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A DINÂMICA CONTRADITÓRIA DA FORMAÇÃO NA ATUAL SOCIEDADE LIBERAL

THE CONTRADCTIONAL DYNAMICS OF EDUCATION IN TODAY’S LIBERAL SOCIETY

LA DINÂMICA CONTRADITÓRIA DE LA FORMACIÓN EN LA ACTUAL SOCIEDAD LIBERAL

RESUMO

Na sociedade (neo)liberal, o princípio de liberdade, garantido pelo direito, convive com a racionalidade econômica do capital, que faz do homem um elemento funcional seu. Por isso, o sistema educacional tem de oferecer as condições tanto para uma formação humana do cidadão quanto para a formação do futuro profissional. A atual tendência política faz prevalecer as demandas econômicas – falando de capital humano, competência profissional, economização. Em vez de continuar nesse caminho, cabe à pedagogia encontrar um equilíbrio entre as duas concepções formativas.

Palavras-chave
Liberdade juridificada; Racionalidade econômica; Formação cidadã; Capital humano

ABSTRACT

In the neoliberal society, the principle of liberty, which is guaranteed by law, combines with the economic rationality of the capital, that transforms human being into its functional element. Therefore, the educational system must offer the conditions for a humanistic formation in terms of citizenship, as well as in favors of the formation of professionals. The actual political tendency prefers the economic demands–discussing human capital, professional competence, or economization. Instead of continuing this way, pedagogy should try to find out a balance between both ideals of formation.

Keywords
Legal liberty; Economic rationality; Formation to citizenship; Human capital

RESUMEN

En la sociedad (neo)liberal, el principio de libertad, garantizado por el derecho, convive con la racionalidad económica del capital, que hace del hombre un elemento funcional suyo. Así, el sistema educacional tiene que ofrecer tanto las condiciones para una formación humana del ciudadano, como para la formación del futuro profesional. La actual tendencia política hace prevalecer las demandas económicas- hablando del capital humano, competencia profesional, economización. No se trata de continuar en este camino, sino la pedagogía encontrar un equilibrio entre las dos concepciones formativas.

Palabras-clave
Libertad juridificada; Racionalidad económica; Formación ciudadana; Capital humano

Introdução

O sistema educacional e as ideias de formação que o sustentam refletem o espírito vigente na sociedade. A constatação vale também para a situação atual. A avaliação e crítica, dirigidas ao status quo político-social, colocam em xeque os projetos e as diretrizes que definem o trabalho educativo e vice-versa; os projetos e trabalhos realizados na área da educação têm forte influência no desenvolvimento e destino da sociedade. É nesse relacionamento mútuo que o entendimento e a função do conceito de formação se situam.

A interdependência entre o campo político-social e aquele da educação faz necessária uma breve caracterização de alguns impulsos típicos que especificam a atual sociedade liberal1 1 Prefiro não usar o predicado neoliberal, porque ele volta à concepção mais bruta da origem do pensamento liberal. Neoliberal indica uma suposta irrelevância das políticas sociais praticadas ao longo dos últimos dois séculos. , pois qualquer perspectiva crítica pressupõe a compreensão de sua lógica interna. As observações focalizarão fatores que mais influenciam o sistema educacional e, de maneira especial, as universidades. A partir daí será possível, num segundo passo, identificar seus reflexos na reformulação contínua das demandas com as quais a sociedade liberal vem confrontando o campo pedagógico. Evidencia-se, assim, a tensão hoje vivida entre o ideal iluminista da formação do ser humano como cidadão e, por outro lado, as expectativas da sociedade liberal com vistas à dinâmica de sua transformação contínua.

Caraterísticas da Atual Sociedade (Neo)Liberal

Como primeira caraterística da sociedade na qual vivemos, salta aos olhos o convívio surpreendente do espírito de liberdade com a economia capitalista, pois se trata de dois campos regidos por princípios aparentemente incompatíveis: o princípio da liberdade humana, a ser garantido pelo sistema do direito; e o da objetificação e coisificação do ser humano, promovido pela racionalidade do sistema capitalista2 2 A lógica do sistema liberal na sua forma mais consistente é exposta pela filosofia do direito de Georg W. F. Hegel (2021), ao passo que a tese da coisificação do ser humano na economia capitalista foi fundamentada por Karl Marx. Ver sobre esse tema Flickinger (2023). . Curioso é o fato de que somente juntos os dois campos, embora com espíritos opostos, constituam a sociedade liberal como um todo.

