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Depressão e suicídio no filme "As Horas"

Depresión y suicidio en la película "Las Horas"

Resumos

As histórias dramatizadas nas telas dos cinemas são impactantes, uma vez que suscitam sentimentos vivenciados pelos seus apreciadores. Nessa perspectiva, o presente artigo procura identificar, demonstrar e comentar o comportamento depressivo nos personagens do filme As horas, de Stephen Daldry. Os personagens ilustram a vivência e convivência de pessoas com quadros depressivos em diferentes épocas e em diferentes graus de morbidade. O filme procura mostrar as diferentes manifestações comportamentais e sintomáticas através da apresentação pessoal de cada personagem e também através do cenário das histórias representadas. Observam-se traços de depressão psicótica na personagem de Virginia Woolf e um estado depressivo que tende à distimia na personagem de Laura Brown. Clarissa sugere uma "depressão dissimulada" e fortemente relacionada a Richard, cuja depressão culmina em suicídio. A condensação de épocas e a interligação entre os personagens refletem a universalidade e a atemporalidade dos fenômenos psíquicos, embora vividos de forma particular por cada um dos personagens.

Depressão; suicídio; tipos de depressão


Las historias dramatizadas en las pantallas de los cines son impactantes, una vez que suscitan sentimientos vivenciados por sus apreciadores. En esa perspectiva, el presente artículo busca identificar, demostrar y comentar el comportamiento depresivo en los personajes de la película Las horas, de Stephen Daldry. Los personajes ilustran la vivencia y convivencia de personas con cuadros depresivos en distintas épocas y en distintos grados de morbidad. La película busca mostrar las distintas manifestaciones comportamentales y sintomáticas a través de la presentación personal de cada personaje y también a través del escenario de las historias representadas. Se observan rasgos de depresión psicótica en el personaje de Virginia Woolf y un estado depresivo que tiende a la distimia en el personaje de Laura Brown. Clarisa sugiere una "depresión disimulada" y fuertemente relacionada a Richard, cuya depresión culmina en suicidio. La condensación de épocas y la interconexión entre los personajes reflejan la universalidad y la atemporalidad de los fenómenos psíquicos, aunque vividos de modo particular por cada uno de los personajes.

Depresión; suicidio; tipos de depresión


The stories dramatized in movie screens are striking, once they arouse feelings that are experienced by the audience. From this perspective, the present article attempts to identify, demonstrate and comment on the depressive behavior of the characters in the movie The Hours, by Stephen Daldry. The characters illustrate the people's coexistence with depressive states in different times and in different morbidity levels. The movie tries to show the different behavioral and symptomatic manifestations through the personal presentation of each character, as well as through the scenery of the stories. Traces of psychotic depression can be seen in Virginia Woolf's character and a depressive state that tends to dysthymia in Laura Brown's character. Clarissa suggests a "dissembling depression" which is strongly related to Richard, whose depression culminates in suicide. The combination of different times and the interconnection between the characters reflect the universal and atemporal character of the psychological phenomena, although they are privately experienced by each character.

Depression; suicide; types of depression


ARTIGO DE OPINIÃO

Depressão e suicídio no filme "As Horas"* * Este estudo foi realizado na UFSC, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de Psicologia, Florianópolis, SC.

Depresión y suicidio en la película "Las Horas"

Maria Helena MoraesI; Elisa Melo da SilvaII; Francini NetoII; Gleice Schürhaus da SilvaII; Juliana Klein RabelloII; Letícia Just GuerraII

IMestre em Psicologia, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, SC. Especialista em Psicologia Clínica (CRP/12)

IIAcadêmica da 9ª fase de Psicologia, UFSC, Florianópolis, SC

Correspondência Correspondência: Maria Helena Moraes Av. Rio Branco, 354/210 CEP 88015-200 - Florianópolis - SC E-mail: mariapsi@yatech.net

RESUMO

As histórias dramatizadas nas telas dos cinemas são impactantes, uma vez que suscitam sentimentos vivenciados pelos seus apreciadores. Nessa perspectiva, o presente artigo procura identificar, demonstrar e comentar o comportamento depressivo nos personagens do filme As horas, de Stephen Daldry. Os personagens ilustram a vivência e convivência de pessoas com quadros depressivos em diferentes épocas e em diferentes graus de morbidade. O filme procura mostrar as diferentes manifestações comportamentais e sintomáticas através da apresentação pessoal de cada personagem e também através do cenário das histórias representadas. Observam-se traços de depressão psicótica na personagem de Virginia Woolf e um estado depressivo que tende à distimia na personagem de Laura Brown. Clarissa sugere uma "depressão dissimulada" e fortemente relacionada a Richard, cuja depressão culmina em suicídio. A condensação de épocas e a interligação entre os personagens refletem a universalidade e a atemporalidade dos fenômenos psíquicos, embora vividos de forma particular por cada um dos personagens.

Descritores: Depressão, suicídio, tipos de depressão.

RESUMEN

Las historias dramatizadas en las pantallas de los cines son impactantes, una vez que suscitan sentimientos vivenciados por sus apreciadores. En esa perspectiva, el presente artículo busca identificar, demostrar y comentar el comportamiento depresivo en los personajes de la película Las horas, de Stephen Daldry. Los personajes ilustran la vivencia y convivencia de personas con cuadros depresivos en distintas épocas y en distintos grados de morbidad. La película busca mostrar las distintas manifestaciones comportamentales y sintomáticas a través de la presentación personal de cada personaje y también a través del escenario de las historias representadas. Se observan rasgos de depresión psicótica en el personaje de Virginia Woolf y un estado depresivo que tiende a la distimia en el personaje de Laura Brown. Clarisa sugiere una "depresión disimulada" y fuertemente relacionada a Richard, cuya depresión culmina en suicidio. La condensación de épocas y la interconexión entre los personajes reflejan la universalidad y la atemporalidad de los fenómenos psíquicos, aunque vividos de modo particular por cada uno de los personajes.

