Paulo Freire, a cultura e a educação: pensando à sombra de uma mangueira, livro publicado pela Editora da Unicamp em 2022, tem sua gênese na releitura de um conjunto de textos com base nos quais a autora se propôs a dar organicidade a trabalhos acadêmicos produzidos em diferentes momentos. Introduz uma abordagem plurirreferencial dos itinerários de Paulo Freire: tempos-espaços formativos e de atuação profissional. Traz elementos dos tempos-espaços: Recife (PE), cidade-berço do autor e das ideias e práticas; nordeste, contexto de ampliação e divulgação do pensamento e da prática educativa de Paulo Freire; exílio: encontro com outras culturas, expansão, divulgação e notabilização de Paulo Freire; retorno ao Brasil, quando fixa residência na cidade de São Paulo (SP) e dá curso à vida acadêmica no seu país de origem. Portanto, é um trabalho contextualizado, fundamentado nos espaços-tempos de suas vivências, que recorre a fontes valiosíssimas. A autora não se propôs a realizar um estudo biográfico, mas não deixou de fazê-lo. Isso talvez explique porque, em Paulo Freire, são indissociáveis vida-obra-pensamento.
É um livro que possibilita olhares diferentes, por diversos ângulos disciplinares: sociológico, filosófico, histórico e pedagógico, atravessados pelas experiências formativas e profissionais que constituíram o ser professor Paulo Freire.
O trabalho de Débora Mazza (2022)MAZZA, D. Paulo Freire, a cultura e a educação: pensando à sombra de uma mangueira. São Paulo: Editora da Unicamp, 2022. 229 p. inscreve-se no campo dos estudos freireanos, um campo caracterizado por estudos acadêmicos de diversas áreas do conhecimento, perspectivas teórico-metodológicas, marcas culturais e experiências estéticas. Carlos Rodrigues Brandão, amigo de vida e de compromisso político de Paulo Freire, igualmente seu colega na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), bem como da autora, ao apresentar o educador pernambucano, testemunhou o vigor e a atualidade do seu pensamento, a ele referindo-se como “um pensador lido, estudado, dialogado e contraditado como fundador de teorias, propostas e projetos no interior e para além da educação, por pessoas dos mais diferentes campos do saber e da ação social” (apud MAZZA, 2022MAZZA, D. Paulo Freire, a cultura e a educação: pensando à sombra de uma mangueira. São Paulo: Editora da Unicamp, 2022. 229 p., p. 25). Esses mesmos elementos do testemunho de Brandão, encontrados em outras vozes e trabalhos acadêmicos, estão também presentes no trabalho de Débora Mazza.
A obra está organizada em seis grandes temas, permeados por aspectos biográficos de Paulo Freire, assunto que abre o livro. O texto leva a leitora/o leitor a caminhar com Débora Mazza em direção aos resultados dos diversos estudos por ela realizados, desde a constituição do pensamento de Paulo Freire, no contexto do pensamento educacional brasileiro, até o denso e tenso processo de ingresso de Paulo Freire na Unicamp, quando do seu retorno do exílio. Possibilita ler ainda o reencontro de Freire com a Bolívia, primeiro país que lhe serviu de asilo político, em setembro de 1964, mas também sentir Freire retomando a vida depois da partida da sua primeira mulher, a professora Elza Freire. Permite igualmente acompanhar a análise de princípios que evidenciam a polarização entre o Projeto Escola Sem Partido e a proposta de educação de Paulo Freire, além de um tema-síntese – a sombra dessa mangueira –, quando a autora retoma sua intenção acadêmica original, dá unidade aos temas, retorna ao trançado do movimento de formulação e vivência da pedagogia freireana, expõe olhares que se voltaram para Paulo Freire em espaços acadêmicos, políticos e sociais e afirma os sentidos de sua pedagogia, asseverando:
Freire investiu na cultura, na educação popular e no esforço de erradicação do analfabetismo de adultos como possibilidade de tomada de consciência sobre a realidade, reconhecimento da condição de opressão, exploração e espoliação e capacidade de organização da ação coletiva rumo à construção de uma sociedade mais igualitária
(MAZZA, 2022MAZZA, D. Paulo Freire, a cultura e a educação: pensando à sombra de uma mangueira. São Paulo: Editora da Unicamp, 2022. 229 p., p. 202).
É esse pedagogo do Brasil e do mundo que constituiu o interesse acadêmico de Debora Mazza. Ocupou-se a autora da concepção e das práticas de Paulo Freire, práxis transformadora, como dito, com base nas formulações e vivências na cidade do Recife, logo expandidas para o nordeste do Brasil e, em seguida, para os planos nacional e internacional, o que o fez vir a ser, simultaneamente, cidadão do mundo e da localidade.
Esses elementos da dimensão humana de Paulo Freire estão presentes nesse trabalho como reflexão, memória, história e atualidade. Trata-se de uma leitura de vida, um estudo de fontes e uma socialização do compromisso político de Paulo Freire, por intermédio de uma pedagogia. É um trabalho temático, tecido com os temas de ontem e de hoje.
