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A DIMENSÃO FORMATIVA DO PROCESSO DE AVALIAÇÃO DA PÓS-GRADUAÇÃO: CONSIDERAÇÕES SOBRE O NOVO MODELO DE AVALIAÇÃO DA CAPES

THE FORMATIVE DIMENSION OF THE GRADUATE ASSESSMENT PROCESS: CONSIDERATIONS ON THE NEW CAPES’ ASSESSMENT MODEL

LA DIMENSIÓN FORMATIVA DEL PROCESO DE EVALUACIÓN DE LOS CURSOS DE POSGRADO: CONSIDERACIONES SOBRE EL NUEVO MODELO DE EVALUACIÓN DE LA CAPES

RESUMO

O artigo tece considerações sobre o modelo de avaliação da pós-graduação implementado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) no quadriênio 2017-2020, destacando o seu caráter formativo expresso nos seus diferentes quesitos, itens e indicadores. Numa guinada histórica do processo de avaliação, antes centrado em dados quantitativos e privilegiando o que ficou conhecido como viés produtivista da avaliação, o novo modelo de avaliação, fortemente baseado em indicadores qualitativos, sem descurar os dados quantitativos, acentua o caráter pedagógico dos programas, considerando suas dinâmicas internas e sua orientação à formação de quadros competentes para a atuação em pesquisa, objetivando a produção de impacto à sociedade e às suas instituições com vistas à melhoria da vida das pessoas. Para a sustentação dessa leitura e tendo em conta as especificidades da área da educação, o artigo detalha aspectos da nova ficha de avaliação, especialmente no que se refere aos quesitos “formação” e “impacto na sociedade”, destacando as dimensões pedagógico-formativas dos programas, assim como o sentido mais geral de formação humana que se expressa num entendimento de cidadania corresponsável e de orientação à construção de uma vida em comum. De outra parte, tece considerações acerca da nova demanda posta aos programas que necessitam produzir narrativas de si mesmos em relatórios descritivos a serem encaminhados à Capes, o que requer um novo patamar de reflexividade acerca de seus processos e finalidades.

Palavras-chave
Avaliação da pós-graduação; Capes; Formação humana; Impacto na sociedade; Educação

ABSTRACT

The article considers the postgraduate evaluation model implemented by the Coordination for the Improvement of Higher Education Personnel Capes in the four-year period 2017-2020, highlighting its formative character expressed in its different requirements, items, and indicators. In a historical shift in the evaluation process, previously centered on quantitative data and privileging what became known as the productivist evaluation bias, the new evaluation model, strongly based on qualitative indicators, without neglecting quantitative data, emphasizes the pedagogical character of the programs, considering its internal dynamics and its orientation towards the training of competent staff to work in research, aiming at producing an impact on society and its institutions with a view to improving people’s lives. To support this reading, and bearing in mind the specificities of the education area, this article details aspects of the new assessment form, especially regarding the items “training” and “impact on society”, highlighting the pedagogical-formative dimensions of the programs, as well as the more general sense of human formation that is expressed in an understanding of co-responsible citizenship and orientation towards the construction of a life in common. On the other hand, it makes considerations about the new demand placed on programs that need to produce narratives of themselves in descriptive reports to be sent to Capes, which requires a new level of reflexivity about their processes and purposes.

Keywords
Postgraduate evaluation; Capes; Human formation; Impact on society; Education

RESUMEN

El artículo considera el modelo de evaluación de posgrado implementado por la Coordinación para el Perfeccionamiento del Personal de Educación Superior Capes en el cuatrienio 2017-2020, destacando su carácter formativo expresado en sus diferentes requisitos, ítems e indicadores. En un giro histórico en el proceso de evaluación, antes centrado en datos cuantitativos y privilegiando lo que se conoció como sesgo evaluativo productivista, el nuevo modelo de evaluación, fuertemente basado en indicadores cualitativos, sin descuidar los datos cuantitativos, enfatiza el carácter pedagógico de los programas, considerando su dinámica interna y su orientación hacia la formación de personal competente para trabajar en investigación, con el intuito de producir un impacto en la sociedad y sus instituciones con miras a mejorar la vida de las personas. Para apoyar esta lectura, y teniendo en cuenta las especificidades del área de Educación, el artículo detalla aspectos del nuevo Formulario de Evaluación, especialmente en lo que se refiere a los ítems ‘formación’ e ‘impacto en la sociedad’, destacando las dimensiones pedagógico-formativas de los programas, así como el sentido más general de formación humana que se expresa en una comprensión de ciudadanía corresponsable y de orientación hacia la construcción de una vida en común. Por otro lado, hace consideraciones sobre la nueva demanda de programas que necesitan producir narrativas de sí mismos en informes descriptivos para ser enviados a la Capes, lo que requiere un nuevo nivel de reflexividad sobre sus procesos y propósitos.

Palabras-clave
Evaluación de cursos de posgrado; Capes; Formación humana; Impacto en la sociedad; Educación

Introdução

O objetivo deste artigo é refletir sobre a dimensão formativa da avaliação quadrienal da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) para os anos 2017 a 2020, conforme três perspectivas: pedagógica, política e impacto na qualificação da educação básica, considerando a especificidade da área da educação.

É preciso observar que o novo modelo de avaliação, apresentado em 2019, na avaliação de meio-termo, evidencia uma mudança fundamental no instrumento que vigorou nas avaliações anteriores, que marcadamente se inclinava para um perfil quantitativo, para mapear, qualificar e estratificar os programas de pós-graduação em Educação no Brasil. No modelo anterior, o quesito 4, “produção intelectual”, constituía a referência principal para definir os estratos da pós-graduação. Na prática, era a pontuação média alcançada pelo montante total da produção qualificada do corpo docente permanente do programa que definia, em regra, a sua posição no conjunto dos demais programas1. Isso não significa que os demais quesitos não eram levados em conta, mas não eram determinantes para a estratificação dos programas com base em sua nota. O quesito “proposta do programa”, por exemplo, embora considerado no conjunto da avaliação, tinha peso zero no cálculo da nota final do programa. Já dois dos cinco quesitos do formato anterior – “corpo discente, teses e dissertações” e produção intelectual” – correspondiam a 70% do cálculo da nota final do programa (BRASIL, 2017BRASIL. Ministério da Educação. Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Diretoria de Avaliação. Relatório da avaliação quadrienal 2017: educação. Avaliação quadrienal 2013-2016. Brasília: Ministério da Educação, 2017. Disponível em: https://www.gov.br/capes/pt-br/centrais-de-conteudo/20122017-educacao-relatorio-de-avaliacao-quadrienal-2017-final-pdf. Acesso em: 29 maio 2023.
https://www.gov.br/capes/pt-br/centrais-...
, p. 19).

O novo formato, delineado em 2019, ao tornar equitativos todos os aspectos que compõem a organização, o funcionamento, os objetivos e os resultados do programa, nesse caso os quesitos “programa”, “formação” e “impacto na sociedade”, tornou a avaliação mais global. Ou seja, todos os aspectos do programa de pós-graduação são considerados e avaliados em dimensões iguais, ao menos no âmbito teórico da ficha.

É, pois, essa perspectiva avaliativa global que espelha o que nós definimos como caráter pedagógico da ficha de 2019, tornando-a muito importante para os programas na medida em que coloca em relevo aspectos que são essenciais à formação de profissionais e cientistas da educação. Ainda nesse aspecto formativo devemos considerar que a ficha, ao mesmo tempo que orienta as atividades dos programas de pós-graduação em Educação (PPGEs), reforça práticas pedagógicas cotidianas dos atores do programa, integrando-as como elementos da avaliação. Assim, ao ser um processo de mão dupla que orienta o materializado no programa e se faz por meio dele, a avaliação torna-se fundamental para a educação nacional, uma vez que em grande parte são esses profissionais e cientistas oriundos dos PPGEs que formam os docentes da educação básica, como também são eles os profissionais que vão assumir responsabilidades na formulação das teorias que fundamentam os planos nacionais e as políticas públicas de educação nos níveis municipal, estadual e nacional.

