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LUGAR, MOBILIDADE SISTÊMICA E APRENDIZAGEM SITUADA NAS DISPOSIÇÕES DAS JUVENTUDES POPULARES

PLACE, SYSTEMIC MOBILITY AND SITUATED LEARNING IN THE DISPOSITIONS OF POPULAR YOUTH

LUGAR, MOVILIDAD SISTÉMICA Y APRENDIZAJE SITUADO EN LAS DISPOSICIONES DE LA JUVENTUD POPULAR

RESUMO

Este ensaio propõe uma articulação teórica entre lugar, mobilidade sistêmica e aprendizagem situada, apresentando um framework conceitual e sugerindo itinerários de pesquisas que possibilitem aprofundar a sua compreensão entre as juventudes dos meios populares e a educação. Parte-se do pressuposto de que as múltiplas instâncias do contexto de vida dos jovens e, de maneira especial, aquelas do seu lugar de origem podem influenciar suas trajetórias estudantis. Nesse sentido, argumenta-se acerca da valorização do lugar de origem enquanto lócus de análise dos patrimônios disposicionais, considerando a noção de pluridimensionalidade do lugar, suas horizontalidades e verticalidades, tendo como fundo teórico o conceito de mobilidade sistêmica para elucidar as relações complexas entre as teorias discutidas.

Palavras-chave:
Lugar; Mobilidade sistêmica; Aprendizagem situada; Patrimônio disposicional; Juventude popular

ABSTRACT

This essay proposes a theoretical articulation between place, systemic mobility and situated learning, presenting a conceptual framework, and suggesting research itineraries that make possible to deepen the understanding between youth from popular milieus and education. It assumes that the multiple instances of the context of young people’s lives and, in particular, those of their place of origin can influence their student trajectories. In this sense, it is argued about the appreciation of the place of origin as a locus of analysis of dispositional assets, considering the notion of pluridimensionality of the place, its horizontalities and verticalities, having as a theoretical background the concept of systemic mobility to elucidate the complex relationships between the theories discussed.

Keywords
Place; Systemic mobility; Situated learning; Dispositional assets; Popular youth

RESUMEN

Este ensayo propone una articulación teórica entre lugar, movilidad sistémica y aprendizaje situado, presentando un marco conceptual y sugiriendo itinerarios de investigación que permitan profundizar el entendimiento entre jóvenes de medios populares y la educación. Se parte del supuesto de que las múltiples instancias del contexto de vida de los jóvenes, en particular, las de su lugar de origen, pueden influir en sus trayectorias estudiantiles. En este sentido, se argumenta sobre la apreciación del lugar de origen como locus de análisis de los bienes disposicionales, considerando la noción de pluridimensionalidad del lugar, sus horizontalidades y verticalidades, teniendo como trasfondo teórico el concepto de movilidad sistémica para dilucidar las complejas relaciones entre las teorías discutidas.

Palabras clave
Lugar; Movilidad sistémica; Aprendizaje situado; Patrimonio disposicional; Juventud popular

Introdução

A análise da longevidade e do abandono escolar, a participação laboral e a importância do trabalho como instrumento de sobrevivência do jovem e da família (LEÃO, 2006LEÃO, G. M. P. Experiências da desigualdade: os sentidos da escolarização elaborados por jovens pobres. Educação e Pesquisa, v. 32, n. 1, p. 31-48, 2006. https://doi.org/10.1590/S1517-97022006000100003
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; DAYRELL, 2007DAYRELL, J. T. A escola “faz” as juventudes? Reflexões em torno da socialização juvenil. Educação & Sociedade, v. 28, n. 100, p. 1105-1128, 2007. https://doi.org/10.1590/S0101-73302007000300022
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; PIOTTO, 2008PIOTTO, D. C. Trajetórias escolares prolongadas nas camadas populares. Cadernos de Pesquisa, v. 38, n. 135, p. 701-707, 2008. https://doi.org/10.1590/S0100-15742008000300008
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; VIANA, 2000VIANA, M. J. B. Longevidade escolar em famílias de camadas populares: algumas condições de possibilidade. In: NOGUEIRA, M. A.; ROMANELLI, G.; ZAGO, N. (org.). Família e escola: trajetórias de escolarização em camadas médias e populares. Petrópolis: Vozes, 2000. v. 2, p. 45-60., 2011VIANA, M. J. B. O bom desempenho escolar nos meios populares: elementos para uma definição e alguns dados de pesquisa. Sociologia da Educação, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 7-24, 2011.) foram temáticas tangenciadas nas discussões acerca das juventudes periféricas, ou dos meios populares no país, embora com expressivo crescimento a partir dos anos 1990 (MATOS, 2015MATOS, D. Narrativas em tensão: modos de ser jovem na/da periferia//Narratives in tension: modes to be young in the periphery. Contemporanea, v. 13, n. 2, p. 453-470, 2015. https://doi.org/10.9771/contemporanea.v13i2.12261
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). Tais discussões buscam compreender como as práticas e dinâmicas sociais, violências, participação política e estigmas se fazem presentes no cotidiano juvenil (DAYRELL, 2007DAYRELL, J. T. A escola “faz” as juventudes? Reflexões em torno da socialização juvenil. Educação & Sociedade, v. 28, n. 100, p. 1105-1128, 2007. https://doi.org/10.1590/S0101-73302007000300022
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; VIANA, 2011VIANA, M. J. B. O bom desempenho escolar nos meios populares: elementos para uma definição e alguns dados de pesquisa. Sociologia da Educação, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 7-24, 2011.; CASTRO; ABRAMOVAY, 2015CASTRO, M. G.; ABRAMOVAY, M. Ser jovem hoje, no Brasil: desafios e possibilidades. Programa de prevenção à violência nas escolas. Flacso Brasil-Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, 2015.; MATOS, 2015MATOS, D. Narrativas em tensão: modos de ser jovem na/da periferia//Narratives in tension: modes to be young in the periphery. Contemporanea, v. 13, n. 2, p. 453-470, 2015. https://doi.org/10.9771/contemporanea.v13i2.12261
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).

Entre essas diferentes perspectivas de estudo, é interessante refletir sobre a relação entre juventude dos meios populares e a educação, mais precisamente quanto à imbricação desta última nas múltiplas instâncias do contexto de vida dos jovens, e, de maneira especial, a relação entre seu lugar de origem e suas trajetórias escolares. Neste estudo, considera-se a juventude como uma categoria construída sócio-historicamente, reflexo das circunstâncias econômicas, políticas, sociais e ocupacionais peculiares aos vários estágios da sociedade (LEÓN, 2005LEÓN, O. D. Adolescência e juventude: das noções às abordagens. In: ABRAMO, H. W.; LEÓN, O. D. Juventude e adolescência no Brasil: referências conceituais. São Paulo: Ação Educativa, 2005. p. 9-18.; MESQUITA, 2011MESQUITA, M. R. A inserção dos jovens no mercado de trabalho e o acesso aos direitos trabalhistas no Brasil dos anos 2000. 189 f. Tese (Doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2011.; ANDRADE; MEYER, 2014ANDRADE, S. S.; MEYER, D. E. Juventudes, moratória social e gênero: flutuações identitárias e(m) histórias narradas. Educar em Revista, n. esp. 1, p. 85-99, 2014. https://doi.org/10.1590/0104-4060.36463
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).

