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Lei da espécie

NOTA CIENTÍFICA

Lei da espécie

Fernando Dias de Avila-Pires

Departamento de Medicina Tropical, Instituto Oswaldo Cruz, Av. Brasil 4365, 21045-900 Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

Durante seus dois mandatos como diretor do Museu Nacional, Rio de Janeiro, José Candido de Melo Carvalho promovia uma reunião geral, às terças feiras pela manhã, para discussão de temas científicos e assuntos administrativos. Além do pessoal da casa, participavam colegas do Instituto Oswaldo Cruz e do então Instituto Castelo Branco, hoje Escola Nacional de Saúde Pública, integrada à Fundação Instituto Oswaldo Cruz (FIOCRUZ). Em 1955 programou uma série de conferências, se não me engano, nas tardes de quintas feiras. Moojen pronunciou a palestra de abertura. Era intenção do Museu publicá-las, o que nunca foi feito, falha que se sana agora.

O texto acima foi reproduzido do original datilografado, respeitando a acentuação das palavras e a nomenclatura das espécies, da época, descontados, apenas os lapsos evidentes de datilografia. No momento em que a biodiversidade é o assunto do dia, achei oportuno editá-lo, postumamente, em homenagem a seu autor. Notas e correções aparecem entre colchetes "[ ]".

Moojen não admitia desincumbir-se de convite para pronunciar palestra sem dedicar ao tema tempo e atenção especiais. Era sua norma esforçar-se para apresentar e desenvolver, pelo menos, uma idéia original. Leitor notívago, atualizava seus conhecimentos e precisava as idéias, fundamentadas em uma sólida formação científica e literária, antes de atender ao convite. Discutia amplamente seu texto e tinha rara e notável capacidade de saber ouvir. Paciente, mas pertinaz, convencia pela lógica dos argumentos e não pela força de expressão.

Seu conhecimentos de genética teórica foram aplicados, na prática, à seleção de aves e cães de raça, que criava e julgava no Kennel Club (foi um dos introdutores do waimaraner, no país); os de bioquímica e nutrição, na fabricação de rações especiais para animais e no assessoramento a indústrias alimentícias. E sua experiência em taxonomia museológica era baseada no profundo conhecimento de campo dos hábitos dos animais, adquiridos na qualidade de naturalista profissional e de caçador inveterado. E, em geral, incluía, em suas palestras, alguns comentários de natureza político-profissional, como no caso presente, em que critica a falta de reconhecimento e apoio oficial à pesquisa taxonômica.

Lei da Espécie por João Moojen de Oliveira (Museu Nacional)

The complex and little known laws governing the production of varieties are the same, as far as we can judge, with the laws which have governed the production of distinct species. In both cases physical conditions seem to have produced some direct and definite effect, but how much we cannot say.

Darwin

A gente desta casa é daquela que põe nome em bichos - minhocas, pernilongos, jaguatiricas; em plantas - nas avencas, nos jequitibás, nas orquídeas; em fósseis arrancados da terra - dentes, tíbias e conchas que se reconstroem em tigres-dente-de-sabre, megatérios e moluscos; que nomeia as pedras, a lama das argilas e os minérios de ouro; gente que estuda a espécie humana nos fragmentos de cerâmica e silex, nos calvários /sic, pro calcáreos/ que recobrem encéfalos e nos ocres que esboçam idéias nas paredes das cavernas. Gente anônima, que forma uma grei maçônica de iniciados, falando uma algarávia greco-latina de palavras - símbolos que estenografam idéias rebeldes à simplificação matemática. Em 80 milhões de brasileiros, não haverá duas centenas dessa gente. Não hoje, mas são muitos quando se contam pelas gerações que se sucedem e pelo acêrvo que vão acumulando em seus coutos, como neste Museu. Gente que faz ciência básica, servindo de ponto de partida para todo processo pragmático de integração do homem à Terra.