Palabras clave: Depresión, suicidio, tipos de depresión.

INTRODUÇÃO

A depressão é um mal tão antigo quanto a humanidade. Em todas as épocas da história, encontra-se o homem apresentando comportamento tipicamente depressivo. Embora o aumento crescente da depressão, principalmente no mundo ocidental, atualmente a caracterize como o "mal do século"1, este quadro tem sido descrito desde os personagens bíblicos2.

O cinema, arte que imita a vida, por meio do desenvolvimento de suas tecnologias e sensibilidade de roteiristas, diretores e atores, tem oportunizado o estudo e a análise de comportamentos humanos nas mais diversas situações. Situações e comportamentos estes que sensibilizam o público pela possibilidade de identificação e empatia, conscientes e inconscientes, com as dores, sonhos e fantasias dos personagens.

O presente artigo pretende identificar características e vicissitudes do comportamento depressivo e suicida nos principais personagens do filme "As Horas", de Stephen Daldry. Virginia Woolf, Laura Brown, Clarissa Vaughan e Richard Brown ilustram a vivência e a convivência de pessoas com quadros depressivos em diferentes épocas e graus de morbidade.

Não se pretende aqui uma análise profunda, visto que, com exceção de Virginia Woolf, os demais se tratam de personagens fictícios e não têm dados históricos que possam levar a um estudo mais completo de suas vidas. Por meio de revisão teórica e discussão do filme, levantam-se possibilidades psicodiagnósticas e inferências sobre a psicodinâmica dos personagens em suas características depressivas e em seus atos ou idéias suicidas.

BREVE REVISÃO TEÓRICA SOBRE DEPRESSÃO E SUICÍDIO

Uma sintética história da depressão

Uma pesquisa mais atenta sobre a depressão através da história revela o homem apresentando comportamento típico depressivo desde eras mais remotas. O "Evangelho Segundo Mateus", capítulo 27, versículos 3 a 5, mostra que Judas - o qual teria vendido seu amigo Jesus -, em decorrência de um profundo remorso de seu erro, sofreu uma das mais graves conseqüências da depressão, o suicídio.

Em outras narrativas históricas, existem indicações de que, há 3.000 anos, sacerdotes egípcios tratavam de um mal ainda sem definição, mas cuja descrição assemelhava-se ao quadro da depressão. Eles observavam que, depois de uma perda, as pessoas passavam a sofrer um certo abatimento duradouro, o qual poderia voltar em outras fases da vida.

Já no século 5 a.C., para Hipócrates, a melancolia era "o delírio com tristeza; ou seja, a desrazão com depressão do humor, com redução do engajamento em atividades usuais, redução de atividades físicas e sociais"3. Ele atribuía os sintomas melancólicos a um excesso de "bílis negra", em comparação com os três outros humores restantes (o sangue, a fleuma e a "bílis amarela"). Hipócrates foi o primeiro a atribuir doenças psíquicas aos distúrbios no cérebro e o primeiro a descrever os fenômenos da mania e da depressão.

Atualmente, segundo Silva1, a parcela da população, em todo o mundo, que é vitimada pela depressão pode chegar a 20%, dependendo do grau de rigor dos critérios diagnósticos. Coloca, ainda, que o crescente aumento na prevalência da depressão, particularmente no mundo ocidental, faz dela, ao lado da AIDS, a doença do século ou da moda, e ainda destaca que, conforme estatísticas de diferentes autores, estima-se que 75% dos casos de suicídio têm a depressão como sua principal causa.

Para Missel4, as mulheres sofrem duas vezes mais com a depressão do que os homens, sendo que tais resultados estão ligados a fatores sociais, fisiológicos e culturais, visto que as mulheres são mais emotivas, procuram ajuda com mais freqüência e também apresentam variações hormonais mensais, que muitas vezes acabam influenciando seu comportamento. Embora esse fenômeno afete mais as mulheres, Claro2 salienta que pode afetar pessoas de todas as faixas etárias, crenças, etnias e classes sociais.

Tipos de depressão

De acordo com critérios de classificação propostos por Mackinnon e Michels5, envolvendo causas, presença ou não de componentes genéticos, tipos de sintoma e gravidade, a depressão pode ser diagnosticada como:

- Depressão dissimulada ou equivalente: Síndrome comum tratada pelo médico não-psiquiatra. Os pacientes apresentam sinais típicos de depressão, mas o componente afetivo é afastado ou negado, muitas vezes expresso por sintomas somáticos. A depressão é revelada à medida que são penetradas as defesas do paciente.

- Depressão reativa ou secundária: Surge em resposta a um estresse identificável, como perdas (reações a luto), doenças físicas graves (tumores cerebrais, hipotireoidismo, etc.) ou uso/abstinência de drogas (corticóides, barbitúricos, anticoncepcionais, hormônio tireoidiano, etc.). Correspondem a 60% de todas as depressões.

- Depressão menor ou distimia: Falta de humor crônico, que dura pelo menos 2 anos nos adultos e se manifesta pela síndrome depressiva, onde o paciente consegue funcionar socialmente, mas sem experimentar prazer.

- Depressão maior ou unipolar: Desordem primária e endógena, caracterizada por episódios depressivos em períodos variáveis da vida do paciente, geneticamente predisposto à doença. Atualmente, pode ser tratada com medicamentos e psicoterapia. Corresponde a cerca de 25% de todas as depressões.