Assume-se, portanto, o entendimento de juventudes, no plural, com o propósito de refletir acerca da multiplicidade dos modos de ser jovem em decorrência da singularização das experiências de vida, que por sua vez remete aos distintos contextos em que esses indivíduos se desenvolvem, pela pretensão de ressaltar suas diversidades – social, étnica, de gênero, entre outras – e as mudanças sociais que os impactam em proporções díspares (LEÓN, 2005LEÓN, O. D. Adolescência e juventude: das noções às abordagens. In: ABRAMO, H. W.; LEÓN, O. D. Juventude e adolescência no Brasil: referências conceituais. São Paulo: Ação Educativa, 2005. p. 9-18.; CASTRO; ABRAMOVAY, 2015CASTRO, M. G.; ABRAMOVAY, M. Ser jovem hoje, no Brasil: desafios e possibilidades. Programa de prevenção à violência nas escolas. Flacso Brasil-Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, 2015.; DOUTOR, 2016DOUTOR, C. Una mirada sociológica sobre los conceptos de juventud y prácticas culturales: perspectivas y reflexiones. Ultima Década, v. 24, n. 45, p. 159-174, 2016. https://doi.org/10.4067/S0718-22362016000200009
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; TROIAN; BREITENBACH, 2018TROIAN, A.; BREITENBACH, R. Jovens e juventudes em estudos rurais do Brasil. Interações, Campo Grande, v. 19, n. 4, p. 789-802, 2018. https://doi.org/10.20435/inter.v19i4.1768
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).

Tais desigualdades podem ser observadas: por meio das características e arranjos da família, na vida escolar e nas condições de trabalho (DAYRELL; JESUS, 2016DAYRELL, J. T.; JESUS, R. E. Juventude, ensino médio e os processos de exclusão escolar. Educação & Sociedade, v. 37, n. 135, p. 407-423, 2016. https://doi.org/10.1590/ES0101-73302016151533
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); mediante questões discriminatórias em virtude da cor de pele, interferindo no desenvolvimento educacional e impactando nas decisões de permanência, na progressão e no desempenho escolar juvenil (JESUS, 2018JESUS, R. E. Mecanismos eficientes na produção do fracasso escolar de jovens negros: estereótipos, silenciamento e invisibilização. Educação em Revista, v. 34, e167901, 2018. https://doi.org/10.1590/0102-4698167901
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); em questões de gênero e origem social, que são dimensões que constituem as juventudes e, por isso, desvelam particularidades de experiências sociais materiais e subjetivas (LEÃO; DAYRELL; REIS, 2011LEÃO, G. M. P.; DAYRELL, J. T.; REIS, J. B. Juventude, projetos de vida e ensino médio. Educação & Sociedade, v. 32, n. 117, p. 1067-1084, 2011. https://doi.org/10.1590/S0101-73302011000400010
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; DAYRELL; JESUS, 2016DAYRELL, J. T.; JESUS, R. E. Juventude, ensino médio e os processos de exclusão escolar. Educação & Sociedade, v. 37, n. 135, p. 407-423, 2016. https://doi.org/10.1590/ES0101-73302016151533
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).

Assim, busca-se neste ensaio: tratar e discutir as bases conceituais de lugar (CALLAI, 2005CALLAI, H. C. Aprendendo a ler o mundo: a geografia nos anos iniciais do ensino fundamental. Cadernos Cedes, v. 25, n. 66, p. 227-247, 2005. https://doi.org/10.1590/S0101-32622005000200006
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; CARLOS, 2007CARLOS, A. F. A. O lugar no/do mundo. São Paulo: FFLCH, 2007. 85 p.), mobilidade sistêmica (BALBIM, 2003BALBIM, R. Práticas espaciais e informatização do espaço da circulação: mobilidade cotidiana em São Paulo. 597 f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003.) e aprendizagem situada (GHERARDI, 2008GHERARDI, S. Situated knowledge and situated action: what do practice-based studies promise. In: DAVID, B. (org.). The Sage handbook of new approaches in management and organization. Lisboa: Sage, 2008. p. 516-525.; NICOLINI, 2012NICOLINI, D. Practice theory, work, and organization: an introduction. Oxford: Oxford University Press, 2012.); contextualizar a concepção de meios populares; e avançar nas possibilidades de teorização integrada entre tais construtos, apresentando um framework conceitual e sugerindo itinerários de pesquisas que propiciem aprofundar a sua compreensão entre as juventudes dos meios populares e a educação.

Sobre Lugar e Patrimônio Disposicional: Conceitos e Diálogos

A literatura informa-nos que o lugar é compreendido como o “território usado e espaço geográfico” (QUEIROZ, 2014QUEIROZ, T. A. N. de. Espaço geográfico, território usado e lugar: ensaio sobre o pensamento de Milton Santos. Para Onde!?, v. 8, n. 2, p. 154-161, 2014. https://doi.org/10.22456/1982-0003.61589
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, p. 159). Pelo lugar, consegue-se entender a produção do espaço e, também, podem-se pensar “o viver e o habitar; o uso e o consumo; os processos de apropriação do espaço”, os quais são possíveis de ser apreendidos “pela memória, através dos sentidos e do corpo” (CARLOS, 2007CARLOS, A. F. A. O lugar no/do mundo. São Paulo: FFLCH, 2007. 85 p., p. 14). Sendo assim, cada lugar possui tempos e modos particulares, mas carregam consigo influências regionais, nacionais e internacionais (CALLAI, 2005CALLAI, H. C. Aprendendo a ler o mundo: a geografia nos anos iniciais do ensino fundamental. Cadernos Cedes, v. 25, n. 66, p. 227-247, 2005. https://doi.org/10.1590/S0101-32622005000200006
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).