Sic vos non vobis, apes. Cícero comparou êsse trabalho ao das abelhas, arrumando em escaninhos tudo o que concretizam com atividade incessante, para proveito de outros. E tem muito das abelhas o nosso trabalho. Alegrias de vôos ao sol em descobertas de mundos novos, onde há côres e perfumes e sensações novas por experimentar. Descer para a análise de cada detalhe, encher cestas de pólen ou encharcar-se de néctar e voltar, pesadas, para a colméia. Gloriar-se das descobertas simples e entregar-se à faina de assimilá-las para uso de todos. Para cada gota de mel, quantos mil metros de vôo? E para encher um favo? Só que a nossa busca é mais canhestra e indecisa porque não vem de atos instintivos em que se cristalizaram reflexos tão congruentes com o meio que constituem uma inteligência per se, capaz de haurir tôdas as consonâncias do mundo externo num lapso de semanas que é a vida do imago. Nós não temos, também, arroubos de traduzir em plástica impressionista as telas naturais, nem, com elas, sabemos transmitir emoções vibrantes em aquarelas sonoras. Guardamos conôsco a harmonia dos cenários gigantes em que se reproduzem ciclos de violência e suavidade em concêrto de maravilhas extasiantes como na sinfonia pastoral de Beethoven em que, às vêzes, a melodia de um oboé e duas notas simples de um fagote interpretam a tessitura delicada dos campos e das flores e uma orquestra inteira mal chega para a majestade das grandes iras dos tufões e faíscas que convulsionam os céus. - Mais das vêzes a gente contempla tudo como nas bucólicas de Virgílio - Deus nobis haec otia faecit.

O pesquisador dos fenômenos naturais - da espécie e do sistema naturae está prêso às injunções da ordem, dos escaninhos onde acumular, ordenadamente, as espécies unitárias em grupos afins. Tem que vislumbrar os observáveis diagnósticos; escrutinar detidamente, mais as semelhanças que as dessemelhanças falazes; perceber as constâncias modais e os nódulos indicadores das descontinuidades estatísticas. O que constrói é transiente porque se reduz a uma objetivação convencional, submissa à conceituação taxionômica e ao translado nomenclatural; reduzida a comparações diagnósticas de utilização prática imediata e representada por uma amostragem de indivíduos que formam o hipodigma - a fase concreta da espécie - tipos e parátipos.

Mas a classificação diagnóstica de uma espécie entre semelhantes e dentro do gênero implica princípios, regras e base taxionômicos. Uma conceituação empírica, sugerindo que os indivíduos da amostragem conhecida satisfazem as condições de um denominador comum, subjetivo e que é um concentrado de tôda a experiência humana no campo da fenomenologia da espécie. Este denominador é a definição da espécie. Melhor dizer, definições - em que os biólogos exegetas procuram interpretações para o sentido subjetivo da estacada de organismos com que se defrontam, num esfôrço de hermenêutica que, afinal, se satisfaz com sua a própria experiência. Tate Rcgan definiu mesmo a espécie como "aquilo assim definido por um especialista no grupo".

Homo sapiens ou Musca domestica, os indivíduos destas duas espécies, definidos, limitados, concretos - devem satisfazer as condições subjetivas de uma definição, como, diríamos, a de George Gaylord Simpson, o paleontólogo de Harvard, reconhecidamente o maior conhecedor atual dos problemas de taxiomomia da espécie animal: "uma linhagem (sequência de populações de ancestrais e descendentes) evoluindo separadamente de outras e com um papel e tendências evolutivas próprios". Aí se conciliam todos os pontos de vista sôbre a conceituação da espécie neontológica ou paleontológica: o genético, o evolutivo, o ecológico, e o morfológico. Se pudermos testar os indivíduos daquelas duas espécies em relação à população a que pertençam, verificando que têm ancestrais e descendentes evoluindo separadamente de outras e que se caracterizam, mais, por um papel e tendências evolutivas que são seu apanágio - diremos que os indivíduos pertencem àquelas espécies, respectivamente.

Mas analisemos a definição de Simpson que, como dissemos, concilia quantos pontos de vista se conhecem. Nas condições de papel e tendências evolutivas próprios estão incluídas as características orgânicas e genéticas dos indivíduos que pertençam a populações, e estas generalizam as mesmas qualidades em linhagens. Para que, entretanto, as características orgânicas e genéticas das linhagens cheguem a definir espécies, falta a condição evoluindo separadamente de outras. Evoluindo separadamente de outras, o isolamento reprodutivo é conditio sine qua non. Se pudéssemos reunir, em um habitat compatível com tôdas, várias espécies duvidosas inoculadas com indicadores radioativos em número bastante para uma análise posterior das progênies, nós poderíamos, através de uma sequência significante de gerações, separar as espécies verdadeiras sem qualquer verificação de suas características genéricas /genéticas/ ou orgânicas. Só para efeito do comércio pragmático entre pesquisadores ou para tornar prático o conhecimento daquelas espécies é que nós procuraríamos diagnosticá-las em função de caracteres observáveis sem a intervenção dos indicadores radioativos. A diagnose seria, depois, aplicável a quaisquer indivíduos de amostras não experimentadas por aquêle sistema. E. só então, estaríamos seguros de que os indivíduos satisfaziam à definição completa. A definição nos serviu à classificação das espécies aludidas. Não nos deu, de fato, nenhuma idéia do que fosse espécie. Sobre de que leis de probabilidades resultam as espécies. Porque uma definição resume a experiência acumulada pelos classificadores para ser aplicada em fatos novos e mais a inferência de que sejam aplicáveis, independentemente, onde sejam impossíveis as verificações. É um instrumento empírico de trabalho e tem resultado útil, embora mantenha o sistemata apreensivo ante o fantasma da subjetividade.