- Transtorno de humor bipolar: Desordem primária e endógena, caracterizada por episódios depressivos alternados com fases de mania ou de humor normal. No estado de mania, a pessoa tem prejudicado o seu raciocínio, bem como sua capacidade de julgamento e o comportamento social; envolve-se facilmente em negócios mirabolantes ou aventuras; toma atitudes inadequadas e incertas. Se não tratada adequadamente, pode evoluir para quadros psicóticos. Corresponde a cerca de 10% de todas as depressões.

Gabbard6 acrescenta os seguintes tipos:

- Melancolia (depressão psicótica): Forma mais grave e rara de depressão, caracterizada pela perda de auto-estima, humor não-reativo a estímulos agradáveis, acentuado retardo ou agitação psicomotora, delírios (perturbações do pensamento) e alucinações (perturbações da percepção).

- Depressão pós-parto: O parto e as alterações que ele traz, sejam hormonais ou na rotina da mulher, podem ser um potente estressor, desencadeando a depressão em mulheres com tendências à mesma.

- Depressão sazonal: Relacionada à luminosidade diurna, repetindo-se no outono/inverno; mais freqüente em países com inverno rigoroso, podendo melhorar com a fototerapia (exposição diária e prolongada à luz forte).

- Depressão atípica: Humor reativo a estímulos agradáveis, inversão dos sintomas vegetativos (hipersonia e aumento de apetite), ansiedade acentuada, queixas fóbicas.

Ainda, de acordo com o tempo de duração, Mackinnon e Michels5 classificam a depressão como: temporária, transitória, constante (ou estável) e crônica, sendo esta última a mais grave.

Características psicodinâmicas e sintomas do estado depressivo

Entre as características do estado depressivo, estão as manifestações somáticas, mudanças de humor e pensamento, falta de motivação e concentração, tristeza, pessimismo, baixa auto-estima, ansiedade e comportamento suicida.

Entre as características somáticas, as mais freqüentes são a perda de apetite e peso, boca seca, constipação, distúrbios do sono e perda da libido, podendo ocorrer ainda manifestações hipocondríacas. Cabe lembrar que a escolha dos sintomas somáticos está relacionada a significados simbólicos dados pelo paciente.

Quanto ao humor, são freqüentes as queixas de sentimento de tristeza e infelicidade, tanto que as pessoas não respondem com interesse às coisas de que costumavam gostar. Além disso, é comum não conseguirem explicar por que se sentem tristes, encontrando no choro a única resposta possível.

As pessoas com depressão vêem em tarefas simples enormes dificuldades, são manipuladas por pensamentos negativos, sentem-se fracassadas e culpadas pelos fracassos, os quais podem vir acompanhados de falta de ânimo, incapacidade, dificuldade de concentração e desgaste da motivação e da ambição. Exemplo disso é que muitos depressivos queixam-se da crescente dificuldade de trabalhar e de assumir responsabilidades. Neste sentido, Mackinnon e Michels5 colocam que o indivíduo deprimido pode participar de atividades cotidianas quando pressionado, mas, se deixado à sua própria vontade, provavelmente se isola, buscando inclusive atividades que reforçam este isolamento, como, por exemplo, a leitura.

A apresentação e a postura freqüentemente denunciam a pessoa deprimida. Esta normalmente não sente vontade de se arrumar e chega a descuidar da própria higiene, sendo isso agravado principalmente nos quadros de depressão psicótica. O retardo psicomotor ou um extremo estado de agitação podem se alternar quanto mais profundo for o comportamento depressivo.

A ansiedade que caracteriza algumas síndromes depressivas (que podem variar de traços de personalidade até uma depressão psicótica, passando por depressões reativas a perdas reais - luto - e a outros eventos menos limitantes) constitui-se, para Mackinnon e Michels5, em uma resposta psicológica ao perigo, sendo percebida quando o sujeito sente que existe uma constante ameaça ao seu bem-estar. Nas depressões endógenas, a ansiedade e a agitação relacionadas a estas podem se tornar um traço crônico, enquanto que, nas depressões graves ou crônicas, tendem a desaparecer e serem substituídas por apatia e afastamento.

O depressivo tem por característica "atormentar-se" com sua situação e com o efeito que causa em sua vida. Tende a ruminar seu passado e a sentir remorso, procurando imaginar soluções para os seus problemas por meio de alguma força oculta, onipotente. Tem, ainda, dificuldade em lembrar das passagens felizes de sua vida e a percebe "cor de cinza, com periódicos momentos negros"5. Nos casos mais graves, como na depressão psicótica - melancolia -, há uma perda de contato com a realidade.

Gabbard6 cita a autodepreciação como uma característica comum aos pacientes depressivos, ocasionada pela "raiva voltada para dentro" na teoria freudiana. Já para Melanie Klein7, a raiva seria o pivô da depressão, sendo que esta última autora entendia os estados maníaco-depressivos como resultados de falhas na infância em estabelecer bons objetos internos, não tendo as pessoas deprimidas resolvido de fato as situações depressivas próprias da infância. Esses indivíduos acreditam, então, que destruíram os objetos bons e amados dentro de si, devido à sua avidez ou destrutividade.

De acordo com Gabbard6, a depressão é caracterizada por um colapso parcial ou total da auto-estima do ego; isso porque o mesmo percebe-se incapaz de estar à altura das aspirações do ideal do ego ou do superego. Este colapso, portanto, está relacionado com características depressivas, como a baixa auto-estima e a sensação de fracasso.

Em sua relação com os outros, o indivíduo depressivo deseja o amor, mas não consegue recompensá-los. Assim, ele pode tanto se isolar do convívio social como tentar estar sempre na companhia de amigos, para acabar afugentando-os com sua dependência e egoísmo ou para não se defrontar com seu "silêncio".