Com base na análise de alguns dos itens e subitens dos quesitos da ficha de avaliação, especialmente no que se refere aos quesitos “formação” e “impacto na sociedade”, buscamos evidenciar a relevância da avaliação quadrienal em sua função pedagógica e formativa da pós-graduação e, por conseguinte, o seu impacto na sociedade e na educação nacional, sem, contudo, descurar o olhar político para os riscos de objetificação do processo.

Em Cena um Novo Modelo de Avaliação

Para trazer ao debate a dimensão formativa do processo de avaliação da pós-graduação, citamos o que entendemos ter sido um passo positivo da avaliação da Capes relativa ao quadriênio 2017-2020: a grande ênfase nos aspectos qualitativos dos programas.

É de conhecimento público que a ficha de avaliação do último quadriênio (2017-2020) foi aprovada em 2019 e atualizada em 2020, resultado de amplo debate empreendido inicialmente por uma comissão e discutido no âmbito do Conselho Técnico-Científico da Educação Superior e Conselho Superior, da Capes, até chegar à versão final, a qual foi bastante socializada com as coordenações dos programas, que, em maior ou menor intensidade e detalhamento, a disseminaram entre os seus pares (gestores, docentes, discentes e funcionários) (BRASIL, 2022BRASIL. Ministério da Educação. Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Diretoria de Avaliação. Relatório de avaliação: educação. Avaliação quadrienal 2017-2020. Brasília: Ministério da Educação, 2022. Disponível em: https://www.gov.br/capes/pt-br/centrais-de-conteudo/documentos/avaliacao/19122022_RELATORIO_AVALIACAO_QUADRIENAL_comnotaEducao.pdf. Acesso em: 23 mar. 2023.
https://www.gov.br/capes/pt-br/centrais-...
). Assim, em princípio, os relatórios construídos e publicizados na Plataforma Sucupira tiveram essa nova ficha como orientadora das práticas para a produção das narrativas inseridas no documento disponibilizado para a Comissão de Avaliação. É bom sinalizar que a própria Comissão de Avaliação também passou por um processo formativo para compreender a estrutura da nova ficha, bem como a sua lógica interna.

A ordenação/base da ficha de avaliação é composta dos quesitos “programa”, “formação” e “impacto na sociedade”, desdobrados em 12 itens, abrangendo o total de 47 indicadores, observados por cinco critérios (“muito bom”, “bom”, “regular”, “fraco” e “insuficiente”). É mediante essa estruturação que identificamos uma dimensão formativa da avaliação da pós-graduação, articulando aspectos de naturezas qualitativa e quantitativa, porém com ênfase nos aspectos qualitativos.

Isso representa um grande avanço em relação às edições passadas, pois traz ao plano da descrição e da reflexão dos programas a dimensão qualitativa. A primeira fase dos trabalhos da Comissão de Avaliação, instituída pela Capes para cada área, consistiu na análise qualitativa dos dados apresentados pelos programas. Essa parte da avaliação baseou-se no relatório descritivo por meio do qual cada programa se apresentou, considerando as suas indicações quanto à forma como organiza suas dinâmicas internas, como estabelece processos de planejamento, de avaliação e de comunicação entre os diferentes agentes que integram o programa. Além disso, pautou-se nos relatos de suas ações em relação aos cursos de graduação, à educação básica e à sociedade mais ampla e a suas organizações.

Enfim, trata-se aqui de uma avaliação do programa tendo como base os dados descritivos por ele mesmo apresentados, incluindo destaques e anexos com os quais buscava indicar o que acreditava ser o melhor de suas produções de pesquisa e resultados no que tange os formados em seu âmbito. Observa-se que, dos 47 indicadores estabelecidos pela área para fins de avaliação, o total de 32 foi de indicadores qualitativos; portanto, dependia da forma como o programa se apresentou nos documentos descritivos encaminhados à Capes.

A essa fase de avaliação qualitativa dos dados se juntou, num segundo momento, a consideração dos dados quantitativos, relativos especialmente aos desempenhos em termos de produção por parte dos docentes, discentes e egressos, permitindo uma visão ampla de como o programa se fez presente no debate acadêmico de diferentes temas vinculados ao campo da educação e de como impactou certos setores da sociedade. Cabe lembrar que esses dados quantitativos, baseados em indicadores numéricos, foram compreendidos como uma forma de expressão da qualidade do programa, em articulação com o conjunto dos demais indicadores qualitativos. Verifica-se que na própria configuração dos dados quantitativos, como no caso da produção docente, já não se tratava pura e simplesmente de quantidades que pudessem ser apresentadas de forma ilimitada, já que havia critérios para indicar determinado número de produções e seus respectivos estratos definidos no Qualis Capes Periódicos.

Com isso, o novo formato da avaliação infringiu um revés ao chamado produtivismo2 2 A questão do produtivismo acadêmico na pós-graduação já foi tema de diversos estudos e análises feitos em diferentes perspectivas teóricas (SGUISSARDI; SILVA JÚNIOR, 2009; BIANCHETTI; MACHADO, 2013; PIMENTA, 2014) e que convergem no entendimento de que a quantidade de produções exigida para os atores da pós-graduação, determinante para a estratificação dos programas, resulta não apenas na diminuição da qualidade da produção acadêmica, mas também em consequências outras, como na saúde física e psíquica dos investigadores. , que tão fortemente marcou a avaliação da pós-graduação brasileira nos últimos tempos, contudo não podemos esquecer que a ideia da supremacia dos aspectos quantitativos ainda se faz presente no imaginário de muitos pesquisadores da área e que, possivelmente, não é abandonada. Há que se mencionar também dois elementos novos, importantes para a dinâmica organizativa e de funcionamento dos programas, que passaram a compor o processo de avaliação relativo ao último quadriênio: a construção do planejamento estratégico e o processo de autoavaliação, considerando especialmente seus percursos e projeções futuras.

Ademais, é preciso ter presente que nas avaliações anteriores o ranking dos programas, estabelecido mediante atribuição de conceitos, se baseava fundamentalmente nos dados quantitativos da produção intelectual, sobretudo docente. Isso, como todos sabemos, fazia com que os programas se preocupassem basicamente em ter uma elite de pesquisadores altamente produtiva, ou seja, professores que publicassem muito. Aí já não interessava tanto se o docente cuidava bem de suas aulas, se estava preocupado com os seus alunos, se tinha vínculos com organizações ou setores da sociedade. Nesse modelo, a dimensão formativa de um programa de pós-graduação era pouco evidenciada, uma vez que não era decisiva no modelo de avaliação vigente.

No formato inaugurado com a ficha de 2019, a avaliação considera a dimensão formativa constitutiva da própria compreensão de programa, uma dimensão que deve se expressar tanto pelos seus dados qualitativos quanto pelos seus dados quantitativos. Isso implica que o programa dê atenção a aspectos não vistos como importantes ou eventualmente negligenciados no modelo anterior. O êxito do programa já não se expressa apenas no desempenho individual dos docentes, mas precisa impactar os discentes em seu processo de formação, verificável em sua inserção no campo das pesquisas e na qualidade de suas práticas profissionais. Também dos egressos se espera que não sejam apenas ex-alunos do programa, mas que carreguem em suas carreiras as marcas da qualidade de uma formação pós-graduada, de alguma forma evidenciável por meio dos dados qualitativos e quantitativos a serem apresentados pelo programa que o formou.