É sediça, mas vai nos servir aquí de digressão, a comparação da necessidade de objetivar espécies em indivíduos, com a prática internacional de aceitar a moeda corrente de cada país como tendo valor objetivo nas trocas cambiais. Ainda que haja correlação entre a moeda corrente e riqueza acumulada, a moeda corrente tem um valor subjetivo, dependente de probabilidades potenciais estranhas à objetivação do lastro convencional. O valor fiduciário da moeda corrente não pode ser tão objetivo como para aquêle que esperava vêr uma "nota" de quinhentos cruzeiros 25 vezes maior do que uma de 20 cruzeiros; nem tão subjetivo como para Stanislaw Ponte Preta preconizando uma moeda de quinhentos cruzeiros para uso nos telefones automáticos.

Há pouco tempo, um mestre de obras explicava-me um processo rigorosamente certo para obter o esquadrejamento das paredes em uma construção à base dos números 3, 4 e 5. No alinhar as fundações, êle marcava em uma delas três unidades métricas e na fundação adjacente, quatro unidades idênticas às primeiras. Se as duas fundações estivessem em ângulo reto, a distância entre os dois pontos marcados seria, exatamente, de cinco daquelas unidades. O conhecimento lhe veio de tradição, de experiências muitas vezes comprovadas e provava que os números 3, 4 e 5, naquelas circunstâncias, definiam o ângulo reto. Explicamos-lhe que o fato era comprovadamente certo e que já era conhecido dos arquitetos egípcios. Isso empolgou-o e pudemos sentí-lo orgulhoso de conhecimentos tão profundos.

Para o nosso mestre de obras, uma definição de ângulo reto seria mais ou menos assim: o ângulo que se obtém quando linhas de 3, 4 e cinco unidades podem ser unidas pelas extremidades. E êle talvez fôsse tentado a simplificar a cousa em uma fórmula: 3a+4a+5a=ângulo reto. E tudo daria certo e suas paredes continuariam a subir no mais perfeito esquadro.

Será que nós, sistematas, não estaremos usando uma fórmula semelhante: linhagens + adaptações + isolamento reprodutivo = espécie?

Que aconteceria se o nosso amigo mestre de obras travasse conhecimento com o teorema pitagórico ou pudesse simplificá-lo na fórmula a2 + b2 = c2 ? Evidentemente suas paredes não seriam melhoradas, mas êle teria aprendido a usar uma equação racional, uma lei geral, capaz, de libertar seu raciocínio das propriedades mágicas dos números 3, 4 e 5, e torná-lo apto a lidar com quaisquer números e prevêr condições que satisfizessem a equação simples.

Se nós, também, conseguíssemos tratar a espécie em têrmos de equação racional certamente nos livraríamos de uma série de incovenientes e incertezas, ainda que os dados se tornassem menos precisos. A vantagem de uma equação racional ou lei, segundo Brody, não é de que ela nos apresente dados mais precisos, mas de que nos proporcione a compreensão de uma uniformidade ou lei natural e de que permita a previsão lógica da repetição dos fenômenos.

A lei da espécie já está, pràticamente, expressa em tôda a literatura.

Onde ressalta, em Darwin, o conceito de espécie é no "fenômeno evolutivo", que é a mudança de forma em resposta a fatores do meio em gerações sucessivas. Da interação entre organismos e fatores do meio resultam as espécies. E tôda a "Origem das Espécies" está cheia de afirmativas de que os fatores do meio, para Darwin, não significam fatores seletivos passivos. Dentro da variedade de animais que se encontram num bosque explica que "todos são produzidos por leis que agem à nossa volta: Leis do crescimento com reprodução; leis da herança implicando a reprodução; leis da variabilidade pela ação indireta ou direta das condições de vida e do uso e desuso".

