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ESTUDOS E PESQUISAS SOBRE EDUCAÇÃO, RAÇA, GÊNERO, E DIVERSIDADE SEXUAL

STUDIES AND RESEARCH ON EDUCATION, RACE, GENDER, AND SEXUAL DIVERSITY

ESTUDIOS E INVESTIGACIONES SOBRE EDUCACIÓN, RAZA, GÉNERO Y DIVERSIDADE SEXUAL

RESUMO

O presente artigo inaugura a nova seção Educação, raça, gênero e diversidade sexual a ser incluída no periódico Educação & Sociedade em 2023. Discute a importância da referida seção e da abordagem interseccional dos conceitos que apresenta juntamente com as questões das desigualdades econômicas e sociais, das discriminações e da violência e como essa complexidade se expressa na educação. Argumenta que essa análise tem possibilitado novas e instigantes reflexões para a melhor compreensão do fenômeno educativo e debate a relevância da divulgação científica das produções teóricas que abordam tais conceitos no campo da educação.

Palavras-chave
Educação; Raça; Gênero; Diversidade sexual.; Interseccionalidade

ABSTRACT

This article opens the new section Education, race, gender, and sexual diversity to be included in the periodical Educação & Sociedade in 2023. It discusses the importance of that section and the intersectional approach of the concepts by the presentation of issues as economic and social inequalities, discrimination, and violence, and how this complexity is expressed in education. It argues that this analysis has enabled new and thought-provoking reflections for a better understanding of the educational phenomenon and discusses the importance of scientific dissemination of theoretical productions that address such concepts in the field of education.

Keywords
Education; Race; Gender; Sexual diversity; Intersectionality

RESUMEN

Este artículo abre la nueva sección Educación, raza, género y diversidad sexual que se incluirá en el periódico Educação & Sociedade a partir de 2023. Discute la importancia de esa sección y el enfoque interseccional de los conceptos que presenta junto con los temas de las desigualdades económicas y sociales, la discriminación y la violencia y cómo esta complejidad se expresa en la educación. Argumenta que este análisis ha posibilitado nuevas y sugerentes reflexiones para una mejor comprensión del fenómeno educativo y discute la importancia de la divulgación científica de las producciones teóricas que abordan tales conceptos en el campo de la educación.

Palabras clave
Educación; Raza; Género; Diversidad sexual; Interseccionalidad

As análises sobre raça, gênero e diversidade sexual em nossa sociedade e na educação têm evidenciado uma imbricação de desigualdades, discriminações e violências, possibilitando-nos novas reflexões e colaborando para a melhor compreensão do fenômeno educativo.

Os resultados das pesquisas conferem autoridade às denúncias do movimento negro, de mulheres negras, feministas e LGBTQIA+ sobre o processo histórico de negação de direitos e de oportunidades sociais e educacionais que incide com maior contundência sobre pessoas negras, mulheres e população LGBTQIA+.

Somente em 2017, o Sinan (Sistema de Informação de Agravos de Notificação) recebeu 26.835 registros de estupros em todo o país, o que equivale a 73 estupros registrados a cada dia daquele ano. Destes, 89% tiveram mulheres como vítimas, com o maior percentual no Acre (99%) e o menor em São Paulo e Rio Grande do Sul (86%).

As mulheres também foram maioria entre as vítimas nos 209.580 registros de violência física naquele ano. Em todo o país, elas foram 67% das pessoas agredidas fisicamente nos casos presentes no Sinan. No Distrito Federal, esse índice chegou a 75%, e o mais baixo foi 54%, no Amazonas.

A perspectiva de gênero sobre os dados mostra que mulheres e homens são afetados de maneiras diferentes pela violência no país. Assim como a perspectiva de raça dá conta de que negras foram maioria entre as mulheres assassinadas em 2016 (64%) e homens negros foram 68% do total de pessoas assassinadas no Brasil naquele ano

(MAPA DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO, 2017MAPA DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO. 2017. Disponível em: https://mapadaviolenciadegenero.com.br/. Acesso em: 1º maio 2023.
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).

