Acessibilidade / Reportar erro

Na Bahia Setecentista, um pioneiro do abolicionismo?

Resumos

No ano de 1992, foi republicado por Paulo Suess Etíope Resgatado, de autoria do Pe. Manuel Ribeiro Rocha. Tratava-se de obra raríssima, pois, quanto consta, só havia em todo o Brasil um único exemplar, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Já vinha eu fazendo pesquisas em torno do Pe. Ribeiro Rocha, a quem costumava qualificar de "pioneiro do abolicionismo" no Brasil. Com a reedição de Etíope Resgatado, tomei conhecimento da leitura de Paulo Suess, numa direção quase totalmente contrária. Para este, Ribeiro Rocha não passaria de um simples "reformista", que nada acrescentara de ideia libertária ao problema da escravidão negra. Aliás, essa tinha sido a tese de Ronaldo Vainfas e José Honório Rodrigues, que veem na obra de Ribeiro Rocha mais um exemplar do "pensamento escravista", que apenas condenava, como o faziam todos os homens de Igreja, os excessos e barbaridades da escravidão negra. Todo este nosso trabalho se orienta, portanto, na direção de uma leitura "abolicionista" do Etíope Resgatado, embora admita as evidências claras de "concessões" feitas por Ribeiro Rocha à situação escravocrata de seu tempo.

Etiope resgatado; Ribeiro Rocha; escravidão; igreja


In 1992, there was republished by Paulo Suess "Etíope resgatado", written by Father Manuel Ribeiro Rocha. It was very rare work, because, as stated, there was a single copy in the National Library of Rio de Janeiro in Brazil. I had, at this point, already started a research about the Father Ribeiro Rocha, whom used to be described as "a pioneer of abolitionism" in Brazil. With the reissue of "Etíope resgatado", I took notice about Paulo Suess lecture, in an almost completely opposite direction. According to Suess, Ribeiro Rocha was nothing more than a simple "reformer" who had added nothing to the problem of libertarian idea of black slavery. Incidentally, this was the thesis Vainfas Ronaldo and Jose Honorio Rodrigues argued, who saw the work of Ribeiro Rocha another copy of "slavery thought" which only condemned, as did all the men of the Church, the excesses and atrocities of black slavery. This work is orientate, therefore, toward an "abolitionist" reading of "Etíope resgatado", although it admits the clear evidence of "concessions" made by Ribeiro Rocha to the slave situation of his time.

Etíope resgatado; Ribeiro Rocha; slavery; church


DOSSIÊ- IMAGENS DOS NOVOS MUNDOS NA CULTURA OCIDENTAL

Na Bahia Setecentista, um pioneiro do abolicionismo?

In eighteenth-century Bahia, a pioneer of abolitionism?

Fr. Hugo Fragoso, OFM

Doutor em História pelo Pontifício Ateneo Antoniano de Roma

RESUMO

No ano de 1992, foi republicado por Paulo Suess Etíope Resgatado, de autoria do Pe. Manuel Ribeiro Rocha. Tratava-se de obra raríssima, pois, quanto consta, só havia em todo o Brasil um único exemplar, na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Já vinha eu fazendo pesquisas em torno do Pe. Ribeiro Rocha, a quem costumava qualificar de "pioneiro do abolicionismo" no Brasil. Com a reedição de Etíope Resgatado, tomei conhecimento da leitura de Paulo Suess, numa direção quase totalmente contrária. Para este, Ribeiro Rocha não passaria de um simples "reformista", que nada acrescentara de ideia libertária ao problema da escravidão negra. Aliás, essa tinha sido a tese de Ronaldo Vainfas e José Honório Rodrigues, que veem na obra de Ribeiro Rocha mais um exemplar do "pensamento escravista", que apenas condenava, como o faziam todos os homens de Igreja, os excessos e barbaridades da escravidão negra. Todo este nosso trabalho se orienta, portanto, na direção de uma leitura "abolicionista" do Etíope Resgatado, embora admita as evidências claras de "concessões" feitas por Ribeiro Rocha à situação escravocrata de seu tempo.

Palavras-chave: Etiope resgatado; Ribeiro Rocha; escravidão; igreja.

