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"Espíritos infernais" e "astutos encantamentos" em psicoterapia de orientação psicanalítica: a interpretação transferencial

"Espíritus infernales" y "astutos encantamientos" en psicoterapia psicoanalítica: la interpretación transferencial

Resumos

Este é um texto sobre interpretação transferencial utilizada no contexto da psicoterapia de orientação psicanalítica. A primeira parte deste trabalho contempla a evolução do conceito de transferência até ele ocupar uma posição central no trabalho terapêutico. A segunda parte aborda o conceito de interpretação transferencial, considerando-o um recurso técnico amplamente utilizado em psicoterapia de orientação psicanalítica, e enfoca os critérios e inconveniências de sua utilização. Por fim, são apresentados dois exemplos clínicos a título de ilustração do tema desenvolvido.

Psicoterapia psicanalítica; psicanálise; interpretação transferencial; transferência


Este es un texto sobre la interpretación transferencial utilizada en el contexto de la Psicoterapia de Orientación Psicoanalítica. La primera parte trata de la evolución del concepto de transferencia hasta que dicho concepto ocupara la posición central en el trabajo terapéutico. La segunda parte aborda el concepto de interpretación transferencial, considerándolo un recurso técnico ampliamente utilizado en Psicoterapia de Orientación Psicoanalítica, y enfoca los criterios e inconveniencias de su utilización. Por fin, se presentan dos ejemplos clínicos para ilustración del tema desarrollado.

Psicoterapia psicoanalítica; psicoanálisis; interpretación transferencial; transferencia


The present article focuses on transference interpretation in the context of psychoanalytic psychotherapy. The first part of this work describes the evolution of the concept of transference until it reaches a central position in the therapeutic work. The second part deals with the concept of transference interpretation, considering it as a widely used technical resource in psychoanalytic psychotherapy, and focuses on the criteria and inconveniences of its use. Finally, two clinical examples are presented to illustrate the theme.

Psychoanalytic psychotherapy; psychoanalysis; transference interpretation; transference


RELATO DE CASO

"Espíritos infernais" e "astutos encantamentos" em psicoterapia de orientação psicanalítica: a interpretação transferencial* * Referência utilizada por Freud na obra Observações sobre o amor transferencial (1915).

"Espíritus infernales" y "astutos encantamientos" en psicoterapia psicoanalítica: la interpretación transferencial

Regina Lopes Schimitt

Psicóloga, especialista em Psicoterapia de Orientação Analítica pelo Centro de Estudos Luís Guedes, Porto Alegre, RS

Correspondência Correspondência Regina Lopes Schimitt E-mail: regreg@tca.com.br

RESUMO

Este é um texto sobre interpretação transferencial utilizada no contexto da psicoterapia de orientação psicanalítica. A primeira parte deste trabalho contempla a evolução do conceito de transferência até ele ocupar uma posição central no trabalho terapêutico. A segunda parte aborda o conceito de interpretação transferencial, considerando-o um recurso técnico amplamente utilizado em psicoterapia de orientação psicanalítica, e enfoca os critérios e inconveniências de sua utilização. Por fim, são apresentados dois exemplos clínicos a título de ilustração do tema desenvolvido.

Descritores: Psicoterapia psicanalítica, psicanálise, interpretação transferencial, transferência.

RESUMEN

Este es un texto sobre la interpretación transferencial utilizada en el contexto de la Psicoterapia de Orientación Psicoanalítica. La primera parte trata de la evolución del concepto de transferencia hasta que dicho concepto ocupara la posición central en el trabajo terapéutico. La segunda parte aborda el concepto de interpretación transferencial, considerándolo un recurso técnico ampliamente utilizado en Psicoterapia de Orientación Psicoanalítica, y enfoca los criterios e inconveniencias de su utilización. Por fin, se presentan dos ejemplos clínicos para ilustración del tema desarrollado.

Palabras clave: Psicoterapia psicoanalítica, psicoanálisis, interpretación transferencial, transferencia.