O avanço dos estudos sobre diversidade sexual revela uma série de violências motivadas pelas homofobia e transfobia perpetradas contra travestis, homens e mulheres trans nos mais diversos espaços e instituições sociais. Quando a elas se soma a raça, o quadro é ainda mais desolador.

Entre 2014 e 2017, o Sinan (Sistema de Informação de Agravos de Notificação) recebeu 12.112 registros de violência contra pessoas trans, cuja identidade de gênero foi classificada como transexual mulher, transexual homem ou travesti. Já em relação a pessoas cuja orientação sexual consta como homossexual ou bissexual e cuja identidade de gênero não foi identificada, foram 257.764 casos de violência no período.

Em 2017, ano mais recente com dados disponíveis, 76% dos registros tratavam de violência física, tanto para pessoas homo/bi quanto para pessoas trans. Os casos de violência sexual foram 8% dos casos de violência contra pessoas trans e 4% contra pessoas homo/bi

(MAPA DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO, 2017MAPA DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO. 2017. Disponível em: https://mapadaviolenciadegenero.com.br/. Acesso em: 1º maio 2023.
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).

As pessoas LGBTQIA+ na sua organização política e inserção acadêmica são as protagonistas do processo de indagação da hegemonia do conceito de gênero e seus limites para pensar a diversidade sexual. Graças a elas, hoje, a complexidade da diversidade sexual da nossa sociedade tem se tornado, aos poucos, uma questão social que exige políticas públicas, pesquisas e estudos, bem como assistimos a uma maior presença de pesquisadoras e pesquisadores LGBTQIA+ no universo acadêmico (OLIVEIRA, 2020OLIVEIRA, M. R. G. Nem ao centro nem à margem: corpos que escapam às normas e raça e gênero. Salvador: Devires, 2020.).

Aos poucos, temos sido reeducados — mesmo em meio a toda a violência provocada pela LGBTQIA+fobia — sobre o fato de que a diversidade sexual faz parte do acontecer humano ao longo da história, permeada por preconceitos e discriminações. Quanto mais conservadoras e reacionárias se tornam as sociedades e as religiões, mais os padrões de sexualidade se impõem e hierarquizam culturas, sujeitos e suas corporeidades.

A luta por uma educação pública, democrática, laica e de qualidade social conquistou avanços no campo dos direitos. Há uma vasta e excelente produção teórica educacional sobre esse tema, porém é preciso avançar mais e sair da armadilha do discurso universal que teme as diferenças e as exclui e entendê-las como constituintes da democracia.

O reconhecimento da diversidade e das diferenças precisa ser compreendido como integrante do direito à educação. A formação de professoras e professores, a gestão e a coordenação escolar, o currículo, os materiais didáticos, a organização dos tempos e espaços escolares ainda não assumiram o dever político, pedagógico nem ético de combater toda e qualquer forma de racismo, machismo, LGBTQIA+fobia.

Quanto tempo ainda levaremos para que estudantes e docentes lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transgêneros e intersexuais sejam reconhecidos/as e respeitados/as na sua diferença? Quando os estudos sobre a diversidade sexual deixarão de ser considerados um nicho epistemológico e serão compreendidos como reflexões e análises importantes para melhor entendermos a complexidade do fenômeno educativo, as práticas pedagógicas, as políticas educacionais, os currículos, a relação entre os direitos humanos, a diversidade e a educação?

Incluir gênero e diversidade sexual NA educação expressa uma pluralidade de desejos e intenções, desde o reconhecimento da necessária mudança cultural, até a urgência na construção de referências teóricas e metodológicas que problematizem os preconceitos e potencializem a dimensão ética, estética e humanizadora das diferenças, deixando de transformá-las somente em desigualdades

(DARSIE; SARAIVA, 2016DARSIE, C.; SARAIVA, E. S. Gênero e diversidade sexual na educação. Reflexão e Ação, v. 24, n. 1, p. 1-6, 2016. https://doi.org/10.17058/rea.v24i1.7495
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, p. 1).

