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Transtornos de humor bipolar: uma visão integradora

EDITORIAL A CONVITE

Transtornos de humor bipolar: uma visão integradora

Ricardo Bernardi

Psicanalista. Membro efetivo e didata, Associação Psicanalítica Uruguaia, Montevidéu, Uruguai

Os avanços contínuos na área da saúde mental tornam necessária uma dupla atitude: de esperança, pela possibilidade de novos benefícios terapêuticos, mas também de cautela frente à necessidade de avaliar de forma crítica a nova evidência empírica e as mudanças conceituais por ela provocadas. Os transtornos bipolares são um exemplo disso. Se considerarmos as cifras de prevalência de vida destes transtornos, veremos que seus valores se multiplicaram ao longo dos últimos anos. Este novo incremento não se atribui a um aumento do número de casos, mas sim a uma modificação dos critérios diagnósticos. Porém, esta extensão do diagnóstico, que pode trazer benefícios terapêuticos, traz também novos problemas. Ao estender o espectro dos transtornos bipolares, produz-se uma superposição com outros transtornos e torna-se problemático distinguir as oscilações do humor propriamente ciclotímicas da instabilidade afetiva que ocorre nos transtornos da personalidade, nos quais, junto com a oscilação de humor, coexistem fenômenos mais complexos, os quais convêm não esquecer. Nos transtornos da personalidade, é freqüente que a instabilidade afetiva seja acompanhada pela repetição de situações conflitivas, nas quais a oscilação do humor não ocorre tanto entre fenômenos de elação e depressão, mas entre fenômenos de irritabilidade e ansiedade, que se intrincam com os conflitos do meio. Simplificar o diagnóstico destes fenômenos não faz com que seja mais simples lidar com eles. Tampouco é possível sustentar que a diferença entre diferentes transtornos é apagada pelo fato de que eles respondem aos mesmos fármacos. Por último, é também importante não perder de vista a diferença entre a instabilidade emocional vista em um transtorno bipolar e as oscilações do humor que ocorrem na vida psíquica normal. Destacou-se que não é pouco freqüente que os novos avanços diagnósticos ou terapêuticos levem a exageros que conduzem a uma medicalização exagerada do que são problemas da vida humana* * Uma conferência realizada em Newcastle, Austrália (Inaugural Conference on Disease Mongering, April 11-13, 2006, http://www.diseasemongering.org) alertou sobre o risco de tratar como doenças o que, na realidade, são problemas humanos. A tendência à medicalização destes problemas surge do desejo, tanto da indústria farmacêutica quanto dos médicos, do público e dos meios de comunicação em encontrar nos tratamentos médicos uma solução para muitos dos infortúnios inerentes à vida humana. .

Os transtornos mentais, por suas causas e/ou conseqüências são, sem dúvida, fenômenos de natureza biológica, psicológica e social. Talvez, em décadas passadas, tenha se tentado construir, com excessiva rapidez, modelos globais que não examinavam as articulações específicas entre estes níveis, motivo pelo qual as explicações propostas tinham um caráter eclético ou superficial1-3. Entretanto, é importante não jogar a criança fora junto com a água suja. O enfoque biopsicossocial, ou seja, a necessidade de atender as múltiplas dimensões próprias da vida humana, continua vigente, ainda que, no momento, só possamos aspirar construir modelos provisórios e incompletos.