Também, George Simpson inclui o meio externo em sua definição da espécie quando diz que a linhagem tem um papel e tendências evolutivas próprios. E detalha, meudamente /sic/, que papel é a interação de organismos e meio externo.

Há, em nós, um receio infundado em admitir o meio externo como capaz de modificar o meio interno de um organismo, levando-o a reproduzir indivíduos que se isolem reprodutivamente da população original. Entretanto, as unidades imediatas que formam um organismo vivo - electrons, protons, átomos e moléculas - são as mesmas que constituem unidades nos sistemas destituídos de vida. Os primeiros coacervatos "vivos" eram complexos moleculares orgânicos que se tornaram menos diretamente dependentes do meio externo por um mecanismo estrutural de equilíbrio interno mais impérvio aos fatores que os cercavam. A capacidade de eleger elementos externos para o seu crescimento, dentro daquela condição de equilíbrio dinâmico, terá feito que se dividissem quando atingidos os limites quantitativos do equilíbrio, provàvelmente por solicitação do próprio meio e, então, repetiam o crescimento em tôrno das mesmas cadeias orgânicas que eram os vetores do fenômeno. Êsses coacervatos vivos, no processo de se refazerem, seriam altamente sensíveis ao meio e deviam aceitar modificações contínuas de estrutura sem perda de suas propriedades organísmicas. Na sua especificidade menos rigorosa, dois coacervatos se poderiam unir em um nôvo organismo somando propriedades que os tornassem mais independentes do meio externo. Em mais de três bilhões de anos êsses organismos vivos experimentaram a constituição de meios internos capazes de se reproduzir em gerações e gerações de populações em que as variações raramente fossem capazes de se isolar em novas linhagens reprodutivamente independentes.

Claude Bernard dramatizou êsse equilíbrio interno afirmando "que mecanismos vitais têm um objetivo, conservar constantemente o meio interno". Parece, aliás que tenha sido o criador da expressão meio interno.

Em 1929 Cannon englobou todos os conhecimentos desenvolvidos sôbre o equilíbrio interno em seu princípio da Homeostasia - a cooperação integrada de todos os órgãos e sistemas do corpo: nervosos, endócrinos, circulatórios, excretórios, digestivos - para a manutenção de um equilíbrio estável. A homeostasia inclui a lei do mínimo de Liebig, o organicismo de Pike, o teorema de Le Chatelier, o holismo de Smuts, a psicologia Gestalt de Koffka, as associações de indivíduos de uma população de Brody e, provàvelmente as associações de diversas espécies de Moojen.

Tudo o que tentamos expôr poderia ser resumido em salientar que os fatores do meio (nem eram ainda externos) determinaram a formação dos primeiros organismos vivos e que, embora êsses organismos vivos tenham dominado uma grande parte da influência externa englobando-a em sua própria estrutura e constituindo tampões que atenuam a sua ação direta - o meio é parte integrante da espécie objetiva.

Milhões e milhões de probabilidades genéticas experimentam a possibilidade de se integrar ao mecanismo homeostático mesológico de uma população específica. Falham, sem dúvida, em sua quasi totalidade. Até que uma é aceita por uma possibilidade aberta no equilíbrio e desvia o sistema homeostático para a formação de uma progênie aberrante que conduz novas populações ao isolamento reprodutivo de uma nova espécie. Experimentalmente, no laboratório, raios X e outras irradiações modificam progênies e poliploidia é imposta às plantas. E podemos ter a mesma dúvida de Darwin sôbre quanto do meio externo entra na formação de uma espécie. Provavelmente, a estabilidade de uma espécie será, principalmente, função do gráu de congruência entre o meio interno e o meio externo. Espécies de algas e protozoários podem ter variado pouco em milhões de anos, mercê, digamos, de 80% (oitenta por cento) de congruência entre a sua homeostasia e o meio; até nem terem que desperdiçar células somáticas vivendo, o mesmo organismo, milhões de anos. Tartarugas de há mais de 200 milhões de anos mal diferem das atuais, tão certa a sua receita para a congruência com o meio. Dinossauros, aves e mamíferos, de outro lado, vivem num fervedouro de modificações.

