Acessibilidade / Reportar erro

BLINDAR-RESISTIR: EDUCAÇÃO DAS MOÇAS NA FACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA 1879-1949

SHIELDING-RESISTING: EDUCATION OF YOUNG WOMEN AT THE FACULTY OF MEDICINE OF BAHIA 1879-1949

BLINDAR-RESISTIR: EDUCACIÓN DE NIÑAS EN LA FACULTAD DE MEDICINA DE BAHÍA 1879-1949

RESUMO

Este artigo tem como foco de análise o livro da professora e pesquisadora Iole Macedo Vanin, doutora em História pela Universidade Federal da Bahia, publicado em 2015. O objetivo é resgatar As Damas de Branco: Médicas, Odontólogas e Farmacêuticas como uma importante obra historiográfica sobre a passagem de cerca de quatrocentas estudantes pela Faculdade de Medicina da Bahia, a partir da conhecida reforma do ensino de Leôncio de Carvalho, de 1879. A resenha visa apresentar a obra da pesquisadora ligada ao Programa de Pós-graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo (PPGNEIM) e ao Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM), acompanhar as reflexões teórico-metodológicas propostas e os caminhos que permitiram à autora desvendar os processos de blindagem e resistência produzidos por esse grupo de mulheres nos primeiros setenta anos do exercício do direito de acesso ao Ensino Superior. Registrando-se hiatos quanto à presença de mulheres negras nesse grupo da biomedicina baiana.

Palavras-chave
Faculdade de Medicina da Bahia; Educação de mulheres; Táticas de resistência

ABSTRACT

This paper focuses on the analysis of the book of the professor and researcher Iole Macedo Vanin, PhD in History, from the Federal University of Bahia, published in 2015. The objective is to rescue the book As Damas de Branco: Médicas, Odontólogas e Farmacêuticas (The Ladies in White: Doctors, Dentists, and Pharmacists) as an important historiographical work on the passage of a group of about 400 women through the Faculty of Medicine of Bahia thanks to the well-known Leôncio de Carvalho Education Reform, in the year of 1879, which allowed women to enter Higher Education. The review aims to present the work of the researcher linked to the Graduate Program in Interdisciplinary Studies on Women, Gender and Feminism (from the Portuguese, Programa de Pós-graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo; PPGNEIM) and to the Center for Interdisciplinary Studies on Women (from the Portuguese, Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher; NEIM), to follow the theoretical and methodological reflections proposed by the author, as well as the paths that allowed her to unveil the processes of shielding and resistance produced by this group of women during the first 70 years of the exercise of the right of accessing Higher Education. In this study, the gaps found regarding the presence of analysis and data on black women in this group of Bahian biomedicine were noted.

Keywords
Faculdade de Medicina da Bahia; Women’s education; Resistance tatics

RESUMEN

Este articulo focaliza el análisis del libro de la profesora e investigadora Iole Macedo Vanin, doctora en Historia por la Universidad Federal de la Bahía, publicado en 2015. El objetivo es rescatar As Damas de Branco: Médicas, Odontólogas e Farmacêuticas (Las Damas de Blanco: Médicas, Dentistas y Farmacéuticas) como un importante trabajo historiográfico sobre el paso de un grupo de cerca de 400 mujeres por la Facultad de Medicina de la Bahía, gracias a la conocida reforma de la enseñanza de Leôncio de Carvalho, en el año de 1879, que permitió a las mujeres ingresar a la Educación Superior. La revisión tiene como objetivo presentar el trabajo de la investigadora vinculada al Programa de Posgrado en Estudios Interdisciplinarios sobre Mujeres, Género y Feminismo (PPGNEIM) y al Centro de Estudios Interdisciplinarios de la Mujer (NEIM), seguir las reflexiones teórico-metodológicas propuestas por la autora y los caminos que le permitieron develar los procesos de blindaje y resistencia producido por este grupo de mujeres, en los primeros 70 años del ejercicio del derecho de acceso a la Educación Superior. En este estudio, se registraron las brechas encontradas en cuanto a la presencia de mujeres negras en este grupo de la biomedicina bahiana.

Palabras clave
Faculdade de Medicina da Bahia; Educácion de la mujer; Tácticas de resistencia

A obra As Damas de Branco: Médicas, Odontólogas e Farmacêuticas possui 228 páginas e está dividida em nove capítulos distribuídos em duas seções nas quais a autora cumpre bem seu objetivo de realizar amplo diálogo crítico sobre a passagem de 412 mulheres médicas, odontólogas e farmacêuticas, graduadas e/ou diplomadas, no período que se estende entre 1879 e 1949 na então Faculdade de Medicina da Bahia (FMB).1 1 Entre as diferentes denominações recebidas ao longo da existência da atual Faculdade de Medicina da Bahia da Universidade Federal da Bahia (FAMEB), incluem-se Faculdade de Medicina da Bahia (FMB), nos períodos de 1832-1891 e 1901-1946; Faculdade de Medicina e Farmácia da Bahia (1891-1901); e Faculdade de Medicina da Universidade da Bahia (1946-1965), coincidentes com o período de interesse da pesquisa desenvolvida por Vanin (FACULDADE..., s. d.). Vanin (2015)VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., em seu estudo, parte de levantamentos documentais, desencadeados a partir de abordagem qualitativa e de investimentos que se direcionam a auscultar o que dizem registros memoriais da faculdade em questão. Utiliza, entre outras fontes, milhares de anúncios de serviços profissionais publicados em jornais de época, consultados nos acervos da Biblioteca Pública do Estado da Bahia e no Arquivo Público do Estado, a partir dos quais constrói uma refinada leitura da perspectiva de gênero, raça/etnia, classe e geração dos primeiros setenta anos do direito feminino à formação superior, a partir da chamada reforma de Leôncio de Carvalho, de 1879.