O livro é riquíssimo em imagens. Figuras valiosíssimas ilustram as narrativas que serviram de recurso didático no trabalho de educação e alfabetização de adultos, compondo o corpus documental. São documentos valiosos, que traçam as andarilhagens de Paulo Freire em família, no trabalho, no lazer e na luta. É uma obra que socializa os conhecimentos por diferentes fontes e linguagens.
É relevante a contribuição de Débora Mazza para além do campo da educação. A autora é professora da Faculdade de Educação da Unicamp, publicou diversos trabalhos acadêmicos, partilhou com Paulo Freire e outros contemporâneos o mesmo espaço de trabalho. Débora Mazza caminhou com Paulo Freire e Carlos Brandão, primeiramente como aluna, depois como profissional. Ela vivenciou uma aproximação valiosa com Paulo Freire, uma convivência acadêmica, social e afetiva. Vivenciou o jeito nordestino de ser de Paulo Freire, “uma casa de portas abertas” – a casa de uma pessoa que gostava de receber as amigas/os amigos, na intimidade do seu lar; de sentar-se à mesa, extrapolando os limites institucionais, para degustar os sabor e saber partilhados, problematizando-os. Essa experiência social-acadêmico-afetiva da autora também poderá ser conhecida pela leitora/pelo leitor desse livro, pelos detalhes da narrativa.
Essa aproximação possibilitou uma visibilidade maior da coerência, da amorosidade, do compromisso político e do quefazer pedagógico de/em Paulo Freire, para além do significado que esses termos comportam enquanto categorias teóricas, analíticas. Oportunizou conferir que os princípios freireanos pertencem ao domínio do humano, da vida – vidas social, acadêmica e comunitária. Em síntese, permitiu conferir a práxis freireana. A convivência também oportunizou à autora acompanhar as andanças de Paulo Freire pelo Brasil e pelo exterior.
Entre os tantos temas abordados, merece atenção o processo de contratação de Paulo Freire pela Unicamp, um tema originado de um processo que ocorre no período de redemocratização da sociedade brasileira, no contexto de uma universidade pública. Trata-se de uma disputa política no interior da universidade, ainda pouco conhecida, ou quase desconhecida, pelo grande público e que a autora traz como resultado de uma rigorosa análise, fruto de um trabalho fundado em sólidas fontes, que permite a leitora/o leitor conhecer as artimanhas e armadilhas do poder institucional, hierarquizado, instituído.
Mazza põe em relevo disputas e tensões que têm no centro o pensamento crítico, as práticas e o compromisso político de Paulo Freire. Isto é, a sua própria vida envolvida no “ranço autoritário e o verniz burocrático” que grassam na ciência, na universidade e no nosso Brasil, ainda hoje. Esse livro oportuniza conhecermos assim as tensões históricas que atravessam o exercício democrático e as disputas por um projeto social, acadêmico, de educação e de formação de pessoas.
A análise e a divulgação do processo na Unicamp proporcionam ao grande público a leitura crítica das tramas políticas e institucionais, configuradas para defender ou rejeitar projetos, ideias e pessoas. Nesse caso, Paulo Freire e a sua pedagogia são os objetos da disputa política. Pareceu-nos estar-se repetindo, na Unicamp, o que antes acontecera na Europa, resgatado pela pesquisadora portuguesa Luiza Cortesão (2021)CORTESÃO, L. Descodificando significados de uma frase de Paulo Freire. In: SANTIAGO, M. E.; BATISTA NETO, J. (org.). Olhares sobre Paulo Freire: vida, história e atualidade. Recife: Editora Cepe, 2021., em publicação recente, ao lembrar uma fala de Paulo Freire: “A Espanha de Franco, como Portugal de Salazar, nos interditava a ambos. A Pedagogia e a mim” (CORTESÃO, 2021CORTESÃO, L. Descodificando significados de uma frase de Paulo Freire. In: SANTIAGO, M. E.; BATISTA NETO, J. (org.). Olhares sobre Paulo Freire: vida, história e atualidade. Recife: Editora Cepe, 2021., p. 179). Em plena abertura política, e de modo subliminar, Paulo Freire continuava interditado no Brasil, como podemos encontrar em detalhes na narrativa.
Paulo Freire, a cultura e a educação: pensando à sombra de uma mangueira é um livro destinado a estudantes e profissionais das diversas áreas do conhecimento crítico que desejam conhecer, ou conhecer mais, sobre Paulo Freire. Ler não para gostar ou não gostar, ou deixar de gostar; ler para conhecer o pensamento crítico, plural e vigoroso de um educador brasileiro, referência em todo o mundo, que permanece atual e necessário para se sonhar coletivamente com uma sociedade justa.
Referências
- CORTESÃO, L. Descodificando significados de uma frase de Paulo Freire. In: SANTIAGO, M. E.; BATISTA NETO, J. (org.). Olhares sobre Paulo Freire: vida, história e atualidade. Recife: Editora Cepe, 2021.
- MAZZA, D. Paulo Freire, a cultura e a educação: pensando à sombra de uma mangueira. São Paulo: Editora da Unicamp, 2022. 229 p.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
09 Out 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
07 Jul 2023 -
Aceito
11 Jul 2023