Ao dar ênfase ao lugar de origem (o bairro, a rua), sobrepondo-os aos demais lugares, duas reflexões emergem: a expressão do lugar enquanto pluridimensional; e a sua relação com o patrimônio disposicional. A pluralidade do termo remete-se ao conceito de espaço e território: o espaço demarca a existência do território. Para Santos (1988, p. 25)SANTOS, M. Sociedade e espaço: a formação social como teoria e método. In: SANTOS, M. Metamorfoses do espaço habitado. São Paulo: Hucitec, 1988. v. 4, p. 136., o espaço refere-se a um “conjunto de objetos e de relações que se realizam sobre estes objetos [...] [e] é o resultado da ação dos homens sobre o próprio espaço, intermediados pelos objetos, naturais e artificiais”. Território, por sua vez, é considerado um espaço de identidade ou de identificação, em que os sentimentos compartilhados pelos indivíduos formam a sua base (MEDEIROS, 2009MEDEIROS, R. M. V. Território, espaço de identidade. In: SAQUET, M. A.; SPOSITO, E. S. (org.). Territórios e territorialidades: teorias, processos e conflitos. São Paulo: Expressão Popular, 2009. p. 217-227.). O “território é apropriado e construído socialmente, resultado e condição do processo de territorialização; é produto do processo de apropriação e domínio social” (SAQUET, 2007SAQUET, M. A. As diferentes abordagens do território e a apreensão do movimento e da (i)materialidade. Geosul, v. 22, n. 43, p. 55-76, 2007., p. 58). Ao fazer uma leitura da obra de Haesbaert, Fuini (2017)FUINI, L. L. O território em Rogério Haesbaert: concepções e conotações. Geografia Ensino & Pesquisa, v. 21, n. 1, p. 19-29, 2017. https://doi.org/10.5902/2236499422589
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diz que o autor entende que os territórios se distinguem de acordo com quem os constroem (indivíduos, grupos sociais, Estado, empresas ou outras instituições).

O território é, portanto, a humanização do espaço (MEDEIROS, 2009MEDEIROS, R. M. V. Território, espaço de identidade. In: SAQUET, M. A.; SPOSITO, E. S. (org.). Territórios e territorialidades: teorias, processos e conflitos. São Paulo: Expressão Popular, 2009. p. 217-227.); nele, a sua existência está associada à apropriação de uma porção do espaço, sendo necessário um senso de identificação ou pertencimento. São a identidade e o senso de pertencimento que dão vida a um território, constituindo o que se denomina de identidade territorial: uma identidade social que se consolida por intermédio do território, sobretudo havendo uma relação de apropriação tanto ideária quanto concreta de determinada porção do espaço geográfico (CHELOTTI, 2010CHELOTTI, M. C. Reterritorialização e identidade territorial. Sociedade & Natureza, v. 22, n. 1, p. 165-180, 2010.).

Todavia, para constituir-se um território, é importante haver territorialidade, isto é, um processo de identidade e pertencimento a determinado espaço (BELHEDI, 2006BELHEDI, A. Territoires, appartenance et identification. Quelques réflexions à partir du cas tunisien. L’Espace Géographique, v. 35, n. 4, p. 310-316, 2006.), que é anterior à sua formação. O sentimento de pertencer ou não a um território desvela a relevância das identidades. Ou seja, a identidade individual é um passo importante para a formação da identidade coletiva, pois esta última é construída da interação entre os indivíduos – moldando a sua interpretação, servindo de referência e afetando as tomadas de ação daqueles indivíduos (PICHETH; CHAGAS, 2018PICHETH, S. F.; CHAGAS, P. B. Interfaces entre territorialidade e identidade: analisando as vivências das mães do Grupo Maternati. Cadernos EBAPE.BR, v. 16, n. 4, p. 788-801, 2018.).

É por intermédio das identidades que se busca refletir sobre o lugar. Elas são centrais para a territorialidade e, por consequência, para a consolidação de um território. Entende-se que as identidades individuais corroboram para a singularização dos significados e das apropriações dos lugares, que se mostram internamente múltiplos (pelas diferenças de apropriações, significados e vivências), e, por serem múltiplos em seu interior, não estão sobrepostos ou estratificados, mas segmentados em razão das semelhanças experienciais de seus ocupantes. Assim, infere-se que os territórios são constituídos de lugares particularizados e paralelamente existentes e (res)significados pelos indivíduos.

Desse modo, tenciona-se a ideia de um viver homogeneizante em um lugar, e parte-se para a ideia de viveres múltiplos e heterogêneos que compartilham um espaço comum, mesmo considerando-se as experiências semelhantes percebidas em determinado grupo social. Aproxima-se, assim, a percepção de lugar enquanto modos de uso, em Santos (1988)SANTOS, M. Sociedade e espaço: a formação social como teoria e método. In: SANTOS, M. Metamorfoses do espaço habitado. São Paulo: Hucitec, 1988. v. 4, p. 136., para o qual o lugar pode ser sentido, pensado, apropriado e vivido pelo corpo e pelas formas de locomoção, os quais sinalizam modos de apropriação e carregam significados pelo uso do lugar.

É nesse ponto que relacionar o lugar de origem com o patrimônio disposicional se faz pertinente. Rememorando a teoria disposicionalista de Bernard Lahire, Pierre Bourdieu defende que a sociedade está depositada nas pessoas sob a forma de disposições duráveis ou capacidades estruturadas para o agir, sentir, pensar, perceber, interpretar, classificar e avaliar (apud ALVES, 2016ALVES, A. R. C. From habitus of class to individual heritage of dispositions: reflections on the practice in Pierre Bourdieu and Bernard Lahire. Sociologias, v. 18, n. 42, p. 294-327, 2016. https://doi.org/10.1590/15174522-018004213
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). Para tanto, Bourdieu propõe a teoria do habitus, que desvela esquemas simbólicos – denominados de disposições – subjetivamente internalizados que geram e organizam a atividade prática dos agentes (apud WACQUANT, 2007WACQUANT, L. Esclarecer o habitus. Sociologia: Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, v. 14, p. 35-41, 2007.; PETERS, 2013PETERS, G. Habitus, reflexividade e neo-objetivismo na teoria da prática de Pierre Bourdieu. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 28, n. 83, p. 47-71, 2013. https://doi.org/10.1590/S0102-69092013000300004
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), numa tentativa de estreitar as relações entre os comportamentos, os condicionamentos sociais e as estruturas (apud WACQUANT, 2007WACQUANT, L. Esclarecer o habitus. Sociologia: Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, v. 14, p. 35-41, 2007.; LESSA, 2019LESSA, B. S. Disposições sustentáveis: um olhar biográfico e sociológico para a educação para a sustentabilidade. 184 f. Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2019.).

Para Bourdieu (2007)BOURDIEU, P. A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk, 2007., o habitus possui uma característica homogeneizante, ou seja, o sistema de disposições torna-se comum a todos, e seus condicionamentos sociais são idênticos ou análogos. Por isso, diz-se que ele é automaticamente transferível. O autor refere-se a um estado interior duradouro, mas não definitivo, podendo-se adaptar a situações específicas, o que pode causar ou não mudanças duráveis no sistema disposicional (SETTON, 2002SETTON, M. G. J. A teoria do habitus em Pierre Bourdieu: uma leitura contemporânea. Revista Brasileira de Educação, n. 20, p. 60-70, 2002. https://doi.org/10.1590/S1413-24782002000200005
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; LESSA, 2019LESSA, B. S. Disposições sustentáveis: um olhar biográfico e sociológico para a educação para a sustentabilidade. 184 f. Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2019.).