O atual modelo de avaliação, especialmente no que se refere ao quesito “formação”, uma das três dimensões que articulam a estrutura do processo de avaliação, assume, para todos os efeitos, importância decisiva na avaliação do programa, a ponto de funcionar como uma trava para a atribuição do conceito. Ou seja, mesmo tendo bom desempenho nos outros dois quesitos, a nota final do programa não pode ser superior à obtida no quesito “formação”. Em outros termos, uma nota positiva para o programa depende de uma boa nota também nesse quesito.

É importante observar aqui o seguinte: dos 17 indicadores do quesito “formação”, 13 deles são numéricos, referindo-se a diferentes percentuais e a uma média. Entre os indicadores qualitativos desse quesito, por sua vez, estão as avaliações dos cinco titulados destacados pelo programa como exemplares em termos da missão e do perfil do programa e também a avaliação dos egressos indicados pelo programa como expressão de uma formação com impacto em termos de sua atuação e destino profissional.

A supremacia dos indicadores numéricos em relação aos indicadores qualitativos no âmbito do quesito “formação” poderia dar a entender que a avaliação permanece fortemente quantitativa e que o produtivismo continua sendo a chave de uma boa avaliação. Mas não é isso que se constata quando se olha detidamente para os dados que aí são considerados, pois já não se trata simplesmente de montantes ou somatórios, nesse caso de produção intelectual, porém de percentuais e de uma média que expressam a qualidade formativa do programa por meio do engajamento de seus atores no campo da produção científica.

Nesse sentido e em linhas gerais, no quesito “formação”, quer-se saber do desempenho de egressos, alunos e docentes. A começar pelos primeiros, busca-se identificar que percentual deles teve os resultados de sua tese ou dissertação publicados em artigos, livros ou capítulos de livro. Deles também se observa o percentual dos que publicaram artigos, livros, capítulos de livro ou trabalhos em eventos. Quanto aos artigos, afere-se que percentual publicou em periódicos qualificados e que percentual publicou em periódicos com Qualis A (A1, A2, A3, A4).

Dos alunos matriculados, por sua vez, verifica-se qual percentual deles teve publicações em artigos, livros, capítulos de livro ou trabalhos em eventos. Acerca de artigos, também quer-se saber o percentual que publicou em periódicos qualificados e que percentual publicou em periódicos com Qualis A (A1, A2, A3, A4).

Dos professores, por fim, são avaliadas as quatro produções por ele indicadas como as de melhor qualidade, considerando-se aí o valor de cada uma das produções (conforme Qualis periódicos e Qualis livros). Salienta-se que há critérios para essa indicação, devendo ser duas dessas produções necessariamente em periódicos. Dos docentes, quer-se saber também qual percentual deles publicou em Qualis A1 ou Livro L1 ou L2. Deles, ainda, busca-se ver qual percentual de seus projetos de pesquisa tem participação de discentes. Por fim, dos docentes também se verifica que percentual publicou em coautoria com discentes e egressos.

Assim, mesmo tratando-se de dados numéricos, no quesito “formação” – dimensão esta compreendida pela Capes como a finalidade principal de qualquer programa de pós-graduação stricto sensu –, pressupõe-se que a qualidade formativa se expressa nesses dados objetiváveis sob a forma de percentuais e também de uma média ponderada.

Gostaríamos de apontar aqui a razoabilidade desses parâmetros avaliativos. No caso dos egressos, por exemplo, espera-se que suas dissertações e teses venham a impactar o campo de conhecimento sobre o qual suas pesquisas se debruçaram, o que só pode ser verificado por meio de algum tipo de publicação. Deles também se espera que venham a se inserir na comunidade argumentativa do campo de saber ao qual se dedicaram em seu curso de mestrado ou de doutorado, o que também deve poder ser conferido mediante alguma forma de publicação. O mesmo se espera dos alunos matriculados. Afinal, a sua formação em nível de pós-graduação se dá ao modo de inserção numa comunidade de pesquisa.

Já dos professores, como fica claro no que se pede em relação a eles, espera-se inserção num debate acadêmico de ponta, ou altamente qualificado, observável mediante alguma publicação em veículo também de excelência ou bem qualificado, assim como na liderança e representatividade no âmbito organizativo da área, mas já não interessa aqui um somatório desse tipo de publicação, que no modelo anterior conduzia o docente a um produtivismo desenfreado. Agora importa que ele também insira discentes em seus projetos de pesquisa e publique em coautoria com eles.

Esses aspectos apontam para um modelo de pós-graduação que pode ser considerado como uma escola de formação, isto é, que se apresenta como um espaço que opera mudanças naqueles que o acessam, produzindo uma diferença nas suas formas de inserção social e cultural. Um programa do qual se espera que deixe uma marca em cada um que por ele passa e, portanto, venha a impactar a sociedade à medida que impacta modos de ser e fazer por parte dos profissionais mestres e doutores. Enfim, um programa que forma pela pesquisa e inserção qualificada na comunidade de saber a que se dedica. Todavia, precisamos estar alertas para os riscos de nos rendermos aos modelos anteriores e de restringirmos o espectro de nossa visão ao alcance dos indicadores de cada quesito e seu conjunto de critérios, de modo que nos distanciemos do impacto do programa, ignorando assim a sua dimensão política. Esse é o aspecto que analisamos nas próximas seções.

A Pós-Graduação em Educação e o Impacto na Vida Cotidianada Educação Nacional

Iniciamos esta seção ponderando sobre o visível crescimento de programas em nível nacional. Em 2007 a área de educação tinha 78 programas e em 2020 contava com 188. Observa-se, assim, que houve um acréscimo de mais de 100% no número de PPGEs nos últimos 13 anos, entretanto esse crescimento exponencial de programas de pós-graduação não acompanha ou eleva os índices de pessoas com nível de alfabetização proficiente no Brasil.

Segundo dados do indicador de alfabetismo funcional (Inaf) (INSTITUTO PAULO MONTENEGRO, 2018INSTITUTO PAULO MONTENEGRO. Inaf Brasil 2018: resultados preliminares. Instituto Paulo Montenegro, 2018. Disponível em: https://acaoeducativa.org.br/wp-content/uploads/2018/08/Inaf2018_Relat%C3%B3rio-Resultados-Preliminares_v08Ago2018.pdf. Acesso em: 20 ago. 2022.
https://acaoeducativa.org.br/wp-content/...
), desde o ano de 2001/2002 até 2018, ou seja, por um período de quase duas décadas, o percentual de pessoas com proficiência na língua pátria era de 12% da população com idade entre 15 e 64 anos. Nesse aspecto, nós, atores da pós-graduação, devemos nos indagar sobre a ideia de que o investimento na pós-graduação implica na qualificação da educação da população em geral.

Essa assertiva não é apenas propalada nas mídias sociais, nos discursos de gestores, mas procura ser esmiuçada no sistema de avaliação da Capes, particularmente no quesito 3 – “impacto na sociedade” – da ficha da última avaliação da área de educação. Todavia, esse tópico já estava claramente delineado na ficha de avaliação do quadriênio anterior, que correspondeu aos anos de 2013 a 2016. Nessa ocasião, os aspectos do impacto do programa de pós-graduação na sociedade estavam no quesito 5, o qual foi denominado de “inserção social”. Esse quesito inserção/impacto constante das duas últimas avaliações evidencia que há, por parte dos gestores do processo avaliativo dos programas de pós-graduação, a preocupação de destacar as relações existentes entre a pós-graduação e a sociedade. Dito de outro modo, há a intenção de avaliar os benefícios que ela traz à comunidade brasileira como um todo.