Até a década de 1980, sobrevivia com força a dualidade entre sexo e gênero; o primeiro estava para a natureza, e o segundo, para a cultura. Uma das feministas que mais indagaram essa concepção foi a historiadora feminista norte-americana Joan Scott. Segundo ela, o conceito de gênero é uma categoria útil para a análise histórica trazendo novas perspectivas analíticas (PORTAL GELEDÉS, 2013PORTAL GELEDÉS. O conceito de gênero por Joan Scott: gênero enquanto categoria de análise. Portal Geledés, 2013. https://www.geledes.org.br/o-conceito-de-genero-por-joan-scott-genero-enquanto-categoria-de-analise/. Acesso em: 1º maio 2023.
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). Scott (1995)SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 71-99, jul.-dez. 1995. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/71721. Acesso em: 2 maio 2023.
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discute que as análises sobre a temática de gênero emergiram das lutas feministas e seus estudos nas décadas finais do século XX. As feministas adotaram o tema para questionar as teorias anteriores que não davam conta de explicar como as desigualdades entre homens e mulheres aconteciam.

Para Scott (1995)SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 71-99, jul.-dez. 1995. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/71721. Acesso em: 2 maio 2023.
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, o conceito de gênero como elemento constitutivo das relações sociais fundadas sobre diferenças percebidas entre os sexos implica quatro elementos relacionados entre si: simbólico, normativo, político e subjetivo. Inspirada nos estudos de Michel Foucault, a autora compreende o gênero como um saber acerca das diferenças sexuais, e, havendo uma relação inseparável entre saber e poder, gênero estaria imbricado com relações de poder, sendo, nas suas palavras, uma primeira forma de dar sentido a essas relações. Ela interessa-se em compreender as formas como se constroem significados culturais para essas diferenças, dando-lhes sentido e, consequentemente, posicionando-as em relações hierárquicas.

Atualmente, os estudos que abarcam as vivências das mulheres trans nos ajudam a ampliar o conceito de gênero. Segundo Silva et al. (2022, p. 9)SILVA, I. C. B.; ARAÚJO, E. C.; SANTANA, A. D. S.; MOURA, J. W. S.; RAMALHO, M. N. A.; ABREU, P. D. A violência de gênero perpetrada contra mulheres trans. Revista Brasileira de Enfermagem, v. 75, n. 2, p. 1-9, 2022. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2021-0173
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Define-se “gênero” como um conjunto de comportamentos socio-culturais impostos, delimitados pela lógica binária para definir o que é ser homem ou mulher. Essa definição dificulta a autopercepção sobre si, que é subjetiva e dinâmica. A identidade de gênero congrega um conjunto de valores, motivações e experiências apreendidas ao longo da vida que legitima outras formas de ser. As pessoas que se identificam nos padrões de aparências e comportamentos culturalmente impostos ao sexo biológico são denominadas homem ou mulher cisgênero ou cis, cuja identidade e expressão de gênero correspondem ao sexo (1-3). A linearidade entre corpo-sexo-gênero na sociedade ocidental faz com que pessoas transgênero ou trans não se identifiquem com o gênero atribuído ao nascimento, legitimado por meio de características sexuais anatômicas. Assim, mulheres transgênero não se reconhecem no gênero masculino designado ao nascimento, mas, ao longo da vida, reconhecem-se no gênero feminino como mulheres transexuais ou travestis.

Um dos resultados desse movimento é o aprofundamento da análise sobre a violência de gênero.

