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A falácia da adequação da cobertura dos Centros de Atenção Psicossocial no estado do Rio Grande do Sul: comentário

EDITORIAL

A falácia da adequação da cobertura dos Centros de Atenção Psicossocial no estado do Rio Grande do Sul: comentário

Fernando Lejderman*

*Médico psiquiatra, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS. Ex-presidente, APRS (2008/2009).

Endereço para correspondência Correspondência Fernando Lejderman E-mail: flejderman@hotmail.com

Segundo dados oficiais de outubro de 2009 da Coordenadoria de Saúde Mental do Ministério da Saúde, a rede de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) do Brasil conta, atualmente, com 1.467 unidades para uma população de 189.612.814 habitantes, o que significa uma cobertura de atendimento para somente 60% da população nacional1. Os dados revelam que o estado do Rio Grande do Sul possui 129 CAPS para uma população de 10.855.214 habitantes, proporcionando um índice de 0,91 CAPS/100.000 habitantes. O estado é considerado o terceiro melhor no ranking nacional de cobertura assistencial realizada pelos CAPS, com a classificação "muito boa"2. O cálculo do indicador CAPS/100.000 habitantes considera que o CAPS I dá resposta efetiva a 50.000 habitantes, o CAPS III, a 150.000 habitantes, e que os CAPS II, CAPSi e CAPSad dão cobertura a 100.000 habitantes. Os seguintes parâmetros são adotados: cobertura muito boa (acima de 0,70), cobertura regular/boa (entre 0,50 e 0,69), cobertura regular/baixa (entre 0,35 e 0,49), cobertura baixa (entre 0,20 e 0,34) e cobertura insuficiente/crítica (abaixo de 0,20)3,4.

O mérito do estudo realizado por Gonçalves et al.5, com dados referentes a março de 2009, reside na observação de que apenas a relação entre o número de CAPS/100.000 habitantes no estado do Rio Grande do Sul não é suficiente para se estabelecer a qualidade de um indicador em saúde mental. Ao detalhar as diferenças existentes em termos de número de municípios nas regiões de saúde do estado do Rio Grande do Sul e verificar a distribuição dos CAPS em relação a essas regiões, os autores do artigo encontraram uma cobertura eficiente em apenas 12 das 19 regiões, ou 63% das regionais de saúde. Analisando especificamente a população atendida pelos CAPS em cada uma dessas regiões, o resultado se torna ainda mais sombrio: somente 51% da população do estado do Rio Grande do Sul tem cobertura adequada pelos CAPS, e 43,5% da população do estado reside em municípios com índice de cobertura 30% abaixo do esperado.

De acordo com o Ministério da Saúde6, os CAPS constituem a principal estratégia do processo de reforma psiquiátrica que vem sendo implantada no Brasil nas últimas décadas. Suas funções primordiais seriam: 1) prestar atendimento clínico em regime de atenção diária; 2) evitar as internações em hospitais psiquiátricos; 3) promover a inserção social e familiar das pessoas com transtornos mentais; e 4) dar suporte à atenção em saúde mental na rede básica de saúde.

Se o estado do Rio Grande do Sul, que é o terceiro melhor estado do Brasil no ranking de cobertura assistencial realizada pelos CAPS, apresenta uma cobertura insuficiente em relação a quase 50% da sua população, como demonstra o estudo de Gonçalves et al.5, o que podemos esperar do restante do país? O que podemos esperar de uma reforma na assistência em saúde mental que, nas últimas décadas, fechou aproximadamente 80.000 leitos de uma especialidade médica antes de implantar no país uma rede ambulatorial suficientemente capaz de prestar assistência e lidar com a complexidade das doenças mentais?.

A situação atual da assistência em saúde mental no Brasil é grave e preocupante. É preciso compreender que uma pessoa delirante ou sob o efeito permanente de álcool e drogas não aceita tratamento espontaneamente. O número de doentes mentais vivendo como moradores de rua tem aumentado assustadoramente nos últimos anos. Nas ruas, esses doentes se tornam desamparados no que se refere às suas doenças de base, seu estado psicológico se deteriora, sem falar no aumento do contágio de doenças infecciosas, como hepatite C, tuberculose e AIDS, levando-os a uma situação de completa decadência física e mental. As prisões também vêm se tornando gradativamente um lar alternativo para uma parcela de doentes que, por fim, acaba cometendo pequenos delitos ou apresentando quadros de agressividade e agitação psicomotora.

Já se passaram mais de 20 anos do movimento de reforma da assistência psiquiátrica no Brasil - tempo suficientemente longo para se observar resultados positivos e corrigir rumos, como foi preconizado inicialmente. É necessário refletir sobre as observações realizadas por Gonçalves et al.5, no sentido de verificar com mais exatidão a real cobertura assistencial realizada pelas equipes dos CAPS. Mais importante ainda é a possibilidade de utilização dessas observações na elaboração e planejamento das futuras políticas públicas na área de saúde mental do Ministério da Saúde.

Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação desse editorial.

  • 1
    Brasil, Ministério da Saúde, Coordenação Nacional de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas/Secretaria de Atenção à Saúde/Ministério da Saúde (DAPES/SAS/MS). Brasília: MS; 2009.
  • 2
    Brasil, Ministério da Saúde, Coordenação Nacional de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas. Número de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) por tipo e UF e indicador CAPS/100.000 habitantes. Brasília: MS; 2009.
  • 3
    Brasil, Ministério da Saúde. Área Técnica de Saúde Mental/Departamento de Ações Programáticas Estratégicas/Secretaria de Atenção à Saúde/Ministério da Saúde (ATSM/DAPES/SAS/MS). Brasília: MS; 2009.
  • 4. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Estimativa populacional 2008. Brasília: IBGE; 2008.
  • 5. Gonçalves VM, de Abreu PS, Candiago RH, Saraiva SS, Lobato MI, Belmonte-de-Abreu PS. A falácia da adequação da cobertura dos Centros de Atenção Psicossocial no estado do Rio Grande do Sul. Rev Psiquiatr RS. 2010;32(1):16-8.
  • 6. Brasil, Ministério da Saúde. Portal da Saúde. www.saude.gov.br-saude mental. Acessado em 25/02/2010.
  • Correspondência

    Fernando Lejderman
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Jul 2010
    • Data do Fascículo
      2010
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