O depressivo pode usar-se para agredir os outros, ficar mal para mostrar sua insatisfação, pois, detendo a atenção de todos e mantendo assim o controle e o domínio, garante o seu benefício secundário. Entretanto, na medida em que a depressão agrava, o indivíduo entrega-se, pois sente que os outros não querem ou não podem ajudá-lo e que as circunstâncias não vão melhorar.

Arieti8 acredita que indivíduos profundamente deprimidos não vivem para si, mas sim para outra pessoa, que seria o outro dominante. Ao identificar que este objetivo é inatingível, o indivíduo sente-se desamparado, às vezes enraivecido; percebe que viver para alguém ou alguma coisa pode não estar funcionando, mas não se sente capaz de modificar essa situação e passa, dessa forma, a ter um plano de vida irreal, do qual não consegue buscar alternativa.

Essa aparente falta de possibilidades, aliada à baixa auto-estima e à sensação de fracasso no enfrentamento de situações triviais e/ou complexas, reais ou fantasiadas, faz com que a pessoa gravemente deprimida sinta-se mal consigo mesma. Essas características, juntamente com tendências masoquistas e autodestrutivas, podem levar o indivíduo à idealização suicida. A idéia de morte surge como alternativa possível e tem como etiologia psicodinâmica o que segue.

Gabbard6 destaca que, para Freud, o suicídio corresponderia à vitimização do ego por um superego sádico. Atualmente, considera-se que o suicídio teria como causa uma agressão passiva, uma autopunição ou um alívio do sofrimento. Lembrando os estudos de Menninger9, três desejos poderiam contribuir para o suicídio: o desejo de matar, o de ser morto e o de morrer; sendo que o desejo de matar pode estar dirigido não só a um objeto interno, mas também pode estar destinado a destruir a vida daqueles com quem se relaciona. Podem ocorrer também situações em que a motivação principal do suicídio não seja a agressão, e sim "a realização de um desejo de reunião, ou seja, um reencontro com alguém amado que se perdeu, ou uma união narcisista com uma figura superegóica amorosa"10.

Silva1 salienta o suicídio como uma forma de comunicação através da morte: "O suicida precisa morrer para falar". O tipo de mensagem geralmente deixada ou a ausência desta podem auxiliar a detectar diferentes e subjetivos significados do suicídio. Estas metamensagens podem variar de comunicações auto-referentes e narcisistas até explícitas manifestações de acusação, conforto, testamento, despedida e protestos.

Nesse sentido, a forma de suicídio escolhida traz indícios sobre a patologia existente e o objetivo do ato. Durkheim11 classifica os suicídios em maníacos, melancólicos, obsessivos e impulsivos. Na adolescência, este último tipo é muito freqüente, em virtude da necessidade de superação onipotente dos limites do corpo e dos lutos típicos dessa fase12.

Além das motivações individuais ou "egoístas", Durkheim11 especifica suicídios do tipo "altruísta", em que o sujeito se autodestrói por causas sociais ou em protesto à sociedade, como no caso dos camicases e homens-bomba.

De todos os vértices etiológicos das diversas teorias estudadas, o que se pode concluir é que pessoas que têm tendência a desenvolver depressão e, conseqüentemente, estão sujeitas a risco de suicídio apresentam características orgânicas geneticamente herdadas, situações familiares e sociais específicas e, principalmente, falhas ou faltas no desenvolvimento que dificultam o enfrentamento das adversidades e das frustrações impostas pela realidade externa ou interna.

Fatores desencadeantes da depressão

Conforme Mackinnon & Michels5, as depressões exógenas ou reativas resultam de experiências traumáticas na vida do paciente; já as depressões endógenas são vistas como a expressão padronizada de uma reação constitucionalmente condicionada, pouco afetada por fatores externos, sugerindo uma conotação mais grave ou um quadro psicótico. No entanto, para muitos autores, a maioria dos processos depressivos endógenos pode desenvolver-se a partir de um fator desencadeante externo, fato que leva ao entendimento de que as explicações biológicas e psicodinâmicas não somente são compatíveis como interdependentes.

A perda constitui-se no fator desencadeante mais comum na depressão, traduzindo-se, em geral, pela morte ou separação do objeto de amor. Essa perda pode ser real ou iminente, como nas reações depressivas que antecipam a morte de um ente querido. Algumas vezes, pode ser uma perda psicológica interna real ou fantasiada, como conseqüência da suposição de ser rejeitado pela família e pelos amigos, ou perda de status social (aposentados, por exemplo).

Outro fator desencadeante da depressão, na visão de Mackinnon & Michels5, é a redução da autoconfiança e da auto-estima. O deprimido fundamenta o amor-próprio na contínua absorção de amor, respeito e aprovação das figuras importantes de sua vida, e, por isso, a ruptura com tais objetos representa uma ameaça à fonte de amor e gratificação dependente que supre seus sentimentos narcisistas, constituindo-se em uma amputação do próprio ego.

Muitas vezes, o indivíduo nega a perda ou o impacto causado pela mesma, evitando uma reação emocional; entretanto, diante de um novo acontecimento que remete ao trauma inicial, tal negação torna-se ineficaz, e a depressão se instala. De certa forma, as reações depressivas do adulto são respostas adiadas, com o desencadeante imediato na vida adulta, revelando sentimentos que podem ter sido seguidos desde a infância.