Ressalta-se que a violência de gênero envolve três estruturas sociais – o patriarcado, o machismo e o capitalismo –, que agem de modo insidioso e operam por meio de lógicas que vão hierarquizar corpos e vida. As relações de poder que permeiam a sociedade e as famílias, e que se valem da inferiorização do gênero feminino mediante a supremacia do patriarcado, alimentam a violência de gênero reproduzida contra as mulheres trans. Essa violência pode resultar em assassinatos, estupros, agressões físicas, verbais, psicológicas, sexuais, coerção, ataques em ambientes públicos ou privados, discriminação em locais de trabalho formal, serviços de saúde e instituições de ensino

(SILVA et al., 2022SILVA, I. C. B.; ARAÚJO, E. C.; SANTANA, A. D. S.; MOURA, J. W. S.; RAMALHO, M. N. A.; ABREU, P. D. A violência de gênero perpetrada contra mulheres trans. Revista Brasileira de Enfermagem, v. 75, n. 2, p. 1-9, 2022. https://doi.org/10.1590/0034-7167-2021-0173
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, p. 9).

Se nos estudos de gênero vemos avanços teóricos e políticos quando sujeitos diversos começam a produzir conhecimento indagando e ressignificando o conceito, revelando o seu alcance e os seus limites, com a raça ocorre situação semelhante.

O conceito de raça também foi ressignificado pelos sujeitos que a vivenciam, na vida e, literalmente, na pele. No caso específico do Brasil, esse processo deu-se no campo acadêmico por intermédio da releitura realizada pelas análises das ciências naturais e sociais, bem como no universo político por meio da ação incisiva do movimento negro. Pode-se dizer que o movimento negro foi o protagonista pela ressignificação do conceito de raça, no século XX. Hoje, é também possível dizer que a raça é uma categoria útil de análise histórica, sociológica, antropológica, política, econômica e educacional sobre as relações raciais e o racismo brasileiro.

Segundo Munanga (2008)MUNANGA, K. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. Inclusão social: um debate necessário?, 2008. Disponível em: https://www.ufmg.br/inclusaosocial/?p=59. Acesso em: 2 maio 2023.
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No entanto, o conceito [de raça] persiste tanto no uso popular como em trabalhos e estudos produzidos na área das ciências sociais. Estes, embora concordem com as conclusões da atual Biologia Humana sobre a inexistência científica da raça e a inoperacionalidade do próprio conceito, justificam o uso do conceito como realidade social e política, considerando a raça como uma construção sociológica e uma categoria social de dominação e de exclusão.

As análises teóricas sobre a imbricação entre raça, gênero e diversidade sexual se tornam mais desafiadoras e mais complexas quando a elas somamos, de maneira interseccional, as questões de classe social. Em uma perspectiva interseccional, é possível perceber que as desigualdade e exploração econômicas agravam ainda mais essa conjuntura e provocam maior impacto na vida de pessoas negras, mulheres e homens cis e pessoas trans. Tudo isso afeta as chances de integração dos sujeitos na sociedade, a garantia de direitos e a capacidade de mobilidade ou ascensão social.

Na primeira década do século XXI, a retomada no Brasil dos estudos de feministas negras norte-americanas e a construção de teorizações de feministas negras brasileiras trouxeram avanços na forma de interpretar e analisar o entrecruzamento entre gênero, raça, diversidade sexual e classe para a compreensão da realidade brasileira, uma realidade complexa que nos mostra o quanto esses conceitos estão imbricados, tensionados e precisam ser analisados juntamente com a questão das desigualdades do nosso país. Ou seja, vivem uma complexa relação de interseccionalidade.

Collins e Bilge (2021, p. 15)COLLINS, P. H.; BILGE, S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo, 2021. analisam:

Nos primeiros anos do século XXI, o termo “interseccionalidade” passou a ser amplamente adotado por acadêmicas e acadêmicos, militantes de políticas públicas, profissionais e ativistas de diversos locais. Estudantes de ensino superior e docentes de áreas interdisciplinares, como estudos feministas, estudos raciais, estudos culturais, estudos da civilização estadunidense e da mídia, bem como da sociologia, ciência política, da história e de outras disciplinas tradicionais, encontram a interseccionalidade em cursos, livros e artigos teóricos.