Não é este o lugar para esclarecer as condições sob as quais essa constelação se tornou possível. Já amplamente referida em outro trabalho3 3 Sobre esse tema, remeto o leitor ao item 3.2.4 do livro A filosofia política na sombra da secularização (Flickinger, 2016). , basta aqui resumir que a construção liberal é possibilitada pelo reconhecimento mútuo das restrições de validade do reino do direito liberal e do campo estruturado pela economia capitalista. Afinal, o sistema do direito pressupõe que os indivíduos são sujeitos livres e os trata como se o fossem. Eis o critério que restringe seu campo de manobra e garante a implementação da liberdade como liberdade juridificada. Por outro lado, a economia capitalista lida com os mesmos seres humanos tratando-os como fatores calculáveis em termos quantitativos, isto é, como objeto-mercadoria. Desse modo, as duas áreas não invadem uma a outra; ao contrário, elas oferecem, cada uma, o espaço necessário para que a outra possa fazer valer seu respectivo princípio. Essa sua complementaridade mútua é a condição sine qua non do convívio do espírito de liberdade com a economia capitalista. Quem quiser entender o cerne do modelo liberal, terá de contar com essa configuração. Esta caracteriza o modelo desde sua origem. A suspensão de um ou outro de seus componentes levaria a sua implosão.

Uma consequência da construção liberal é inevitável: os indivíduos estão sendo abordados numa perspectiva bifurcada. Na perspectiva do direito, eles são protegidos como pessoas de direito e cidadãos livres, ao passo que a lógica econômica os toma como fatores materialmente calculados. Essa abordagem bifurcada dos indivíduos se torna um desafio também para a pedagogia.

A segunda característica importante da sociedade liberal, que afeta a pedagogia de modo profundo, consiste na perda de pressupostos valorativos, minimamente consentidos pela população. Uma heterogeneidade cada vez maior nos campos culturais, religiosos e, não por último, ideológicos dificulta a elaboração de matrizes políticas capazes de lidar com a situação. Razões tanto endógenas – tais como desigualdade social, diversidade de convicções religiosas, ou ideologização da política – quanto externas – entre outros a migração global, problemas de língua, a multiculturalidade – exigem caminhos novos para lidar com as dificuldades daí oriundas. Um Estado que se autoentende como democrático deveria dar voz à diversidade das correntes e garantir seu reconhecimento político-social; uma tarefa que coloca em xeque valores e diretrizes políticos tradicionais. São, antes, as gerações novas que precisam aprender a lidar com tais desafios.

Como terceiro aspecto marcante da sociedade liberal-capitalista, destaca-se a confiança na ideia do progresso contínuo. Dá para perceber sua dinâmica recente, por exemplo, na invasão desenfreada da tecnologia da informação (TI) não apenas na área econômica e na administração pública, senão também na vida cotidiana. Essa tecnologia traz consigo novos modos de interação e formas de comunicação, gerando mudanças radicais no comportamento e nos hábitos sociais. Um dos efeitos mais irritantes no dia a dia é a expectativa de que cada um de nós teria a obrigação de estar sempre disposto a reagir aos apelos daqueles que invadem nossa privacidade.

Independentemente da vontade dos indivíduos, sua integração no sistema da TI se dá pela sua exposição coletiva às diretrizes impostas por essa tecnologia. Querer progredir social e economicamente exige a vontade de entregar-se a um mundo cada vez mais complexo e pouco transparente. Logo, vê-se marginalizado quem não se integra ou nem consegue integrar-se nas redes socais criadas por essa tecnologia. A interação informacional sobrepõe-se à interação social. Onipresentes, os meios técnicos não servem mais ao homem; é o homem que serve à tecnologia, contribuindo assim à construção de uma vida virtual alheia à realidade.

Por mais proveitoso que seja o apoio da tecnologia avançada para facilitar a vida cotidiana, ele incorre no risco de se perder de vista o caráter essencialmente social do ser humano e as necessidades que daí brotam. Como os novos modos de comunicação e interação invadem hoje a vida desde a infância, abre-se um leque amplo de questões para a pedagogia de todas as faixas etárias. Aproveitar as vantagens das inovações e reduzir, ao mesmo tempo, os riscos por elas gerados são o desafio.