Assim, é pertinente analisar essa problemática por dois enfoques: o primeiro contempla como a inserção/o impacto da pós-graduação foi apresentado nas duas últimas fichas de avaliação da Capes; e o segundo articula-se com uma concepção de educação segundo três conceitos-chave: emancipação/liberdade, formação humana e cidadania/bem comum. Esses conceitos, ao tematizarem a condição de educabilidade humana e sua vinculação com a constituição de uma sociabilidade solidária, permitem situar o impacto da pós-graduação em educação sobre a educação nacional pela reflexividade crítica acerca de seus processos e finalidades.

Inserção/Impacto na Ficha de Avaliação

Na ficha de 2013 a 2016 o quesito 5 – “inserção social” – se desdobra em cinco itens, que se voltam para a atuação do programa em níveis local, regional e nacional. O primeiro item trata especificamente desse aspecto, pois é preciso considerar em que medida o PPGE se envolve com o entorno promovendo o desenvolvimento científico e, por conseguinte, a melhoria da vida singular e coletiva das pessoas. O segundo preocupa-se em avaliar em que medida o programa promove a integração com outros programas, centros de pesquisa e institutos, a fim de evidenciar como as pesquisas circulam e conseguem dialogar com outras, pois a ciência não se produz isoladamente. O terceiro prevê a capacidade de as pesquisas gerarem inovação no campo da educação, ou seja, se os atores do programa conseguem se articular com outros setores científicos para além dos pares da academia. O último trata especificamente da visibilidade e transparência do programa. Dito de outro modo, se quer saber se o programa é capaz, por meio de seu site e redes sociais, publicizar as suas ações e, ao mesmo tempo, permitir que todos as conheçam.

Na avaliação quadrienal de 2020 houve mudanças significativas nas regras de avaliação da Capes, e a ficha assumiu um novo contorno, pois a questão do impacto passou a ter papel muito importante, a ponto de seu peso na composição da nota final ser igual aos outros dois quesitos, isto é, peso equivalente a 33% da nota, quando no modelo de avaliação anterior o peso era equivalente a 15% da nota. Na nova ficha houve um reagrupamento dos quesitos, e os cinco presentes na quadrienal de 2013-2016 se tornaram três quesitos na quadrienal de 2017-2020. É preciso destacar que, ainda que os quesitos tenham sido reduzidos, os itens e subitens de cada um deles ficaram detalhados e explicitados em cada um dos pontos em que o PPGE é avaliado. No caso do quesito 3 – “impacto na sociedade” –, ele foi dividido em três itens, que, por seu turno, foram detalhados em 11 subitens, que esmiúçam cada um dos aspectos a serem avaliados.

Esses subitens buscam avaliar em que medida a produção docente e discente do PPGE impactam em níveis local, regional, nacional e internacional. O primeiro item, intitulado “impacto e caráter inovador da produção intelectual em função da natureza do programa”, averigua se essa produção está gerando inovação tecnológica para a e na sociedade e se a produção do PPGE promove a qualificação de profissionais da área de educação. Avalia também a qualidade dos produtos efetivados pelos docentes, discentes e egressos (considerando que a concepção de qualidade está vinculada aos locais de publicação dos produtos), bem como a inserção dos docentes permanentes em comissões científicas, em revistas científicas ou em diretorias acadêmicas, em níveis regional, nacional e internacional.

No segundo item, denominado “impacto econômico, social e cultural do programa”, avalia-se se a produção e as ações do programa resultam em melhoria econômica, social ou cultural. Observa-se que a ficha salienta a importância de o PPGE promover dois dos três aspectos indicados na ficha, pois tanto os produtos como as ações dos docentes e discentes devem promover melhoria social. É preciso destacar que nesse item ainda é salientada a importância de o programa desenvolver atividades de nucleação de pesquisas, seja com outros programas, seja com institutos de pesquisa, seja ainda com gestores municipais, estaduais e nacionais.

O terceiro item, intitulado “internacionalização, inserção (local, regional, nacional) e visibilidade do programa”, traz um dos aspectos mais significativos e subjetivos da ficha, que é a capacidade de gestão do PPGE. Esse item desdobra-se em quatro subitens que se voltam para o exame do zelo do programa. O primeiro deles chama a atenção para a inserção local, regional ou nacional do PPGE. O segundo ressalta a questão da internacionalização conforme os aspectos da pesquisa, da produção intelectual e da mobilidade internacional de discentes e docentes. Em relação ao terceiro subitem há que se ressaltar, mais uma vez, a questão da gestão do PPGE, juntamente com toda a sua comunidade, em que importa estar definida com clareza a missão do PPGE, particularmente se esta é promover impacto local, regional, nacional ou internacional. Ao se ter clareza da destinação das ações do PPGE, o gestor e a comunidade podem fortalecer o foco ao qual se destinam.

O quarto e último subitem traz a questão da visibilidade do PPGE. Essa visibilidade avalia o site do programa, no qual se busca verificar a estrutura organizacional do PPGE, buscando encontrar: as teses e dissertações na íntegra; o seu regulamento; as regras de credenciamento e recredenciamento do corpo docente; a lista de todos os docentes com os respectivos meios de contato; clareza da página do PPGE; se o programa adota políticas afirmativas de ingresso de discentes, se organiza eventos científicos, entre outros aspectos necessários ao funcionamento do PPGE, de modo a promover impactos na sociedade.

Ao abordarmos a questão da inserção/impacto dos PPGEs segundo os quesitos das duas últimas fichas de avaliação, é possível evidenciar a preocupação crescente por parte da Capes de examinar, com lupa, as ações dos PPGEs com vistas a melhorar as condições sociais da população local, regional e nacional. Portanto, o quesito “impacto na sociedade” precisa ser dimensionado para além da nota do PPGE, devendo ser pensado também como uma política que visa ao bem comum da sociedade.

Educabilidade Humana e Formação para um Mundo Humano Comum

Avaliar os PPGEs com base no seu potencial de impacto na sociedade significa, considerando-se a especificidade da área, avaliar esses programas pela sua contribuição para a qualificação da educação nacional. Para além da formação de quadros qualificados para as diferentes atividades educativas, levando-se em conta especialmente o exercício da docência e da gestão nos diferentes graus de ensino, da pós-graduação em educação também se esperam contribuições relativas à educabilidade humana diante do desafio de instaurar um mundo humano comum assentado nos princípios da liberdade e da solidariedade. Esse desafio não é de agora, nem de uma única geração de humanos, mas da humanidade toda em sua constituição histórica e sempre à busca de respostas para os dilemas que se põem em cada novo contexto.

Impactar a sociedade significa, no caso da área da educação, oferecer linhas de entendimento acerca do que significa ser um homem capaz de viver, conviver com o outro com princípios éticos e humanos ou, de acordo com Morin (2000)MORIN, E. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez, 2000., capaz de se ver e pensar como indivíduo, sociedade e planeta, e isso requer trazer a memória de eminentes figuras da nossa tradição filosófica que ofereceram suporte reflexivo para a instauração do que entendemos ser a nossa civilidade. Trata-se, fundamentalmente, de oferecer contribuições para pensar a educação do homem e da sociedade, aspectos fulcrais que se encontram na base de tudo o que se demanda de um PPGE do ponto de vista de seu impacto na sociedade.

A tematização dessas questões faz-se presente nas ações formativas e nas pesquisas de nossos programas, de modo que não é tarefa fácil aqui sugerir uma ou outra linha de compreensão, uma vez que muitos autores se debruçaram sobre esses temas. Todavia, consideramos que aqueles poucos a que nos referiremos nos próximos parágrafos, ainda que de períodos distintos, nos permitem ressaltar a importância da educação na formação humana, na preservação da civilidade e, por conseguinte, da vida comum.