Todavia, Lahire (2004)LAHIRE, B. Retratos sociológicos: disposições e variações individuais. Porto Alegre: Artmed, 2004. critica a homogeneidade do habitus, reforçando que somente é possível tal característica em sociedades que apresentam socializações estáveis. O autor defende haver uma heterogeneidade do habitus visível por meio das práticas sociais, as quais não derivam linearmente das disposições e são dependentes dos contextos de socialização. Elas evidenciam-se em maior intensidade quanto mais forem exigidas pelo contexto (LAHIRE, 2005LAHIRE, B. Patrimónios individuais de disposições: para uma sociologia à escala individual. Sociologia, Problemas e Práticas, n. 49, p. 11-42, 2005.), podendo ser inibidas ou ativadas em determinadas situações mediante o contexto e as interações (ROLDÃO, 2014ROLDÃO, C. Fatores e perfis do sucesso escolar “inesperado”. Trajetos de contratendência de jovens das classes populares e de origem africana. Instituto Superior das Ciências do Trabalho e da Empresa, Instituto Universitário de Lisboa, Lisboa, 2014.). Nesse ponto, frisa-se a característica do sistema disposicional, que funda a teoria do patrimônio disposicional em Bernard Lahire (2005)LAHIRE, B. Patrimónios individuais de disposições: para uma sociologia à escala individual. Sociologia, Problemas e Práticas, n. 49, p. 11-42, 2005., de que o indivíduo compartilha de mundos heterogêneos e, por vezes, contraditórios.

Entende-se que os indivíduos atravessam práticas socializadoras heterogêneas e particulares a cada contexto (trabalho, escola, família etc.), que, logo, não são generalizáveis (LAHIRE, 2005LAHIRE, B. Patrimónios individuais de disposições: para uma sociologia à escala individual. Sociologia, Problemas e Práticas, n. 49, p. 11-42, 2005.). Dessa forma, coexistem disposições heterogêneas (dissonantes), produtos de diferentes socializações, definindo a noção de homem plural: “Uma visão mais complexa do indivíduo, menos unificado e portador de hábitos (de esquemas ou de disposições) heterogêneos e, em alguns casos, opostos, contraditórios” (LAHIRE, 2005LAHIRE, B. Patrimónios individuais de disposições: para uma sociologia à escala individual. Sociologia, Problemas e Práticas, n. 49, p. 11-42, 2005., p. 25).

Retomando a relação do lugar de origem com o patrimônio disposicional, surge a seguinte questão: como valorizar o lugar de origem e, de igual forma, valorizar os vários contextos e a pluralidade de relações sociais que intervêm na socialização e nas aprendizagens dos jovens dos meios populares (dado o público do ensaio em foco)? Com base na ideia da pluridimensionalidade do lugar, é possível considerar que o lugar de origem também é um agente formador do patrimônio disposicional e está presente nos espaços de aprendizagem.

Perante as discussões apresentadas sobre lugar e patrimônio disposicional (CALLAI, 2005CALLAI, H. C. Aprendendo a ler o mundo: a geografia nos anos iniciais do ensino fundamental. Cadernos Cedes, v. 25, n. 66, p. 227-247, 2005. https://doi.org/10.1590/S0101-32622005000200006
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; CARLOS, 2007CARLOS, A. F. A. O lugar no/do mundo. São Paulo: FFLCH, 2007. 85 p.; MEDEIROS, 2009MEDEIROS, R. M. V. Território, espaço de identidade. In: SAQUET, M. A.; SPOSITO, E. S. (org.). Territórios e territorialidades: teorias, processos e conflitos. São Paulo: Expressão Popular, 2009. p. 217-227.; FUINI, 2017FUINI, L. L. O território em Rogério Haesbaert: concepções e conotações. Geografia Ensino & Pesquisa, v. 21, n. 1, p. 19-29, 2017. https://doi.org/10.5902/2236499422589
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), a multiplicidade de modos de viver nos meios populares evidencia a necessidade do entendimento singularizado das trajetórias juvenis, reforçando a relevância da análise dos patrimônios disposicionais e dos significados atribuídos ao lugar de origem. Portanto, defende-se que, dada a heterogeneidade do patrimônio, das socializações e das práticas no interior dos processos socializadores, os lugares de origem e os sistemas disposicionais se imbricam à medida que o lugar de origem se constitui de horizontalidades e verticalidades, reforçando sua característica pluridimensional.

As verticalidades são “pontos no espaço que, separados uns dos outros, asseguram o funcionamento global da sociedade e da economia” (SANTOS, 2006SANTOS, M. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Edusp, 2006., p. 284). Esses pontos ligam-se a uma lógica de individualidade, de utilidade produtiva e de hierarquização entre lugares que segue uma ordem técnica, financeira e política de países e organizações influentes na organização geopolítica. Com isso, há uma homogeneização crescente e uma integração limitada de lugares dispersos no mundo sustentadas na alienação e exploração de comunidades locais, o que reduz as suas solidariedades e a capacidade de gestão da vida local (SANTOS, 2005SANTOS, M. O retorno do território. In: SANTOS, M. Da totalidade ao lugar. São Paulo: Edusp, 2005. p. 137-144.). Já as horizontalidades são “os domínios de contiguidade, daqueles lugares vizinhos reunidos por uma contiguidade territorial” (SANTOS, 2005SANTOS, M. O retorno do território. In: SANTOS, M. Da totalidade ao lugar. São Paulo: Edusp, 2005. p. 137-144., p. 139). Essas horizontalidades opõem-se ao espaço econômico, constituindo o espaço das vivências – um espaço de todos, incluindo articulações e benefícios gerados por ações de atores no território que podem gerar solidariedade entre eles. Assim, verticalidades e horizontalidades representam fragmentações simultâneas e complementares do espaço, das funcionalidades e das reordenações dos lugares.

O lugar, enquanto pluridimensional, é particular ao indivíduo e mostra-se de inúmeras formas para cada um. Por outro lado, o patrimônio disposicional também é atravessado por práticas distintas que corroboram a formação das disposições. Como essas práticas se originam das socializações em diferentes espaços, o patrimônio carrega consigo para o interior do lugar de origem os traços disposicionais apreendidos pelas práticas nos demais espaços de socialização. Nesse sentido, infere-se que tanto o lugar quanto o patrimônio disposicional realizam trocas e se justapõem.

Ao valorizar-se o lugar de origem, também se está contemplando os demais contextos de socialização e a pluralidade das relações sociais, uma vez que, ao considerar o lugar de origem um produto do dentro e do fora, pluridimensional, sua existência se particulariza aos indivíduos, que inter-relacionam suas disposições na apropriação do lugar. O conceito de lugar desvela modos particularizados (heterogêneos) do vivido (também pelo corpo), do sentido, do apropriado, do concreto e do real, das dinâmicas cotidianas do e no lugar (CARLOS, 2007CARLOS, A. F. A. O lugar no/do mundo. São Paulo: FFLCH, 2007. 85 p.). Tais questões perpassam pela discussão sobre as horizontalidades e verticalidades que constituem o lugar com base no conceito de mobilidade sistêmica.