Outro exemplo da fé perigosa no progresso contínuo se encontra na política ambiental, uma área com importância crescente para a pedagogia. Na política prevalece a convicção de poder enfrentar os efeitos desastrosos da exploração excessiva do meio ambiente mediante um instrumentário técnico sofisticado. A denominação tecnologia ambiental indica a expectativa de poder confiar no sucesso do trabalho técnico-científico à procura de soluções. Perde-se a noção histórica de que foi a própria atuação do homem que causou grande parte dos problemas ambientais. Perde-se, também, a noção de que o próprio ser humano faz parte de seu ambiente; impossível, portanto, tratar o ambiente como mero objeto instrumentalizável.

Quando se fala hoje de conceitos como sustentabilidade ou balanço ecológico, alude-se, em primeira linha, a critérios técnico-econômicos, em vez de refletir sobre a responsabilidade histórica e ético-moral do homem. Uma insuficiência que se vinga, colocando sobretudo as gerações jovens em alerta, já que se trata de determinantes de sua vida futura. É nesse campo que a pedagogia provavelmente tenha o trabalho mais importante e árduo pela frente.

O quarto elemento típico da sociedade hodierna denuncia a estratégia de avaliar as relações sociais à base do cálculo quantificador da economia. É fato que o dinheiro como meio por excelência na construção da vida em comunidade decide sobre reconhecimento e status social da pessoa. Quando se trata do espaço econômico, isso não surpreende. A economia capitalista alimenta-se da submissão de todos os componentes da produção e distribuição ao cálculo quantificador, expresso pelo dinheiro, algo que vale também para o ser humano como fator básico dessa economia, porém a função do dinheiro não se esgota nisso. Ela faz com que se abstraia do homem como indivíduo concreto, de suas capacidades e seus déficits. Sua caraterização como capital humano, um conceito típico do cálculo econômico moderno, não deixa dúvidas. O conceito equipara os indivíduos mediante a quantificação de seu valor de troca, desenraizando-os de seus vínculos sociais e desprezando seu potencial e suas necessidades particulares. Como é que o sistema educacional enfrenta tais experiências? Uma questão legítima, pois as atuais políticas na área da educação adotam essa orientação economicista não só no seu vocabulário, senão na avaliação geral do trabalho pedagógico.

Uma quinta marca da sociedade liberal, que afeta o campo educacional com maior intensidade, está nas transformações cada vez mais rápidas que ocorrem em todas as áreas da vida individual e da vida coletiva. Além do desenvolvimento tecnológico, trata-se de mudanças nas preferências culturais e econômicas. Elas mexem com as formas tradicionais da inserção do indivíduo no seu ambiente social.

Tomemos, em primeiro lugar, a integração das pessoas no mercado de trabalho. Aí, a modificação contínua das exigências pessoais impede a chance de segurar um emprego duradouro à base de uma única formação profissional. É que as exigências no que se refere à qualificação profissional mudam tanto em relação às competências técnico-científicas quanto no que tange aos chamados soft skills, isto é, a capacidade de cooperar, a flexibilidade de adaptar-se a situações novas etc. Quem não quer ou não pode corresponder a tais exigências cai fora, vendo-se obrigado a recorrer a outras formas de sustentação no mercado informal. O número crescente de startups e de trabalho sem carteira disso dá prova.

Outro exemplo: o que Christoph Türcke (2010)TÜRCKE, C. Sociedade excitada: filosofia da sensação. Campinas: Editora da Unicamp, 2010. chama de sociedade excitada tem como pano de fundo a dificuldade de acompanhar as transformações na sociedade atual, uma dificuldade que gera, ao seu avesso, o hábito de gozar e entregar-se à imediatidade das situações vividas. É a instantaneidade das sensações que conta. Ela diminui o interesse em vincular as experiências ao contexto do qual elas emanam, ou em preocupar-se com a projeção da vida futura. Desse modo, não se reflete mais o significado biográfico, intrínseco ao conceito de experiência, tampouco se constroem relações sociais estáveis para evitar decepções mais profundas. Esconde-se aí uma tendência cultural que o trabalho pedagógico não pode ignorar.

Outros aspectos da sociedade atual com desafios sérios para a pedagogia e as políticas de educação poderiam ser enumerados: a codificação da linguagem e sua redução à função informativa; a perda da consciência histórica; a pressão coletiva de adequar o hábito social a figuras idolatradas; ou a primazia do olhar em detrimento do ouvir; o boom da educação a distância; sem falar da diferenciação entre a pedagogia formal e a informal4 4 Sobre essa diferença, ver, entre outros, Maria Stela Santos Graciani (2015) e Hans-Uwe Otto (2009). . Todavia, os aspectos referidos bastam para dar uma ideia dos problemas e desafios, aos quais a pedagogia está procurando respostas. Capital humano, competência profissional, formação humana, educação a distância, economização e monetarização são as frentes da luta da pedagogia diante do atual sistema educacional que deixa seus eixos tradicionais para trás.