A modéstia que sustenta como pesquisadora, traduzida no que denominou “ínfimas filigranas” (VANIN, 2015VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., p. 22), captadas na investigação sobre a trajetória dessas profissionais, aparece com nitidez quando, em uma nota de rodapé aparentemente como outra qualquer, à página 179, adverte-nos sobre o esforço empregado: “Ao todo foram consultados 159.428 (cento e cinquenta e nove mil, quatrocentos e vinte e oito) anúncios entre as décadas de 1870 e 1940” (VANIN, 2015VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p.). O resultado desse investimento de cerca de dez anos pela pesquisadora foi legar à historiografia baiana e brasileira obra indispensável para a compreensão da História da Educação Superior de mulheres que ingressaram nos cursos biomédicos da FMB, garantidas pelo Decreto n. 7.247, de 19 de abril de 1879, bem como suas representações para os estudos feministas. Uma obra atual, inédita em muitos de seus aspectos, de importância para historiadores/as e pesquisadores/as interessados/as no debate relativo ao caráter androcêntrico do acesso de mulheres ao Ensino Superior.

A narrativa de As Damas de Branco tem o poder de envolver o/a leitor/a, mas, não só. É uma obra diferenciada, interessada em desvendar as complexas relações que se estabelecem entre um grupo de pouco mais de quatro centenas de mulheres brancas, na sua quase totalidade, de classes elitizadas, que se deslocaram de distintos estados brasileiros e até do exterior para realizar um desejo, um capricho familiar, um sonho pessoal, quem sabe. Um desafio que, em alguns casos, obrigou-as a assistir às aulas com a presença do próprio pai, como o da estudante Rita Lobato, que participava das aulas com o pai à sua espera na secretaria do curso de Medicina; outras estudantes o faziam na companhia de irmãos, primos ou irmãs mais velhas.

O primeiro dos nove capítulos é dedicado à metodologia. Nas primeiras cem páginas, a autora busca dimensionar o tamanho da tarefa, dado o esforço em demonstrar que historicamente as mulheres estiveram incorporadas desde a Antiguidade Clássica em atividades privadas e do cuidar, nas quais se incluía a saúde, oportunizando-as também a agirem no espaço público. Todavia, paulatinamente, a partir da Idade Média, foram sendo expulsas em seu conjunto da produção de saberes nos espaços formais e informais ligados à saúde, ao corpo feminino e à cura. Como indica na epígrafe que abre a Parte I, de uma autora desconhecida e trazida por Schiebinger, a exclusão das mulheres pelos homens da participação nas ciências e nos empregos esteve baseada na concepção da “[...] incapacidade natural delas”. No entanto, para essa citada autora, não haveria “[...] nada mais ilusório” (SCHIEBINGER, 2004 apud VANIN, 2015VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., p. 25).

A denúncia oferecida nesses primeiros capítulos visa tensionar as bases que sustentam teses patriarcais sobre a presença das mulheres no espaço público e que as distanciam efetivamente das universidades. Em “As mulheres e os espaços de produção de conhecimento”, seguido por “Discursos de ‘legitimidade’ para a exclusão feminina das ciências”, segundo e terceiro capítulos, respectivamente, é discutida a invisibilidade das mulheres como consequência da hegemonia dos modelos instituídos pela escolástica nas universidades a partir do século XII, bem como do avanço da ciência moderna nos séculos subsequentes, que teria negado às mulheres a condição de sujeito do conhecimento, quando esse espaço estabelece-se, a partir dos séculos XVII e XVIII, como uma das formas masculinas de ascensão ao poder, estabelecendo-se a partir daí o processo de subordinação das mulheres na sociedade.

A autora argumenta, assim, no segundo capítulo, “As mulheres e os espaços de produção do conhecimento”, que a invisibilidade das mulheres no seio da própria FMB no período pós-reforma de Carlos Leôncio de Carvalho (1879) é tida como reflexo do método escolástico nas universidades, que continuaram influenciando ainda no século XIX os valores machistas e sexistas e a visão sobre o lugar das mulheres na sociedade, ao mesmo tempo que desvalorizam os saberes e práticas de cura ancestrais, ainda presentes. Os modos de atuação estariam ligados, conforme observa Vanin (2015, p. 27)VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., à disputa dos homens pelo meio nascente de ascensão ao poder: o conhecimento formal encontrado nas universidades.

Esses são dois capítulos intensos, nos quais a autora realiza importante esforço para desvelar as origens de um sistema patriarcal perverso ao longo da história, desde a Grécia Antiga, atravessando a Idade Média e alcançando seu ápice entre os séculos XVII e XVIII, quando as mulheres foram gradativamente sendo expulsas do espaço público e sendo confinadas aos espaços da casa. A autora sustenta que, para além da visão escolástica, defendida por instituições – universidades, sociedades científicas e academias –, a questão maior que regeria o processo de exclusão feminina encontra explicação nas teses do corpo feminino como expressão da biopolítica (FOUCAULT, 1985a; 1985; HARDT; NEGRI, 2001 apud VANIN, 2015VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., p. 47-48).

Nesse sentido, “[...] o feminino não é somente força de trabalho e possibilidade de existência, é, também, o local onde a reprodução de gerações futuras torna-se realidade” (VANIN, 2015VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., p. 47-48). Sustenta, a partir de Mitchell (1967 apud VANIN, 2015VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., p. 51), assim, a complexidade da dinâmica dos processos que engendram a sociedade patriarcal: com o patriarcado sendo “um de seus pilares”, exatamente por não ter uma estrutura nem fixa nem universal e por ser construído a partir das bases sociais, políticas e econômicas encontradas em cada sociedade onde se presentificou .

Nesses dois primeiros capítulos, a autora nos lega um importante debate sobre a crescente apropriação do conhecimento historicamente detido pelas mulheres sobre os processos de cura e do nascer, exatamente pelo registro de que elas chegaram a frequentar universidades e a deter conhecimento formal como médicas. Todavia, foram paulatinamente sendo excluídas por visões sustentadas pela escolástica a partir do século XIII e por processos que levaram muitas delas à fogueira, especialmente aquelas, a exemplo de parteiras e curandeiras, cujas práticas não eram legalizadas.

