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Resenha do livro 'Looking for Spinoza: Joy, Sorrow and the Feeling Brain'

RESENHA

Resenha do livro 'Looking for Spinoza: Joy, Sorrow and the Feeling Brain'* * Harcourt Books, 2003, 1ª ed., de Antônio Damásio.

Maurício Marx e Silva

Analista em formação pela SPPA, coordenador do curso de especialização em psiquiatria do Instituto Abuchaim

Endereço para correspondência E ndereço para correspondência Maurício Marx e Silva Rua Mostardeiro, 333/cj514 90430-001 - Porto Alegre - RS E-mail: maurimarx@terra.com.br

Antônio Damásio é um neurologista e neurocientista luso-americano, diretor do departamento de neurologia da universidade de Iowa e professor convidado de outras prestigiosas universidades americanas. Em seu primeiro livro, 'O Erro de Descartes', ele apresenta sua teoria dos marcadores somáticos e discute de forma muito interessante as funções da córtex pré-frontal. Seu segundo livro, 'The Feeling of What Happens', traduzido sob o título de 'O Mistério da Consciência', desenvolve uma compreensão bastante original, coerente e convincente de uma área até há pouco não vista como um objeto sério de investigação científica. Com este seu último livro, minha impressão de que se trata, mais do que um neurocientista destacado, de um pensador brilhante, que vinha se construindo a partir destas obras anteriores, bem como de uma oportunidade de ouví-lo pessoalmente em 2000, em Londres, respondendo a uma sessão de perguntas após uma palestra, foi referendada por nomes como Eric Kandel, David Hubel, Oliver Sacks, e Jean Pierre Changeux, todos cientistas brilhantes, dois deles detentores de prêmios Nobel.

Tomando como ponto de partida uma lembrança de juventude, carregada afetivamente, de uma citação de Spinoza, reencontrada após muito tempo, Damásio simultaneamente redescobre as surpreendentes antevisões do filósofo seiscentista e configura uma elegante e bem embasada teoria sobre os afetos: emoções, sentimentos, estados de humor e motivacionais. Transita com desenvoltura, tanto pela bibliografia neurocientífica mais recente, pelos estudos elaborados por ele próprio e seu grupo na Universidade de Iowa, quanto pelas ruas de Haia e pela casa onde o filósofo viveu boa parte de sua vida, e tece especulações sobre a vida interna de Spinoza e sobre como ele pode ter chegado a predizer tanto do que a neurociência do século XXI está propondo.

Não totalmente original, mas originalmente formulada de forma clara e simples, é a proposta do autor de que os afetos são basicamente parte do aparato de regulação da homeostase do organismo, tanto quanto os mecanismos de controle de pH e glicemia, por exemplo. São formas de marcar as representações mnêmicas com sinais de 'bom para a vida' ou 'ruim para a vida', ou seja, o que é do interesse do organismo vai em direção à homeostase, recebe valências positivas, afetos prazerosos, e aquilo que afasta da homeostase é marcado com afetos desprazerosos. Os diferentes afetos, e suas incontáveis combinações, ajudam a discriminar as experiências, dar diferentes relevâncias a elas, permitindo a tomada de decisão. Este processo será sempre pautado, embora inconscientemente, pelos interesses do organismo que 'sente os afetos'. Mecanismos mais primitivos(mais subcorticais) competem todo o tempo com mecanismos mais sofisticados na tomada de decisão, e quando os mecanismos mais primitivos dominam o processo, a busca do interesse do organismo pode não ser facilmente compreendida, até porque os resultados podem ser por vezes, na visão de um observador externo, contrários a estes interesses.

Proposições como as de que 'a mente humana é a idéia do corpo humano', ou de que 'os organismos naturalmente e por necessidade lutam para atingir uma maior perfeição de funcionamento, e isto é a alegria', feitas por Spinoza em meados do século XVII, levaram Damásio a comparar a visão de mundo deste filósofo com as evidências e teorizações da neurociência moderna, alinhando-se neste caminho de três séculos e meio com muitas das propostas de William James, Claude Bernard, Charles Darwin e Sigmund Freud. Aliás, Claude Bernard, o mentor da idéia de homeostase, foi um dos nomes célebres a patrocinar a construção de uma estátua de Spinoza em Haia em 1876, como testemunho da influência das idéias do filósofo sobre suas teses biológicas.

Creio que alguns excertos podem dar uma idéia da linha de construção do raciocínio do autor: 'As emoções se encenam no teatro do corpo, os sentimentos no teatro da mente... emoções, e a horda de reações subjacentes a elas, são parte dos mecanismos básicos da regulação da vida; os sentimentos também contribuem para a regulação da vida, porém num nível mais alto... a emoção habilitou os organismos a responder de forma eficiente porém não criativa a um número de circunstâncias favoráveis ou ameaçadoras à vida... o sentimento introduziu um alerta mental para as circunstâncias boas e más e prolongou o impacto das emoções ao influenciar atenção e memória de forma duradoura. Por fim, numa combinação frutífera de memórias, imaginação e raciocínio, os sentimentos levaram à emergência da antevisão e à possibilidade de criar respostas novas, não estereotipadas... (os sentimentos) traduzem o estado atual do organismo para a linguagem da mente'.

Assim, o 'estado atual do organismo' é mapeado constantemente no cérebro, e sua posição quanto à homeostase é sinalizada com marcadores afetivos, dirigindo então o comportamento no sentido da busca do que vai em direção aos interesses biopsíquicos do organismo, ou da evitação ou combate do que vai de encontro a eles. Estes 'mapas' do estado do organismo(e as memórias são parte do organismo) podem ser falseados, para o bem e para o mal, por fármacos, drogas de abuso, etc. Neste enquadre fica fácil compreender por exemplo a síndrome amotivacional associada ao uso de certas drogas que produzem uma sensação de bem estar falsa, dando ao resto do cérebro a falsa informação de que não necessita fazer mais nada para buscar um estado homeostático ótimo a não ser buscar a droga. Da mesma forma, as emoções sociais guiam na direção de um funcionamento homeostático nas relações, e são particularmente interessantes os relatos do autor quanto a pacientes com lesões frontais ventromediais que, sob todos os aspectos, parecem normais exceto pela incapacidade de utilizar as emoções sociais, e que numa situação hipotética de testagem são capazes de antever adequadamente as conseqüências de uma linha de conduta, enquanto em situações da vida real, acabaram de falhar nestas mesmas situações, com resultados desastrosos para suas relações interpessoais.

Damásio alonga o raio de ação dos mecanismos homeostáticos para abranger o funcionamento social, propondo que estes mecanismos estejam na base dos sistemas de ética, nas religiões e no direito, retomando o conceito de 'consiliência' de Edward Wilson, que propõe a compatibilização entre as disciplinas mais subjetivas e as mais objetivas. Aliás, as evidências de neuroimagem e de estudos etológicos citadas pelo autor, demonstrando que a propensão à cooperação e à empatia estão estruturalmente enraizadas em nosso cérebro, lado a lado com a competitividade, são alentadoras em uma época de terrorismo como a atual.

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    Maurício Marx e Silva
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    Harcourt Books, 2003, 1ª ed., de Antônio Damásio.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Set 2005
    • Data do Fascículo
      Abr 2004
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