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Psicanálise e sexualidade: tributo ao centenário de "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" - 1905-2005

Reseña del libro Psicanálise e sexualidade: tributo ao centenário de três ensaios sobre uma teoria da sexualidade Á- 1905-2005

RESENHA

Psicanálise e sexualidade: tributo ao centenário de "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" - 1905-2005

Reseña del libro Psicanálise e sexualidade: tributo ao centenário de três ensaios sobre uma teoria da sexualidade Á- 1905-2005

Ane Marlise Port Rodrigues* * Psiquiatra de crianças, adolescentes e adultos. Membro efetivo, Sociedade de Psiquiatria do Rio Grande do Sul. Professora colaboradora, Curso de Psicoterapia da Infância e Adolescência, Centro de Estudos Luís Guedes, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS. Supervisora de Psiquiatria Infantil, Fundação Universitária Mário Martins, Porto Alegre, RS. Egressa do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, Porto Alegre, RS.

Correspondência Correspondência: Dra. Ane Marlise Port Rodrigues Rua Germando Gündlach, 127/15 CEP 91330-350 - Porto Alegre - RS E-mail: anempr@via-rs.net

Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (org.)

São Paulo, Casa do Psicólogo, 2005.

Numa iniciativa da diretoria da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre para o ano de 2005, através da coordenação do Dr. Sérgio Lewkowicz, foi editado este tributo ao centenário de "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" (1905), de Sigmund Freud.

Merecida homenagem a um dos textos mais originais e impactantes de Freud, principalmente se o situarmos numa época de rígida moral vitoriana, na qual a "inocência" das crianças era considerada inquestionável, e predominava a idéia de que a sexualidade só viria a manifestar-se a partir da puberdade, devido ao amadurecimento dos órgãos sexuais. A audácia e a coragem de Freud ao revelar sua teoria causaram veementes críticas da sociedade médica vienense e anos de isolamento.

Como diz o Dr. Sérgio Lewkowicz, em sua apresentação do livro: "Trata-se de um artigo que, por seu caráter inovador, causou sobre a cultura ocidental de sua época um impacto definitivo, ao lançar uma nova compreensão sobre o desenvolvimento emocional do ser humano, tanto em seus aspectos de normalidade como de psicopatologia".

O caráter atual e instigante do texto de Freud é revisitado por 10 destacados autores, sendo três estrangeiros - Antonino Ferro (Itália), Ethel Spector Person (EUA) e Dana Birksted-Breen (Reino Unido) - e os demais brasileiros, membros efetivos e analistas didatas da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre.

1 - Na introdução, o Dr. Raul Hartke lembra a afirmação de Strachey (1953) de que os "Três ensaios", junto com a "A interpretação dos sonhos", constituem as mais transcendentais e originais contribuições de Freud ao conhecimento humano. A partir do mito de Aristófanes sobre a natureza de Eros, o autor destaca Eros como uma energia, uma carência sempre em busca de uma plenitude, perpetuamente insatisfeito e inquieto, um sujeito em busca do objeto. Da conotação apenas biológica da sexualidade (instinto), Freud passa à dimensão da psicossexualidade, movida por uma pulsão que busca um objeto para atingir seu objetivo. Considera que as pressões atuais provenientes das neurociências, da psicologia social e de correntes espiritualistas, com focalização exclusiva ou predominante em fatores biológicos e sociais, tentam promover uma defenestração dos fenômenos psíquicos. A psicanálise persiste na defesa desse ser psíquico, cujo inconsciente comanda muito mais do que o consciente. As descobertas de Freud em relação à psicossexualidade e ao inconsciente geram intensas resistências, mesmo nos dias atuais.

2 - A Dra. Ethel Person, após revisar a teoria da libido e a sua articulação com a teoria da pulsão, discute, enquanto perspectivas contemporâneas, quatro temas: (1) a teoria das relações de objeto; (2) as teorias de gênero; (3) as origens da heterossexualidade e homossexualidade; e (4) o impacto da cultura sobre sexo e gênero. Destaca que a questão atual sobre bissexualidade é se deveria ser entendida como um interesse sexual em ambos os sexos ou como uma sensação de ser ao mesmo tempo homem e mulher. Tanto neuroses como perversões passaram a ser vistas como resultado de conflito inerente ao desenvolvimento sexual. Destaca que, com os "Três ensaios", Freud cria uma teoria unificada da mente, na qual a vida sexual é vista como ativa a partir da infância.

3 - O Dr. Luiz Carlos Mabilde considera que uma justa homenagem a esse clássico de Freud começa com estudá-lo novamente e pensá-lo muito, encontrando novos ângulos de observação e elaboração. Destaca as três descobertas sexuais fundamentais: as pulsões componentes ou parciais, a sexualidade infantil e a série complementar. O inconsciente dinâmico, a sexualidade infantil e o complexo de Édipo são três grandes descobertas que abalaram o mundo e seguem centrais para a psicanálise. O autor revisa os vários ângulos dos "Três ensaios" e lembra que, atualmente, a perversão é vista não só como defesa contra os derivados pulsionais, mas também frente ao relacionamento objetal.