Um argumento importante trazido pela autora é que o afastamento de mulheres dos espaços de poder, especialmente construídos nas universidades, ia ao encontro da ideologia escolástica a partir da qual deter o conhecimento científico como médicas, matemáticas, entre outras profissões consideradas masculinas, significava um tipo de desvio de funções femininas no espaço doméstico, como mães e esposas, do mesmo modo que esse caminho profissional significaria estar em pé de igualdade no acesso a cargos da burocracia estatal, em concorrência com os homens. A estratégia de expulsá-las dos espaços de saber e de confiná-las no espaço privado resguardaria desse modo o espaço e as funções públicos supostamente destinados aos homens.

A função reprodutora e socializadora da mulher na sociedade é tida assim como a chave do controle por parte dos homens e, em substituição aos saberes de médicas, curandeiras e parteiras, promove-se o “desempoderamento” (MITCHELL, 1967 apud VANIN, 2015VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., p. 52) da mulher, em favor dos homens – condição que ocorre quando as mulheres são expulsas das universidades e perdem o acesso ao conhecimento sobre os próprios corpo e sexualidade, que passa “a ser produzido e aplicado por outros que não elas” (VANIN, 2015VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., p. 52).

Essa ideia é reforçada pela autora a partir de Varela (1996 apud VANIN, 2015VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., p. 42), quando define o papel do pensamento escolástico/teológico na sustentação da função principal da mulher como reprodutora da espécie, significando, de uma só vez, “[...] a submissão da mulher ao marido, a instituição da domesticidade e da família monogâmica que se converteu nos séculos XVI e XVII no fundamento da sociedade e sua exclusão [da mulher] dos altos saberes do espírito ” (VARELA, 1996 apud VANIN, p. 42, grifos da autora).

No terceiro capítulo, ao tratar dos “Discursos de legitimidade” para a exclusão feminina, Vanin (2015, p. 55-69)VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p. discute, da perspectiva do contexto da Reforma e da Contrarreforma, o debate sobre a educação feminina, que ganha evidência entre o Renascimento e a época Moderna. A justificativa para essa temática é encontrada na função materna, segundo a qual haveria, na futura mãe, potencial para a educação de sua prole, cabendo às mulheres o papel de fortalecer valores religiosos e morais por meio da educação.

Um segundo debate se desenvolve entre os séculos XIV e XVIII, denominado “querelas das mulheres” (VANIN, 2015VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., p. 56), no qual pela primeira vez mulheres com instrução se levantaram contra o debate essencialista que postulava a inferioridade feminina com base na diferença sexual, concebida como “natural e imutável” (VANIN, 2015VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., p. 56) e confrontada com a ideia de que a diferença de gênero é produto de construção cultural e social, conforme argumentos trazidos por Vallegos et al. (2003 apud VANIN, 2015VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., p. 56).

Esse foi um período de justificativas filosóficas e científicas trazidas por pensadores como Francis Bacon (1561-1626) e Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e apoiadas em ideias encontradas em Galeno de Pérgamo – filósofo e médico romano que viveu entre os séculos II e III, entre 129 e 217 – em torno da constituição sexual feminina. As teses desses pensadores confluíram para identificar na mulher um tipo de natureza contrastante àquela requerida pelo exercício da produção científica, cujo princípio da razão se opunha, pelo seu vigor, à suposta delicadeza passiva das mulheres.

Rousseau compreendia que à mulher faltava a força intelectual necessária que a ciência requeria. Teria sofrido críticas por sua obra Emilio ao propor ideias em defesa da igualdade entre os sexos, mas, ao contrário, essas teriam ido de encontro ao chamado Feminismo da Diferença, com denúncias oferecidas pela ativista inglesa, Mary Woolstonecraft (1759-1797), segundo a qual a obra teria servido para promover hierarquias de gênero.

Nesse capítulo, Vanin (2015, p. 58-59)VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p. vai delineando uma série de teorias construídas a partir da idade clássica, entre os séculos IV a.C e XVII, quando se erigiu a imagem das mulheres como seres menos perfeitos, na perspectiva de Laquer (2001, p. 42). Como exemplos desse processo, a autora cita as ideias de Galeno sobre a mulher como “um homem imperfeito”, cujo pênis não teria se desenvolvido (VANIN, 2015VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., p. 58), teoria que entra em desuso entre os séculos XVI e XVII, com a descoberta da função feminina na reprodução da espécie e dos iguais papéis desempenhados por cada sexo, inclusive pela mulher – como aponta Schiebinger (2004 apud VANIN, 2015VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., p. 59), com homens e mulheres contribuindo em nível de igualdade para a geração de um novo ser.

O debate sobre as relações hierarquizadas de poder transforma-se no século XIX para incorporar as visões e os discursos sobre gênero/raça, definindo-se o modelo de “homem perfeito” e “mulher perfeita”, identificado por Schiebinger (2004 apud VANIN, 2015VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., p. 61), com a ideia de que homens e mulheres se complementariam na tarefa de dar continuidade à humanidade (SCHIEBINGER, 2004, p. 300 apud VANIN, 2015VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., p. 61). Essa concepção promove o nascimento da Teoria da Complementaridade Sexual, segundo a qual a mulher, em sua função sexual, seria o par complementar do homem, própria ao espaço doméstico.

Vanin (2015) discute o fato de que esses modelos foram marcados por avanços e retrocessos para além do século XVIII, com destaque para a Teoria da Complementaridade Sexual, que, em associação com teorias anteriores – a Teoria darwinista da Evolução da Espécie e a Teoria do Óvulo –, levariam assim à exclusão permanente das mulheres da ciência. Vanin (2015) segue demonstrando as qualificações encontradas nos homens – capacidade intelectual, força e agressividade, lembradas por Sedeño C. (2001, p. 234 apud VANIN, p. 65) –, que embasaram concepções da superioridade masculina versus inferioridade feminina. Todo esse arrazoado sustentava a ideia do homem próprio à ação e ao espaço público, enquanto a mulher seria adequada ao espaço doméstico, completando-se entre os séculos XVIII e XIX os parâmetros que tornavam o homem o modelo ideal ao exercício da atividade científica.