INTRODUÇÃO: COMENTÁRIOS A RESPEITO DO CONCEITO DE TRANSFERÊNCIA

Nos dias de hoje, é quase inconcebível redigir um texto sobre técnica psicanalítica sem levar em consideração o conceito de transferência, fundamental, até mesmo, para descrever o processo psicanalítico. Constitui uma das principais descobertas de Freud e está para a técnica como o conceito de inconsciente está para a teoria.

Apesar disso, o conceito de transferência não estava estabelecido desde o início da psicanálise. Freud detectava a presença do fenômeno, mas as metáforas utilizadas por ele denunciavam a enorme dificuldade que encontrava em lidar com isso. A transferência era "o inimigo", "a força explosiva", "o espírito dos infernos", algo que provocava susto e precisava ser combatido como obstáculo ao trabalho.

Até se aperceber da dimensão comunicativa da transferência, Freud a encarou puramente como expressão da resistência, uma tendência a repetir padrões de relacionamento que as pessoas traziam para dentro da relação terapêutica, a fim de impedir o acesso ao material mais profundamente reprimido.

Ao descobrir, num giro lógico genial, que onde estavam as dificuldades também residiam as maiores possibilidades, Freud pôde compreender, de forma mais ampla, o funcionamento do inconsciente. Compreendeu, também, que as enfermidades não dizem respeito a acontecimentos de um passado morto e enterrado, mas que esses acontecimentos do passado são trazidos para dentro do campo terapêutico com força atual e vivenciados pelo paciente como algo real e contemporâneo1. Descobriu que o paciente atua naquilo que está esquecido e reprimido e que, por não conseguir recordar, repete sem compreender o significado de sua ação2.

O desdobramento natural dessas observações foi o estabelecimento do conceito de transferência, cuja solução Freud considerava uma das principais tarefas do tratamento3. Mais ainda, Freud descobriu que, apesar de o fenômeno ser verificado em todas as relações, a natureza da transferência na psicanálise, pela forma como o analista conduz o trabalho, não encontra paralelos em nenhuma outra situação:

"É tão desastroso para a análise que o anseio da paciente por amar seja satisfeito quanto que seja reprimido. O caminho que o analista deve seguir não é nenhum desses, é um caminho para o qual não existe modelo na vida real." 4

Ou seja, a transferência é produto da compulsão à repetição e tende a se manifestar em qualquer relação. O que faz a diferença em psicanálise é a posição do psicanalista frente a isso. É a técnica psicanalítica que faz dessa uma relação sem paralelos, que institui uma assimetria que não se verifica em outras relações.

Hoje, a transferência não é mais considerada um obstáculo ao tratamento psicanalítico, mas os psicanalistas, no melhor dos casos, ainda admitem o temor que ela provoca. Apesar de estar no centro do trabalho terapêutico, a transferência, quer se reconheça, quer não, continua a ser um "espírito infernal" na relação terapeuta-paciente.

Leon Grinberg explica que isso acontece porque o adequado manejo da transferência exige do terapeuta uma capacidade para se deixar invadir pelas projeções dos pacientes, e não apenas ser continente, mas "despi-los de seus elementos patogênicos e devolvê-los, no tempo adequado, por meio de interpretações apropriadas"5.

O USO DA INTERPRETAÇÃO TRANSFERENCIAL EM PSICOTERAPIA DE ORIENTAÇÃO PSICANALÍTICA

Como Freud mesmo assinalou, criar toda uma situação propícia ao estabelecimento da transferência e não trabalhar com ela seria o equivalente a evocar espíritos infernais mediante astutos encantamentos e despachá-los sem fazer pergunta nenhuma. A transferência desencadeia toda uma rede de outros fenômenos que guiam o terapeuta em seu trabalho, caso ele esteja advertido para isso como conseqüência de seu tratamento pessoal e os conhecimentos teóricos e técnicos de que dispõe, dentre os quais, vale destacar, a interpretação é a principal ferramenta.

A interpretação é o mais importante recurso técnico do psicoterapeuta. Muitos autores consideram que todas as outras formas de intervenção estão subordinadas a ela. James Strachey6 aponta a interpretação transferencial como a única capaz de produzir efeito de mudança psíquica. As interpretações mutativas são, portanto, aquelas que incidem sobre o material que diz respeito à transferência.