Iniciamos com o conceito de educação apresentado por Kant (2019)KANT, E. Sobre a pedagogia. Lisboa: Estampa, 2019.. De acordo com o autor, “o homem é a única criatura que tem de ser educada. Por educação compreendemos os cuidados (alimentação, subsistência), disciplina e instrução juntamente com a formação. Por conseguinte, o homem é bebê – educando – formando” (KANT, 2019KANT, E. Sobre a pedagogia. Lisboa: Estampa, 2019., p. 9).

Essa ideia kantiana de processo educacional é fundamental para pensarmos a constituição humana da pessoa. Em primeiro lugar, a educação envolve o todo do SER, desde os aspectos corpóreos ao o que ele define como disciplina até o desenvolvimento da mente. Em segundo lugar, o princípio de que não há uma finitude (um telos) para a educação, uma vez que o homem está sempre em processo de formação. Assim, para o autor, a humanidade do homem estaria no modo como ele é educado e se mantém disponível a aprender ao longo de sua existência. É por isso que Kant (2019)KANT, E. Sobre a pedagogia. Lisboa: Estampa, 2019. define o homem como um bebê.

Para o autor, o homem só pode se tornar homem mediante o processo de educação:

O homem só se pode tornar homem através da educação. Nada mais é do que aquilo em que a educação o torna. É de notar que o homem só pode ser educado por homens, por homens que foram igualmente educados. Daí a falta de disciplina e instrução em alguns homens os torne maus educadores dos seus educandos

(KANT, 2019KANT, E. Sobre a pedagogia. Lisboa: Estampa, 2019., p. 12).

A ideia-mestra apresentada por Kant (2019)KANT, E. Sobre a pedagogia. Lisboa: Estampa, 2019. é a de que a educação não é natural ao homem. Portanto, ele precisa ser educado para se tornar o animal político definido por Aristóteles (1985)ARISTÓTELES. Política. Brasília: UnB, 1985.. Faz-se importante destacar também que só um homem pode educar outro homem, ou seja, são seres iguais que formam outros seres semelhantes. Por isso é necessário que aquele que cuida da arte de educar, o professor, tenha em si a educação em ato e ela constitua o fio condutor de sua vida. Em seguida, Kant (2019)KANT, E. Sobre a pedagogia. Lisboa: Estampa, 2019. salienta o fato de que “a educação se torne sempre melhor e que cada geração subsequente dê um passo em direção ao aperfeiçoamento da humanidade; pois, por detrás da educação, aloja-se o grande segredo da perfeição da natureza humana” (KANT, 2019KANT, E. Sobre a pedagogia. Lisboa: Estampa, 2019., p. 42). Assim, a permanência da educação e o seu constante aperfeiçoamento são condição sine qua non para conservar a existência social do homem.

O princípio de a educação ser a condição de formação humana está presente em Arendt (2014)ARENDT, H. A crise na educação. In: ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2014. p. 221-247.. A autora, do mesmo modo que Kant (2019)KANT, E. Sobre a pedagogia. Lisboa: Estampa, 2019., salienta a importância de o professor ter uma formação consolidada de maneira que esse saber possibilite a conservação e a continuidade da humanidade:

Na medida em que a criança não tem familiaridade com o mundo, deve-se introduzi-la aos poucos a ele [...]. Em todo caso, todavia, o educador está aqui em relação ao jovem como representante de um mundo pelo qual deve assumir a responsabilidade, embora não o tenha feito e ainda que secreta ou abertamente possa querer que ele fosse diferente do que é.

Essa responsabilidade não é imposta arbitrariamente aos educadores; ela está implícita no fato de que os jovens são introduzidos por adultos em um mundo em contínua mudança. Qualquer pessoa que se recuse a assumir a responsabilidade coletiva pelo mundo não deveria ter crianças, e é preciso proibi-la de tomar parte em sua educação

(ARENDT, 2014ARENDT, H. A crise na educação. In: ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2014. p. 221-247., p. 239).

O ponto de partida da autora consiste no fato de que a educação é a conservação de uma tradição de civilidade que foi construída pelos homens ao longo da história. No momento em que o professor deixa de ensinar os conteúdos tradicionalmente construídos, de modo a não propiciar o conhecimento no aluno, essa ausência de aprendizagem resulta em dois aspectos nocivos aos homens como um todo. Em primeiro lugar, não promove a humanização da criança porque lhe cerceia o direito ao conhecimento. Em segundo, colaborando com o apagamento da memória do conhecimento antigo, medieval, moderno e mesmo contemporâneo, o professor colabora com a deterioração da civilização humana.

Assim, de acordo com Arendt (2014)ARENDT, H. A crise na educação. In: ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2014. p. 221-247., a crise da educação que solapava o Ocidente, no século XX, trazia um triplo prejuízo à formação das novas gerações:

  • Impedia o conhecimento do mundo;

  • Corrompia o passado por não conservar o conhecimento e, sem memória, a maturidade não pode ser alcançada;

  • Inviabilizava a possiblidade de futuro, já que não conservava a continuidade do saber.

Após considerar as concepções de Arendt (2014)ARENDT, H. A crise na educação. In: ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2014. p. 221-247. e de Kant (2019)KANT, E. Sobre a pedagogia. Lisboa: Estampa, 2019. acerca da educação, apreendemos que, como humanos, somos o que aprendemos a ser, e cabem as indagações: afinal o homem precisa, de fato, da educação? Precisa da civilização para viver?

Para responder a essas duas questões, recuperamos Aristóteles (1985)ARISTÓTELES. Política. Brasília: UnB, 1985., quando em Política nos traz a definição de cidadão:

Um cidadão integral pode ser definido por nada mais nada menos que pelo direito de administrar justiça e exercer funções públicas [...]. Para efeito de distinção, portanto, chamemos as duas funções de cargos sem limitações. Consequentemente dizemos que são cidadãos aqueles que podem exercer tais funções públicas. Esta é, de um modo geral, a definição de cidadão mais adequada a todos aqueles que geralmente são chamados cidadãos

(ARISTÓTELES, 1985ARISTÓTELES. Política. Brasília: UnB, 1985., p. 78).

A definição de cidadão do filósofo é relevante para pensarmos a condição da população brasileira, segundo os dados que trouxemos do Inaf/2018, e, simultaneamente, nos permite aproximações com o conceito de educação trazido por Arendt (2014)ARENDT, H. A crise na educação. In: ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2014. p. 221-247. e Kant (2019)KANT, E. Sobre a pedagogia. Lisboa: Estampa, 2019.. Cidadão, para Aristóteles (1985)ARISTÓTELES. Política. Brasília: UnB, 1985., é aquele que pode se responsabilizar por suas ações no âmbito da vida comum, ou seja, na cidade, no espaço público. Por isso, o autor afirma que cidadão é aquele que está preparado para ser governante e, ao mesmo tempo, preparado para ser governado. Essa assertiva permite-nos ponderar que cidadão só pode ser o adulto livre, no caso da pólis grega, e, na sociedade contemporânea, o adulto emancipado/educado, como afiançam Arendt (2014)ARENDT, H. A crise na educação. In: ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2014. p. 221-247. e Kant (2019)KANT, E. Sobre a pedagogia. Lisboa: Estampa, 2019..

À época de Aristóteles existia escravidão, e os escravos, assim como as mulheres, não eram considerados cidadãos, o que tem causado muitas polêmicas a respeito da formulação de cidadania do filósofo, contudo é preciso considerar e entender as diferenças históricas no âmbito das relações sociais. De acordo com o autor, os escravos e as mulheres não poderiam ser considerados cidadãos porque dependiam do outro, fosse na condição de servidão, fosse como filhas ou esposas. Logo, não estariam livres, nem, por conseguinte, seriam adultos capazes de exercer funções públicas.