Reflexos das Tendências Político-Sociais no Sistema Educacional

O olhar bifurcado para os indivíduos enquanto cidadãos livres, por um lado, e, por outro, enquanto fator econômico e mercadoria afeta diretamente a articulação das demandas pedagógicas em relação ao sistema educacional. A pedagogia tem de lidar com a tensão entre os dois polos. Um desses polos é “a perspectiva do ser humano integral, destacando os aspectos biológico, ético, racional e estético como elementos centrais da formação” (GOERGEN, 2019GOERGEN, P. Bildung ontem e hoje: restrições e perspectivas. In: DALBOSCO, C. A.; MÜHL, E. H.; FLICKINGER, H.G. (org.). Formação humana (bildung): despedida ou renascimento? São Paulo: Cortez, 2019. p. 15-34., p. 16). Ele aponta à matriz da formação humanizante e quer ajudar o indivíduo a tornar-se o ser social, que participa ativamente, como membro responsável e cidadão, na construção da comunidade democrático-liberal e do Estado do direito. Nisso, legitima-se a ideia da formação humana (Bildung).

Um de seus defensores talvez mais severos tenha sido Wilhelm von Humboldt (2004)HUMBOLDT, W. Os limites do Estado. Rio de Janeiro: Topbooks, 2004., para quem a formação humana deveria ser vista como tarefa distinta do Estado liberal, uma tarefa que consiste em providenciar as condições para que o indivíduo possa realizar seu potencial e sua disposição da maneira mais efetiva possível5 5 Ver, sobretudo, Wilhelm von Humboldt (2004), em que o autor discute a contribuição necessária do Estado à formação humana do cidadão. . Eis o ideal tido como que natural para defender a formação do indivíduo contra o risco de reduzi-lo a um fator meramente funcional no ambiente determinado pela racionalidade instrumental.

O mesmo Estado, porém, que deveria cuidar da formação humana não pode deixar de providenciar à economia o espaço necessário para ela decidir sobre os modos de organizar seu campo de produção. Muito pelo contrário, cabe ao Estado liberal dar também suporte à implementação de condições favoráveis para a execução livre da lógica econômica do capital. Nessa perspectiva, não surpreende o interesse econômico em exigir do sistema educacional a instrução e preparação dos indivíduos no sentido de eles poderem corresponder às demandas da economia.

É natural, portanto, que, conforme a visão liberal, as duas concepções de formação entrem em concorrência entre si. Então, deveria prevalecer o critério da competência profissional em relação à ideia da formação humana? Ou deveria a competência profissional ser vista como apenas um elemento da formação humana?

Como se vê, a pedagogia é diretamente afetada pelo referido olhar bifurcado e aparentemente contraditório quanto ao ser humano. Se tomássemos as duas perspectivas como alternativa, uma opção iria excluir a outra, desrespeitando o fato de que ambos os lados fazem parte constitutiva da sociedade liberal. Todavia, há uma tendência forte da política pública de favorecer as demandas da economia e postergar o apoio à ideia de formação humana. Uma tendência que reespelha, de fato, o domínio do pragmatismo econômico no atual cenário político-social. Esquece-se, porém, que assim se coloca em risco o próprio fundamento ideológico da sociedade liberal.

Diante dessa constatação, a elaboração de caminhos capazes de compatibilizar as duas perspectivas sem sacrificar uma em favor da outra é o desafio prioritário para as políticas de educação. Quem tiver interesse em sustentar o modelo liberal deverá trabalhar mais em favor de compatibilizar os dois pilares, pois somente juntos eles sustentam a sociedade liberal. É necessário desistir da ideia de formação demasiadamente normativa para poder lidar com a tensão contínua entre os aspectos profissionalizantes e a eticidade formativa. O que impede a pedagogia, por exemplo, de reconhecer os desafios ético-formativos na qualificação profissional para o campo da TI? Ou a necessidade objetiva de incluir o critério de sustentabilidade na decisão sobre o currículo profissionalizante dos futuros engenheiros ambientais?