O problema das variações periódicas do humor e, de modo mais geral, da regulação afetiva, mostra de forma muito clara a necessidade de não se deixar levar por perspectivas unilaterais. Não é adequado modelizar os fenômenos subjacentes aos transtornos do humor, como se estes fossem devidos a um motor neuronal que está acelerado na mania ou atrasado na depressão. Este tipo de analogia pode ter um certo valor heurístico, mas não é suficiente sequer para construir modelos biológicos consistentes do transtorno† † Askland e Parsons 4 mostram a dificuldade que existe no momento atual para construir um modelo biológico dos transtornos bipolares que integre os níveis molecular, celular, sistemático e de conduta. Destacam a insuficiência de abordar o problema exclusivamente a partir de uma perspectiva neuroquímica e propõem incluir os aspectos neuroelétricos e, em especial, prestar atenção aos novos conhecimentos que possam chegar a partir de campos interdisciplinares. . O humor não é um fenômeno isolado, mas forma parte dos processos vitais, abrangendo todas as suas dimensões, também a psicológica e a interpessoal. Nossa compreensão destes fenômenos ainda é parcial. Não só é difícil explicar o caráter cíclico ou periódico que está na essência dos transtornos bipolares, mas também o conteúdo emocional da polaridade. Kraepelin já havia destacado a variedade do espectro sintomático das oscilações do humor, como pode ser notado nos estados mistos. Além disso, a categorização das emoções é um problema complexo que exige examinar de forma crítica o campo semântico dos termos que utilizamos‡ ‡ Examinando as contribuições da neurociência afetiva, filósofos como Griffiths 5 perguntaram-se se o termo "emoção" oferece um campo semântico suficientemente homogêneo para guiar, de forma útil, a pesquisa. . É útil refletir sobre a natureza do "humor" a partir da distinção proposta por Damasio entre, por um lado, as emoções "discretas ou categoriais" (sejam elas primitivas: medo, alegria, raiva, etc.; ou sociais: culpa, vergonha, etc.) e, por outro lado, as "emoções de fundo" (background emotions) ou "sentimentos de fundo" (background feelings). Todas as emoções e, em especial estas duas últimas, fazem parte da resposta do organismo às mudanças no ambiente6, e todo o ato psíquico é um ato de regulação afetiva. A depressão ou a mania não são um simples exagero de afetos discretos como a tristeza, a alegria ou a raiva: mais que as emoções categoriais, o humor pode ser vinculado às emoções e sentimentos de fundo, que estão relacionados de um modo mais íntimo ao estado global do organismo. Mas também seria um erro separar totalmente estes diferentes tipos de emoções, ou imaginar os sentimentos de fundo como uma questão puramente orgânica. Ainda que este panorama já seja suficientemente complexo, paradoxalmente, neste ponto, aumentar a complexidade e introduzir a perspectiva do desenvolvimento e o caráter intersubjetivo do mesmo ajuda a esclarecer nossa visão dos fenômenos. A noção de "sentimentos de fundo" de Damasio é similar à de "afetos de vitalidade" (vitality affects) ou "contornos de ativação" (activation contours) de Daniel Stern7, cujo papel é relevante nas interações da criança com sua mãe, que contribuem para os processos de regulação afetiva. Estes "contornos de atividade" são pautas de natureza dinâmica e amodal (ou seja, não relacionadas a uma modalidade sensorial específica), e refletem os estados motivacionais e as tensões do organismo que percebemos como estado subjetivo. Por serem amodais, podem cumprir um papel essencial nos fenômenos de sintonia (attunement) entre mãe e filho, e intervir nos processos mútuos que levam a desenvolver a auto-regulação afetiva na criança em correspondência com a regulação proveniente da mãe e a fortalecer o senso de agência e de identidade. Estes fatos, que já eram conhecidos a partir da obra de psicanalistas como Winnicott, Bowlby e outros, foram recentemente confirmados pela neurociência cognitiva social, que mostrou que nosso cérebro está equipado para processar articuladamente as experiências que surgem no interior de nosso próprio self, bem como no self do outro. A percepção dos estados internos do outro surge não só através dos indicadores externos de afetos e emoções, mas são reconhecidos e categorizados em forma mais direta através de processos neurobiológicos tais como a empatia, vinculada à ação dos neurônios espelho. O humor e a regulação afetiva são, pois, inseparáveis do conjunto da pessoa e de sua vida social, fazendo parte tanto das funções biológicas ligadas à sobrevivência, como dos processos de constituição da subjetividade e das relações interpessoais.

