, amputaremos na base as chances de se fazer avançar a relação entre formação e trabalho docente. Não nos furtaremos de oferecer algumas pistas a esse respeito.

Considerações Finais

A pesquisa que apresentamos tinha os objetivos de evidenciar e discutir o que professores universitários e professores das escolas apontavam como o essencial a ser apropriado pelos alunos que realizavam estágio acadêmico supervisionado em escolas públicas do ensino fundamental. A pesquisa permitiu identificar o que os diferentes sujeitos participantes dizem quanto ao trabalho docente tendo como base suas distintas ancoragens institucionais. Por detrás desse aspecto aparentemente óbvio, todavia, foi possível jogar luz sobre os elementos que fundamentam as distintas apreciações que nossos interlocutores fazem acerca do que é pertinente ser conhecido e apropriado para os estagiários, futuros professores e colegas de profissão. Assim, à medida que adentramos nas situações de trabalho na escola, buscando o ponto de vista da atividade, para usarmos os termos de Duraffourg (2007)DURAFFOURG, J. O trabalho e o ponto de vista da atividade. In: SCHWARTZ, Y.; DURRIVE, L. (org.). Trabalho e ergologia: conversas sobre a atividade humana. Niterói: EdFF, 2007. p. 47-82., pudemos compreender a complexidade daquele contexto, revelando como os professores universitários e os professores das escolas tendiam a conceber o trabalho, respectivamente, haja vista saberes em desaderência e saberes em aderência.

Como já dissemos, a escolha entre um e outro desses saberes é falsa; ambos são igualmente importantes, mas dizer igualmente importantes é uma posição epistemológica e política, porque nas relações de poder instituídas em nossa sociedade os saberes tecidos – individual e coletivamente – por homens e mulheres no trabalho não gozam o mesmo prestígio que os saberes formais, científicos, disciplinares. No entanto, como demonstrado em 70 anos de pesquisas no campo da ergonomia, são esses saberes tecidos sur le terrain que efetivamente permitem que o trabalho seja realizado. Um exemplo extraído dos cadernos de campo da presente pesquisa possibilita evidenciar a natureza do que está sendo destacado:

A sala da professora tem 24 crianças. Neste dia, estavam presentes 23 crianças. A professora tem uma criança com deficiência mental e motora. Essa criança usa cadeira de rodas e não consegue falar. Tem uma cuidadora, uma assistente que acompanha a criança durante todo o tempo da aula.

A professora mantém uma rotina na qual todas as ações na sala objetivam alfabetizar as crianças. Inicialmente, ela convidou as crianças a se sentarem no chão para um momento em que ela falava e as crianças repetiam algumas palavras, agradecendo à vida, à família, à escola etc. Em seguida, cantaram algumas músicas infantis. Nesse momento, as crianças fizeram pedidos para que o grupo cantasse algumas músicas, em especial. Na sequência, a professora leu para as crianças uma história que ela já vinha lendo um pouco a cada dia.

Após esse momento, as crianças voltaram a seus lugares – as carteiras estavam organizadas em U – e a professora passou a trabalhar o calendário. Utilizando alguns objetos artesanais coloridos, as crianças fizeram a contagem para preencher o calendário, com o dia do mês, o mês e o ano. Contaram quantos meninos e quantas meninas estavam presentes e fizeram uma “operação aditiva” para encontrar o número de crianças presentes – essa expressão “operação aditiva” as crianças demonstraram já conhecer e repetiram.

Depois de preencher o cabeçalho, no quadro, a professora leu para as crianças um pequeno texto informativo sobre o carnaval. Em seguida, com um grande cartaz – que tinha sido escrito, no dia anterior, junto com as crianças – a professora colocou uma música para as crianças ouvirem, cantou junto com as crianças e, enquanto cantavam, com uma grande régua a professora apontava a letra da música no cartaz. A música era uma marchinha de carnaval chamada “A jardineira”.

Em um momento no qual a professora estava no fundo da sala, controlando o som para colocar a música novamente, uma das crianças, que estava sentada mais à frente, comentou com o coleguinha: “Olha, o jardineira é igual ao Jackson!”, fazendo referência aos sons entre a sílaba “ja” de jardineira, escrita na letra da música no cartaz, e o “ja” do Jackson escrito na lista de nomes afixada na parede.