No caso de muitos dos brasileiros, ainda que todos ao atingirem a vida adulta constituam cidadãos perante a lei, pelo fato de não terem formação educacional que os tornem emancipados, em conformidade com as reflexões de Arendt (2014)ARENDT, H. A crise na educação. In: ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2014. p. 221-247. e Kant (2019)KANT, E. Sobre a pedagogia. Lisboa: Estampa, 2019., ficam à mercê de quem os governa. São livres e cidadãos perante a lei, mas, de fato, não terão atingido a maioridade, ou pelo menos a condição adequada para que possam exercer as funções públicas, se as concepções de educação de Arendt (2014)ARENDT, H. A crise na educação. In: ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2014. p. 221-247. e Kant (2019)KANT, E. Sobre a pedagogia. Lisboa: Estampa, 2019. forem legítimas.

A realidade de um país que há décadas apresenta índices de educação tão baixos deve perturbar a nós, professores e pesquisadores da área da educação, exigindo que façamos, no âmbito de nossa pós-graduação, uma avaliação com responsabilidade, com maturidade, pois, afinal, temos um compromisso assumido com a formação de pessoas.

É nessa condição do quesito 3, que trata do impacto da pós-graduação nas comunidades local, regional, nacional e internacional, que nossa tarefa se agiganta, pois, ao formar os professores que formam os professores da educação básica, podemos estar propiciando ou não a emancipação do homem. De fato, a responsabilidade é hercúlea, não podendo ser apresentada como uma questão burocrática nem, tampouco, ser avaliada somente no âmbito da forma. A avaliação relativa ao quesito 3 indicará se os PPGEs estão ou não contribuindo com a sociedade, porque o referido quesito explicita as ações e os produtos realizados na pós-graduação. Nesse sentido, trata-se de demonstrar, com ações e práticas efetivas, que a despesa realizada pela sociedade pagadora de impostos é revertida em aprimoramento da vida em comum, por meio da elevação não apenas dos gastos, mas do conhecimento que permeia as relações entre os cidadãos.

Ainda do ponto de vista desse quesito – “impacto na sociedade” –, pode-se dizer que aí não se trata de uma questão menor, uma vez que ele expressa se o programa produz ou não bem social, se afeta as pessoas e as instituições, em níveis local, regional, nacional e internacional. A preocupação em avaliá-lo de maneira mais precisa revela em que medida estamos, de fato, concentrando nosso trabalho na defesa dos princípios que norteiam a ciência, tendo em vista que a verificação objetiva de resultados é parte fundamental de todo o projeto de pesquisa.

No que se refere ao espírito coletivo da produção científica, ele é o seu coração, já que demonstra se os atores da pós-graduação se voltam para a construção do bem comum da sociedade. Essa máxima fica ainda mais evidente se considerarmos que na última quadrienal foram qualificados para avaliação, no âmbito dos programas de pós-graduação, 110 mil produtos científicos, entre os 187 programas. Se levarmos em conta que foram registrados 26 mil pesquisadores da área da educação, teremos assim a média de 4,23 produtos por profissional, e isso já se inicia nos quesitos 1 e 2, em que se sinalizam as intencionalidades do programa de pós-graduação, bem como o modo como articula as linhas de pesquisa, os grupos e projetos de pesquisa com a área de concentração do programa, com os percursos formativos e de atuação dos docentes e discentes, seus diversos efeitos práticos em termos da efetiva inserção no campo profissional e da pesquisa, cuja razão última é a qualificação da vida das pessoas.

Os Indicadores de Avaliação, o Cotidiano dos Programase os Riscos da Objetificação

Para o novo modelo de avaliação da Capes se torna crucial a questão do relatório descritivo que o programa faz acerca da dinâmica que organiza e estrutura o seu cotidiano. Nesse sentido, a avaliação do programa é, em boa medida, a avaliação do seu relatório, já que o avaliador só pode se valer do que consta das narrativas que o programa faz de si mesmo. Há um conjunto de dados que o programa informa e que não dependem de sua forma de apresentação, como, por exemplo, o número de publicações, os veículos em que foram divulgados, dados dos discentes etc., porém, como em nenhuma avaliação anterior, a maior parte dos indicadores aos quais são aplicados critérios de avaliação é extraída dos textos descritivos/informativos encaminhados pelo programa em seus relatórios para a Capes.

Considerando essa novidade que se introduziu na última avaliação quadrienal, procuramos desenvolver, sob o título desta seção, uma narrativa reflexiva que visa problematizar os desafios de apreender as dimensões do concebido e do vivido no cotidiano dos programas de pós-graduação da área da educação, pensando também na dimensão do percebido3 narrado (ou relatado) nos relatórios da avaliação quadrienal (2017-2020), disponíveis na Plataforma Sucupira.

O cotidiano não é fácil de ser apreendido tendo em vista que é carregado de enigmas, sentimentos, representações, significados atribuídos no continuum das experiências. Segundo Pais (1993, p. 108)PAIS, J. M. Nas rotas do quotidiano. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, n. 37, p. 105-115, 1993., “a realidade apenas se insinua, não se entrega”.

Trazendo esses elementos para o contexto da avaliação da Capes, podemos nos indagar: em que medida a ficha de avaliação dos programas de pós-graduação atua como um instrumento de orientação à observação da realidade do vivido, no recorte temporal 2017-2020, orientando-se à mostração ou à simples demonstração, respectivamente, por meio das narrativas produzidas e do texto do relatório em si, submetido à Plataforma Sucupira?

No argumento de Pais (1993, p. 111)PAIS, J. M. Nas rotas do quotidiano. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, n. 37, p. 105-115, 1993. interessaria mais a “mostração” do que a “demonstração”, haja vista que, nesta última, as pautas orientadas por hipóteses rígidas de partida, ao se renderem ao conhecimento explicativo (demonstração), se afastam do conhecimento descritivo (mostração), correndo o risco de “menosprezar os sentidos do viver cotidiano”.

É sabido que a organização dos programas acontece segundo a definição de sua área de concentração e de suas linhas de pesquisa, em sintonia com o perfil do corpo docente, grupos e projetos de pesquisa, disciplinas e dinâmicas evidenciadas na proposta de curso aprovada por ocasião do aplicativo para propostas de cursos novos. Esses elementos contemplam (ou deveriam contemplar) as concepções que atuam como orientadoras das práticas, as quais deveriam ser narradas (ou relatadas) no relatório com base no que a ficha sugere e, principalmente, no modo como o programa se olha e se percebe.

Há que nos perguntarmos o quanto as lentes do narrador (ou redator), na maioria das vezes representado pelo coordenador, refletem adequadamente o vivido. Em outra via, podemos nos indagar o quanto as lentes do narrador se encontram embaçadas e afetadas por um olhar condicionado e/ou míope para o vivido no cotidiano do seu programa, por vezes atendendo meramente ao que a ficha requisita, por outras ignorando ou deixando no esquecimento alguns itens, por outras ainda produzindo uma narrativa afastada de ambas as pautas.

Interrogações emergem também sobre o quanto o conteúdo do relato inscrito no texto do relatório reflete o olhar individual de quem narra ou o olhar coletivo de quem integra o cotidiano do programa.

Consoante ao que postula Madalena Freire (1996, p. 1)FREIRE, M. Observação, registro e reflexão: instrumentos metodológicos I. 2. ed. São Paulo: Espaço Pedagógico, 1996., “não fomos educados para olhar pensando o mundo, a realidade, nós mesmos. Nosso olhar cristalizado nos estereótipos produziu em nós paralisia, fatalismo, cegueira”. Por isso, “a observação é a ferramenta básica” (FREIRE, 1996FREIRE, M. Observação, registro e reflexão: instrumentos metodológicos I. 2. ed. São Paulo: Espaço Pedagógico, 1996., p. 1) para romper com esse modelo autoritário, importante na educação do olhar (da observação), na aprendizagem do olhar. Um processo reflexivo decorre desse movimento, pois observador e observado aprendem com o processo, fazendo emergir uma cumplicidade que acompanha a pauta de observação, combinada previamente com temporalidades estipuladas e suportes que acolhem os conteúdos da observação definidos.