A perda de pressupostos normativos consentidos na vida cotidiana – eis a referida segunda caraterística da sociedade atual – faz com que surjam conflitos sérios na prática educativa. Desde o jardim de infância até as universidades, sentem-se não apenas os efeitos das desigualdades econômico-sociais e culturais; crescem também os conflitos entre costumes e práticas religiosas, assim como entre os mais diversos modos do comportamento das pessoas no espaço público. Trata-se de conflitos sociais que chegam, necessariamente, a perturbar a pedagogia e o trabalho nas instituições educativas.

Agressões na convivência social e dos daí gerados fenômenos de racismo, bullying, aumento da violência ou do desprezo de minorias, assim como a intolerância e o desrespeito em relação a quem não se submete à opinião maioritária, são sinais típicos. Como se trata, na maioria, de conflitos importados de fora para dentro das instituições, as últimas vêm-se perante problemas para cujo manejo os instrumentos pedagógicos tradicionais são inadequados. Mais do que isso: a tendência política de transferir para o campo educativo a responsabilidade pelo manejo dos conflitos com origem na sociedade civil sobrecarrega o campo pedagógico. Ainda assim, a política insiste em reivindicar da pedagogia a elaboração de reações eficientes. Uma política perigosa, pois ela leva ao sistema educativo conflitos que, gerados em outros ambientes sociais, disfarçam sua origem verdadeira, dificultando por isso sua solução.

Quanto à terceira caraterística da sociedade atual, referida anteriormente, dá para falar do desafio maior que hoje em dia mexe com o espaço pedagógico. A revolução profunda, desencadeada pela digitalização abrangente da vida cotidiana, provoca a reação típica no caso de mudanças mais radicais: o esquecimento ou a supressão de convicções tradicionais em favor do que é visto, inicialmente, apenas como avanço, como progresso. A euforia que, na primeira fase, aposta nas vantagens criadas pelas inovações obnubila seus efeitos regressivos, efeitos estes perceptíveis somente ao longo do tempo. Algo que vale, naturalmente, também para o caso da digitalização do acesso ao nosso ambiente.

Ora, a radicalidade das transformações positivas, geradas pela TI, enxerga-se, entre outros, na disponibilidade ampla de informações e na sua comunicação mais rápida; na superação fácil de grandes distâncias; na coordenação eficiente de serviços; ou nos estímulos para a criatividade. São vantagens das quais a pedagogia se serve igualmente em larga escala. Experiências favoráveis em situações de crise, como na pandemia recente com a daí gerada expansão do ensino remoto, comprovam isso.

Todavia, experimentam-se também vários riscos. O abuso da TI leva, por exemplo, à inundação excessiva de dados não controlados; à aceitação de dados como fatos objetivos; à divulgação das chamadas fake news; à pressão de estar sempre de prontidão; à redução de experiências sociais pela criação de avatares; ou ao anonimato dos protagonistas nas redes sociais. O gesto dominador da TI experimenta-se em todos os ambientes sociais. Os espaços pedagógicos tanto intramurais quanto informais não escapam dessa ocupação. De um ou outro modo, todos eles se veem confrontados com tais efeitos negativos. A pedagogia não pode ignorar isso; ela precisa entrar na luta contra a euforia ainda em curso no que se refere à ideologia do avanço tecnológico irrestrito. Aceitar dados disponíveis sem contextualizá-los; perder de vista o fator social no processo de aprendizagem; ou ignorar a própria atitude diante de fatos tidos como objetivos são alguns exemplos de défices que se destacam hoje no ensino e, com peso maior ainda, na pesquisa científica.

Diante desse cenário, o apelo à ideia tradicional da formação humana pode ser visto como tentativa de corrigir a confiança cega no progresso científico-tecnológico. A recuperação das experiências ambíguas com revoluções tecnológicas no passado; a consciência referente aos efeitos sociais de tecnologias novas; a descoberta do meio ambiente enquanto produto da atuação humana; ou os efeitos psicossociais de inovações tecnológicas são aspectos centrais pouco refletidos na formação meramente profissionalizante. Recuperá-los como elementos constitutivos da ideia de formação humana pode evitar o risco de fazer regredir o indivíduo a um mero objeto manipulável.