SÍNTESE DO FILME

O filme intitulado "As Horas" baseia-se na obra literária homônima de Michael Cunningham. Ambos, o filme e o livro, apresentam como personagens centrais Virginia Woolf, Laura Brown e Clarissa Vaughan. Essas três mulheres vivem, em épocas diferentes, conflitos semelhantes. As três personagens têm em comum o sentimento de não-pertinência ao mundo cotidiano, que lhes reserva papéis bem definidos, com sua cota de sacrifícios e alegrias. Todas denotam algum grau de profundidade filosófica e existencial nas experiências mais comuns, tais como: tomar café, comprar flores e fazer um bolo.

O enredo apresenta-se em três diferentes momentos históricos, desenrolados de forma paralela. Inicialmente, retrata Virginia Woolf, em 1923, escrevendo seu célebre livro Mrs. Dalloway. Em Richmond, onde, junto ao marido Leonard (Stephen Dillane), busca a quietude necessária ao seu conturbado estado mental, o filme revela momentos cruciais, que simbolizam sua vida social, familiar e intrapsíquica, culminando com seu suicídio em 1941.

A segunda história passa-se em 1949, num subúrbio de Los Angeles. Laura Brown, casada com um herói de guerra - Dan (John Reilly) -, mãe de um menino de 5 anos - Richie (Jack Rovello) - e grávida do segundo filho, vê-se angustiada com sua vida e pensa em cometer suicídio. A trama relata apenas 1 dia na vida dessa mulher, que é leitora assídua de Virginia Woolf e, no momento, está lendo seu livro Mrs. Dalloway.

Essa personagem tem uma família e uma vida comum, aparentemente sem conflitos, o que pode afastar qualquer hipótese de motivo externo atual para a depressão retratada. Seu marido está de aniversário, e, como esposa, embora desanimada, Laura sente-se obrigada a lhe preparar uma surpresa. O filho aflito percebe e acompanha o sofrimento da mãe. Laura é incapaz de pensar algo diferente da morte, estando isso evidenciado em seu olhar, em sua lentidão e em sua ação posterior (a ser descrita e analisada na discussão).

A terceira parte do filme restringe-se a relatar o dia em que Clarissa prepara uma festa para Richard, em função de uma premiação literária que este receberia. Eles foram amantes por um verão na juventude e cultivaram uma forte amizade até os dias atuais. Aqui, são retratados os sentimentos de Clarissa em relação a Richard, explicitados em sua visita rotineira ao amigo e durante os preparativos da festa, quando se põe a refletir sobre eles. Richard está em estado terminal de saúde e insinua a ela sua intenção de se suicidar. Em apenas 1 dia, várias e intensas situações são dramatizadas por estes personagens.

A DEPRESSÃO E O SUICÍDIO EM "AS HORAS"

No filme, as diferentes revelações comportamentais e sintomáticas da depressão encontram-se não só na apresentação pessoal dos personagens (a ser detalhada adiante), como na ambientação de cada história, tanto em termos de luminosidade quanto de decoração. Em Richmond, Virginia vive em um casarão antigo, de cômodos escuros e móveis clássicos, com vasos ornados com flores roxas, que geralmente simbolizam luto. Laura, por sua vez, vive num subúrbio de Los Angeles, em uma casa de estilo padrão e neutro, com paredes em tons pastéis e adornada com flores brancas ou amarelas. Clarissa reside em um apartamento moderno, de cômodos amplos e iluminados, enfeitados com flores do campo. Já Richard é encontrado em um ambiente pequeno, sombrio e decadente, exatamente como seu estado físico e mental, simbolizado também por flores murchas e mortas, substituídas nos vasos por Clarissa, quando ela o visita.

Tal caracterização ilustra não só a particularidade e a subjetividade embutidas em cada indivíduo e sua história, como também as diferentes gradações e possibilidades de manifestação da patologia depressiva.

A biografia de Virginia Woolf escrita por Ingram13 ajuda a compreender melhor seus antecedentes histórico-familiares e sua doença. Virginia Woolf, romancista britânica que viveu de 1882 a 1941, distinguiu-se em sua época pelas importantes contribuições de seus trabalhos à literatura. Além de inovadora, Virginia era crítica literária do The Times Literary Supplement e figura central do grupo de Bloomsbury - grupo de intelectuais liberais da época.

Virginia Woolf, terceira dos quatro filhos do casamento entre Sir Leslie Stephen e Julia Jackson Duckworth, nasceu em Londres. Tanto seu pai quanto sua mãe já haviam casado anteriormente, sendo que seu pai tinha uma filha do primeiro casamento (Laura), e sua mãe, três filhos (George, Gerald e Stella Duckworth). De fato, dos mesmos pais, Virginia possuía três irmãos: Vanessa, Toby e Adrian.

Considerada uma mulher peculiar, era muito inteligente, talentosa, criativa e excêntrica. O talento e o prestígio de Virginia Woolf foram marcantes em sua história, assim como sua desordem mental. Ela sofria de transtorno de humor bipolar, oscilando entre crises de mania e depressão que variavam de intensidade.

A infância e a juventude de Virginia foram envoltas por períodos difíceis e situações traumáticas, as quais auxiliam na compreensão do desenvolvimento de sua doença mental. Ela teve perdas significativas quando jovem. Sua mãe faleceu quando tinha 13 anos (idade na qual teve o surto inicial), e, 2 anos mais tarde, sua meia-irmã Stella, que havia "ocupado o lugar da mãe", também faleceu. Pela mesma época, seu irmão Toby, por quem Virginia nutria grande afeto, e seu pai também faleceram.