O “olhar sem pauta se dispersa” (FREIRE, 1996FREIRE, M. Observação, registro e reflexão: instrumentos metodológicos I. 2. ed. São Paulo: Espaço Pedagógico, 1996., p. 3). Por isso, um instrumento como a ficha de avaliação possibilita apurar o olhar para o que Madalena Freire (1996, p. 2)FREIRE, M. Observação, registro e reflexão: instrumentos metodológicos I. 2. ed. São Paulo: Espaço Pedagógico, 1996. chamou de “leitura diagnóstica de faltas e necessidades da realidade pedagógica”. Quando a pauta é apresentada, discutida, reformulada, validada, como foi o caso da ficha de avaliação quadrienal da Capes, o que ocorre quando os programas não conseguem expressar o vivido?

Ora, o cotidiano “não é apenas o espaço de realização de actividades repetitivas: é também lugar de inovação” (PAIS, 2003PAIS, J. M. Vida cotidiana: enigmas e revelações. São Paulo: Cortez, 2003., p. 78). Desse modo, um olhar sensível (educado, aprendido) oportuniza revelar a riqueza oculta sob a aparente pobreza e trivialidade da rotina, permitindo encontrar as surpresas naquilo que se repete todos os dias, o extraordinário no ordinário.

Nessa perspectiva se exige, de quem se aventura a adentrar nos meandros do cotidiano para decifrá-lo, a educação do olhar da observação, assim como a adoção de uma atitude detetivesca para, muitas vezes, nas brechas do cotidiano, ir em busca de pistas mudas (GINZBURG, 2007GINZBURG, C. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: GINZBURG, C. Mitos, emblemas, sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 143-179.), de modo a visualizar a paisagem para além do retrato estático apresentado na fotografia representada no relatório, ou no processo que envolve sua escrita. É preciso termos em mente que tal postura é, primeiramente, requerida por aquele que narra e relata, mas muitas vezes também por aquele que observa e que avalia do lugar de um observador externo, o avaliador. Qual então é o lugar daqueles que integram os elementos de composição da fotografia?

O desafio é grande para ambos os observadores, quer seja o narrador que produz o conteúdo da escrita que relata ou retrata o cotidiano do programa, quer seja o observador que analisa o retrato, isto é, o relatório, o qual também produz uma narrativa avaliativa sobre o conteúdo da observação, ademais com a responsabilidade de sugerir uma classificação por meio de uma nota, resultante de um percurso avaliativo, quesito a quesito, item a item, indicador a indicador, verificando os critérios muito bom, bom, regular, fraco, insuficiente.

O olhar condicionado, na contramão das reflexões que esse evento nos desafia, ou seja, para a discussão do papel da universidade e dos atravessamentos que essa instituição vem sofrendo, pode nos afetar pelas miopias institucionais e nos distanciar da dimensão formativa dos processos implicados nos seus percursos. Afirmamos isso, pois, muitas vezes, as lentes embaçadas afetam nossa capacidade de discernimento e nos desviam do caminho, nos distanciam dos nossos propósitos e nos conduzem, de modo alienado, para outras direções. Contudo quais são nossos propósitos? Sobreviver no âmbito de uma lógica predatória e de competição? Render-nos aos apelos do mercado? Reproduzir os modelos sem colocá-los em causa ou sem nos esforçar para contrapor o estabelecido? Lutar para manter os fundamentos dessa instituição milenar? Entretanto, se a lógica da avaliação da pós-graduação é comparativa, não estaria tudo certo?

Há um paradoxo envolvido nesse contexto. Por um lado, tem-se a dimensão formativa, que decorre dos nexos que transversalizam a ficha de avaliação, orientando o caminho, alertando para detalhes da paisagem, dos desvios, das paradas e dos percalços para se atingir os pontos de chegada, podendo-se transitar o caminho todo rumo à nota 7 ou optando por, gradualmente, atingir parte do caminho, nos pontos 3, 4, 5, 6, por exemplo, ou apenas conformando-se por fazer parte do sistema e manter-se no mínimo exigido para seguir em movimento. Por outro lado, e em outra via, estão os processos de objetificação, que coisificam as dinâmicas formativas e de produção do conhecimento, na rendição ao que preconiza a ficha, restringindo a abertura para novas perspectivas, haja vista que, segundo o verbete coisificação (STECANELA, 2018STECANELA, N. Coisificação. In: STRECK, D. R.; REDIN, E.; ZITKOSKI, J. J. (org.). Dicionário Paulo Freire. 4. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2018. p. 88-89., p. 88-89), “entre os significados associados ao substantivo feminino ‘coisificação’ está a redução de alguém à condição de objeto”. A redundância é proposital: objetificação que coisifica, pois:

[...] é o caráter de objetificação que transforma o outro, ou a relação, em objeto de dominação. O processo de alienação também pode promover o sentido oposto no qual o próprio homem, devido a sua condição de objeto e não de sujeito, reifica-se

(STECANELA, 2018STECANELA, N. Coisificação. In: STRECK, D. R.; REDIN, E.; ZITKOSKI, J. J. (org.). Dicionário Paulo Freire. 4. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2018. p. 88-89., p. 88-89).

Em outras palavras, sem um olhar crítico para as prescrições, corremos o risco de, segundo Freire (1967)FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967., nos afogarmos no anonimato da massificação, já que, sem esperança nem fé, nos acomodamos e nos domesticamos. Ou seja, rebaixamo-nos a puro objeto, coisificamo-nos.

Com base nessas assertivas, indagamos: em que medida a ficha de avaliação, com sua estrutura e lógica interna, nos aproxima ou nos distancia dos propósitos da formação e da produção científica em nível de excelência na área da educação, coadunando relevância e impacto?

Evidências de um olhar domesticado, alienado ou até míope podem ser buscadas nos produtos que alguns programas escolheram destacar, na grande maioria das vezes associados à qualidade representada pelo estrato da publicação, ou seja, o Qualis, deixando encoberto ou invisível um conjunto de ações, práticas e culturas que, por exemplo, fazem parte da vida do programa e de suas interfaces com a educação básica, com o conhecimento popularizado em diferentes produtos. Não é uma questão de desconsiderar os aspectos qualidade e circulação dos produtos do programa, mas de trazer à superfície os alertas de Freire (1967)FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967. para os riscos da coisificação.

No jogo da competição e das regras preestabelecidas no sistema de avaliação corremos o risco de, também, nos tornar invisíveis, silentes e estáticos ante o cotidiano da educação, em direção contrária às reverberações dos processos formativos e de produção científica para a interpretação e/ou apresentação de alternativas de superação dos desafios mencionados. Se centramos nossa atenção unicamente nos indicadores que assumem relevância na ficha de avaliação, corremos o risco de desatenção à dimensão do impacto social de nossas produções e percursos formativos, deixando de nos ater à popularização do conhecimento produzido no cotidiano da pós-graduação, restringindo também o seu acesso.

Essa postura, por vezes consciente, mas por outras alienada, produz consequências na medida em que nos encastelamos e não nos esforçamos para nos dar a ver, tanto ao nível das políticas educacionais, sejam elas locais, sejam mais abrangentes, como ao nível das instituições, que pouco conhecem o que é produzido nos inúmeros projetos de pesquisa que apoiam e financiam. Evidências disso podem ser referidas às políticas públicas que buscam consultorias em entidades mercadológicas quando há inúmeras pesquisas que analisam o cotidiano da educação básica daquele lugar, por exemplo, mas que não nos conhecem e que não damos a conhecer. Essa realidade vivificada na escola promove um distanciamento prejudicial à educação nacional em todos os seus níveis escolares. Assim, o novo modelo de avaliação, adotado para o quadriênio 2017-2020, poderá suprimir esse hiato entre a pós-graduação e a educação básica se a perspectiva universal/global da avaliação mantiver a dimensão política do processo.