No entanto, a crítica feminista Ruth Hubbard via nesse discurso produzido, especialmente, por homens brancos, de elite, educados em universidades, inclusive sendo maioria em áreas como a ginecologia e a obstetrícia no século XIX, um perfil de profissionais que se utilizaram de argumentos para “[...] desqualificar moças de sua própria raça e classe, que poderiam competir com eles por educação e status profissional” (1993 apud VANIN, 2015VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., p. 66-67).

No quarto capítulo, “Sufragismo e educação superior na Bahia”, são abordadas as estratégias e táticas adotadas por essas mulheres que as colocaram em posições e as levaram a serem “ora aceitas, ora transgressoras, ou ainda, ora bem comportadas” (VANIN, 2015VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., p. 97). Nesse capítulo, são abordados o ingresso dessas mulheres nos cursos superiores, de forma tímida no final do período oitocentista e o papel do movimento feminista. Nesse sentido, são evidenciadas as estratégias múltiplas utilizadas por mulheres médicas, que as tornaram, podemos dizer, de alguma forma insubmissas: a autora encontra táticas qualificadoras das mulheres “entre ‘aceitas’ e ‘transgressoras’ e, dentre elas, ‘as bem-comportadas’” (VANIN, 2015VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., p. 97), que teriam atuado para reverter uma possível interpretação de suas ações e seus discursos, de negativos em positivos.

Defende assim a ideia, que encontra no trabalho de Leite, “de que a submissão das baianas é um mito” (1997 apud VANIN, 2015VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., p. 97), uma vez que, para essa autora, a historiografia demonstra que as mulheres desde o Brasil colônia foram capazes de criar estratégias e inverter normas e valores para ter seus interesses considerados. A partir de seus achados sobre a atuação das “Damas de Branco” da biomedicina baiana, Iole Vanin defende o argumento de que essas mulheres lutaram de forma individual ou associadas a entidades ligadas aos direitos civis e políticos e se utilizaram de seu cabedal social para agir no espaço público, atuando como médicas, odontólogas e farmacêuticas “para ocuparem e atuarem em território que lhes era negado” (VANIN, 2015VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p. p. 97).

No rebuscado trabalho de levantamento de dados, Vanin (2015, p. 71-99)VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., a partir de jornais de época, vai nos dando conta das transformações sociais e culturais que ocorreram no final do período oitocentista em relação à educação superior de mulheres, não só no Brasil, mas em países da Europa e nos Estados Unidos. Periódicos baianos como O Monitor, A Bahia, Gazeta Médica da Bahia, Jornal Cidade do Salvador, Diário de Notícias, Jornal A Tarde e A Noite são utilizados como importantes fontes para contextualizar as transformações que passaram a se dar no acesso feminino às universidades, no contexto de lutas feministas em circulação tanto na Europa como nos Estados Unidos a partir do século XIX.

Na coluna “Educação”, em O Monitor, de 21 de junho de 1879, é noticiada a implantação de “[...] um collegio [sic] destinado às mulheres que desejarem seguir os cursos da Universidade” (O MONITOR, 1879, p. 72 apud VANIN, 2015VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., p.74). Em março de 1901, foi a vez da Gazeta Médica da Bahia relatar, em artigo intitulado “As Mulheres médicas” (GAZETA MÉDICA DA BAHIA, n. 9, março de 1901, p. 47 apud VANIN, 2015VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., p. 74), a partir de dados publicados pela revista francesa Illustration do mês de fevereiro daquele ano, o crescimento no número de mulheres em várias universidades da Europa e dos Estados Unidos: na França, as estudantes inscritas em cursos de medicina e farmácia já passavam de duzentas e entre os anos de 1898-1899 “só na Faculdade de Paris 22 mulheres receberam o gráo [sic] de doutoras”, informa o periódico.

A Gazeta Médica segue informando que: “Fora as 77 mulheres doutoras exercendo em Paris conta-se 2 em Bordeaux e em Marsella, 1 em Lyon, em Nice, em Cannes, em Vichy, em Lille, em Rennes, em Grenoble e em Angers; 1 na Algeria e 1 no Tonkin” (GAZETA MÉDICA DA BAHIA, 1901, p. 472 apud VANIN, 2015VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., p. 75).

A Gazeta informa, ainda, que: “No estrangeiro a América foi o primeiro paiz [sic] que concedeu o título de doutora às mulheres; Miss Blackwell fez com sucesso seus exames em Boston, em 1847”. Ainda conforme o artigo: “É também a América que tem mais mulheres medicas [sic]; só em Chicago existem 300, depois vem a Rússia e em terceiro lugar, a Inglaterra, com 396 mulheres doutoras, sendo que 85 exercem em Londres, outras tantas nas Índias e 15 na China. Até a Abissynia [sic] conta-se uma mulher doutora, porém é uma Suissa [sic], Melle Zurcher” (GAZETA MÉDICA DA BAHIA, 1901, p. 473 apud VANIN, 2015VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., p. 74).

É dessa forma que constatamos a riqueza do trabalho extraído pela autora, por meio de suas fontes historiográficas, quando vai nos dando conta do crescente número de mulheres que superaram barreiras para o ingresso em carreiras biomédicas em muitas partes do mundo. Essa pauta, relativa ao ingresso de mulheres nas universidades, foi ponto nevrálgico do movimento feminista na Europa do final do século XIX ao início do século XX.

A lentidão com que surgiram mulheres em profissões consideradas masculinas, como engenheiras, legistas, médicas e dentistas, em artigo publicado em 11 de fevereiro de 1899 pelo Jornal Cidade do Salvador, refletiria assim as lutas das profissionais biomédicas, que, como vimos anteriormente, encontraram resistências na forma de “reações contrárias e até violentas”, como exprime Vanin (2015, p. 78)VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., demandando, como visto, estratégias e táticas para terem seus direitos considerados.

A autora reconhece a dificuldade de essas mulheres deixarem para trás suas posições de prestígio social, razão pela qual não necessariamente criaram com suas estratégias e táticas mudanças estruturais nas relações de poder; ao contrário, teriam atuado para manter intocados o status quo e a moral vigente. A pesquisadora conclui que a ideologia que via a mulher como ser “frágil, honrado, construído para a maternidade e a família”, não só não foi questionada, mas foi por elas, as mulheres da biomedicina baiana, utilizada de acordo com seus interesses, tenham sido elas ligadas ou não ao movimento feminista (VANIN, 2015VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., p. 99).