Com a quarta caraterística da sociedade liberal, abordamos um fenômeno que começa a permear tanto as instituições educativas quanto o trabalho pedagógico aí realizado. Para falar da prática pedagógica, dá para identificar várias formas da penetração do espírito econômico-quantificador nesse ambiente. Há a forte tendência de submeter as instituições de ensino e pesquisa, em todos os níveis, a princípios empresariais, isto é, questionando seus balanços à base da relação entre input e output. O número de formandos, por exemplo, e a aquisição de recursos financeiros de empresas privadas são tidos como critérios na distribuição dos recursos públicos; uma situação que atinge, de maneira especial, a pesquisa nas universidades6 6 Assim, a concessão de bolsas pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, no Brasil, depende do número de formandos que conseguem entregar sua dissertação ou tese no prazo de antemão determinado. Algo semelhante vale em relação às universidades alemãs: por exemplo, no caso da definição dos recursos orçamentais do Estado para a universidade, que depende cada vez mais da quantia dos recursos por ela adquiridos de empresas privadas. . Tais instituições vêm sendo vistas cada vez mais como prestadoras de serviço que, pelo bem ou pelo mal, deveriam ser transformadas, a médio prazo, também em empresas do direito privado.

Além do dito, as exigências trazidas pela internacionalização dos sistemas educativos reforçam a dinâmica referida. Pois, para poder comparar os modelos e sucessos nacionais, não há outra saída a não ser sua avaliação à base de critérios quantitativos. O fato levou os países europeus a aplicar, por exemplo, um sistema de credit points nas universidades, quantificando os rendimentos dos alunos e, de uma ou outra forma, também dos docentes. Desse modo, as atividades nos campos de ensino e pesquisa são obrigadas a aceitar sua quantificação e monetarização em concordância com a ideologia mercantil.

Sob tais condições, é difícil abrir espaço para a ideia de formação humana. O olhar fixado no cumprimento das demandas econômico-quantificadoras coloca em xeque a própria construção liberal da sociedade, antes caracterizada pelo convívio constitutivo da ideia de liberdade juridificada com a lógica coisificadora da economia capitalista. Obrigados a subordinar sua liberdade à lógica do mercado, os indivíduos perdem, passo a passo, não apenas o espaço e o tempo dedicáveis ao lado humanista da formação, senão também a identificação com o sistema político vigente. Tem-se aí uma experiência já visível em diversos países europeus, asiáticos e latino-americanos, com consequências perigosas7 7 Como exemplos recentes, destacam-se a Coreia do Sul, o Chile e a França. .

A rapidez das transformações na vida cotidiana – o quinto destaque já referido da sociedade atual – traz consigo muito mais do que apenas os desafios gerados pelas tecnologias da última geração. Ela faz com que os hábitos sociais precisem adaptar-se seguidamente a condições novas e nem sempre previsíveis. Em consequência disso, os laços sociais, antes considerados seguros, vêm perdendo sua persistência e confiabilidade. Sobretudo no ambiente da juventude, eles transformam-se em laços superficiais e passageiros, querendo evitar assim a experiência de decepção e de dor.

Ora, à primeira vista, tais relações sociais fragilizadas poderiam ser festejadas enquanto um aumento da liberdade pessoal. Porém, de mãos dadas, elas criam também a sensação de insegurança e desamparo: “O que hoje vale já não vale mais amanhã!”. Difícil, portanto, construir condições estáveis como base para escolher as opções certas do agir e do relacionar-se com outros. A dinâmica torna a vida coletiva uma conglomeração de indivíduos pouco dispostos e menos ainda preparados para assumir o status essencial do ser membro de um conjunto.

A falta de diretrizes estáveis por causa das transformações contínuas e cada vez mais rápidas se reproduz na área pedagógica. São poucas as áreas da sociedade civil que sofrem tantas alterações como é o caso da educação. Prevalece a impressão de que a única constante desse campo é sua mudança permanente. Sejam questões do currículo, projetos pedagógicos para lidar com a violência, a integração de grupos vulneráveis, ou a formação de professores, entre outros, sempre surgem novas regras para o procedimento e a definição de conteúdos pedagógicos, provocando desorientação. Como experiência extrema, dá para lembrar a reforma ortográfica da língua alemã. Aconteceu que, pouco depois de sua implementação, a reforma sofreu outra reforma com o efeito de, exceto os peritos, ninguém mais saber o que é correto ou errado. Outra experiência típica: a troca frequente dos critérios a serem usados na avaliação da produtividade científica.

Não faltam críticas lançadas contra a instabilidade das diretrizes pedagógicas, críticas que afetam igualmente as instituições. Para estas, é difícil reagir aos desafios com a flexibilidade necessária, pois, enquanto organizações com regras também administrativas, elas precisam de um mínimo de constância e calculabilidade burocráticas. Assim, a perturbação contínua está programada e requer um modelo mais amplo, flexível e em si consistente para capacitar o sistema educativo a reagir, sem traumas, às transformações contínuas.