A professora, ouvindo esse comentário, deixou o que estava fazendo, foi até a frente e chamou a atenção de toda a turma para o comentário do coleguinha: “Olha, gente, o Pedro falou uma coisa interessante”, e pediu que a criança repetisse o que ela tinha falado. Em seguida, as crianças começaram a fazer e a mostrar outras relações entre os sons das sílabas e letras presentes nos diversos textos expostos na sala

(Diário de campo).

Esse trecho permite compreender a complexidade do que ganha curso na realização do trabalho em sala de aula. A gestão da classe e a do conteúdo não aparecem separadas, mas em interface; os quadros conceituais da matemática – operação aditiva – se juntam aos gestos de condução do coletivo de alunos – a contagem para o calendário, a contagem dos alunos presentes – e se desdobram no fluxo de um processo pedagógico no qual a professora favorece a continuidade entre a atividade passada, a atual e sua sequência: o cartaz elaborado na aula anterior é objeto de trato pedagógico na aula seguinte visando ao processo de alfabetização, tudo isso, como se pode depreender da nota de campo, com um olhar atento ao coletivo e sem perder o indivíduo dentro da classe. Tudo isso também com uma inteligência nos atos que revela como há uma enigmática sabedoria do corpo – em um instante de aparente dispersão, a escuta de um comentário dos alunos no momento em que voltava sua atenção em outra direção e ligava o som – que precisa ser constituída e mobilizada no momento oportuno (inteligência do kairos) para que as finalidades sociais da escola se cumpram. Eis o lugar daquilo que nominamos de sensibilidade pedagógica. Inteligência pedagógica incorporada nos atos8 8 Em um profundo estudo sobre o que implica agir no trabalho, Michel Jouanneaux observa que se pode propriamente falar em uma “inteligência incorporada nos atos” (JOUANNEAUX, 2011, p. 268), pois, teoria “integrada em nossas percepções e afetos, ela faz parte de nosso corpo, ela é incorporada. Ela se ramifica no menor de nossos gestos, em uma familiaridade com os objetos de nossas ações” (JOUANNEAUX, 2011, p. 84, grifo do original). .

O que acabamos de dizer é revelador do volume e da densidade que os professores colocam em movimento para fazer o que precisa ser realizado em seu trabalho. Se esses aspectos têm tal importância, como constituir dispositivos de formação que permitam mediar saberes formais, disciplinares, científicos com os saberes tecidos pelos professores nas situações de trabalho na escola?

A tarefa não é fácil. Porém, para levá-la adiante, dois elementos essenciais precisam estar presentes. O primeiro deles tem a ver com a concepção de trabalho com a qual se opera, pois a compreensão que se tem do trabalho interfere no modo como ele é interpretado. Uma compreensão mais ampla do que representa e compreende o trabalho humano se faz necessária; nessa direção, a perspectiva que o concebe com base na problemática da atividade oferece aberturas importantes9 9 É pertinente observar que não é pela atividade, mas pela ação, que frequentemente se apresenta a porta de entrada privilegiada nas pesquisas em educação sobre os saberes docentes, como é o caso de autores importantes como Shulman (1987), Tardif (2002) e Gauthier et al. (2013). Pela via da ação, permanece-se preso à dicotomia entre o dado e o criado, o interno e o externo, o fazer e o pensar, a teoria e a prática etc. Isso ajuda a compreender as ambiguidades de Tardif (2002) em relação ao conhecimento teórico. Uma análise resumida dessa questão pode ser vista em Cunha e Alves (2012). Para uma leitura aprofundada, ver Béguin e Clot (2004). .

O segundo elemento essencial não está sem relação com o primeiro. Ele diz respeito às estratégias metodológicas a serem empreendidas. Aqui, convém bem notar que estratégias metodológicas não podem ser assimiladas a uma soma de procedimentos. O motivo é que os procedimentos metodológicos são sempre balizados por um quadro teórico que os constitui. Esvaziá-los disso é torná-los precários e, mesmo, desprovidos de sentido. Se é assim, quadros teórico-metodológicos munidos de uma concepção mais ampla de trabalho se mostram mais adequados para constituir dispositivos de formação docente em interface com o trabalho na escola.