Porém, assim como a interpretação pode promover mudança se os conteúdos trazidos pelo paciente são sentidos pelo terapeuta como perigos, é principalmente nas interpretações que sua ansiedade irá se revelar. De acordo com Grinberg5, a psicopatologia do terapeuta pode levá-lo a fazer interpretações prematuras para proteger-se dos conteúdos dolorosos do paciente. A interpretação imediata da transferência pode revelar falta de continência. Nessa situação, a interpretação transferencial pode revelar uma "falta de disponibilidade para penetrar nos níveis mais profundos e regressivos da transferência" (p. 20), tanto como a atitude de nunca interpretá-la, podendo constituir-se, assim, em uma faca de dois gumes, que tanto pode possibilitar ao paciente emergir de sua psicopatologia como, se mal empregada, acrescentar a este o fardo da psicopatologia do terapeuta.

Soma-se a esse cuidado, em psicoterapia de orientação psicanalítica, o fato de que esta, de acordo com Mabilde7, tem objetivos diferentes dos da psicanálise. Para esse autor, a psicanálise visa à elaboração do conflito infantil, primitivo, mediante o estabelecimento da neurose de transferência pela via da interpretação transferencial sistemática. A psicoterapia de orientação psicanalítica não busca mudar a estrutura caracterológica do paciente, mas tratar o conflito atual.

Os ajustes técnicos efetuados no referencial psicanalítico, que é a base teórica da psicoterapia de orientação psicanalítica, repercutem na transferência. Conforme Mabilde, em psicanálise há, no desenvolvimento da transferência, um predomínio do processo primário. O grau de regressão é, portanto, muito maior do que em psicoterapia, em que há um predomínio do processo secundário.

Contudo, superados os receios de seu uso, hoje a interpretação transferencial faz parte do acervo de recursos da psicoterapia de orientação psicanalítica, embora os objetivos desta sejam mais modestos que os da psicanálise8. Conforme o autor, existem situações, inclusive, em que a única intervenção cabível e eficaz é mesmo a interpretação transferencial, quais sejam:

- No início do tratamento, quando o paciente se acha invadido por intensa ansiedade paranóide, e no fim do tratamento, quando há um incremento de ansiedades depressivas.

- Quando a transferência assume um aspecto de resistência, ocasionando uma interrupção do fluxo associativo.

- Como recurso para tentar desfazer situações de impasse terapêutico.

- Quando a resistência se apresenta sob a forma de ataque ao contrato terapêutico.

- Quando situações da vida real do psicoterapeuta invadem a situação terapêutica de forma a serem percebidas ou sabidas pelo paciente.

- Como recurso para melhorar o nível de insight do paciente.

ILUSTRAÇÃO CLÍNICA

O excerto de sessão a seguir ilustra uma situação em que foi utilizada uma interpretação transferencial a fim de trazer à luz uma questão que estava esterilizando a situação terapêutica, qual seja, os sentimentos ambivalentes negados pela paciente com relação à terapia.

Laura, 56 anos, divorciada, tem sete filhos, todos adultos, com os quais mantém um relacionamento conturbado. Os filhos mais jovens não freqüentam a casa e acusam-na de preferir o filho mais velho, com quem não se relacionam. Laura é vitimizada por dores crônicas devido a vários problemas de saúde, que lhe causam muitas limitações. Estas, somadas à desagregação familiar e ao avanço da idade, acarretam sucessivos episódios depressivos.

O objetivo do tratamento veio a ser melhorar sua qualidade de vida e o relacionamento com os filhos, principalmente o mais velho, com quem mantinha uma relação de controle e dependência mútua, com muitas brigas.

Por ocasião do trecho de sessão aqui relatado, havia uma melhora geral no seu quadro. Mostrava-se, nesse ponto, inconscientemente ambivalente com relação à terapia e devendo algumas consultas, sem, porém, tocar no assunto durante as sessões. Uma vez anunciara que trouxera o dinheiro para efetuar o pagamento, mas que não iria fazê-lo naquele dia porque iria pagar o IPTU. Outra vez, dissera que havia ido ao banco para retirar o dinheiro do pagamento, mas esquecera a senha. Mantinha-se prolixa durante as sessões, sem ir, entretanto, aos pontos importantes. Na hora de ir embora, porém, diante da porta de saída, fazia tentativas de prolongar-se no horário, alegando lembrar-se de coisas importantes que não havia dito, aceitando a contragosto os limites impostos, para depois esquecer tudo na sessão seguinte e retornar ao discurso estéril.