O mérito aí identificado por Vanin, a partir da teoria sustentada por autores como Darnton (1986) e Thompson (1998) (apud VANIN, 2015VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., p. 98), teria sido a capacidade dessas mulheres de, em um cenário desfavorável, conseguir realizar “uma ‘virada de mesa’ na perspectiva de gênero no interior de seu grupo social, econômico e cultural”, sem necessariamente subverter a sociedade (VANIN, 2015VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., p. 98). Sem também necessariamente buscar romper com o mundo masculino encontrado nos cursos biomédicos, as estratégias dessas mulheres consistiram em administrar a condição de submissão imposta pela realidade patriarcal para ter seus interesses alcançados.

É destacado ainda pela autora, no capítulo, sobre “Sufragismo e educação superior na Bahia”, o papel de liderança exercido por algumas dessas mulheres em prol de igualdade pelo direito à educação. Menciona-se o papel desempenhado pelo jornal A Mulher, editado em 1881, como parte do esforço das brasileiras Maria Augusta e Josefa Águeda, estudantes de Medicina nos Estados Unidos, editoras desse periódico com circulação no Recife (VANIN, 2015VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., p. 82). E entre outras, menciona-se a liderança da médica Edith Gama e Abreu, à frente da Federação Baiana pelo Progresso Feminino, fundada em 1931, que, como ramo da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, trazia como pauta a elevação do nível de instrução feminina. Conforme Vanin (2015, p. 84)VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., o acesso à educação superior era visto pela entidade como condição para a “liberação feminina”.

Esse capítulo destaca, ainda, o combate ao processo de resistência à entrada e permanência das “Damas de Branco” na FMB, o qual foi sendo fortalecido pelo movimento feminista. As profissionais liberais da biomedicina baiana e outras colegas, advogadas, biólogas, engenheiras, que, para Vanin “[...] por certo, a exemplo de Bertha Lutz, enfrentaram dificuldades e resistência para se formarem e atuarem [sic]” (2015, p. 86), reúnem-se em torno da agenda da educação no interior de outra entidade, a União Universitária Feminista (UUF), fundada em janeiro de 1929. Apesar da breve existência, até pelo menos dezembro de 1931, registrada pela autora, essa entidade, que tinha à frente, entre outras, a médica baiana Francisca Praguer Fróes, utilizou-se de seu prestígio para promover a educação superior das “moças” e seu ingresso no mercado de trabalho.

O capítulo registra a constituição de entidades feministas e o conjunto de ações nas quais estiveram envolvidas como explicação para o crescimento da procura de cursos biomédicos da FMB a partir dos anos 1920. É importante destacar a rede profissional constituída pela Federação Baiana pelo Progresso Feminino, com existência entre os anos de 1931 e 1948; a existência da União Universitária Brasileira (UUB), mesmo breve, foi destacada nos periódicos baianos, dada a presença de médicas de renome, como a própria Francisca Praguer Fróes, Perouse Pontes e Lily Lages.

Vanin (2015)VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p. registra o artigo escrito pela deputada baiana Maria Luiza Bittencourt, publicado no Jornal Diário de Notícias, dois meses após a criação da Federação Baiana, no qual defende a ideia de que o feminismo não configuraria “perigo” para as relações de gênero ora estabelecidas. Para a autora, ao contrário, as ideias feministas “serviriam como um apoio/reforço para que as mulheres exercessem suas funções no lar e na sociedade” (VANIN, 2015VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., p. 96). Sustenta, entretanto, que as 412 profissionais médicas, odontólogas e farmacêuticas sobre as quais se debruçaram seus estudos “construíram dentro de uma sociedade patriarcal possibilidades de ação, no sentido de concretizar seus anseios, afetos, desejos políticos, culturais e profissionais”.

A segunda parte do livro é desenvolvida a partir do quinto capítulo, parecendo a tese empregada a partir de Vallejos et al. (2003) no sexto capítulo, “A presença feminina na Faculdade de Medicina da Bahia”, definir bem o complexo universo compreensivo da pesquisa na qual Vanin esteve envolvida: de que a exclusão das mulheres de instituições educativas responsáveis pela formação e acesso ao mercado de trabalho, como a FMB, “não se efetua mais pela limitação de seu ingresso, mas pela transferência a seu interior” (2015, p. 125). É essa compreensão que vai reger o trabalho desenvolvido pela autora na segunda parte, encarregada de demonstrar, nas cem páginas restantes, o cenário e as condições de formação que alcançaram as mulheres antes e durante o ingresso nos cursos das ciências biomédicas da FMB. A partir de um vigoroso trabalho de levantamento de dados historiográficos sobre a formação e a atuação das “moças” no mercado de trabalho, registram-se, no sétimo capítulo, “As personagens e seus traços”; no oitavo, “As relações e formação no interior da faculdade”; e, por fim, no nono, “As estratégias profissionais” durante a atuação no mercado de trabalho como médicas, odontólogas e farmacêuticas.

Os termos “cuidados”, “perigos”, “moças” (VANIN, p. 159), expressos pela autora, buscam traduzir o clima e o significado de mulheres brancas, provenientes das elites brasileiras, originárias, em sua maior parte, de estados nordestinos adentrarem cursos biomédicos na Bahia. Entre os casos revelados estão o da médica baiana Francisca Praguer Fróes, cujo irmão torna-se também estudante do curso de Medicina, a pedido do pai, para acompanhá-la durante o curso; e, da mesma forma, da médica Rita Lobato Velho, que assistia às aulas enquanto seu pai a esperava na secretaria, como observado anteriormente. Vanin registra: “Durante todo o período consultado acerca da presença dessas moças nos referidos cursos, ficou patente que não se encontravam sozinhas; principalmente as que vinham de outros estados” (2015, p. 160). A própria Lei Leôncio de Carvalho já previa a separação explícita entre os sexos: “haverá nas aulas logares [sic] separados” (GAZETA MÉDICA DA BAHIA, 1879, p. 214 apud VANIN, 2015VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., p. 161).