Este percurso através de pesquisas no campo das neurociências reafirma a validade do enforque biopsicossocial. Este enfoque possibilita modelos mais específicos, como o proposto por MacKinnon e Pies8, que tentam relacionar estas múltiplas dimensões a partir da perspectiva do desenvolvimento. Estes autores sugerem que, para compreender a relação dos transtornos bipolares com os transtornos da personalidade, é necessário considerar a forma na qual uma predisposição genética à bipolaridade pode interagir com os fatores do ambiente em diferentes etapas da vida. Se uma criança predisposta a uma instabilidade bipolar encontra um ambiente traumático, serão produzidas reações em bola de neve, que acentuarão o descontrole emocional e a patologia do caráter, favorecendo que ao transtorno bipolar, seja acrescentado um transtorno da personalidade. Por outro lado, uma criança com predisposição genética, mas que está em um ambiente favorável, desenvolverá sistemas de regulação afetiva que limitarão as manifestações do transtorno bipolar e seus efeitos na personalidade. Não é possível, segundo este modelo, pensar o transtorno bipolar fora do âmbito global da pessoa. Ensinamento igual surge da clínica, pois é impossível tratar adequadamente um paciente bipolar sem considerar, junto com as terapêuticas biológicas, a personalidade do paciente e sua situação sócio-familiar, não só quanto ao apoio que a família pode proporcionar, mas também quanto às repercussões do transtorno em quem rodeia o paciente e, em especial, nos filhos pequenos. É comovente escutar o relato de alguns adultos sobre como repercutiu em sua infância o transtorno bipolar de um dos pais, sobretudo quando o tratamento não foi acompanhado por medidas de psicoterapia ou de reabilitação do paciente nem de educação ou apoio para a família. O ensinamento que nos deixa o estado atual de muitas pesquisas no campo das neurociências, assim como a prática clínica, é que o melhor neurocientista clínico continuará sendo um psiquiatra que leve em conta as múltiplas dimensões dos fenômenos humanos.

  • 1. Abroms EM. Beyond eclecticism. Am J Psychiatry. 1983;140(6):740-5.
  • 2. Bowden CL. Implications of psychopharmacological studies for the practice of psychoanalysis. J Am Acad Psychoanal. 1992;20(3):477-86.
  • 3. Ghaemi N. The concepts of psychiatry. Baltimore: John Hopkins University; 2003.
  • 4. Askland K, Parsons M. Towards a biaxial model of "bipolar" affective disorders: spectrum phenotypes as the products of neuroelectrical and neurochemical alterations. J Affect Dis. 2006;94(1-3):15-33.
  • 5. Griffiths PE. Emotion and the problem of psychological categories. In: Kazniak AW, editor. Emotions, qualia and consciousness. Singapore, New Jersey, Hong Kong, London: World Scientific; 2001. p. 28-41.
  • 6. Damasio AR. The feeling of what happens: body and emotion in the making of consciousness. New York: Harcourt Brace; 1999.
  • 7. Stern DN. The interpersonal world of the infant: a view from psychoanalysis and developmental psychology. New York: Basic Books; 1985.
  • 8. Mackinnon DF, Pies R. Affective instability as rapid cycling: theoretical and clinical implications for borderline personality and bipolar spectrum. Bipolar Disord. 2006;8(1):1-14.
  • *
    Uma conferência realizada em Newcastle, Austrália (Inaugural Conference on Disease Mongering, April 11-13, 2006,
    http://www.diseasemongering.org) alertou sobre o risco de tratar como doenças o que, na realidade, são problemas humanos. A tendência à medicalização destes problemas surge do desejo, tanto da indústria farmacêutica quanto dos médicos, do público e dos meios de comunicação em encontrar nos tratamentos médicos uma solução para muitos dos infortúnios inerentes à vida humana.
  • †
    Askland e Parsons
    4 mostram a dificuldade que existe no momento atual para construir um modelo biológico dos transtornos bipolares que integre os níveis molecular, celular, sistemático e de conduta. Destacam a insuficiência de abordar o problema exclusivamente a partir de uma perspectiva neuroquímica e propõem incluir os aspectos neuroelétricos e, em especial, prestar atenção aos novos conhecimentos que possam chegar a partir de campos interdisciplinares.
  • ‡
    Examinando as contribuições da neurociência afetiva, filósofos como Griffiths
    5 perguntaram-se se o termo "emoção" oferece um campo semântico suficientemente homogêneo para guiar, de forma útil, a pesquisa.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      31 Mar 2008
    • Data do Fascículo
      Dez 2007
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