Como aparecem, então, as espécies novas? Primeiro, de uma condição nova no meio interno que se harmonize com as pré-existentes; segundo, da adaptabilidade ou congruência do novo organismo com o meio externo - desde que estas modificações sejam capazes de conduzir ao isolamento reprodutivo uma linhagem originada pela anterior. O isolamento reprodutivo dessa linhagem é que dá o grau unitário - de espécie - às novas populações.

Nas definições queremos que se realizem modificações perpetuáveis e, além disso, que apareça o isolamento reprodutivo para termos uma espécie, quando, na realidade, as probabilidades dinâmicas do meio interno e do meio externo é que podem criar o isolamento. A equação racional seria, portanto: linhagens + adaptações = isolamento reprodutivo

Ou poderíamos traduzir esta condição constante por uma lei simples: sempre que a interação de fatores internos e ou externos criam uma condição de isolamento reprodutivo uma nova espécie se forma. E, como corolários óbvios: a) uma condição de isolamento reprodutivo criada por probabilidades do meio interno formará uma nova espécie se o organismo formado for congruente com o meio externo; b) uma condição de isolamento reprodutivo criada por probabilidades do meio externo formará uma nova espécie se congruente com os organismos da população existente.

Está claro que encarar a espécie como produto de uma lei natural, em lugar de definí-la, não vai modificar nada do que está classificado. Porque a espécie empírica tem absoluto valor descritivo, ma a espécie racional nos deixa à vontade, em função da lei, para a previsão e descobrimento de novas espécies. É o que fazem os horticultores hibridando - o que é uma maneira de fazer um meio interno modificar os parâmetros de outro meio interno; ou fazendoa poliploidia provocada ou submetendo plantas a radiações. E o que fazem os drosofilocultores e zootecnistas constantemente.

E qual dos meus colegas não prevê a possibilidade de uma nova espécie buscando populações do grupo que estuda em meio significantemente diverso? E, com bastante familiaridade em um grupo o sistemata pode, dentro de limites, antevêr propriedades ne espécie prevista. Quantas vêzes anunciamos ao nosso amigo Werneck que tínhamos espécies e até gêneros novos de sue malófagos, porque encontramos hospedeiros novos para seus esctoparasitos? E com que naturalidade êle aceitava a previsão e, melhor, a verificava certa.

Há poucos dias o colega Professor Fausto Cunha, deu-nos, para exame, restos de pequenos mamíferos encontrados em Lapa calcárea perto de Mossoró, no Rio Grande do Norte. Tratava-se de material recente e uma preá do gênero Galea além de roedores Zygodontomys /que/ indicavam região semi-árida. Havia, entretanto, um suiá (Echimydae) em tudo semelhante à sub-espécie de Trinomys encontrada no nordeste bahiano - um crânio curto, abaulado, os forames palatinos muito abertos e molariformes, em sua maioria, reduzidos a duas lâminas. A dúvida, entretanto, é que só se conhece o sub-gênero Trinomys ao sul do Rio São Francisco. Um exame cuidadoso, incluindo o corte de molares para expôr as dobras internas do esmalte, mostrou que a espécie era do sub-gênero Proechimys que é de origem amzônica. Êste fato satisfazia plenamente o que se devia prevêr para aquela espécie, mas o paralelismo das adaptações para clima semi-árido tornou a classificação difícil.