Sobre Francisca Praguer Fróes, é destacado o capital intelectual obtido ao longo da formação em vários espaços formais e informais, especialmente por sua atuação como médica parteira no Hospital Santa Izabel e sua participação em discussões e exposições científicas promovidas pela Sociedade Científica de Medicina e Cirurgia da Bahia. A autora ressalta a “capacidade intelectual” que Francisca demonstra nessas apresentações de casos, entre os quais o conhecido “caso da Senhora S”, que recebeu menção na Gazeta Médica da Bahia (PRAGUER FRÓES, 1905 apud VANIN, 2015VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., p. 169).

Essa médica também teve importante trabalho como militante feminista à frente da UUF, braço da Federação Baiana para o Progresso Feminino, criada em 1931. Ao ser questionada por um de seus professores, Anísio Circundes, sobre ter enfrentado resistências e percalços na FMB pelo fato de ser mulher, teria ela respondido: “[...] Mestre, vou desassombradamente seguindo meu caminho, sem olhar para trás nem para os lados, completamente indiferente aos reparos que possa despertar a minha passagem” (CIRCUNDES, 1932, p. 9 apud VANIN, 2015VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., p. 172).

Em relação a Rita Lobato, considerada a primeira médica diplomada pela FMB, em 1887, é descrita como “aluna assídua e caprichosa... uma vez, porém, nas aulas, ou mesmo fora delas, mantinha-se concentrada, isolada, retirada” (SILVA, 1954, p. 237-238 VANIN, 2015VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., p. 173). A autora lembra que as experiências vivenciadas por Rita Lobato e Francisca Praguer Fróes não foram exclusivas, mas também fizeram parte das experiências das estudantes das primeiras décadas do século XX. No caso de Rita Lobato, Silva lembra haver preocupação em “respeitar a moral patriarcal vigente”, que incluía os seguintes critérios: “Não usava rouge; muito menos batom. Apenas o pó de arroz. Não seguia a moda” (1854 apud VANIN, 2015VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., p. 172).

No último capítulo, “Estratégias profissionais”, são analisadas as representações e práticas de gênero observadas na atuação profissional das mulheres médicas, visibilizadas a partir dos anúncios examinados. Uma das características identificadas por Vanin foi a constatação da existência de processos que têm a segregação como marcador, com o retorno do “acomodamento” identificado no sexto capítulo e com as mulheres realizando práticas consideradas “adequadas a elas ou não contraditórias às suas funções de mães e esposas” (2015, p. 180). Nesse sentido, a FMB continuaria a exercer sobre as mulheres uma “segregação territorial e hierárquica”, como anteriormente tratado, configurada em “aspectos visíveis da performance da exclusão feminina na ciência” (VANIN, 2015VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., p. 125) e encontrada em seus estudos sobre o mundo da biomedicina baiana.

O que a pesquisadora encontrou a partir do exame dos anúncios profissionais publicados na imprensa foi que a quase totalidade das práticas dessas médicas e odontólogas esteve voltada ao atendimento de mulheres e crianças. Foram identificadas, nas décadas de 1930 e 1940, “apenas duas exceções” entre os classificados publicados pelas mulheres. Ao contrário, o mundo masculino dos médicos formados pela FMB atendia sem limites a “todas as especialidades, desde clínica geral até oftalmologia, passando por doenças venéreas” (VANIN, 2015VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., p. 180).

A autora diz acreditar ter havido um “zelo” (VANIN, 2015VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., p. 181) quanto à conduta profissional das mulheres em seus anúncios, relativamente à moral existente, de modo a preservar-se de atender pacientes homens portadores de doenças venéreas e mulheres de reputação duvidosa. Lembra a autora que a médica sergipana Ítala da Silva Oliveira foi levada ao “ostracismo social” (VANIN, 2015VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., p. 182) após a defesa de sua tese de doutorado sobre educação sexual. Sobre essa médica negra a autora escreve posteriormente um artigo intitulado “A produção intelectual das médicas formadas na Bahia: o feminismo na tese de Ítala de Oliveira” (VANIN, 2010VANIN, I. M. A produção intelectual das médicas formadas na Bahia: o feminismo na tese de Itala de Oliveira. In: FAZENDO GÊNERO: DIÁSPORAS, DIVERSIDADES, DESLOCAMENTOS, 9., 2010, Florianópolis. Anais Eletrônicos [...]. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 23 a 26 ago. 2010. Disponível em: http://www.fg2010.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1278278425_ARQUIVO_artigoparaFazendoGenero2010-Iole.pdf. Acesso em: 15 out. 2021.
http://www.fg2010.wwc2017.eventos.dype.c...
).

A partir dos anúncios publicitários, foi possível ainda identificar o modus operandi da atuação de médicas e odontólogas para se resguardarem nos termos da moral patriarcal da época. Vanin (2015)VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p. identifica que, via de regra, as “Damas de Branco” contavam com a proteção de pai, irmão e marido durante a atuação profissional, como foi o caso de Leonor dos SantosSANTOS, M. P. J. S. Maria Odília Teixeira: a primeira médica negra da Faculdade de Medicina da Bahia (1884-1937). 2021. 175f. Dissertação (Mestrado de História) – Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2021., cirurgiã-dentista, formada em 1854, que atendia no mesmo consultório do irmão ou pai, de mesmo sobrenome. Esse quadro, revelado por meio dos anúncios, sofre mudanças mais adiante, ao longo do período entre os anos 1920 e 1940, quando as médicas e odontólogas deixam de fazer atendimentos em casa e passam a se instalar em consultórios próximos às residências ou em prédios comerciais. Todavia, Vanin observa, as médicas que dividiam o consultório com outros profissionais “o faziam em companhia dos esposos” (2015, p. 186).