A esse respeito, podemos sugerir a constituição de grupos de encontro do trabalho, na medida em que configuram dispositivos que colocam especialistas universitários e trabalhadores que estão em campo, em cooperação, para tratar da problemática da atividade humana na busca de compreender o meio laboral e intervir nele. Podemos também sugerir os dispositivos metodológicos da clínica da atividade, abordagem que permite bem evidenciar a elaboração coletiva da cultura de um grupo profissional (o gênero profissional como memória social da profissão) e a constituição do estilo daqueles que integram a profissão, favorecendo com suas estratégias metodológicas o desenvolvimento do coletivo de trabalho10 10 A respeito dos grupos de encontro do trabalho, perspectiva desenvolvida no âmbito da abordagem ergológica do trabalho por Schwartz e seus colaboradores, ver Mailliot e Durrive (2016); a respeito da perspectiva metodológica no âmbito da clínica do trabalho, abordagem no âmbito da psicologia do trabalho por Clot, ver Roger (2013). .

De um modo ou de outro, tratamos de perspectivas metodológicas que possuem uma concepção ampla do trabalho e que têm, em seu ponto de partida, o princípio de que fazer avançar o que se passa nas situações de trabalho exige pensá-las com os seus próprios protagonistas. Essas perspectivas, a se considerar o que foi apresentado nesta pesquisa, não são sem pertinência. A natureza dos processos em jogo (mediação entre formas de cultura e ciência, interfaces entre grupos profissionais, aprendizagem do e no trabalho) as convoca e, também, nos convida a abrir novos horizontes nos processos de formação profissional docente no estágio acadêmico supervisionado.