4 - Segue-se a pergunta do Dr. Antonino Ferro: "Que tipo de sexualidade nos diz respeito enquanto analistas?", e também sua "hipótese radical". Enfatiza a sexualidade como um gênero narrativo, ou dialeto, na sala de análise. Traz seus caminhos mais pessoais de pensamento, sempre nas costas de Freud e Bion, como ele próprio refere. Assim, fala do acasalamento mental entre analista e paciente durante a sessão, do funcionamento onírico das mentes, do desenvolvimento da capacidade de transformar "novelos emaranhados" de sensorialidade e protoemoções (elementos ) em emoções, pensamentos, afetos, através da função . Traz vários exemplos onde considera que o relato da "sexualidade" é um "derivado narrativo" do pensamento onírico de vigília do analista e do paciente, que narra também a qualidade de seu contínuo acasalamento mental, segundo várias modalidades (

, , ,
, etc.). A característica da "narração" psicanalítica está na sua fluidez, provisoriedade e no validar-se somente a partir do seu interior. Relativiza a fenotipia dos casais que podem ser heterossexuais, mas, na realidade, bastante homossexuais, ou vice-versa. Assim, a psicanálise segue abrindo vértices de pensamento "escandalosos", nos quais ficaria evidente que existem verdades mais verdadeiras do que aquelas que aparecem ().

5 - Em "Sexualidade, pós-modernidade e clínica psicanalítica contemporânea", o Dr. Cláudio Eizirik considera que os "Três ensaios" nos fornecem as bases sólidas para um edifício que constitui a perspectiva psicanalítica atual sobre a sexualidade. Questões sobre identidade de gênero, especificidades da masculinidade e da feminilidade, as neo-sexualidades, as diferentes formas de entender as perversões, os estados sexuais da mente, as peculiaridades sexuais de cada etapa do ciclo vital e como situar o homossexualismo são novos desdobramentos dentro do tema da sexualidade. Em sua intensa interação com a cultura, destaca que a psicanálise apresenta um crescente pluralismo teórico, em que diferentes teorias dialogam, em contraste com hegemonias fechadas de décadas anteriores; uma abertura maior para aprender, discutir e enfrentar a complexidade, a fragmentação e as incertezas, que são marcas da cultura contemporânea, e outras características atuais. Finaliza com personagens de Kafka e Roth e uma vinheta clínica para ilustrar o homo freudianus e o homem pós-moderno, o último buscando desenfreadamente uma sexualidade sem limites e sem consideração pelo objeto, num vazio emocional intenso. Em tempos de fragmentação, de incerteza e de perda de espaços para a subjetividade, a psicanálise surge como teoria e como método de tratamento incidindo sobre a subjetividade moderna em crise.

6 - Em "Sexualidade e estrutura psíquica", o Dr. Carlos Gari Faria enfatiza a vinculação entre a sexualidade como expressão originária da vida e o processo de criação e organização da estrutura como produção interna da sexualidade. A criação da estrutura como produto do sexual é visualizada através de investimentos pulsionais narcísicos e objetais que se desenvolvem com movimentos de investir e receber, repetindo simbolicamente o modelo biológico da conjugação entre masculino e feminino. Descreve os processos de identificação como componentes formadores e como expressão do equilíbrio dinâmico da estrutura, que é vista como produto e como guardiã da sexualidade. Assim, a estrutura opera no sentido de manter a estabilidade possível. Correlaciona as organizações perversas ao pólo mais próximo do nível biológico (o da descarga mental), as estruturas psicóticas ao pólo narcísico (da confusão self/objeto decorrente dos processos de dissociação e de identificação projetiva) e as estruturas neuróticas ao pólo objetal (das relações diferenciadas entre self e objeto por um ego que se organiza em torno da repressão, com possibilidades de sublimação). Considera que a etapa genital do desenvolvimento se caracteriza pela atividade criativa da função sintética do ego, quando a estrutura, ao atingir seu nível mais elaborado de estruturação, encena, na dimensão interna e simbólica, o equivalente ao nível biológico de procriação.