Advertência Final

As referidas observações acerca de um complexo tão amplo como é o sistema educativo abarcam apenas alguns poucos indicadores que ajudam a entender os desafios com os quais suas instituições, entre elas também a universidade, hoje precisam lidar. No sentido de advertência, resumirei a dinâmica de quatro aspectos que ameaçam a substância dessa instituição de ensino superior.

Em primeira linha e já amplamente discutido, as universidades enfrentam sua submissão à lógica mercantil. O cálculo econômico é sua base. Por si só, essa estratégia não pode ser criticada, desde que afete apenas aqueles campos de atuação com caráter administrativo e logístico. Todavia, a estratégia na qual se trabalham os conteúdos de ensino e de pesquisa cujos resultados não podem ser prefixados ou calculados de antemão é destrutiva. A pesquisa científica de base é um caso extremo, pois ela não conta inicialmente com uma utilidade econômica imediata. Muito pelo contrário, poderia acontecer de seus resultados não terem mercado nenhum. Ainda assim, esse tipo de trabalho é indispensável tanto para o campo de pesquisa futuro quanto para possíveis inovações em áreas profissionais ainda desconhecidas. É a imprevisibilidade de sua exploração posterior que faz dela um fundo tão valioso.

A primazia dada à competência profissional como finalidade da formação é outro indicador de risco. Não que a universidade devesse renunciar a essa matriz, mas a qualificação prioritária das pessoas segundo as exigências do mercado de trabalho leva a uma perigosa padronização das competências, desprezando grande parte do potencial específico dos alunos e docentes. À medida que tal orientação se aninha na universidade como diretriz primordial, ela exclui da formação os aspectos sociais necessários para um profissional autoconsciente e capaz de entrosar-se não apenas no processo técnico da produção, senão também no ambiente coletivo. Não é por acaso que se descobriu, nas últimas décadas, a importância crescente dos chamados soft skills como fatores essenciais para aumentar a produtividade econômica. Por mais saudável que essa iniciativa de lidar com os aspectos sociais do trabalho coletivo pareça, ela os seleciona de acordo com a sua utilidade econômica em detrimento das demandas sociais dos indivíduos. Um risco, portanto, que coloca a ideia da formação humana para o segundo plano.

Ora, constata-se também – eis a terceira advertência – a forte unidimensionalidade das políticas na área da educação. Ela faz com que sua fixação nas exigências econômicas trate o sistema educacional antes de tudo como questão do orçamento público, ou seja, da perspectiva das oportunidades fiscais e, com isso, de curto prazo. Assim, é inevitável que o prazo delimitado pelas condições fiscais se choque com a necessidade da programação a médio e longo prazos das atividades do ensino e da pesquisa. Esse problema, por exemplo, pode obrigar a universidade a renunciar à realização de projetos pedagógicos ou científicos promissores, uma situação que abala sobretudo as disciplinas de alto custo. Quem cansa na luta contínua para assegurar, com os órgãos públicos, a estabilidade dos recursos necessários para sua pesquisa vê-se não raro levado a transferir seus projetos para fora da instituição. Eis uma dinâmica que se expressa, entre outros, pelo aumento da cooperação das universidades com empresas privadas, ou pela externalização de projetos para instituições especiais desligadas da universidade e, na maioria dos casos, com autonomia jurídica8 8 Os parques tecnológicos de várias universidades que abrigam, entre outros, startups de ex-alunos são empreendimentos típicos desse desenvolvimento. . Um modelo suscetível à influência forte dos parceiros externos.

Quarta advertência: o desprezo da ideia da formação integral ou humana coloca em sério risco a universidade como instituição da sociedade que oferece as condições para que os destinatários consigam tornar-se profissionais social e culturalmente responsáveis, isto é, cidadãos. Ora, não são apenas o saber disciplinar e a habilidade técnica de sua aplicação que facilitam a pessoa a integrar-se no ambiente coletivo. Muito pelo contrário, somente complementando-se, a formação profissional e a formação humana fazem jus ao espírito liberal. Quem quiser defendê-lo não poderá jogar uma opção formativa contra a outra. Reconhecer sua interdependência é a base imprescindível para devolver ao sistema educativo e, particularmente, à universidade sua missão central, isto é, oferecer as condições para que os indivíduos possam desenvolver seu potencial em prol do bem coletivo. Eis mais um desafio central que a pedagogia tem de enfrentar perante o avanço do espírito utilitarista.