Notas

  • 1
    A noção de profissão remete-se às formas históricas de organização social e categorização das atividades de trabalho, e o sentido do termo é variável conforme as distintas realidades das nações e dos dispositivos estatais que lhes conformam. A noção de métier não está desconectada dos usos que se faz do termo profissão na linguagem corrente, mas tem o condão de sublinhar, no ponto de partida, uma cultura profissional comum e partilhada entre os pares. Esse é o aspecto que buscamos explorar aqui. Sobre as relações e as distinções entre os termos profissão e métier, ver Dubar e Tripier (2005)DUBAR, C.; TRIPIER, P. Sociologie des professions. 2. ed. Paris: Armand Colin, 2005., especialmente a introdução do livro (p. 1-11).
  • 2
    Na filosofia e nas ciências, a atividade tem uma longa história e não pertence exclusivamente a nenhuma disciplina. Sob a denominação inicial de tätigkeit, ela se apresenta, com diferentes conteúdos, em Kant, Hegel e Marx, como também está na base da psicologia histórico-cultural, de abordagens importantes na sociologia do trabalho, na psicologia do trabalho e no cerne da ergonomia francesa, também conhecida como ergonomia da atividade. A tätigkeit, conforme o termo em alemão, tem a ver com um fazer, um instituir, o que permite pensar a industriosidade dos atos humanos, a transformação que estes instituem no mundo e, em retorno, a transformação dos próprios seres humanos. Para uma breve introdução à problemática que cerca a noção de atividade, ver Schwartz (2005)SCHWARTZ, Y. Actividade. Revista Laboreal, v. 1, n. 1, p. 63-64, 2005. https://doi.org/10.4000/laboreal.14272
    https://doi.org/10.4000/laboreal.14272...
    .
  • 3
    Nossa pesquisa fundamenta-se em perspectivas teóricas que têm a problemática da atividade como questão central. Em Tardif (2002)TARDIF, M. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes, 2002., no entanto, é a ação que comporta o caractere sobre o qual ele se interroga na interlocução com os professores. Como demonstraram Cunha e Alves (2012)CUNHA, D. M.; ALVES, W. F. Da atividade humana entre paideia e politeia: saberes, valores e trabalho docente. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 28, n. 2, p. 17-34, jun. 2012. https://doi.org/10.1590/S0102-46982012000200002
    https://doi.org/10.1590/S0102-4698201200...
    , tal noção de ação, cuja orientação de fundo está na corrente epistemológica do pragmatismo, não consegue apreender a dinâmica nem a complexidade das situações de trabalho. Todavia, reconhecer tal limite não implica subestimar as contribuições do autor, mas reconhecer criticamente diferenças entre matrizes teóricas. Contra qualquer dogmatismo, seguimos de perto uma lição importante da epistemologia e da história das ciências, sobretudo tratando-se de ciências sociais: a cumulatividade do conhecimento não exige a unificação dos referenciais (REVEL, 2009REVEL, J.-F. Le pied du diable: sur les formes de cumulativité en histoire. In: WALLISER, B. (org.). La cumulativité du savoir en sciences sociales. Paris: Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, 2009. p. 85-111.; TANGUY, 2012TANGUY, L. A sociologia: ciência e ofício. Educação & Sociedade, Campinas, v. 33, n. 118, p. 33-46, jan.-mar. 2012. https://doi.org/10.1590/S0101-73302012000100003
    https://doi.org/10.1590/S0101-7330201200...
    ).
  • 4
    Na abertura do IV Congresso da Sociedade Internacional de Ergologia, realizado em agosto de 2018 em Brasília (DF), Schwartz definiu a atividade humana de trabalho como uma “manifestação da vida e de valores sem dimensão”. Valores sem dimensão, porque não residem sob nenhuma métrica (saúde, compromissos éticos, laços partilhados com os colegas de profissão etc.) e que para serem compreendidos exigem certa “sensibilidade ergológica” por parte daqueles que analisam, pensam e formam para o trabalho. Inspirados em Schwartz, podemos dizer que o exercício da docência exige a constituição de uma “sensibilidade pedagógica”.
  • 5
    Denominação dada na Antiguidade pelos gregos à capacidade de escolher, decidir e agir no momento certo, capacidade de se exercer uma “escolha pertinente de ação diante da conjunção localmente particular e inédita” (SCHWARTZ, 1998SCHWARTZ, Y. Os ingredientes da competência: um exercício necessário para uma questão insolúvel. Educação & Sociedade, Campinas, v. 19, n. 65, p. 101-140, dez. 1998. https://doi.org/10.1590/S0101-73301998000400004
    https://doi.org/10.1590/S0101-7330199800...
    , p. 109).
  • 6