Outro aspecto que possivelmente também influenciou no agravamento da depressão de Virginia Woolf foi o fator genético. Na história familiar de Virginia, encontram-se vários casos de desordem mental: a irmã Laura nasceu com problemas mentais e passou sua vida adulta em instituições psiquiátricas; o irmão Toby, que tentou se suicidar, sofria com "ataques de grito" e morreu jovem; os meio-irmãos George e Gerald Duckworth abusaram sexualmente, repetidas vezes, de Virginia e suas irmãs - Laura, Vanessa e Stella. Esse fato certamente afetou sua vida psicológica e sua sexualidade após adulta, tanto que, em seu casamento, não houve relação sexual após a lua-de-mel. Virginia era sexualmente frígida na prática, mas sexualmente liberal na caracterização de seus personagens. Seu contato com algumas mulheres durante sua vida demonstra uma tendência homossexual.

Virginia tinha, ainda, muito em comum com seu pai Leslie Stephen: ambos eram altos, desolados, revisores minuciosos e amavam poesia. Ambos poderiam ser tanto encantadores quanto rudes, eram extremamente dedicados ao trabalho e defensores das causas feministas. No entanto, ele era claro e lógico em seu raciocínio, enquanto Virginia era essencialmente imaginativa.

Virginia o descrevia como sendo um homem difícil. Sofria de insônia e ataque de pânico. Ele teve sua primeira crise em 1888 e, depois, 2 anos mais tarde. Depois da morte de sua segunda esposa, Julia, seu quadro piorou. Virginia e Vanessa escutavam-no caminhar pela casa falando para si mesmo: "Eu queria estar morto, eu queria estar morto...".

A irmã Vanessa teve um episódio de depressão aos 32 anos, que durou 2 anos, depois de um aborto. Foi um período sério, no qual ela relatava medos e sensação de irrealidade.

Outro fator que possivelmente acentuou a questão da identificação patológica e dos conseqüentes surtos foi a educação de Virginia e a ausência na infância do convívio social. Por seus pais serem críticos literários renomados da época, sua casa era envolta por uma atmosfera essencialmente intelectual. Não obstante, foi seu pai quem a ensinou a ler e escrever; ela não teve contato com outras crianças de sua idade além dos seus irmãos.

No filme, a atriz Nicole Kidman representa Virginia Woolf e mostra os evidentes traços de depressão psicótica através de alucinações auditivas, perda de memória, isolamento, lentidão de movimentos, falta de apetite, cabelos desalinhados e roupas surradas. Vive sob a ameaça de si mesma, o que denota a severidade de seu superego sobre o ego.

Tal como outras pessoas em depressão profunda, a personagem de Kidman é rodeada de pessoas, as quais controla com suas ameaças de suicídio e pelas quais é controlada na tentativa de evitar o suicídio ou a piora dos sintomas. Naquela época, e ainda hoje, familiares esmeram-se em conseguir motivar e estimular o deprimido com funções, objetos, passeios que antes agradavam e que, no estado atual, já não interessam. O sofrimento de familiares e de terapeutas (por que não?) deste tipo de paciente dá-se pelas intensas e constantes identificações projetivas, despertando sentimentos de raiva e culpa em relação às pessoas gravemente deprimidas.

Talvez a cena mais impactante do filme seja aquela em que Virginia se deita ao lado de um pássaro morto, totalmente identificada com sua fragilidade e inanição, exprimindo um sofrimento imenso e um intenso desejo de morte. Ao mesmo tempo, seu enfraquecido instinto de vida parece projetado nos outros. A cena em que beija sofregamente a boca de Vanessa (Miranda Richardson), por exemplo, pode levantar a hipótese do desejo de absorver pela sua boca a vida "normal" da irmã, com filhos, alegria e aparente leveza.

Na época em que ela viveu, pouco se conhecia sobre a doença, tendo, então, sido vítima da falta de tratamento mais eficiente, disponível nos dias atuais. É bem verdade que suicídios acontecem até hoje, mas, no filme, fica retratado o suicídio de Virginia como única alternativa de alívio imaginável. Sua determinação na intenção, bem como as cartas de despedida e a espreita de uma oportunidade, alertam para o cuidado necessário com este tipo de paciente, sendo, para isso, muitas vezes requerida sua internação hospitalar.

A decisão do suicídio de Virginia era recorrente, e o intento concretizado foi desencadeado pela percepção da aproximação de um novo surto psicótico, por meio "das vozes" que começavam a se manifestar.

O que se pode pensar do suicídio de Virginia? Psiquiatricamente, como o desfecho possível para sua depressão psicótica; psicodinamicamente, como o predomínio do instinto de morte sobre o de vida14, ou como o ego identificado com o pai deprimido e suicida sucumbindo a um superego rígido e castrador, representado pelas vozes alucinadas. Ainda, segundo Klein7, a depressão pode se constituir na impossibilidade de reparação, apesar das tentativas de Virginia de elaboração literária nos períodos maníacos. De qualquer forma, a mensagem deixada por ela denota toda a ambigüidade entre culpa e protesto, geralmente embutida no ato suicida, que implica em auto e heteroagressão1.

A forma de suicídio escolhida pelos indivíduos revela características da personalidade e motivações inconscientes para a consumação do ato12. Virginia escolheu o afogamento. Sua determinação e pertinácia encontram-se nas pedras colocadas nos bolsos para afundar mais rápido; quer que desta vez não falhe, talvez porque desta vez esteja mais convicta do que nunca do desejo de morrer.

A personagem Laura Brown (Julianne Moore), por sua vez, parece viver um estado de distimia, manifestado por apatia, desinteresse, falta de apetite e fuga da realidade, esta ocorrendo, sobretudo, por meio da leitura. Diante do marido, Laura dissimula sua tristeza, por se sentir culpada em não ser feliz com o que ele lhe proporciona. Seu filho percebe sua infelicidade e tenta mantê-la viva com seu cuidado e demonstração de amor. No filme, pode-se pensar que a tentativa fracassada de fazer um bolo seja o simbolismo e a representação de sua auto-imagem empobrecida, de um ego enfraquecido, da raiva inconsciente do marido, bem como da interiorização de objetos maus incapazes de "nutrir" afetivamente. O bolo bem-sucedido acontece como "último ato" de reparação e culpa antes da decisão pelo suicídio.