Desse modo, para as autoras supracitadas, a interseccionalidade pode ser compreendida como uma forma de explicar a complexidade do mundo, das pessoas e das experiências humanas. Trata-se de entender que as relações de poder que envolvem raça, classe, gênero, orientação sexual, por exemplo, não são entidades distintas nem mutuamente excludentes. São categorias que se sobrepõem e funcionam de maneira unificada. Apesar de em geral ser invisíveis, as relações interseccionais de poder afetam de forma profunda o convívio social (COLLINS e BILGE, 2021COLLINS, P. H.; BILGE, S. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo, 2021., p.16).

Essas questões estão, hoje, na ordem do dia. Tensionam as políticas públicas, avançam ainda muito lentamente no mundo privado, estão presentes nas discussões teóricas e na produção do conhecimento no Brasil, nas Américas e outras partes do mundo.

Na produção teórica educacional, a perspectiva interseccional entre classe, raça, gênero e diversidade sexual tem avançado nos estudos e pesquisas, mas precisam avançar mais. Abordagens diversas tentam dialogar com essa complexidade da realidade brasileira presente na escola e que demanda políticas educacionais que caminhem rumo à equidade e à igualdade como uma das formas de enfrentamento das desigualdades educacionais, das violências de gênero, do racismo e da LGBTQIA+fobia.

Todavia, essas abordagens ainda se encontram dispersas pelas várias publicações do campo educacional, o que dificulta o processo de se tornarem mais conhecidas e debatidas pelas pesquisadoras e pelos pesquisadores da área. Uma seção a elas dedicada em um periódico de reconhecimento internacional será, portanto, um passo importante e uma construção inédita no campo epistemológico, dando visibilidade não somente a essa produção, como também aos sujeitos e às sujeitas que as produzem, das mais diversas regiões e instituições de pesquisa do nosso país.

Educação, Raça, Gênero e Diversidade Sexual na Perspectiva da Interseccionalidade

Classe, raça, gênero, diversidade sexual, religiosidades, idades, entre outros são constituintes da realidade social e pedagógica na qual toda e qualquer prática educativa é realizada. Educar, como sabemos, é mais do que ensinar e aprender e do que dominar metodologias. Consiste em um campo denso e, para que aconteça de forma emancipatória, precisa realizar-se articuladamente à justiça social. Isso vale tanto para as práticas quanto para as políticas educacionais da educação básica e do ensino superior.

Se falamos em educação e justiça social, fatalmente entramos no debate da igualdade e da equidade e nos contrapomos à lógica de mercado que impera nas sociedades capitalistas e se impõe a todas as instituições sociais, entre elas a escola.

Na contramão do mercado como eixo condutor da vida na perspectiva capitalista, a partir do século XX, construímos lutas sociais em prol de uma cidadania mais plural, do direito à diferença, de uma igualdade que desvele o trato desigual que recai historicamente sobre coletivos sociais diversos que são transformados em desiguais e inferiores porque são considerados fora do padrão ocidental hegemônico de humanidade.

No campo da pesquisa e da produção teórica educacional, ao longo do terceiro milênio, estudos, pesquisas, teorizações, estados da arte avançam e problematizam cada vez mais a presença do racismo, do machismo e da LGBTQIA+fobia na escola e fazem-nos repensar até que ponto temos concretizado o direito à educação que reconhece e respeita as diferenças (SILVA; REGIS; MIRANDA, 2018SILVA, P. V. B.; REGIS, K.; MIRANDA, S. A. (org.). Educação e relações étnico-raciais: estado da arte. Curitiba: NEAB/UFPR, 2018.; SANTIAGO, 2019SANTIAGO, F. Eu quero ser sol: crianças pequenininhas, culturas infantis, creche e intersecção. São Carlos: Pedro & João, 2019.; VIANNA; CARVALHO, 2020VIANNA, C.; CARVALHO, T. Formação e prática docente: sobre a visibilidade das professoras lésbicas. Formação Docente, v. 12, n. 24, p. 77-90, 2020. https://doi.org/10.31639/rbpfp.v12i24.336
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; DALLAPICULA et al., 2021DALLAPICULA, C.; TORRES, M. A.; OLIVEIRA, M. R. G.; ROCON, P. C. Interseccionalizando em educação: lutas sociais e direito à diferença. Revista Brasileira de Estudos da Homocultura, v. 4, n. 13, p. 23-32, 2021. https://doi.org/10.31560/2595-3206.2021.13.12727
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; JUNQUEIRA, 2022JUNQUEIRA, R. D. A invenção da ideologia de gênero: um projeto reacionário de poder. Campo Grande: Letras Livres, 2022.; SILVA, 2022SILVA, P. S. Educação escolar quilombola: das resistências negras aos contornos pedagógicos na Comunidade Quilombola de Casca (RS). São Paulo: Pragmatha, 2022.). As análises estendem-se para a compreensão das políticas educacionais, a gestão da escola, o currículo, a relação pedagógica tanto na educação básica quanto no ensino superior, especialmente na formação inicial e continuada de professoras e professores.