Primeiro exemplo

No trecho a seguir, ela toca no assunto do dinheiro, pois está para receber o 13º salário, e pergunto a respeito de sua vida financeira.

L: Eu deixei acumular aqui para ti, mas não estou com dívidas.

Eu: Tu não vais receber o 13º?

L: A empresa está com muitas dificuldades financeiras, eles estão com dificuldades de comprar tinta para as impressoras e óleo para as máquinas e as pessoas estão indo só para cumprir horário e ficar olhando uma para a cara da outra, porque, sem combustível, não dá para fazer nada.

Eu: Tu achas que essa questão do dinheiro pode, de alguma forma, influir no nosso trabalho aqui?

L: Eu estive para te pagar, eu vim retirar dinheiro, mas não retirei porque não queria andar por aí com muito dinheiro. Eu pedi para a minha afilhada fazer isso, só que eu me enganei e dei para ela a senha errada, daí ela tentou, tentou, no caixa eletrônico, e o meu cartão ficou bloqueado.

Eu: Eu te digo isso porque tu já tiveste várias situações em que tu ias me pagar e não o fizeste, como essa da tua sobrinha, como aquela do IPTU. Eu fico pensando se, daqui a pouco, tu não crias uma situação de a gente vir aqui cumprir horário e "ficar olhando uma para a cara da outra" e a terapia ficar "bloqueada" porque tu não consegues dizer o que queres, e chegas ali na porta e lembras de uma porção de coisas que querias ter dito.

L: É verdade.

Segundo exemplo

O fragmento de sessão a seguir se passa em um momento da terapia em que já se estava discutindo alta. A sessão é posterior a um episódio em que a paciente atua para não ter de se confrontar com os sentimentos penosos de separação. As interpretações transferenciais, aqui, têm por objetivo trazer de volta para o setting a questão e evitar a repetição do padrão de comportamento da paciente frente a situações de separação, um padrão de rupturas bruscas, maníacas.

Laura ligou-me às 17h do dia anterior a essa sessão, dizendo: "Regina, eu fiz uma coisa que eu não podia ter feito. Eu marquei uma consulta com o médico na hora da terapia". Em seguida, propôs-se a vir à tardinha e combinamos para as 17h30min do mesmo dia, "se não te atrapalhar nas tuas coisas", ela me diz ao telefone.

Na sessão:

L: (Pergunta imediatamente ao sentar-se) O que há contigo, Regina? Tu estás com uma cara diferente. Estás doente? Pareces doente. Acho que é o frio.

Eu: Quem esteve indo ao médico hoje foste tu.

L: É, eu fui levar uns exames.

Eu: Mas interessante isso que tu disseste. Por que eu estaria doente?

L: Sei lá, me pareceu.

Eu: Será que isso se relaciona, de alguma forma, com o fato de tu teres faltado hoje pela manhã?

L: (Sorri e esboça uma expressão de dúvida.)

Eu: ...uma sensação de ter me causado algum tipo de dano?

L: (Quando toco nesse assunto ela me olha meio de lado, como se fosse uma criança levada, e ri.) Acho que não. (Pausa.) Era para eu ter ido visitar a minha mãe também, porque o médico fica a quatro quadras da casa dela.

Eu: O que te fez mudar de idéia?

