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A psiquiatria nos próximos 50 anos: a contribuição da psicanálise

EDITORIAL A CONVITE

A psiquiatria nos próximos 50 anos: a contribuição da psicanálise

Cláudio Laks Eizirik

Presidente, Associação Psicanalítica Internacional. Professor adjunto, Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFGRS), Porto Alegre, RS. Membro efetivo, Sociedade de Psiquiatria do Rio Grande do Sul (SPRS) e Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA)


A tentação de fazer previsões para o futuro, distante ou imediato, acompanha a humanidade desde tempos imemoriais. Coexistem, dentro de nossa mente, tentativas de usar os dados disponíveis no presente, examinar o que já sabemos do passado e estabelecer previsões que pretendemos objetivas, com os desejos que abrigamos sobre como gostaríamos que fosse tal futuro. É uma maneira possível de lidarmos com a imprevisibilidade e com a real impossibilidade de estabelecer previsões de fato objetivas.

Esta constatação também nos mostra, desde já, a presença de uma maneira psicanalítica de pensar: a coexistência de tendências antagônicas dentro da mente, a onipotência dos desejos e fantasias e toda uma série de procedimentos inconscientes defensivos, usados tanto em situações normais como patológicas. Assim, penso ser difícil imaginar uma psiquiatria do futuro que não faça uso destes e de tantos outros insights oferecidos pela psicanálise. De qualquer modo, para ordenar os dados, examinarei algumas dimensões em que imagino (e naturalmente desejo) que a psicanálise estará presente numa psiquiatria futura. Na medida em que visualizo a psicanálise como uma obra em construção1, destacarei as áreas em que uma construção conjunta poderá ser mutuamente benéfica.

A psicanálise tem sido uma das ciências básicas da psiquiatria, ou seja, uma das disciplinas que fundamentam a compreensão do funcionamento psíquico normal, das diferentes expressões da psicopatologia e dos meios através dos quais a ação terapêutica de nossas diferentes intervenções pode ter efeitos positivos, inócuos ou iatrogênicos.

No que se refere especificamente à relação que estabelecemos com nossos pacientes, a psicanálise tem oferecido e possivelmente continuará oferecendo e ampliando a compreensão das tramas de "vastas emoções e pensamentos imperfeitos" que ocorrem em cada dupla terapêutica, ou nas situações de instituições – através de seus conceitos de transferência, contratransferência, campo analítico, intersubjetividade e mente em expansão. Pode–se supor que tais conceitos e outros correlatos poderão ser ainda mais aprofundados, com a crescente massa de experiência clínica.

Com relação aos tratamentos psicanalíticos propriamente ditos, à medida que pacientes mais graves são analisados, e que se observa a presença de novas expressões patológicas, ou ainda que aumenta a presença de crianças e adolescentes, por um lado, e pessoas velhas e de meia–idade, por outro, pode–se prever que a técnica analítica se refine para abordar tais situações e que possamos conhecer mais do funcionamento psíquico desses pacientes.

Quanto às psicoterapias baseadas na psicanálise, é previsível que mais e mais pacientes sejam beneficiados pelas mesmas, e que os serviços universitários e de atendimento público aumentem a oferta de tais abordagens, ampliando a população a ser atendida.

Passando a considerar a(s) teoria(as) psicanalítica(s), pode–se imaginar que os diferentes modelos teóricos sejam ainda mais desenvolvidos e aprofundados, e que, ao mesmo tempo, seja cada vez mais possível o estabelecimento de verdadeiras controvérsias, conforme propõe Bernardi2, nas quais se explicitem os pressupostos de cada abordagem e que uma consistente argumentação seja buscada, reduzindo as dimensões pessoais e os narcisismos das pequenas diferenças, descritos por Freud3.

Da mesma forma, a formação psicanalítica, que agora tem claramente reconhecidos pelo menos três modelos distintos (o de Eitingon, o francês e o uruguaio), deverá evoluir para maiores estudos sobre seus elementos essenciais e a busca de maior conhecimento comparativo entre os mesmos, assim como o estabelecimento de critérios mais objetivos para examinar a competência de um psicanalista.

Assim, na formação dos novos psiquiatras, a psicanálise funcionando como ciência básica e instrumentando uma relação médico–paciente em que os distintos significados conscientes e inconscientes sejam entendidos e utilizados, também será útil no tratamento de patologias de etiologia multideterminada, possibilitando abordagens integradas e sinérgicas.

As instituições psicanalíticas, com seu papel de guardiãs de uma formação sólida e de estimuladoras de uma educação continuada, possivelmente ampliarão suas áreas de interesse e aplicações da psicanálise para situações sociais e educacionais relevantes, além de aumentarem sua capacidade de diálogo com outros saberes e outras instituições psicanalíticas de distintas orientações.

A pesquisa em psicanálise e psicoterapia analítica, em suas distintas formas e abordagens possivelmente aumentará sua presença nos cursos de pós–graduação e nas sociedades psicanalíticas, contribuindo tanto para um refinamento metodológico quanto para um maior conhecimento dos processos e efetividade dos tratamentos, assim como para ampliar o conhecimento sobre as múltiplas áreas do desenvolvimento e da patologia.

Em todas essas dimensões, certamente os conflitos não estarão ausentes, opondo os que buscam formas hegemônicas de pensar, ensinar e pesquisar e os que advogam a indispensável integração de abordagens, por seu possível efeito potencializador. Desta polarização, e da possibilidade de que prevaleça uma postura integradora, dependerá a maior ou menor presença da psicanálise na psiquiatria. Sem dúvida, disso decorrerá um maior enriquecimento ou empobrecimento de ambas as disciplinas.

Em que cenários viverão os habitantes de um mundo situado a 50 anos de hoje?

Aumentará a globalização, que derruba fronteiras e homogeneíza culturas, hábitos e tradições? Os distintos fundamentalismos ampliarão sua influência? O pensamento mágico que instrumenta o sem número de seitas que pululam em cada bairro incrementará sua presença, ou o pensamento científico, crítico e independente conseguirá impor pelo menos parte de seu vigor e de sua possibilidade de trabalhar com argumentos e evidências? As brutais diferenças econômicas se radicalizarão ou ações sensatas farão com que a riqueza seja melhor distribuída? Continuará a destruição do planeta ou medidas enérgicas permitirão preservá–lo?

Seja qual for o cenário, sempre que pacientes de distintas formas de patologia e de sofrimento psíquico buscarem reduzir sua dor mental, ampliar sua capacidade de pensar e significar seus pensamentos e ações, e que os psiquiatras desejarem estabelecer relações terapêuticas mais profundas e transformadoras, a psicanálise e suas aplicações estarão presentes, numa mútua fertilização com a psiquiatria em suas inúmeras dimensões.

Referências

1. Eizirik CL. Psicanálise como uma obra em construção. Rev Psicanal. 2005;12(2):217–26.

2. Bernardi R. The need for true controversies in Psychoanalysis: the debates on Melanie Klein and Jacques Lacan in the Rio de la Plata. Int J Psychoanal. 2002;83(Pt 4):851–73.

3. Freud S. Psicologia do grupo e a análise do ego. Rio de Janeiro: Imago; 1976. Vol 18.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Set 2007
  • Data do Fascículo
    Abr 2007
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