Balbim (2003)BALBIM, R. Práticas espaciais e informatização do espaço da circulação: mobilidade cotidiana em São Paulo. 597 f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003. inaugura suas reflexões posicionando a mobilidade como um termo polissêmico, que se confunde com a ideia de circulação, trânsito, acessibilidade ou transporte, representando a necessidade do movimentar-se como elemento caracterizador das sociedades e dos indivíduos no decorrer da história, contudo o termo mobilidade ilumina as transformações sociais intensificadas com a divisão social e territorial do trabalho e com os modos de produção (BALBIM, 2003BALBIM, R. Práticas espaciais e informatização do espaço da circulação: mobilidade cotidiana em São Paulo. 597 f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003.), aspectos que configuram o espaço (social e territorial) em múltiplas escalas.

O autor reforça que as mobilidades possuem temporalidades sociais distintas à medida que acompanham os ritmos e a reprodução da vida cotidiana, constituindo os sujeitos, suas histórias e o espaço. Quando se refere à vida cotidiana, o autor dialoga com o urbano. Assim, todas as mobilidades são vistas por essa ótica. As variações do termo sinalizam, de um modo ou de outro, a duração dos deslocamentos, os lugares de permanência e os recursos econômicos, técnicos e simbólicos. Ainda, as formas de mobilidade baseiam-se em um lugar-comum, aquele que origina o movimento (o lugar de permanência – físico, social ou simbólico). Os diversos tipos de deslocamento ocorrem mutuamente no dia a dia e justapõem as mobilidades, compondo os lugares, as trajetórias de vida e a história dos sujeitos (BALBIM, 2003BALBIM, R. Práticas espaciais e informatização do espaço da circulação: mobilidade cotidiana em São Paulo. 597 f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003.).

Além das interlocuções já realizadas, que envolvem aspectos teóricos sobre o patrimônio disposicional, busca-se relacionar a concepção de mobilidade sistêmica com a de aprendizagem situada, incluindo os jovens dos meios populares nessa discussão, apresentada na próxima seção.

Aprendizagem Situada e Mobilidade Sistêmica

Da ótica da aprendizagem situada, o conhecimento está distribuído no corpo, nos artefatos, nos ambientes, nas atividades materiais e simbólicas, estando organizado socialmente (ALMEIDA, 2014ALMEIDA, E. G. Aprendizagem situada. Texto Livre: Linguagem e Tecnologia, v. 7, n. 1, p. 177-184, 2014. https://doi.org/10.17851/1983-3652.7.1.177-184
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). A aprendizagem não está restrita à mente, pois, ao ocorrer nas atividades em que os indivíduos participam, ela integra a vida cotidiana, as experiências e as interações mútuas entre pessoas e o ambiente, sendo um fenômeno cultural, social e histórico (BISPO, 2013BISPO, M. de S. Aprendizagem organizacional baseada no conceito de prática: contribuições de Silvia Gherardi. Revista de Administração Mackenzie, v. 14, n. 6, p. 132-161, 2013. https://doi.org/10.1590/S1678-69712013000600007
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; LARENTIS et al., 2014LARENTIS, F.; ANTONELLO, C. S.; MILAN, G. S.; DE TONI, D. Aprendizagem organizacional e relacionamentos interorganizacionais: um estudo de casos múltiplos. Base, v. 11, n. 4, p. 347-366, 2014.), assim como a situação e o contexto corroboram a compreensão da aprendizagem situada com o intuito de conhecer suas particularidades sociais, culturais, históricas, econômicas e políticas (FLACH; ANTONELLO, 2010FLACH, L.; ANTONELLO, C. S. A teoria sobre aprendizagem informal e suas implicações nas organizações. GESTÃO.Org, v. 8, n. 2, p. 193-208, 2010.).

Para a análise da aprendizagem situada, considera-se a ideia de práticas, que capturam as várias configurações possíveis da realidade, a materialidade do conhecimento no espaço e sua produção situada. Por isso, o conhecimento ocorre por intermédio das práticas, as quais são constantemente repetidas (mas nunca reproduzidas igualmente), adaptadas às circunstâncias e performadas (transformadas) (BRUNI; GHERARDI; PAROLIN, 2007BRUNI, A.; GHERARDI, S.; PAROLIN, L. L. Knowing in a system of fragmented knowledge. Mind, Culture, and Activity, v. 14, n. 1-2, p. 83-102, 2007. https://doi.org/10.1080/10749030701307754
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; GHERARDI, 2009GHERARDI, S. Organizational knowledge: the texture of workplace learning. Nova York: John Wiley & Sons, 2009.). Os estudos baseados em prática (knowing-in-practice) enfocam as práticas de um coletivo e não individuais, pois é no coletivo que o conhecimento é construído e compartilhado (NICOLINI, 2012NICOLINI, D. Practice theory, work, and organization: an introduction. Oxford: Oxford University Press, 2012.).

O conhecimento está situado no corpo (sentidos, estético), nas interações (nas situações, nas ações entre humanos e não humanos), na linguagem e no contexto físico (local de trabalho etc.). Tomando-se como ponto de partida que o conhecimento é gerado por meio das práticas no espaço de aprendizagem, surgem duas reflexões: nas práticas que se estabelecem no espaço educacional entre os jovens, além de constituírem os conhecimentos, esses jovens compartilham práticas de socialização; e tanto o lugar de origem quanto os deslocamentos (mobilidade sistêmica) são carregados ao espaço de aprendizagem pelas disposições, apresentando variações (ativação ou inibição) conforme as práticas realizadas nas interações entre os agentes (GHERARDI, 2008GHERARDI, S. Situated knowledge and situated action: what do practice-based studies promise. In: DAVID, B. (org.). The Sage handbook of new approaches in management and organization. Lisboa: Sage, 2008. p. 516-525.).

Quanto à primeira reflexão, ao passo que os jovens estão compartilhando práticas (pedagógicas) no ambiente de ensino e aprendizagem, simultaneamente práticas de socialização ocorrem. De acordo com Gherardi (2009, p. 44)GHERARDI, S. Organizational knowledge: the texture of workplace learning. Nova York: John Wiley & Sons, 2009., “as teorias da prática veem as ações como ‘realizando-se’ ou ‘acontecendo’, como desempenhadas por meio de uma rede de conexões em ação”. É por meio da ação que o conhecimento se torna um fenômeno empírico ou observável, em que “o contexto, a coletividade, as ferramentas e as tecnologias, e a linguagem são os recursos disponíveis para a ação intencional”. As práticas enquanto manifestações do conhecimento prático “são dadas e criadas pelo entrelaçar de conhecimento ancorado no ambiente com o mundo material e social” (GHERARDI, 2009GHERARDI, S. Organizational knowledge: the texture of workplace learning. Nova York: John Wiley & Sons, 2009., p. 15), em que cada elemento possui um lugar e um sentido.

Por viverem quadros socializadores plurais (família, escola, trabalho etc.), às pessoas é disposto um sistema de referências cruzadas que combina as lógicas e os valores daquelas diferentes instâncias. Elas tecem uma rede de sentidos que articula as múltiplas experiências das socializações. Logo, é no sujeito que os sentidos das ações se efetivam, se cruzam e interagem de forma particular a ele, independentemente da coerência ou contradição de suas ações (enquanto produtos de socializações mais ou menos homogêneas ou plurais) (SETTON, 2009SETTON, M. G. J. A socialização como fato social total: notas introdutórias sobre a teoria do habitus. Revista Brasileira de Educação, v. 14, n. 41, p. 296-307, 2009. https://doi.org/10.1590/S1413-24782009000200008
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).