Ao mesmo tempo, também assistimos a um aumento do número de estudos e pesquisas que analisam a importância da educação democrática, laica, de qualidade social que prima pelo antirracismo e pela igualdade de gênero (DINIZ, 2008DINIZ, N. F. Educação, relações de gênero e diversidade sexual. Educação & Sociedade, Campinas, v. 29, n. 103, p. 477-492, maio/ago. 2008. https://doi.org/10.1590/S0101-73302008000200009
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; COELHO; SILVA, 2021COELHO, W. N. B.; SILVA, M. F. Ensino médio e educação para as relações étnico-raciais em produções acadêmicas (2008-2018). Revista InterSaberes, v. 16, n. 38, p. 559-583, 2021. https://doi.org/10.22169/revint.v16i38.2119
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; SILVA et al., 2021SILVA, G. M.; SILVA, R. A. A.; DEALDINA, S. S.; ROCHA, V. G. Educação quilombola: territorialidades, saberes e as lutas por direitos. São Paulo: Jandaíra, 2021.; CARINE, 2023CARINE, B. Como ser um educador antirracista? São Paulo: Planeta do Brasil, 2023.).

Enquanto nas ciências sociais as investigações sobre raça, gênero e diversidade sexual vêm sendo realizadas faz um bom tempo, no campo teórico educacional essa produção ainda carece de maior investimento.

Aos poucos, aumentam as pesquisas educacionais sobre a análise do espaço escolar e a presença do racismo, machismo, LGBTQIA+fobia e intolerância religiosa e a ausência dessa discussão na formação inicial de professoras e professores. Também vêm crescendo investigações acerca dessas temáticas, sua atuação interseccional e a formação em serviço. Autoras e autores apontam para a urgência de uma reeducação crítica de estudantes, docentes, demais profissionais da educação e comunidade sobre essas questões (JUNQUEIRA, 2009JUNQUEIRA, R. D. (org.). Diversidade sexual na educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Brasília: MEC, Secad, Unesco, 2009.; PASSOS, 2011PASSOS, M. (org.). A mística da identidade docente: tradição, missão e profissionalização. Belo Horizonte: Fino Traço, 2011.; OLIVEIRA, 2017OLIVEIRA, N. M. S. Mulheres negras intelectuais da periferia. Rio de Janeiro: Imperial Novo Milênio, 2017.; RUFINO, 2019RUFINO, L. Pedagogia das encruzilhadas. Rio de Janeiro: Mórula, 2019.).

Ademais, os estudos discutem a escola como espaço de socialização, indo além da relação ensino-aprendizagem, compreendendo-a como um espaço sociocultural (DAYRELL, 1996DAYRELL, J. A escola como espaço sócio-cultural. In: DAYRELL, J. (org.). Múltiplos olhares sobre educação e cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1996.). A questão das diferenças e das desigualdades, aos poucos, vem sendo compreendida como mais uma urgência da formação educacional para docentes e discentes, mesmo como uma forma de combater ideias extremistas que invadem a vida dos estudantes e das estudantes, levando-os a atos violentos que resultam em mortes, como, por exemplo, os mais recentes ataques a escolas e creches, que se acirraram nos anos de 2022 e 2023.

