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Escutando o paciente: disso, não nos afastemos

EDITORIAL

Escutando o paciente: disso, não nos afastemos

Pode parecer estranho e até mesmo absolutamente redundante e atemporal que, em pleno século 21, tenhamos que nos relembrar que, na medicina em geral e na psiquiatria em particular, precisamos escutar o paciente. E aqui, cabe ressaltar, não estamos falando apenas de uma escuta que busca sinais e sintomas ou respostas para que possamos preencher critérios diagnósticos ou instrumentos de pesquisa. Estamos falando da escuta comprometida, interessada e vinculada àquilo que deveria ser a essência de nossa profissão: a pessoa, com toda a sua complexidade e vicissitudes. Porém, nossa disciplina é complexa em sua natureza, pois, sendo também uma ciência humana, agrega em seu bojo uma mistura com a arte. A qual arte estamos nos referindo? Focalizamos a arte de buscar na relação com o outro a possibilidade de compreender o sofrimento e oportunizar as condições para o alívio. Mas como desenvolver essa arte? Sem dúvida, precisamos resgatar a importância da relação médico-paciente. Não é mais possível desconsiderar o interjogo das subjetividades envolvidas nessa relação. O psiquiatra e o seu paciente estão envolvidos em uma relação intensa, mas com funções assimétricas e responsabilidades éticas distintas. Cabe ao profissional, desde o primeiro contato com o seu paciente, buscar conhecê-lo, avaliar as suas dificuldades, angústias, problemas e oferecer o tratamento mais indicado e acurado possível. Mas como conhecer de verdade o outro, sem possibilitar um tempo, um olhar e uma escuta do sofrimento que muitas vezes o paciente não consegue nos transmitir com palavras?

Pode sim, pois, parecer estranho que abramos o editorial de nossa revista para debatermos esse tópico. Pode parecer estranho ao leitor mais atento, pois justamente nesse número retomamos a grata idéia de publicarmos editoriais a convite. E somos brindados, nessa revista, com um editorial da colega Patrícia Picon, que aborda a necessidade de termos instrumentos de pesquisa validados para nossa língua. Como nossa colega muito bem escreve em seu editorial nas páginas a seguir: "Em psiquiatria, o problema é que os fenômenos a serem mensurados ou aferidos não são objetos ou mesmo eventos no sentido literal. Aos psiquiatras, interessam fenômenos abstratos". Pode parecer contraditório que a mesma revista que enfatiza a necessidade de voltarmos nossos olhos ao momento único da relação médico-paciente naquilo que ela tem de especial - a exclusividade - ao mesmo tempo enfatize a publicação de instrumentos. Entretanto, para nós, editores da Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, não há contradição nessa postura.

Por um lado, firmamo-nos no cenário científico nacional como o local de referência que publica artigos que abordam a validação de instrumentos em língua portuguesa, disponibilizando para a comunidade psiquiátrica, nos últimos 3 anos, de forma quase ininterrupta, várias escalas na íntegra. Tais instrumentos também ajudam sobremaneira - não temos dúvida - o clínico que está distante da academia a melhor acurar sua avaliação psicopatológica ou terapêutica a partir de tais instrumentos. De outro lado, entendemos que, por mais instrumentos validados e por mais resultados originais de pesquisa que sejam gerados de forma crescente e com mais qualidade em nosso país, a prática psiquiátrica diária jamais poderá prescindir de sua essência: a escuta humanizada de cada paciente em particular. Podemos e devemos tentar mensurar "fenômenos abstratos", mas nossa prática clínica necessita de algo mais. A idéia de voltar a conversar mais com o paciente pode parecer óbvia demais ou já tão conhecida, mas o que é antigo nem sempre fica fora de moda ou merece ser desprezado (caso contrário, teríamos que chamar de obsoletos Mozart, Bach, Beethoven e outros). Pensamos que é na boa mistura de reconhecer o legado dos pioneiros e sua experiência e o que de mais novo se anuncia - em uma particular maneira de atender aquele paciente que nos procura - que está a arte ou o trabalho artesanal, que cada um vai praticar.

Por isso, entendemos que, ao lado de trabalhos originais de pesquisa, precisamos também de uma produção de trabalhos de revisão e reflexão com elaboração crítica sobre os fundamentos, por exemplo, das psicoterapias, que possam não apenas veicular opiniões, mas também aprofundar esse tema. Queremos confirmar a posição da Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul como um local frutífero de integração do desenvolvimento da psiquiatria clínica e das psicoterapias. Nossa revista segue, portanto, sendo o amplificador dessa postura plural que é a raiz da psiquiatria gaúcha. Dentro dessa linha, foi com muito prazer que nós observamos que a Associação Brasileira de Psiquiatria já definiu como tema central do XXV Congresso Brasileiro de Psiquiatria, que se realizará aqui em Porto Alegre em 2007, "A psiquiatria para a pessoa: o acolhimento da pluralidade".

Por mais incrível e estranho que isso possa parecer - como iniciamos acima esse texto -, temos que, em pleno século 21, lembrar que tudo o que fizemos em psiquiatria (inclusive nossas publicações científicas) não deve, sob hipótese alguma, perder o único norte: nosso paciente. E, para estarmos efetiva e afetivamente juntos a ele, não bastam apenas os essenciais métodos acurados de diagnóstico e tratamento. É ainda na interação com o paciente - esse campo único - que encontraremos a pessoa. Escutá-la, pois, é nossa função primeira. Ou, como disse recentemente em entrevista ao jornal italiano La Repubblica o Maestro Ricardo Mutti: "É essa a contradição implícita no meu trabalho: em teoria, deve-se dizer à orquestra o que ela deve fazer, mas, na prática, é com a orquestra que aprendemos como se faz". Tenhamos, pois, humildade na nossa prática psiquiátrica e passemos a acreditar nessa contradição: vamos também aprender como se faz escutando nossos pacientes. E, disso, não nos afastemos.

Carmem Keidann e Flávio Shansis

Editores

Contamos, no início de nossa gestão, com a participação dos colegas Clarice Kowacs e Rui de Mesquita Annes, que, por motivos pessoais, solicitaram seu afastamento de nossa equipe editorial. Agradecemos por sua colaboração. Damos as boas-vindas às colegas Idete Zimerman Bizzi e Patrícia Phuro Vilas Bôas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Nov 2006
  • Data do Fascículo
    Ago 2006
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