O termo mobilidade sistêmica, inaugurado por Balbim (2003)BALBIM, R. Práticas espaciais e informatização do espaço da circulação: mobilidade cotidiana em São Paulo. 597 f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003. e que corrobora a compreensão das práticas de socialização, ilumina as transformações sociais intensificadas com a divisão social e territorial do trabalho e com os modos de produção, aspectos que configuram o espaço (social e territorial) em múltiplas escalas.

Todavia, a noção de mobilidade transcende os deslocamentos físicos de indivíduos e grupos no cotidiano e no tempo histórico. Mobilidade abrange os deslocamentos físicos, virtuais ou simbólicos, as condições e as posições das pessoas e da sociedade. Assim, o termo também se relaciona às vontades, motivações e limitações individuais que emergem em função do lugar de vida, das condições socioeconômicas e políticas, dos modos de vida, da acessibilidade, do desenvolvimento científico e tecnológico em uma sociedade (BALBIM, 2003BALBIM, R. Práticas espaciais e informatização do espaço da circulação: mobilidade cotidiana em São Paulo. 597 f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003.). É nesse sentido que identificamos algumas interlocuções conceituais entre o tema, questões relacionadas ao lugar, à aprendizagem situada e ao patrimônio disposicional.

Ao aproximar da discussão as diferentes formas de mobilidade (BALBIM, 2003BALBIM, R. Práticas espaciais e informatização do espaço da circulação: mobilidade cotidiana em São Paulo. 597 f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003.), assume-se que a visão sistêmica de mobilidade considera o intercâmbio entre formas, capazes de possibilitar, impedir e transformar os seus conteúdos e os significados individuais e coletivos no cotidiano. As mobilidades não são isoladas e estabelecem relações de causalidade, substituição, complementaridade ou incompatibilidade entre si. Podem referir-se à mudança de posição geográfica ou social; à vontade de deslocar-se, conhecer e explorar novos mundos; à ascensão relacionada aos níveis de renda; às transformações na ocupação e às inter-relações com a profissão precedente; e à mobilidade geográfica, envolvendo a dimensão temporal e espacial dos movimentos.

O autor reforça que as mobilidades possuem temporalidades sociais distintas à medida que acompanham os ritmos e a reprodução da vida cotidiana, constituindo os sujeitos, suas histórias e o espaço. Quando se refere à vida cotidiana, ele dialoga com o urbano. Assim, todas as mobilidades são vistas por essa ótica.

A noção de deslocamento transcende o movimentar-se fisicamente. Ao retratar o lugar de permanência, da casa, do trabalho etc., o autor expressa que é possível estar simultânea e instantaneamente em diversos lugares pelas redes que as pessoas acessam e movimentam de um daqueles pontos. O deslocar-se não é visto separadamente dos comportamentos individuais ou coletivos e integra a cotidianidade por meio das relações sociais. Portanto, o ser humano é um ator social com práticas próprias e, por consequência, um produtor do espaço de circulação (BALBIM, 2003BALBIM, R. Práticas espaciais e informatização do espaço da circulação: mobilidade cotidiana em São Paulo. 597 f. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003.).

Quando se ilumina o lugar de origem pela ótica da mobilidade sistêmica, enfatiza-se que ele é, de igual modo, uma formação física, social e simbólica decorrente dos deslocamentos de um indivíduo no cotidiano, reforçando sua pluridimensionalidade e as inter-relações entre o dentro e o fora em sua constituição – particular aos indivíduos pelos distintos modos de apropriação e por suas vivências. Por isso, há muito do lugar de origem nas práticas sociais em outros espaços e destes naquele. Assim, põe-se peso às práticas de socialização enquanto vias de produção e trânsito dos efeitos dos deslocamentos dos sujeitos, efeitos que tendem a ser acondicionados na forma de disposições.

A socialização representa uma discussão pertinente como ponto de interseção entre mobilidade sistêmica, lugar de origem e patrimônio disposicional. Sendo um processo biográfico de incorporação de disposições oriundas da família, da classe de origem e dos sistemas de ação, a socialização respalda as relações entre o passado, o presente, as práticas vigentes e a história vivida (DUBAR, 2005DUBAR, C. A socialização: construção das identidades sociais e profissionais. Porto: Porto, 2005.). Essas disposições podem ser introjetadas por dois processos socializadores básicos:

  • Socialização primária: a família, na infância, que implica um conjunto de aprendizagens socialmente definidas;

  • Socialização secundária: desenvolvida em espaços como escola, organizações profissionais, instituições políticas, religiosas e culturais, mais racional e voluntária (BERGER; LUCKMANN, 1978BERGER, P.; LUCKMANN, T. A construção social da realidade. Petrópolis: Vozes, 1978.; LAHIRE, 2015LAHIRE, B. A fabricação social dos indivíduos: quadros, modalidades, tempos e efeitos de socialização. Educação e Pesquisa, v. 41, n. esp., p. 1393-1404, 2015. https://doi.org/10.1590/S1517-9702201508141651
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    ).

A adoção do conceito de mobilidade sistêmica como suporte à centralidade do lugar de origem no estudo do patrimônio disposicional contribui de diferentes maneiras, pois corrobora a percepção de que externalidades (físicas, sociais ou simbólicas) estão presentes no interior dos lugares de origem como resultado dos processos de socialização em diferentes espaços, estes últimos canalizados em forma de disposições acionadas ou inibidas em práticas sociais no âmago daqueles lugares pelos sujeitos.

Além disso, pela mobilidade sistêmica, é possível enfatizar a produção de individualidades e sentidos ao cotidiano pelos deslocamentos urbanos – que não apenas permeiam os lugares de origem, como também carregam características destes últimos nos espaços de transitoriedade dos indivíduos, também por intermédio das práticas de socialização. Seu sentido sistêmico reforça a simultaneidade (respeitadas as temporalidades) de ocorrência das mobilidades em um tempo presente, indo ao encontro da dinâmica do cotidiano e da compreensão sobre os indivíduos nessa esfera. Para além dessas questões, a adoção do conceito de mobilidade tratado demonstra, ainda, interligações entre lugar de origem, patrimônio disposicional e socialização, focalizando-se, neste ensaio, os meios populares.