Não podemos mais incorrer no erro de interpretar as diferenças, as desigualdades e a violência como estanques e/ou como algo exterior à escola (BELLO-RAMÍREZ; PEREIRA-VIANNA, 2021BELLO-RAMÍREZ, A.; PEREIRA-VIANNA, C. Profesoras en medio de la violencia armada: una pedagogía visceral desde las favelas de Rio de Janeiro. Revista CS, n. 33, p. 11-40, abr. 2021. https://doi.org/10.18046/recs.i33.4106
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). A imbricação entre elas salta aos olhos neste século XXI. Se a escola é uma instituição social, elas se fazem presentes nos tempos e espaços escolares da educação básica e do ensino superior.

Diante de tudo isso, é imperativo que a produção teórica educacional se dedique ainda mais à interpretação e análise desses fenômenos por meio de estudos e pesquisas que enfrentem o desafio de interpretar o fenômeno educacional da atualidade e seu impacto sobre a vida dos sujeitos da educação em uma perspectiva crítica e que articule de forma interseccional as questões de classe, raça, gênero e diversidade sexual.

Construir um espaço para a publicação dessa produção crítica e sua divulgação científica se configura como papel importante, atual e sintonizado com a dinâmica do tempo dos periódicos educacionais, principalmente os de alcance internacional. Esse lugar para as instigantes produções teóricas, com excelência acadêmica sobre o tema, faz-se necessário e urgente. Não é possível mais que as pesquisadoras e os pesquisadores que se dedicam às questões interseccionais de raça, gênero, diversidade sexual, entendendo a sua complexidade na sociedade de classes, acabem encontrando mais espaço nos periódicos de outras áreas do conhecimento do que nos da educação.

Diante do exposto, Educação & Sociedade passará a contar com uma nova seção dedicada aos estudos, às pesquisas e às reflexões teóricas sobre raça, gênero, diversidade sexual e educação e seus múltiplos desdobramentos e cruzamentos, tais como: desigualdades econômicas e sociais, igualdade, equidade, ações afirmativas, interculturalidade, entre outros, de acordo com perspectivas descolonizadoras e críticas.

Referências

  • BELLO-RAMÍREZ, A.; PEREIRA-VIANNA, C. Profesoras en medio de la violencia armada: una pedagogía visceral desde las favelas de Rio de Janeiro. Revista CS, n. 33, p. 11-40, abr. 2021. https://doi.org/10.18046/recs.i33.4106
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  • CARINE, B. Como ser um educador antirracista? São Paulo: Planeta do Brasil, 2023.
  • COELHO, W. N. B.; SILVA, M. F. Ensino médio e educação para as relações étnico-raciais em produções acadêmicas (2008-2018). Revista InterSaberes, v. 16, n. 38, p. 559-583, 2021. https://doi.org/10.22169/revint.v16i38.2119
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  • COLLINS, P. H.; BILGE, S. Interseccionalidade São Paulo: Boitempo, 2021.
  • DALLAPICULA, C.; TORRES, M. A.; OLIVEIRA, M. R. G.; ROCON, P. C. Interseccionalizando em educação: lutas sociais e direito à diferença. Revista Brasileira de Estudos da Homocultura, v. 4, n. 13, p. 23-32, 2021. https://doi.org/10.31560/2595-3206.2021.13.12727
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  • DARSIE, C.; SARAIVA, E. S. Gênero e diversidade sexual na educação. Reflexão e Ação, v. 24, n. 1, p. 1-6, 2016. https://doi.org/10.17058/rea.v24i1.7495
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Editora de seção: Ivany Pino. https://orcid.org/0000-0001-6227-972X

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    12 Maio 2023
  • Aceito
    25 Maio 2023
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