7 - O Dr. Roaldo N. Machado traz "A questão do masoquismo originário" para pensarmos no "enigmático problema do masoquismo". A partir de Empédocles (ação de dois princípios fundamentais eternamente em luta), o autor percorre Freud e destaca as duas propriedades fundamentais da libido - a viscosidade e a mobilidade - e a luta constante entre pulsão de vida e pulsão de morte. No masoquismo erógeno original, ou sadomasoquismo primordial, o eu é destruído através da silenciosa atuação da pulsão de morte. Destaca a importância da presença da angústia como sinal da ruptura desta unidade primeira de narcisismo absoluto (indiferenciação eu/outro; destruição do eu). A angústia seria, então, a expressão primeira da presença de Eros e indica esta projeção primária fundamental, onde o interno busca o externo como modo de operacionalizar a criação do espaço psíquico representacional. O modelo básico do masoquismo é o investimento libidinal numa determinada excitação (quantidade), sem a transformação em registros de experiência de dor ou satisfação (qualidade). Cria-se, assim, uma adesividade da libido ao estímulo tóxico e um desatendimento da autoconservação, como visto nas adições a drogas, quadros psicossomáticos, com predomínio do pensamento operatório ou sobreadaptado, exemplificados clinicamente pelo autor.

8 - Em "Os transtornos da sexualidade no adulto", o Dr. Joel A. Nogueira demonstra sua preocupação quanto à liquefação que sofreram vários conceitos basais da psicanálise, como inconsciente dinâmico e repressão, sexualidade infantil perversa polimorfa, Édipo e castração. Aponta para uma acomodação simpática e "politicamente correta" de muitos psiquiatras e psicanalistas, na tentativa de maior aproximação entre a cultura e a psicanálise. Exemplifica, com a questão do homossexualismo, que teria perdido sua ligação com a patologia, tornando-se, simplesmente, uma opção pessoal e, muitas vezes, idealizada. A negação do intenso sofrimento emocional, a adaptação homossexual para manter uma estabilidade emocional que evita a desintegração mental e a psicose também são destacadas pelo autor. A formação da sexualidade adulta tem por base a sexualidade infantil e suas vicissitudes.

9 - A Dra. Dana Birksted-Breen acrescenta sua experiência clínica e seu pensamento teórico ao tratar da "Representação inconsciente da feminilidade". Faz um apanhado teórico, a partir da questão freudiana da inveja do pênis nas mulheres, de como se pensa a feminilidade em Klein e nas psicanálises britânica, francesa (Lacan e outros) e americana. Contribui com a idéia de uma dualidade que está no cerne da feminilidade, na contradição entre a feminilidade negativa (que se baseia na experiência da falta) e a feminilidade positiva (que se refere à riqueza de experiências ligada ao fato de ter um corpo de mulher). Através de um caso clínico, aponta que as mulheres que mais invejam os homens são aquelas que não conseguem valorizar sua feminilidade (muito ligada à agressão oral e anal). O caráter defensivo da negação da feminilidade é relacionado com a fuga do confronto com a mãe rival e invejosa, bem como com graves ansiedades sobre o potencial danificador da vagina e do útero. A atitude fálica se configura numa fuga da falta (tanto masculina quanto feminina) e do feminino assustador. A feminilidade passa por uma negociação entre a aceitação da falta e a aceitação do corpo feminino.

10 - A Dra. Nara A. Caron, em "Os transtornos da sexualidade através das idades - o bebê", situa historicamente, ao longo desses 100 anos, como vários psicanalistas dedicaram-se ao atendimento de crianças cada vez menores até chegar ao tratamento das relações primitivas (pais/filhos e mãe/bebê). Privilegia as contribuições de Winnicott, que considera que a vida e o psiquismo do bebê são impulsionados pelo fato de o bebê estar vivo e ter em si a tendência inata à integração, da qual decorrem as tarefas e as necessidades vitais, quais sejam, as de ter de continuar a ser e amadurecer. Para isso, depende de uma relação especial e primitiva com a mãe, que independe da situação edípica e que ainda não é objetal, pois o bebê ainda não é uma unidade. Assim, o bebê não tem desejos, mas necessidades, e as forças instintivas estão tão fora dele quanto os fenômenos naturais. Através do relato de atendimentos de díades mãe-bebê, a autora referenda a importância fundamental do vínculo primitivo e do espaço do "vir a ser", básico para o desenvolvimento da sexualidade. Considera que o tema da sexualidade do bebê é muito complexo, quer pelo fato de o bebê (um ser dependente total) não a possuir, quer pelo fato de o meio ambiente interferir, saudável ou patologicamente, no desenvolvimento da sexualidade.

Como vemos, é uma leitura que contribui para uma revisão atualizada dos pensamentos de Freud nos "Três ensaios" e traz novos desdobramentos em relação ao tema da sexualidade, que segue atual e polêmico.

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    Dra. Ane Marlise Port Rodrigues
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    Psiquiatra de crianças, adolescentes e adultos. Membro efetivo, Sociedade de Psiquiatria do Rio Grande do Sul. Professora colaboradora, Curso de Psicoterapia da Infância e Adolescência, Centro de Estudos Luís Guedes, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS. Supervisora de Psiquiatria Infantil, Fundação Universitária Mário Martins, Porto Alegre, RS. Egressa do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre, Porto Alegre, RS.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      09 Nov 2006
    • Data do Fascículo
      Abr 2006
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