Meios Populares e Suas Relações com Juventude e Trajetórias Escolares

Refletindo sobre os meios populares, foi inquietante a busca de um posicionamento a respeito de por que assumir neste estudo essa concepção. Para tanto, foram investigados os motivadores para o emprego da expressão em estudos nacionais que propuseram um diálogo entre juventude, meios populares e trajetórias escolares (PIOTTO, 2009PIOTTO, D. C. A escola e o sucesso escolar: algumas reflexões à luz de Pierre Bourdieu. Vertentes, v. 33, p. 48-60, 2009.), tais como os de Viana (1998VIANA, M. J. B. Longevidade escolar em famílias de camadas populares: algumas condições de possibilidade. 267 f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1998., 2000)VIANA, M. J. B. Longevidade escolar em famílias de camadas populares: algumas condições de possibilidade. In: NOGUEIRA, M. A.; ROMANELLI, G.; ZAGO, N. (org.). Família e escola: trajetórias de escolarização em camadas médias e populares. Petrópolis: Vozes, 2000. v. 2, p. 45-60., Setton (1999)SETTON, M. G. J. A divisão interna do campo universitário: uma tentativa de classificação. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, v. 80, n. 196, p. 451-471, 1999. https://doi.org/10.24109/2176-6681.rbep.80i196.985
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, Silva (1999)SILVA, J. S. “Por que uns e não outros?”: caminhada de estudantes da Maré para a universidade. 249 f. Tese (Doutorado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1999., Almeida (2006)ALMEIDA, W. A. Esforço contínuo: estudantes com desvantagens sócio-econômicas e educacionais na USP.141 f. Dissertação (Mestrado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006., bem como o livro de Lahire (1997)LAHIRE, B. O sucesso escolar nos meios populares: as razões do improvável. São Paulo: Ática, 1997. intitulado O sucesso escolar nos meios populares: as razões do improvável.

Setton (1999)SETTON, M. G. J. A divisão interna do campo universitário: uma tentativa de classificação. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, v. 80, n. 196, p. 451-471, 1999. https://doi.org/10.24109/2176-6681.rbep.80i196.985
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aponta a origem social e a trajetória escolar como indicadores de diferenciação social. O autor salienta que a renda familiar, a ocupação dos pais e o conhecimento de idiomas pelos estudantes podem espelhar as tendências de percurso, permitindo o reconhecimento das diferentes trajetórias no espaço acadêmico. Como Setton (1999)SETTON, M. G. J. A divisão interna do campo universitário: uma tentativa de classificação. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, v. 80, n. 196, p. 451-471, 1999. https://doi.org/10.24109/2176-6681.rbep.80i196.985
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se baseia na compreensão da origem social do indivíduo, sua pesquisa visa localizar o jovem, respaldando-o na distribuição de recursos, ancorando-se em Pierre Bourdieu no tocante aos capitais (econômico, cultural, social e simbólico).

Viana (2000)VIANA, M. J. B. Longevidade escolar em famílias de camadas populares: algumas condições de possibilidade. In: NOGUEIRA, M. A.; ROMANELLI, G.; ZAGO, N. (org.). Família e escola: trajetórias de escolarização em camadas médias e populares. Petrópolis: Vozes, 2000. v. 2, p. 45-60. analisou a longevidade escolar em famílias das camadas populares, observando haver relações conflitantes entre as lógicas familiar e escolar, tendendo a influenciar o insucesso escolar. As deficiências encontradas, sobretudo a baixa escolaridade dos pais, contribuem para a fragilização do conhecimento, apesar do esforço de algumas famílias para acompanhar as atividades escolares dos filhos (VIANA, 1998VIANA, M. J. B. Longevidade escolar em famílias de camadas populares: algumas condições de possibilidade. 267 f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1998.; PORTES, 2000PORTES, E. A. O trabalho escolar das famílias populares. In: NOGUEIRA, M. A.; ROMANELLI, G.; ZAGO, N. (org.). Família e escola: trajetórias de escolarização em camadas médias e populares. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 61-80.; SETTON, 2002SETTON, M. G. J. A teoria do habitus em Pierre Bourdieu: uma leitura contemporânea. Revista Brasileira de Educação, n. 20, p. 60-70, 2002. https://doi.org/10.1590/S1413-24782002000200005
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).

Na pretensão de entender os esforços de estudantes da Universidade de São Paulo com desvantagens socioeconômicas e educacionais, Almeida (2006)ALMEIDA, W. A. Esforço contínuo: estudantes com desvantagens sócio-econômicas e educacionais na USP.141 f. Dissertação (Mestrado) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006. enfatizou como um dos seus pontos de partida a análise da origem familiar. Nesse contexto, elucidou a ocupação, os recursos econômicos e os níveis de escolaridade dos pais. O autor observou que os pais dos estudantes investigados exercem profissões com status relativamente baixos (tais como motoristas, mecânicos, agricultores, domésticos etc.); possuem, no geral, escolarização de nível fundamental ou secundário; e recebem salários regulares.

Por sua vez, Lahire (1997)LAHIRE, B. O sucesso escolar nos meios populares: as razões do improvável. São Paulo: Ática, 1997. apresenta elementos caracterizadores que ajudam a definir os elementos de análise acerca do seu interesse de pesquisa. No prelúdio do seu livro, o autor expõe alguns dos elementos que fundamentam sua pesquisa com crianças de 8 anos de idade: níveis de formação, situações profissionais e lugar de moradia dos pais; conhecimento sobre o sistema escolar, acompanhamento da vida escolar, número de filhos; e as condições econômicas e culturais.

Em nenhum dos estudos anteriores, realizados nesses contextos de pesquisa, houve a conceituação de meios populares ou camadas. A indefinição do conceito de meios populares é amparada pela definição de aspectos objetivos (níveis de renda, escolaridade, ocupações etc.) e subjetivos (percepções de seus ocupantes, aspirações do viver no lugar, capital simbólico, sistema de gostos) que permeiam a vida em seu interior. Tais estudos retratam as trajetórias escolares e as influências familiares em seus percursos, debruçando suas análises em variáveis ou aspectos pré-organizados ou que refletem, em parte, pesquisas já empreendidas e, por conseguinte, já institucionalizadas academicamente (PIOTTO, 2009PIOTTO, D. C. A escola e o sucesso escolar: algumas reflexões à luz de Pierre Bourdieu. Vertentes, v. 33, p. 48-60, 2009.).

Com base nas questões discutidas, propõe-se neste ensaio um framework conceitual articulando teoricamente as concepções de lugar, patrimônio disposicional, aprendizagem situada e mobilidade sistêmica no âmbito da educação, tendo como contexto de discussão os meios populares. Trata-se de uma possibilidade de avanço na teorização e nas discussões sobre o tema. A seguir, a Fig. 1 sistematiza a proposta deste ensaio.

Figura 1
Framework conceitual que relaciona as temáticas.

Articulação Teórica com a Educação: Um Framework Conceitual

Para compreender a educação enquanto um campo de conhecimento, profissional e social – considerando os diferentes atores que o constitui –, é preciso analisar, além das políticas institucionais, estruturas de gestão educacional, de organização do ensino e da aprendizagem; o trabalho docente e a realidade social dos estudantes em termos materiais, econômicos e culturais; as subjetividades presentes na trajetória acadêmica dos estudantes tendo em vista diferentes realidades educacionais e sociais, agregando olhares geográficos a respeito das aprendizagens, influenciadas pelo lugar, tempo e modos de apropriação que cada sujeito possui; a socialização e as disposições na forma de pensar, ser e agir; as mobilidades, abarcando deslocamentos físicos, virtuais ou simbólicos; e, ainda, as posições das pessoas e da sociedade. A Fig. 1 apresenta as inter-relações dos conceitos discutidos neste ensaio.