Durante uma visita, a amiga Kitty (Toni Collette) lhe conta da suspeita de uma doença maligna; Laura a beija na boca. Sobre este beijo, pode-se pensar que tenha funções semelhantes às inferidas anteriormente em relação ao beijo de Virginia na irmã. Por outro lado, pode-se aludir ao desejo de sorver oralmente a doença e a possibilidade de morte, devido a um sentimento de inveja da situação mórbida da amiga.

Apesar de pensar em ingerir comprimidos para morrer - o que denota um desejo de agressão menor a si mesma, pois esta forma de suicídio não implica em dor nem ferimentos -, Laura não consegue persistir em sua intenção, optando, então, por "matar sua família", deixando-a, negando sua existência, atuando no que Menninger9 compreende como um dos conflitos básicos do depressivo suicida, que é o desejo de morrer, matar ou ser morto.

Laura reaparece ao final do filme para o enterro de seu filho Richard. Ao mesmo tempo em que pondera se sentir deslocada e inadequada aos padrões sociais e que sua atitude de ter abandonado a família assim que nasceu seu segundo filho não deve ter consistido em algo muito compreensível e facilmente aceito pela sociedade, parece não se arrepender, não sentir remorso pela decisão tomada. Aparenta estar absolutamente convicta de que fez a escolha certa - a vida -, ao passo que, do contrário, certamente teria "morrido".

Aqui, fica clara a opção da personagem por um destino solitário e egocêntrico, podendo-se inferir diversas razões para essa sua atitude, entre elas, o fato de ela não se achar merecedora de uma vida boa - neurose de êxito, segundo Freud15, determinada por um superego muito rígido ou por necessidades narcísicas precoces não atendidas, decorrentes de experiências primárias de desamparo, que não possibilitaram ao ego desenvolver capacidades de frustração e continência de necessidades alheias.

Paralelamente às histórias de Virginia Woolf e Laura Brown, o filme arrola a história de Clarissa Vaughan (Meryl Streep), que, aos 50 anos, é uma editora bem-sucedida, mãe de uma jovem - Julia (Claire Danes) - e casada com uma produtora de TV. Apesar disso, sua vida encontra-se diretamente atrelada à de Richard (Ed Harris), o quarto personagem. Este é um poeta conhecido seu de longa data, com quem outrora teve não mais que um caso de verão, mas que, na verdade, sempre se configurou como seu grande amor. Acometido pela Aids, Richard (sobre)vive sob os cuidados da amiga, tendo sua rotina inteiramente dependente dela, que também possui fortes traços de dependência em relação a ele.

Há um momento no filme em que Richard menciona uma citação de Mrs. Dalloway - "Ah, Mrs. Dalloway... Sempre dando festas para encobrir o silêncio...". No diálogo que se segue, verifica-se facilmente a insinuação de que Clarissa (a qual ele próprio denominava Mrs. Dalloway, em virtude de ela, coincidentemente, possuir o mesmo nome e estilo de vida da personagem literária criada por Virginia Woolf) dava festas para si própria, como uma saída maníaca, na tentativa de ocultar de si mesma a banalidade que era sua vida, com exceção de sua dedicação integral a Richard.

Durante a preparação da festa e do prato preferido de Richard (caranguejos, podendo simbolizar a tendência de ambos os personagens de "caminharem para trás" como estes animais; o fato de viverem do passado), Clarissa recebe uma visita antecipada do ex-parceiro de Richard, Louis (Jeff Daniels) e com o qual relembra suas vidas. Ela tem um súbito "colapso" emocional (momento catártico), devido à ocorrência de várias lembranças e sentimentos há muito não revividos. Parece, ainda, ficar bastante fragilizada com a insinuação de Richard sobre seu desejo de morrer na manhã do mesmo dia, terminando por expressar sua impotência diante do complicado contexto.

Ainda que possua um ego mais estruturado para suportar frustrações, quando comparada às duas personagens descritas anteriormente, pode-se assegurar que Clarissa é afetada pelo que Mackinnon e Michels5 classificam como depressão dissimulada, pois, embora possua outros sintomas típicos da depressão, apresenta um padrão psicodinâmico de negação da perturbação do componente afetivo (tristeza, normalmente gerada por um subexistente conflito entre raiva e culpa), lutando por conservar seus sentimentos subjetivos em um nível não-consciente. Clarissa é exigente, vê-se nostalgicamente "presa" ao desejo de ser a eterna Mrs. Dalloway e, neste sentido, não pode admitir ser nada menos do que esta idéia e de tudo aquilo que isto deveria lhe proporcionar. Poder-se-ia, ainda, tentar relacionar o estado depressivo de Clarissa ao que Bibring16 coloca como sendo a consciência do ego de sua incapacidade de estar à altura de suas aspirações narcisistas (provindas do ideal de ego), impostas como padrões de conduta.

Com relação a Richard, é nitidamente perceptível o controle exercido por parte de Clarissa no que diz respeito à sua alimentação, aparência e medicação, uma vez que ele, de fato, negligencia tais aspectos. Neste personagem, evidenciam-se sintomas psicológicos bem distintos: apatia, tristeza, hostilidade, pessimismo, desmotivação, solidão, cólera, fadiga, retraimento social, perda da noção do tempo. Também se torna evidente um quadro generalizado de inferioridade moral14, insatisfação com o ego - tido como "pobre e vazio" -, auto-recriminação, autoconfiança e auto-estima baixas, aliadas à constatação de surtos psicóticos expressos nos delírios e alucinações, que Richard refere como fogo negro e vozes. Tais sintomas permitem que se atribua a Richard uma estrutura de personalidade melancólica, o mais grave nível de depressão.