Considerações Finais

Optamos por trazer algumas reflexões sobre a relação entre os indicadores constantes da ficha de avaliação da Capes para os programas de pós-graduação e o cotidiano dos programas abarcados na área da educação. Situamos a escolha com base na experiência na comissão de avaliação da quadrienal 2017-2020, pois, como consultores para essa tarefa4, foi necessário desenvolvermos competências apuradas no sentido de observar, perceber e apreender a presença dos indicadores articulados aos quesitos, desdobrados em critérios no relatório dos programas postados na Plataforma Sucupira.

Conforme argumentos apresentados ao longo das seções que compõem este artigo, procuramos refletir acerca da relevância da avaliação na pós-graduação como instrumento que possui positividades, ao mesmo tempo que pode apresentar riscos, consoante os comportamentos assumidos pelos PPGEs em relação à estrutura da ficha de avaliação disponibilizada.

Entre as faces positivas, podemos destacar a melhoria da própria pós-graduação em nível stricto sensu, pois uma avaliação só tem validade se resultar em qualificação do objeto avaliado. Nesse sentido, consideramos que as avaliações trienais e, atualmente, quadrienais, têm aperfeiçoado essa modalidade de produção do conhecimento no país. Na mesma direção, considerada como um dos aspectos mais relevantes da atual ficha de avaliação, temos a preocupação com a inserção social e melhoria da educação nacional, pois a pós-graduação e o seu aprimoramento só resultarão positivamente para a sociedade se causarem impacto social, ou seja, se as alterações melhorarem a educação básica e o ensino superior.

Assim, a nova face da avaliação traz à baila como seu epicentro indaga as características internas da pesquisa e, por conseguinte, o desenvolvimento científico do país. Esse aspecto é o mais significativo, porque, por intermédio dele, podemos ponderar em que medida os avanços na pós-graduação no campo da educação têm contribuído para o desenvolvimento da sociedade brasileira como um todo.

Consideramos relevante que os atores dos PPGEs observem a avaliação quadrienal como um momento importante de melhoria do programa, uma vez que avaliar é parte fundamental do processo de aprimoramento de qualquer projeto e, portanto, de qualquer instituição.

Por fim, evocamos Lefebvre (1976, p. 209)LEFEBVRE, H. Tiempos equívocos: testemonio autobiográfico. Barcelona: Kairós, 1976. quando o autor afirma que “o cotidiano se mostra como resultado do mundo da mercantilização, das cadeias de equivalência, fictícias ou reais, arrastando a uniformidade abaixo das diferenças aparentes das coisas”. Por inspiração em seu método regressivo-progressivo, descrito e analisado por Pais (2015, p. 272)PAIS, J. M. Das nomeações às representações: os palavrões numa interpretação inspirada por H. Lefebvre. Etnográfica – Revista do Centro em Rede de Investigação em Antropologia, Lisboa, v. 19, n. 2, p. 267-289, 2015. https://doi.org/10.4000/etnografica.4000
https://doi.org/10.4000/etnografica.4000...
, os contributos de Lefebvre (1976)LEFEBVRE, H. Tiempos equívocos: testemonio autobiográfico. Barcelona: Kairós, 1976. desafiam-nos a pensar o papel da ficha de avaliação no domínio das “tramas das mediações”, no âmbito das quais o narrado no relatório pode representar um lugar intermediário entre o vivido no programa e o concebido na ficha, salientando o desafio de identificar as presenças nas ausências, duas categorias analíticas, para fins de decifração dos enigmas do cotidiano da pós-graduação em educação, seja na sua dimensão político-formativa, seja na sua dimensão reificada.

Notas

  • 1
    O início de uma mudança já se observa no relatório da avaliação 2013-2016 (BRASIL, 2017BRASIL. Ministério da Educação. Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Diretoria de Avaliação. Relatório da avaliação quadrienal 2017: educação. Avaliação quadrienal 2013-2016. Brasília: Ministério da Educação, 2017. Disponível em: https://www.gov.br/capes/pt-br/centrais-de-conteudo/20122017-educacao-relatorio-de-avaliacao-quadrienal-2017-final-pdf. Acesso em: 29 maio 2023.
    https://www.gov.br/capes/pt-br/centrais-...
    ), indicando que “não foi utilizado o conjunto da produção do Programa, mas apenas o equivalente a oito vezes o número de docentes permanentes médio no quadriênio, em ordem decrescente de pontuação” (BRASIL, 2017BRASIL. Ministério da Educação. Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Diretoria de Avaliação. Relatório da avaliação quadrienal 2017: educação. Avaliação quadrienal 2013-2016. Brasília: Ministério da Educação, 2017. Disponível em: https://www.gov.br/capes/pt-br/centrais-de-conteudo/20122017-educacao-relatorio-de-avaliacao-quadrienal-2017-final-pdf. Acesso em: 29 maio 2023.
    https://www.gov.br/capes/pt-br/centrais-...
    , p. 4).
  • 2
    A questão do produtivismo acadêmico na pós-graduação já foi tema de diversos estudos e análises feitos em diferentes perspectivas teóricas (SGUISSARDI; SILVA JÚNIOR, 2009SGUISSARDI, V.; SILVA JÚNIOR, J. dos R. Trabalho intensificado nas federais: pós-graduação e produtivismo acadêmico. São Paulo: Xamã, 2009.; BIANCHETTI; MACHADO, 2013BIANCHETTI, L.; MACHADO, A. M. N. Publicar & morrer!? Análise do impacto das políticas de pesquisa e pós-graduação na constituição do tempo de trabalho dos investigadores. Educação, Sociedade e Culturas, Porto, n. 28, p. 53-69, jul. 2009. Disponível em: http://www.fpce.up.pt/ciie/revistaesc/ESC28/28_lucidio.pdf. Acesso em: 29 maio 2023.
    http://www.fpce.up.pt/ciie/revistaesc/ES...
    ; PIMENTA, 2014PIMENTA, A. G. (Des)caminhos da pós-graduação brasileira: o produtivismo acadêmico e seus efeitos nos professores pesquisadores. 323f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2014.) e que convergem no entendimento de que a quantidade de produções exigida para os atores da pós-graduação, determinante para a estratificação dos programas, resulta não apenas na diminuição da qualidade da produção acadêmica, mas também em consequências outras, como na saúde física e psíquica dos investigadores.
  • 3
    Segundo Stecanela (2016, p. 345)STECANELA, N. O direito à educação e o cotidiano escolar: dimensões do concebido, do vivido e do percebido. Educação, Porto Alegre, v. 39, n. 3, p. 344-356, 2016. https://doi.org/10.15448/1981-2582.2016.3.20997
    https://doi.org/10.15448/1981-2582.2016....
    , concebido, vivido e percebido são categorias analíticas utilizadas por inspiração nas elaborações de Lefebvre (1971)LEFEBVRE, H. Tiempos equívocos: testemonio autobiográfico. Barcelona: Kairós, 1976., adaptadas ao contexto do artigo, considerando as dimensões mental, experiencial e social do conceito de espaço na vida cotidiana.
  • 4
    Todos os três autores do presente artigo participaram do processo de avaliação do quadriênio 2017-2020. Entre eles, dois também tiveram participação em edições anteriores de avaliação da área.

Referências

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Editora de Seção: Ivany Pino https://orcid.org/0000-0001-6227-972X

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Set 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    25 Mar 2023
  • Aceito
    31 Maio 2023
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