    O conceito de real da atividade é desenvolvido no âmbito da psicologia do trabalho por Yves Clot (2008)CLOT, Y. A função psicológica do trabalho. Petrópolis: Vozes, 2008.. Com base nos conceitos fundadores da ergonomia, ele retém a diferença entre tarefa (esfera do trabalho prescrito) e atividade (esfera do trabalho real). Nesse esquema conceitual a atividade corresponde ao conjunto do que foi realizado pelo trabalhador em situações. O autor acrescenta ao esquema um aspecto importante: a constatação de que o que não foi realizado também deve ser considerado. Isso implica que as atividades suspensas, contrariadas, impedidas também contam e possuem um volume que guarda grande relevância, tanto para o desenvolvimento da atividade como para a saúde do sujeito. Isso ele denomina de real da atividade. A esse respeito, ver Clot (2008)CLOT, Y. A função psicológica do trabalho. Petrópolis: Vozes, 2008..
  • 7
    A questão da experiência dos homens e mulheres no trabalho seja talvez uma das mais centrais e, ao mesmo tempo, uma das mais mal colocadas nas ciências humanas e sociais, visto que encontrar a experiência das forças produtivas, conforme os termos de Schwartz (1988)SCHWARTZ, Y. Expérience et connaissance du travail. Paris: Éditions Sociales, 1988., é tanto um problema como uma exigência para aqueles que desejam se pronunciar sobre o trabalho. Mesmo perspectivas na qual o trabalho ocupa um lugar cardinal, como o marxismo, tiveram, e têm, dificuldade em lidar com o assunto, contudo é no seio dessa mesma tradição que, não sem uma crítica interna aos próprios pares, vão ser produzidas importantes análises e reflexões sobre a matéria, notadamente com o historiador inglês Edward P. Thompson e o médico e psicólogo do trabalho italiano Ivar Oddone, infelizmente autores menos lidos do que deveriam. A respeito desses aspectos aqui tratados, ver Oddone, Re e Briante (1981)ODDONE, I.; RE, A.; BRIANTE, G. Redécouvrir l’experience ouvrière: vers une autre psycologie du travail? Paris: Éditions Sociales, 1981. e Thompson (1981)THOMPSON, E. P. A miséria da teoria. Rio de Janeiro: Zahar, 1981..
  • 8
    Em um profundo estudo sobre o que implica agir no trabalho, Michel Jouanneaux observa que se pode propriamente falar em uma “inteligência incorporada nos atos” (JOUANNEAUX, 2011JOUANNEAUX, M. De l’agir au travail. Toulouse: Octarès, 2011., p. 268), pois, teoria “integrada em nossas percepções e afetos, ela faz parte de nosso corpo, ela é incorporada. Ela se ramifica no menor de nossos gestos, em uma familiaridade com os objetos de nossas ações” (JOUANNEAUX, 2011JOUANNEAUX, M. De l’agir au travail. Toulouse: Octarès, 2011., p. 84, grifo do original).
  • 9
    É pertinente observar que não é pela atividade, mas pela ação, que frequentemente se apresenta a porta de entrada privilegiada nas pesquisas em educação sobre os saberes docentes, como é o caso de autores importantes como Shulman (1987)SHULMAN, L. Knowledge and teaching: foundations of the new reform. Harvard Educational Review, v. 57, n. 1, p. 1-23, 1987. https://doi.org/10.17763/haer.57.1.j463w79r56455411
    https://doi.org/10.17763/haer.57.1.j463w...
    , Tardif (2002)TARDIF, M. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes, 2002. e Gauthier et al. (2013)GAUTHIER, C. et al. Por uma teoria da pedagogia: pesquisas contemporâneas sobre o saber docente. 3. ed. Ijuí: Editora Unijuí, 2013.. Pela via da ação, permanece-se preso à dicotomia entre o dado e o criado, o interno e o externo, o fazer e o pensar, a teoria e a prática etc. Isso ajuda a compreender as ambiguidades de Tardif (2002)TARDIF, M. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis: Vozes, 2002. em relação ao conhecimento teórico. Uma análise resumida dessa questão pode ser vista em Cunha e Alves (2012)CUNHA, D. M.; ALVES, W. F. Da atividade humana entre paideia e politeia: saberes, valores e trabalho docente. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 28, n. 2, p. 17-34, jun. 2012. https://doi.org/10.1590/S0102-46982012000200002
    https://doi.org/10.1590/S0102-4698201200...
    . Para uma leitura aprofundada, ver Béguin e Clot (2004)BÉGUIN, P.; CLOT, Y. L’action située dans le développement de l’activité. Revue Activités, v. 1, n. 2, p. 27-49, 2004. https://doi.org/10.4000/activites.1237
    https://doi.org/10.4000/activites.1237...
    .
  • 10
    A respeito dos grupos de encontro do trabalho, perspectiva desenvolvida no âmbito da abordagem ergológica do trabalho por Schwartz e seus colaboradores, ver Mailliot e Durrive (2016)MAILLIOT, S.; DURRIVE, L. A ergologia e a produção de saberes sobre os ofícios. In: SCHWARTZ, Y.; DURRIVE, L. (org.). Trabalho e ergologia: diálogos sobre a atividade humana. Belo Horizonte: Fabrebactum, 2016. p. 151-240.; a respeito da perspectiva metodológica no âmbito da clínica do trabalho, abordagem no âmbito da psicologia do trabalho por Clot, ver Roger (2013)ROGER, J.-L. Metodologia e métodos de análise em clínica da atividade. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, v. 16, n. esp., p. 111-120, 2013..

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Editora de seção: Sandra M. Zákia L. Sousa https://orcid.org/0000-0001-5171-8301

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    19 Jul 2022
  • Aceito
    22 Maio 2023
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