L: O Marcelo (filho mais novo, que está em processo de separação da esposa e que serve de pretexto para trazer o assunto da ansiedade de separação) me levou na consulta. Se eu fosse lá na mãe, não ia poder voltar com ele, porque ia demorar e a minha nora ia precisar do carro. (Pausa.) Acho que eles não vão se entender mais. Mas também não sei. No domingo a Cláudia (filha) foi almoçar lá em casa com o namorado e o Marcelo levou a Kátia (a esposa do filho que está se separando) e o nenê. A Cláudia agiu como se ela nem estivesse ali. Elas se desentenderam uma vez e, no aniversário do Jonas (neto, filho do casal que se está separando) do ano passado, a Kátia disse pra Cláudia não ir. E ela não foi. Esse ano a Kátia mandou dizer que se a Cláudia quisesse ir que ela estava convidada. A Cláudia me disse que até teve vontade de ir, mas acabou comprando o presente e escrevendo uma coisa pro Marcelo ler pro Jonas e guardar pra quando ele souber ler. Ela disse: "A Kátia não pense que ela vai fazer comigo o que ela faz com o meu irmão, que ela manda nele e ele vai atrás que nem um cachorrinho. No almoço lá em casa, lá pelas tantas, eu senti, parece, um clima pesado, não tinha assunto. A Cláudia quase não falava, não puxava assunto, uma frieza.

Eu: Eu acho que tu também estás me dizendo que estás me sentindo um pouco fria, estás preocupada com o que eu estou pensando de ti porque tu fizeste "arte" hoje.

L: (Rindo.) Talvez. (Pausa.) Eu não sei que horas eu te liguei ontem. De noite eu não conseguia dormir.

Eu: Por quê?

L: Sei lá, simplesmente perdi o sono. Aí eu fui ver um programa na TV que falava do golpe de 64 e tinha umas pessoas que tinham sido presas, falando das prisões. Daí eu dormi. Mas lá pelas tantas acordei de novo e não conseguia dormir. Cheguei a pensar em ver TV de novo, mas não fiz isso. (Pausa.) O Marcelo recebeu essa semana queixa da creche porque o Jonas está fazendo "arte". Até agora parecia que ele estava achando muito bonito dormir uma noite por semana na casa do pai e outras noites na casa da mãe. Mas não é bem assim. Como é que a gente vai saber o que se passa na cabeça de uma criança de 3 anos?

Eu: Tu estás me falando de uma criança que está sofrendo com uma separação e está reagindo "fazendo arte". Nós também vimos falando de alta e olha a dona Laura aí "fazendo arte". Tu me ligaste dizendo: "Regina, fiz uma coisa que não devia".

L: (Cobre o rosto e ri muito.) Pois é. (Pausa.) Mas eu estou preocupada com o fato de o Marcelo não querer ir trabalhar. Eu tenho rezado pra ele ter vontade de ir trabalhar, que isso também ajuda. Aquele emprego que o Sandro (outro filho) tinha arrumado pra ele, eu descobri que ele só foi bem mais tarde, porque ele pensou que era só por um salário. Mas, nessas empresas estrangeiras, logo tem a possibilidade de subir. Daí deu a tentação nele e ele foi lá, mas como se atrasou já tinha três na frente dele. (Pausa breve.) Ele me disse que queria mais leite. Ontem ele tomou o leite do pequeno. Eu disse pra ele: "Mas tu não tens capricho mesmo, né, Marcelo?" Ele disse que ele deveria poder ficar lá em casa por mais uns 3 anos porque ele saiu com 16 anos e deveria ter saído só com 19.

Eu: Ele sente que foi desmamado muito cedo. Acho que tu também estás sentindo que eu estou te desmamando muito cedo, que deverias ficar pelo menos mais uns 3 anos na terapia.

L: (Rindo.) Não, nem pensar. Mas quem sabe eu tenho medo de precisar mesmo? (Rindo.) Mas às vezes o Marcelo me irrita. Ele tem mania de querer tirar as minhas coisas, fazer as coisas do jeito dele. Ontem ele levantou a voz comigo e eu disse: "Baixa a bola, tu estás na minha casa, as coisas não são como tu queres, e sim como eu quero". Ele que não pense que vai fazer tudo como ele quer.

Eu: Acho que isso também explica a tua falta hoje pela manhã. Eu tenho tocado em assuntos que te desagradam e foi o teu jeito de dizer: "A Regina que não pense que ela vai fazer as coisas do jeito que ela quer".

R: (Ri.) É pra ver como diz o ditado: Laranjeira só dá laranja, não dá outra fruta. Ele tem a quem puxar.

DISCUSSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo do tratamento cujos fragmentos de sessão foram relatados era melhorar a qualidade dos relacionamentos dessa pessoa, sobretudo com seus familiares, porque a sua situação familiar, somada a outros fatores desfavoráveis, relatados na apresentação do caso, eram fonte de sofrimento para ela. Naturalmente, o caráter da paciente em muito contribuía para o estabelecimento das situações geradoras de sofrimento, porém não era objetivo do tratamento analisar traços de caráter fortemente arraigados em uma pessoa de 59 anos, que só podia comparecer a uma consulta semanal. Por isso, as interpretações transferenciais não remeteram a esses traços nem às relações primitivas, mas, no primeiro caso, pretenderam ampliar a capacidade de insight em um momento do tratamento em que a transferência começava a prestar-se à resistência, o que estava levando gradualmente a terapia a um impasse, e, no segundo caso, abordar as ansiedades depressivas desencadeadas pela proximidade do final do tratamento, evitando o padrão habitual de comportamento da paciente frente a situações de separação. Isto é, todas as suas experiências anteriores de separação, desde o divórcio até a saída dos filhos de sua casa, foram marcadas por rupturas bruscas. A solução maníaca buscava aplacar as ansiedades depressivas despertadas pela proximidade da dissolução ou modificação da natureza do vínculo. As interpretações transferenciais, nesse momento, possibilitaram que esses sentimentos fossem elaborados ao invés de atuados.

A psicoterapia tem limites, e é preciso conhecê-los por imposição ética. Quando o psicoterapeuta toma contato com o conceito e a experiência da transferência, é quase como se um outro mundo se descortinasse diante de si. É nesse momento que a assimetria da situação terapêutica se torna mais presente, porque, quando um paciente fala, desconhece a dimensão inconsciente do que está proferindo, uma dimensão que é sempre da ordem da verdade, ainda que ele pense estar mentindo, e o terapeuta está em posição de escutar essa verdade. Isso é, a um só tempo, fascinante pela riqueza que revela, assustador pela responsabilidade que acarreta e, ainda, tentador pela noção de poder implícita. Todos os critérios e cuidados são necessários para que essa assimetria não se torne uma assimetria perversa.

Agradecimento

Gostaria de agradecer ao Dr. Luis Carlos Mabilde por sua colaboração na realização deste trabalho.

Recebido em 16/11/2004. Revisado em 19/11/2004. Aceito em 14/02/2005.

  • 1. Freud S. Recordar, repetir e elaborar (1914). In: Ediçăo Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago; 1988. Vol. XII, p. 198.
  • 2. Freud S. Recordar, repetir e elaborar (1914). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago; 1988. Vol. XII, p. 196.
  • 3. Freud S. Recomendações aos médicos que exerçam a psicanálise (1912). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago; 1988. Vol. XII, p. 149-63.
  • 4. Freud S. Observações sobre o amor transferencial (1915). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago; 1988. Vol. XII, p. 126.
  • 5. Grinberg L. A transferência é temida pelo psicanalista? In: Livro Anual de Psicanálise XIII. São Paulo: Escuta; 1997. p. 20.
  • 6. Strachey J. Naturaleza de la acción terapéutica de psicoanálisis. Rev Psicoanálisis. 1947;5:951-83.
  • 7. Mabilde LC. Convergęncias e divergęncias entre psicoterapia de orientaçăo psicanalítica e psicanálise: a questăo das divergęncias. Rev Bras Psicoterapia. 2001;3(2):20.
  • 8. Mabilde LC. Açăo e indicadores da interpretaçăo transferencial em psicoterapia. In: Eizirik C, Aguiar R, Schestatsky S (orgs.). Psicoterapia de orientaçăo analítica. Porto Alegre: Artes Médicas; 1989. p. 164-9.
  • Correspondência
    Regina Lopes Schimitt
    E-mail:
  • *
    Referência utilizada por Freud na obra
    Observações sobre o amor transferencial (1915).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Ago 2006
    • Data do Fascículo
      Ago 2005

    Histórico

    • Aceito
      14 Fev 2005
    • Revisado
      19 Nov 2004
    • Recebido
      16 Nov 2004
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