Também podemos prevêr clines ou gradientes, sem qualquer idéia de determinismo. Cercomys cunicularius, p. ex., o punaré é o roedor mais conhecido em tôda uma imensa faixa de território sul-americano onde é alimento comum (saboroso, aliás) de tôda uma gente que se diz não consumir proteínas. Populações quasi sempre contíguas dêsses punarés se encontram desde o litoral do Ceará até o Paraguai; em todos os estados nordestinos, Bahia, Minas, Norte de São Paulo, Goiás e Mato Grosso - nos mais de sessenta por cento de nossa área em que se estendem os cerrados e caatingas. Uma só espécie e com um gradiente morfológico sempre confirmado nos milhares de exemplares que possuímos em coleção: punarés do Ceará são pequenos, têm a barriga totalmente branca e o dorso cinza claro; a pelagem não ultrapassa 10 e 6 mm do corpo e na cauda respectivamente; o crânio, reduzido, apresenta forames palatinos largos e os molares têm as lâminas reduzidas em número. À medida que vai avançando pelo sudoeste, em direção ao Paraguai, os punarés vão se tornando maiores, mais escuros, até terem o ventre cinza, a pelagem se torna mais basta e os pêlos vão a 15 e 10 mm do corpo e cauda; o crânio, maior tem forames palatinos cada vez mais estreitos e os molares ganham mais lâminas. Nessa faixa imensa de território geográfico o gradiente é imensa catenária e é fácil prevêr as características de quaisquer exemplares que venham a ser apanhados em regiões intermediárias, como aconteceu, há pouco tempo, com exemplares vindos de Brasília e de algumas localidades de Goiás. Deu certo a previsão. Mas poderia ter dado a surprêsa, talvez mais agradável de falhar inteiramente, porque uma populaçde punarés poderá ser encontrada na grande área e estar isolada reprodutivamente apresentando, como geralmente acontece, características morfológicas específicas. As causas do isolamento, meio externo + meio interno, representariam um nôvo equilíbrio acarretando diversificações fisiológicas que promovessem estruturas diversas no contato com o meio. Foi assim, que aconteceu com os mocós (Kerodon sp.) que trouxemos do norte de Goiás. Em vez de repetirem ali a espécie até agora conhecida como única - eram totalmente diversos em caracteres tão significantes que se póde deduzir o isolamento reprodutivo; o novo mocó tem crânio muito maior e um rostro grandemente alongado e, num caso destes, vê-se logo que o "bicudo e o bicudo curto não se beijam". Haverá que experimentar o teste produtivo, mas o fato de que os mocós não fazem populações contíguas porque se encontram em serrotes pedregosos semeados na vegetação uniforme dos cerrados caatingas facilita o isolamento de uma população e uma modificação que talvez se diluísse no reencontro da condição homeostática das populações dominantes poude, no isolamento geográfico, fazer mais ràpidamente uma nova estruturação orgânica conducente à especiação.

Sic nos non nobis? diríamos como peroração. Há mais de trinta anos vimos clamando, como tôdos os que trabalham em pesquisa básica e que são postergados nas suas tentativas de reivindicação, contra o que acreditamos seja a injustiça ou desinterêsse de outros grupos sociais mais afortunados.

Uma das mais fortes impressões da injustiça social nos veio, na juventude, da leitura de Crainquebille, de Anatole France. Na apologia do juiz Bourriche, que condenou o verdureiro à base do depoimento infiel do agente Matra, contra o testemunho verdadeiro do Dr. Matthieu, cavalheiro da Legião da Honra e diretor de um hospital - Anatole France demonstra que o juiz via em Bastien Matra, não o cidadão nascido em Cinto Monte, na Córsega, mas o agente 64, simbolizando, com seu sabre, tôdo o mecanismo da ordem e da justiça. Rejeitar seu depoimento seria uma diminuição que atingiria o próprio Estado. Por outro lado, como juiz sensato e de longa experiência, êle não poderia oferecer uma fórmula que indutasse Crainquebille porque aberraria das decisões comuns e que todos esperam ver repetidas. A justiça adiante /sic/ Anatole France, "é a sanção das injustiças estabelecidas".

Se Anatole France conhecesse o princípio da Homeostasia de Cannon, êle poderia ter raciocinado em têrmos de equilíbrio social, sem necessidade de satirizar a justiça.

Em uma fazenda, a uma légua de Ilhéus, na Bahia, um caboclo nos mostrou o pé direito com o "dedão" decepado por uma machadada e, anlisando a mutilação, explicou-nos: "Antes, eu ía a Ilhéus em emnos de uma hora, agora gasto uma hora e dez minutos". Era uma medida segura do valor relativo de seu halux direito na locomoção a pé descalço. Entretanto, lemos, em um ensaio do Professor Gerhard, prêmio Nobel em Fisiologia nervosa, que o roganismo humano não dá tanta importância ao seu halux direito. De fato, se o nosso polegar direito for de encontro a um objeto, em um centésimo de segundo o reflexo medular fará que os músculos afastem o dedo do perigo. O grande artelho poderia merecer proteção igual, pràticamente na mesma fração de segundo, quando estivesse em risco de ferir-se. Mas não - contra a expectativa, o reflexo medular é, para êle, 50 vezes mais lento. O professor de fisiologia explica que o fato do halux não ser exercitado em percepções tácteis anula suas prioridades no reflexo medular e o impulso nervoso é retardado.

Também nós, como Crainquebille, não dissemos "mort aux vaches" e não é por isso que nos afastam do direito comum. É, simplesmente, porque somos o dedão do pé.

Recebido em 30.VI.1995; aceito em 16.IV.1996.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    21 Jul 2009
  • Data do Fascículo
    1995
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