Ao que tudo indica, o sistema educativo da sociedade liberal entra em conflito consigo mesmo. Pois, por um lado, ele faz tudo para impor o cálculo econômico como critério preferencial do campo pedagógico; por outro, porém, sua base ideológica insiste em valorizar igualmente a ideia de formação humana como seu segundo fio condutor. Eis a contradição, que deve tornar-se o ponto de partida de qualquer crítica desse sistema.

Notas

  • 1
    Prefiro não usar o predicado neoliberal, porque ele volta à concepção mais bruta da origem do pensamento liberal. Neoliberal indica uma suposta irrelevância das políticas sociais praticadas ao longo dos últimos dois séculos.
  • 2
    A lógica do sistema liberal na sua forma mais consistente é exposta pela filosofia do direito de Georg W. F. Hegel (2021)HEGEL, G. W. F. Filosofia do direito. Porto Alegre: Fundação Fênix, 2021., ao passo que a tese da coisificação do ser humano na economia capitalista foi fundamentada por Karl Marx. Ver sobre esse tema Flickinger (2023)FLICKINGER, H.G. Ao lado do poder: Hegel, um crítico do direito liberal. Porto Alegre: Fundação Fénix, 2023..
  • 3
    Sobre esse tema, remeto o leitor ao item 3.2.4 do livro A filosofia política na sombra da secularização (Flickinger, 2016FLICKINGER, H.G. A filosofia política na sombra da secularização. São Leopoldo: Editora da Unisinos, 2016.).
  • 4
    Sobre essa diferença, ver, entre outros, Maria Stela Santos Graciani (2015)GRACIANI, M. S. S. Pedagogia social. São Paulo: Cortez, 2015. e Hans-Uwe Otto (2009)OTTO, H. U. Origens da pedagogia social. In: GRACIANI, M. S. S.; SOUZA NETO, J. C. (org.). Pedagogia social. São Paulo: Expressão e Arte, 2009..
  • 5
    Ver, sobretudo, Wilhelm von Humboldt (2004)HUMBOLDT, W. Os limites do Estado. Rio de Janeiro: Topbooks, 2004., em que o autor discute a contribuição necessária do Estado à formação humana do cidadão.
  • 6
    Assim, a concessão de bolsas pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, no Brasil, depende do número de formandos que conseguem entregar sua dissertação ou tese no prazo de antemão determinado. Algo semelhante vale em relação às universidades alemãs: por exemplo, no caso da definição dos recursos orçamentais do Estado para a universidade, que depende cada vez mais da quantia dos recursos por ela adquiridos de empresas privadas.
  • 7
    Como exemplos recentes, destacam-se a Coreia do Sul, o Chile e a França.
  • 8
    Os parques tecnológicos de várias universidades que abrigam, entre outros, startups de ex-alunos são empreendimentos típicos desse desenvolvimento.

Referências

  • FLICKINGER, H.G. A filosofia política na sombra da secularização São Leopoldo: Editora da Unisinos, 2016.
  • FLICKINGER, H.G. Ao lado do poder: Hegel, um crítico do direito liberal. Porto Alegre: Fundação Fénix, 2023.
  • GOERGEN, P. Bildung ontem e hoje: restrições e perspectivas. In: DALBOSCO, C. A.; MÜHL, E. H.; FLICKINGER, H.G. (org.). Formação humana (bildung): despedida ou renascimento? São Paulo: Cortez, 2019. p. 15-34.
  • GRACIANI, M. S. S. Pedagogia social São Paulo: Cortez, 2015.
  • HEGEL, G. W. F. Filosofia do direito Porto Alegre: Fundação Fênix, 2021.
  • HUMBOLDT, W. Os limites do Estado Rio de Janeiro: Topbooks, 2004.
  • OTTO, H. U. Origens da pedagogia social. In: GRACIANI, M. S. S.; SOUZA NETO, J. C. (org.). Pedagogia social São Paulo: Expressão e Arte, 2009.
  • TÜRCKE, C. Sociedade excitada: filosofia da sensação. Campinas: Editora da Unicamp, 2010.
Editora de Seção: Ivany Pino https://orcid.org/0000-0001-6227-972X

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    31 Mar 2023
  • Aceito
    20 Jun 2023
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