É a partir desse quadro, oferecido pelas “filigranas” (VANIN, 2015VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., p. 22) encontradas entre os mais de 150 mil anúncios examinados, que a autora vai traduzir uma rede complexa de informações para buscar compreender as relações de gênero envolvidas no processo de formação e inserção profissional das “Damas de Branco”. Vanin defende que esse trabalho de gênero “não pode, portanto, se furtar a verificar espaços, lugares e relações culturais, econômicas, sociais, familiares em que estas mulheres estavam inseridas e que permearam e podem ter determinado as suas trajetórias, táticas e estratégias profissionais” (2015, p. 193).

Com base nessa visão, a autora busca, no último capítulo, compreender a utilização de outras estratégias para além dos anúncios na imprensa para a inserção no mercado profissional. Essas mulheres também se valeram das redes de relações e compadrios sociais construídas por homens dentistas, principalmente, além de táticas como o atendimento aos pobres, o atendimento específico a mulheres e crianças, o discurso de cuidado e proteção da família, a inserção profissional no ensino médico da FMB, entre outras estratégias compatíveis com a moral patriarcal da época.

Essas estratégias e táticas, entre os anos 1879 e 1949, serviram como forma de “blindagem” (VANIN, 2015VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., p. 200-201), permitindo às “Damas de Branco” resistir ao modelo patriarcal vigente, que dificultava ou impedia a inserção profissional no mercado de trabalho baiano. Esses processos se exprimiam na relação desigual de prestígio entre os cursos, sendo Farmácia e Odontologia socialmente desqualificados em relação a Medicina por estarem associados ao feminino. “Os cursos mencionados não apresentavam discordâncias aparentes com os estereótipos femininos: um não tinha prestígio e estava relacionado com o mundo doméstico; o outro não atrapalhava os desempenhos femininos na vida doméstica” (VANIN, 2015VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., p. 128). A autora observa que, além da “segregação territorial” (VANIN, 2015VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., p. 125), com a concentração de mulheres em cursos como Farmácia e Odontologia, as “Damas de Branco” também foram submetidas à “segregação hierárquica” (VANIN, 2015VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., p. 125), constatada, entre outros aspectos, no fato de que, entre aquelas que assumiram carreiras docentes, “[...] as encontramos como assistentes, não como catedráticas” (VANIN, 2015VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., p. 199).

Ao concluirmos esta resenha, não poderíamos deixar de mencionar o papel desempenhado pela obra da historiadora Iole Macedo Vanin, ao legar uma contribuição importante aos estudos que tratam da História da Ciência, da Educação de Mulheres e do Feminismo. Conforme a autora, foram encontrados nas fontes “vestígios pelos quais a compreensão de gênero estrutura o acesso feminino aos cursos superiores” (VANIN, 2015VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., p. 176-177), o que significa dizer que, àquela altura, a cultura patriarcal na qual as Damas de Branco” estavam imersas reproduzia as mesmas linhas de ação ideológica expressas pelos processos de colonialidade centro-periferia, que compreendiam a mulher como um ser humano inferior, destinado à esfera privada.

Ao mesmo tempo, o androcentrismo aqui retratado também aparece na ausência de tensão manifesta no texto quanto à colonialidade de gênero, cujo sistema reproduzido também subsumiu a presença e a participação das mulheres negras na biomedicina baiana. A obra pontua en passant, em dois ou três momentos do texto, a questão racial, mas sem se deter na presença ou no acesso de mulheres negras ao Ensino Superior no período estudado.

As observações aqui estabelecidas corroboram o levantamento realizado por Minella (2013)MINELLA, L. S. Temáticas prioritárias no campo de gênero e ciências no Brasil: raça/etnia, uma lacuna? Cadernos Pagu, Campinas, v. 40, p. 95-140, jan./jun. 2013. quanto aos estudos sobre gênero e ciência produzidos no Brasil. A autora conclui, após a análise de 78 estudos publicados em periódicos científicos, anais de congressos e teses, a partir dos anos 1990, entre os quais se inclui a tese de Vanin (2008)VANIN, I. M. As damas de branco na biomedicina baiana (1879-1949): médicas, farmacêuticas e odontólogas. 2008. 275 f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2008., que “os resultados obtidos sugerem que a crítica à ciência formulada nos estudos analisados está centrada no androcentrismo e no sexismo, invisibilizando, de algum modo, o racismo” (MINELLA, 2013MINELLA, L. S. Temáticas prioritárias no campo de gênero e ciências no Brasil: raça/etnia, uma lacuna? Cadernos Pagu, Campinas, v. 40, p. 95-140, jan./jun. 2013., p. 126).

São tensões que, de alguma forma, mantêm-se como lacunas a serem preenchidas no campo dos estudos sobre gênero e ciência ou sobre a historiografia de mulheres negras que ingressaram nos cursos superiores quando se analisam esses marcadores e as recentes produções encontradas no Banco de Teses e Dissertações do CNPQ. Observa-se que lentamente esses marcadores interseccionais vão sendo superados, preenchidos com novas produções. É o caso de trabalhos que encontramos nesse acervo, como a dissertação de Mayara Priscila de Jesus dos Santos, defendida em 2019 no Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal da Bahia, intitulada “Maria Odília Teixeira: a primeira médica negra da Faculdade de Medicina da Bahia (1884-1937)”, na qual o debate sobre racismo institucional é trazido.

Esse é o papel que nos permite Vanin (2015)VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p. ao nos legar sua obra As Damas de Branco: Médicas, Odontólogas e Farmacêuticas. Entre suas contribuições, encontram-se esclarecimentos importantes e a visão sobre cenários complexos extraídos de fontes diversas, entre as quais interessou-se a autora, no bojo da segunda parte de seu livro, no quinto capítulo, “Odontólogas, as precursoras da presença feminina na biomedicina baiana?”, em responder, de forma dissonante ao curso do texto, à pergunta sobre o papel exercido pelo médico e deputado baiano Antônio Ferreira França – se foi ou não ele autor de projeto de lei que permitia acesso feminino a cursos de Medicina ainda nas três primeiras décadas do século XIX, autoria que lhe atribuiu o pesquisador Lycurgo Filho (1991 apud VANIN, 2015VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., p. 104). Constata-se, após pesquisa e análise de seus projetos apresentados na Assembleia Legislativa, que não.