O diálogo entre patrimônios disposicionais, mobilidade sistêmica, lugar e aprendizagem situada é oportuno por evidenciar os aspectos subjetivos na formação dos sujeitos, especialmente relacionados aos seus comportamentos no espaço acadêmico. Nesse sentido, o esforço reflexivo por conexões entre esses referenciais visa elucidar o engendramento das subjetividades e as formas como elas se objetivam nas práticas sociais dos discentes. Assim, vê-se como estratégicas e coerentes as associações pretendidas, já que os referenciais teóricos articulados pressupõem a análise da subjetividade produzida pela ação dos indivíduos nos espaços geográficos e em seus grupos de socialização. Desse modo, abordam-se imbricações centrais que justificam as aproximações teóricas deste estudo e dão sentido a elas.

Há uma congruência analítica ao apontar que tanto um indivíduo quanto um grupo produzem modos de apropriação de espaços e de geração de conhecimento por meio de socializações e de práticas que ocorrem em seu interior, distinguindo-se na associação de sentidos e de significados, quando observados pela ótica das individualidades ou de uma coletividade. Ao focalizar a apropriação de um lugar por um sujeito, pode-se considerar que as horizontalidades e as verticalidades são também produtos internos e externos das socializações e das práticas de seus moradores, e, por essa razão, os significados resultantes dos modos de viver e de utilizar o lugar são, de igual forma, consequências dos movimentos produzidos pelos indivíduos dentro e fora desse lugar.

Nessa direção, as pessoas mobilizam aprendizagens e, por conseguinte, conhecimentos em mão dupla: do lugar para o externo e deste para o primeiro, no desenrolar das práticas sociais que ocorrem em diferentes ambientes. Como o conhecimento possui um caráter situado, corpos, estruturas e artefatos carregam as características dos espaços de circulação dos indivíduos. Estes últimos, sendo produtores e produtos, produzem e são produtos destes – na perspectiva da mobilidade sistêmica.

Assim, por causa da característica sistêmica do conceito de mobilidade adotado neste ensaio e da ideia de simultaneidade das mobilidades de um indivíduo, é pertinente levar em conta que os trânsitos de materialidades e subjetividades entre os lugares e nestes, bem como nas aprendizagens, são canalizados e externalizados pelos comportamentos, mais precisamente pelas disposições individuais. Por isso, considera-se que os patrimônios disposicionais conduzem as múltiplas conexões possíveis e resultantes das mobilidades, das aprendizagens e do próprio lugar de origem – visto que as disposições são formadas mediante socializações passadas e presentes das pessoas e influenciam suas formas de pensar, ser e agir em determinados ambientes e situações, de maneira especial nos meios populares, marcados por condições sociais, demográficas, culturais e simbólicas idiossincráticas.

Considerações Finais e Agenda para Pesquisas

Este ensaio teve o propósito de realizar uma interlocução entre os diferentes conceitos apresentados – lugar, patrimônio disposicional, aprendizagem situada e mobilidade sistêmica – com o intuito de ampliar perspectivas para o estudo dos jovens dos meios populares e sua relação com a educação. Uma de suas contribuições centrais foi a inter-relação de perspectivas teóricas oriundas de diferentes áreas do conhecimento, a exemplo da sociologia, da geografia e da educação, constituindo uma proposta interdisciplinar. Novos diálogos entre áreas distintas podem propiciar uma ampliação de perspectivas para a investigação de fenômenos complexos no contexto contemporâneo, rompendo fronteiras de áreas disciplinares e contribuindo com o avanço do conhecimento.

Houve empenho não somente em expor as bases conceituais adotadas, como também em construir reflexões haja vista os conceitos exibidos. Como exemplo, salientam-se a noção de pluridimensionalidade do lugar, suas horizontalidades e verticalidades enquanto lócus e o uso do conceito de mobilidade sistêmica como fundo teórico. Outro aspecto considerado na mobilização dos conceitos foi a socialização, pois se fundamentou na premissa de que esta também está enraizada na operação teórico-prática dos aportes conceituais.

O aparato teórico-operacional da mobilidade sistêmica possui relevância neste estudo por conseguir tangibilizar as articulações das diferentes mobilidades de um indivíduo, simultâneas e no mesmo espaço – nesse caso, o lugar de origem –, seja físico, seja simbólico. Nesse âmbito, pode-se considerar que a representação do lugar é múltipla, mostrando-se próprio a cada indivíduo, e plural, constituído de diferentes camadas. As conexões propostas entre lugar, mobilidade sistêmica e aprendizagem situada corroboram e dão novas perspectivas de discussão ao conjunto de pesquisas sobre juventudes e, de maneira especial, juventudes populares.

Além disso, a proposta aqui apresentada elucida uma possível releitura sobre formação, trajetória de vida, origem e destino de jovens dos meios populares, dado o tensionamento pretendido a respeito da interpretação comum de que eles formam um grupo social homogêneo. Pelo contrário, a própria análise do patrimônio disposicional, juntamente com a pluridimensionalidade do lugar, as horizontalidades e verticalidades e a concepção de juventudes, denuncia a heterogeneidade interna desse grupo. Por fim, as proposições teórico-reflexivas tecidas aqui visaram agregar ainda mais densidade à teoria disposicionalista de Bernard Lahire.

Com base nos processos de socialização – como meios para os fluxos das disposições –, as inter-relações realizadas corroboram a elucidação de suas subjetividades e, por consequência, de seus desvelamentos ao campo da objetivação, haja vista que as disposições surgem do trabalho interpretativo de um pesquisador. Nesse contexto, acredita-se também que a mobilidade sistêmica, essencialmente, contribui para a explicação dos fluxos disposicionais nos diferentes ambientes e, sobretudo, no espaço educacional – em que pesem as relações sociais, as múltiplas aprendizagens, a geração do conhecimento, os significados e as apropriações do que é aprendido.

Como sugestões de pesquisas, podem ser realizados estudos nos seguintes moldes: que analisem o lugar de origem enquanto produtor e influenciador de disposições, considerando a produção de fotografias como ferramenta de análise; estudos teórico-metodológicos sobre retratos sociológicos que proponham um roteiro para coleta de dados, contemplando a produção de achados e fotografias pelos sujeitos pesquisados; e estudos teóricos que problematizem o conceito de meios populares e proponham imbricações com a análise dos patrimônios disposicionais. Essas são apenas algumas das possibilidades vislumbradas para novos estudos, o que não impede a concepção nem operacionalização de estudos com outros formatos e ênfases.

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Editora de seção: Ana Maria F. Almeida https://orcid.org/0000-0002-4504-0423

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    18 Abr 2022
  • Aceito
    22 Maio 2023
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