Há uma cena em que Richard, profundamente abatido, aparece olhando para uma foto da mãe vestida de noiva e recordando algumas imagens significativas de sua infância. Neste instante, fica-se ciente do fato de que Richard era o pequeno Richie, isto é, filho de Laura Brown. Na seqüência, Clarissa vai até o apartamento de Richard, a fim de buscá-lo para ir à cerimônia na qual receberia um respeitável prêmio literário, e o encontra extremamente agitado. Este inicia um discurso no qual, denotando perda total de interesse pela vida, acusa-a de ainda viver apenas para satisfazê-la e, ao mesmo tempo, reconhece o quanto ela sempre foi boa para ele; admite que a "amava" e que acredita que duas pessoas não poderiam ter sido mais felizes do que eles foram. Imediatamente, após isso, atira-se pela janela, suicidando-se.

Numa apreciação primeiramente superficial deste suicídio, já é possível concluir que a impulsividade requerida para este ato foi despertada em Richard pelo elevado grau de ansiedade provocado por seu quadro físico e mental, bem como pela ingestão proposital de variados tipos de medicação. Também se faz possível deduzir que, considerando-se o método escolhido para o ato, o significado inconsciente deste suicídio foi o de exercer uma agressão passiva. Matando-se, Richard provavelmente pretendia atingir Louis, a própria Clarissa e sua mãe abandonadora interiorizada. Além disso, no que se refere à culpabilização direcionada à Clarissa por ainda existir, cabe aqui a colocação de Hendin17, que diz ser uma das características mais letais do paciente suicida a tendência para atribuir a outros a responsabilidade por permanecer vivo.

Aqui, vale colocar ainda que o suicídio de Richard representa apenas a atitude mais extremista de uma vida inteira permeada pela autodestrutividade. Isso pode ser verificado ao se retomar, ao longo de sua história, a presença de comportamentos considerados de risco, tal como os relacionamentos homossexuais promíscuos, os quais, supõe-se, podem ter sido desencadeados devido à falha na internalização de objetos bons e ao desejo de buscar a fusão narcisista perdida na infância.

No filme, quando se dá a revelação de que Laura abandonou sua família, torna-se possível inferir o peso que a psicodinâmica familiar exerceu na vida psíquica de Richard, e o quanto isso se fez determinante para o seu conseqüente transtorno de humor. O tom passivo na voz de Laura, a lentidão de sua fala, bem como a frieza e a não-espontaneidade de seu discurso, com o qual tentava convencer Richie de que sua preocupação em relação a ela era infundada, de que sua ansiedade exacerbada não possuía motivo, comunicavam uma dupla mensagem, que, inclusive, desqualificava a percepção do menino. Laura passava uma instabilidade geral, transmitindo, desse modo, grande insegurança ao filho. Numa notável inversão de papéis, Richie sentia-se "obrigado" a cuidar de sua mãe, a reafirmar algumas certezas a ela - como, por exemplo, declarar que a amava -, sendo que Laura invariavelmente transparecia uma clara indiferença ao que o garoto tentava expressar, comprovando sua inabilidade em conseguir estabelecer uma relação pautada em atitudes afetivas positivas.

Ademais, segundo Mackinnon e Michels5, a morte ou separação de um progenitor ainda na infância é uma característica comum a pacientes deprimidos, e, tendo-se como certo que Richard sofreu a perda de seu objeto de amor, o abandono de sua mãe, numa idade muito precoce (por volta dos 5 anos) e sob circunstâncias não esperadas, sem terem sido acidentais, fica mais plausível de se apreender o motivo pelo qual Richard não conseguiu elaborar este luto, resultando no caráter patológico do mesmo.

Por fim, faz-se interessante ressaltar que, quando Richard mata Laura (representada por um personagem de mesmo nome) no enredo da obra pela qual seria premiado, vem à tona a ambivalência afetiva que o filho sentiu em relação a ela, visto que, uma vez tendo perdido seu objeto amado, Richard também terminou por romper com aquela que deveria ser a fonte de gratificação das suas necessidades, o porto seguro da sua sobrevivência afetiva. Neste sentido, a colocação feita por Gabbard6, de que o suicídio é a única vingança satisfatória contra seus pais internalizados, pode se encaixar perfeitamente no que tange a esta questão central do amor-ódio de Richard por sua mãe.

CONCLUSÃO

Por meio da técnica cinematográfica, Stephen Daldry possibilita a identificação e a reflexão de situações e sentimentos típicos de pessoas acometidas pela depressão. A condensação de épocas e a interligação entre personagens - que se dá através do livro escrito por Virginia, lido por Laura e "atuado" por Clarissa e Richard - refletem, ainda que vividas de forma particular por cada um dos personagens, a universalidade e a atemporalidade dos fenômenos psíquicos, bem como as evidentes implicações e comunicações sociais nas condutas depressivas e suicidas.

Recebido em 08/08/2005.

Aceito em 20/02/2006.

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  • Correspondência:
    Maria Helena Moraes
    Av. Rio Branco, 354/210
    CEP 88015-200 - Florianópolis - SC
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    Este estudo foi realizado na UFSC, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Departamento de Psicologia, Florianópolis, SC.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Nov 2006
    • Data do Fascículo
      Abr 2006

    Histórico

    • Aceito
      20 Fev 2006
    • Recebido
      08 Ago 2005
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