Da mesma forma, lança-se a autora sobre a validade do argumento, sustentado por Fanny Tabak (1989 apud VANIN, 2015VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., p. 105), com base no trabalho de João Batista Cascudo Rodrigues (1962 apud VANIN, 2015VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p., p. 105), sobre o deputado constituinte de 1823 José Bonifácio de Andrada e Silva ter apresentado projeto em defesa do voto para mulheres diplomadas em nível superior. Também, após análise de projetos de autoria desse parlamentar nos anais da Constituinte, Vanin constata que “em nenhuma de suas participações consta o registro de sugestão ao voto feminino, ainda que concedido àquelas possuidoras de formação superior” (2015, p. 105).

Ao concluir, lembro que a pensadora decolonial americana, radicada no Equador, Catherine Walsh, convida-nos a refletir sobre as estratégias pedagógicas como aquelas de que se utilizaram, em seus processos de “blindagem-resistência”, as mulheres brancas de elite nos cursos superiores da FMB entre 1879 e 1949, a partir da Lei Leôncio de Carvalho. Para Walsh, “[...] as lutas sociais também são cenários pedagógicos nos quais os participantes também exercem suas pedagogias de aprendizagem, desaprendizagem, reaprendizagem, reflexão e ação” (WALSH, 2013WALSH, C. Lo pedagógico y lo decolonial: entretejiendo caminhos. In: WALSH, C. (ed.). Pedagogías decoloniales: prácticas insurgentes de resistir, (re)existir y (re)vivir. Quito: Ediciones Abya-Yala, 2013. p. 23-68. Tomo I., p. 29, tradução da autora). Isso se dá, segundo Walsh, quando nos opomos a situações de opressão e nos organizamos para intervir, com uma finalidade: “derrubar a situação atual e fazer possível outra coisa” (WALSH, 2013WALSH, C. Lo pedagógico y lo decolonial: entretejiendo caminhos. In: WALSH, C. (ed.). Pedagogías decoloniales: prácticas insurgentes de resistir, (re)existir y (re)vivir. Quito: Ediciones Abya-Yala, 2013. p. 23-68. Tomo I., p. 29).

Notas

  • 1
    Entre as diferentes denominações recebidas ao longo da existência da atual Faculdade de Medicina da Bahia da Universidade Federal da Bahia (FAMEB), incluem-se Faculdade de Medicina da Bahia (FMB), nos períodos de 1832-1891 e 1901-1946; Faculdade de Medicina e Farmácia da Bahia (1891-1901); e Faculdade de Medicina da Universidade da Bahia (1946-1965), coincidentes com o período de interesse da pesquisa desenvolvida por Vanin (FACULDADE..., s. d.FACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA (verbete). Wikipedia, s. d. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Faculdade_de_Medicina_da_Bahia_da_Universidade_Federal_da_Bahia. Acesso em: 10 abr. 2022.
    https://pt.wikipedia.org/wiki/Faculdade_...
    ).
  • Entre 2009 e 2014, novos dados foram levantados a partir da continuidade da pesquisa financiada com bolsas do CNPq e do Programa Permanecer da Universidade Federal da Bahia (UFBA), por meio dos projetos “Feminismo e Biomedicina na Bahia (1879-1949)” e “Feminismo versus ‘antifeminismo’ na Bahia (1879-1949): discursos e ações acerca da educação superior feminina”. Já a pesquisa de doutorado foi subvencionada com bolsas oriundas da CAPES e da Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado da Bahia (FAPESB), no período de 2006-2008.

Referências

  • FACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA (verbete). Wikipedia, s. d. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Faculdade_de_Medicina_da_Bahia_da_Universidade_Federal_da_Bahia Acesso em: 10 abr. 2022.
    » https://pt.wikipedia.org/wiki/Faculdade_de_Medicina_da_Bahia_da_Universidade_Federal_da_Bahia
  • MINELLA, L. S. Temáticas prioritárias no campo de gênero e ciências no Brasil: raça/etnia, uma lacuna? Cadernos Pagu, Campinas, v. 40, p. 95-140, jan./jun. 2013.
  • SANTOS, M. P. J. S. Maria Odília Teixeira: a primeira médica negra da Faculdade de Medicina da Bahia (1884-1937). 2021. 175f. Dissertação (Mestrado de História) – Programa de Pós-graduação em História, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2021.
  • VANIN, I. M. As damas de branco na biomedicina baiana (1879-1949): médicas, farmacêuticas e odontólogas. 2008. 275 f. Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2008.
  • VANIN, I. M. A produção intelectual das médicas formadas na Bahia: o feminismo na tese de Itala de Oliveira. In: FAZENDO GÊNERO: DIÁSPORAS, DIVERSIDADES, DESLOCAMENTOS, 9., 2010, Florianópolis. Anais Eletrônicos [...] Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 23 a 26 ago. 2010. Disponível em: http://www.fg2010.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1278278425_ARQUIVO_artigoparaFazendoGenero2010-Iole.pdf Acesso em: 15 out. 2021.
    » http://www.fg2010.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1278278425_ARQUIVO_artigoparaFazendoGenero2010-Iole.pdf
  • VANIN, I. M. As damas de branco: médicas, odontólogas e farmacêuticas. Curitiba: Appris, 2015. 229 p.
  • WALSH, C. Lo pedagógico y lo decolonial: entretejiendo caminhos. In: WALSH, C. (ed.). Pedagogías decoloniales: prácticas insurgentes de resistir, (re)existir y (re)vivir. Quito: Ediciones Abya-Yala, 2013. p. 23-68. Tomo I.
Editor de seção: Ana Maria Fonseca Almeida. https://orcid.org/0000-0002-4504-0423

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    10 Jan 2022
  • Aceito
    08 Nov 2022
Centro de Estudos Educação e Sociedade - Cedes Av. Berttrand Russel, 801 - Fac. de Educação - Anexo II - 1 andar - sala 2, CEP: 13083-865, +55 12 99162 5609, Fone / Fax: + 55 19 3521-6710 / 6708 - Campinas - SP - Brazil
E-mail: revistas.cedes@linceu.com.br