ABSTRACT

In 1992, there was republished by Paulo Suess "Etíope resgatado", written by Father Manuel Ribeiro Rocha. It was very rare work, because, as stated, there was a single copy in the National Library of Rio de Janeiro in Brazil. I had, at this point, already started a research about the Father Ribeiro Rocha, whom used to be described as "a pioneer of abolitionism" in Brazil. With the reissue of "Etíope resgatado", I took notice about Paulo Suess lecture, in an almost completely opposite direction. According to Suess, Ribeiro Rocha was nothing more than a simple "reformer" who had added nothing to the problem of libertarian idea of black slavery. Incidentally, this was the thesis Vainfas Ronaldo and Jose Honorio Rodrigues argued, who saw the work of Ribeiro Rocha another copy of "slavery thought" which only condemned, as did all the men of the Church, the excesses and atrocities of black slavery. This work is orientate, therefore, toward an "abolitionist" reading of "Etíope resgatado", although it admits the clear evidence of "concessions" made by Ribeiro Rocha to the slave situation of his time.

Keywords: Etíope resgatado; Ribeiro Rocha; slavery; church.

Prólogo: as limitações de um pioneiro

O Pe. Manuel Ribeiro Rocha, ao publicar Etíope Resgatado, pode ser considerado um "pioneiro" do Abolicionismo. Discordamos da afirmação de Ronaldo Vainfas, que, categoricamente, sustenta: "A obra de Rocha é um dos principais exemplares do pensamento escravista na Colônia, embora muitos a vejam como protótipo das ideias abolicionistas" (VAINFAS, 1986, p.90). De igual modo, vemos a obra do Pe. Ribeiro Rocha sob uma ótica diferente de José Honório Rodrigues, que escreve: "Não é assim um livro pela liberdade negra, mas um livro pela reforma dos costumes da escravidão" (RODRIGUES, 1979, 416). E também não estamos de acordo com a posição de Paulo Suess, que desenvolve toda uma argumentação contra o caráter abolicionista do Etíope Resgatado, na parte introdutória da reedição dessa obra por ele coordenada, como veremos adiante. Parece-nos mais perto da verdade Boxer, quando vê no projeto apresentado por Ribeiro Rocha "a substituição da escravidão negra no Brasil por um sistema de trabalho sob contrato" (BOXER, 1967, p.145).

Ao qualificarmos Ribeiro Rocha como "pioneiro" do Abolicionismo, queremos ressaltar suas limitações específicas, como as de todo "pioneiro". Pois, de um lado ele traz a marca de sua prioridade em relação a seus coetâneos, no tocante à tese "libertária" por ele sustentada. Em meados do século XVIII, ele representa "algo mais" na linha de libertação dos escravos negros. Mas também, como "pioneiro", ele traz a marca da sua temporalidade. Não queiramos, portanto, ver nele um abolicionista situado no fim de um processo, mas alguém que "dá os primeiros passos da caminhada libertadora". Seu abolicionismo, ao se situar nos meados do século XVIII, não poderia ainda ser "integral". Seria absurdo esperarmos dele um ideal "quimicamente puro" de qualquer contaminação escravocrata.

Mas, por outro lado, ele foi uma voz profética a abalar as próprias bases jurídicas da escravidão negra. E a força de sua voz profética está nas premissas jurídicas que ele colocou, as quais destruiriam toda a legitimidade da escravidão vigente. Tal qual vigorava então, o regime escravocrata não tinha embasamento jurídico, segundo Ribeiro Rocha, reduzindo-se a um simples ato de pirataria ou roubo. Posta essa premissa legal, toda uma série de consequências se impunha a abalar o edifício inteiro da escravidão colonial, alicerçado em tal "ilegitimidade". Essas consequências se resumiam a duas palavras: restituição e ressarcimento. Impunha-se restituir a liberdade "roubada" aos negros e "reparar-lhes" os danos decorrentes de tal escravização. Tal tese representava, sutilmente, uma "subversão" do sistema escravocrata vigente.

Diante de tal conclusão, que juridicamente se impunha e viria a trazer consequências práticas impossíveis de serem aceitas pelo sistema colonial, Ribeiro Rocha excogitou um "expediente", também jurídico, como solução prática para o caso. Esse expediente não pode ser classificado simplesmente de "capitulação" de seu ideal libertário, ou "atitude oportunista" a desmentir tudo o que ele anteriormente afirmara como premissa de uma conclusão libertária.

Podemos ainda levantar a hipótese de ter sido uma exigência da censura pombalina o acréscimo de uma "concessão jurídica", permitindo-se uma forma de continuação do comércio dos escravos na Colônia. Por detrás das palavras de Ribeiro Rocha há espaço para tal hipótese. O autor de Etíope Resgatado, logo de início, declara na Oração Consecratória que seu livro poderá ser "proveitoso a alguns, ainda que não seja bem visto, e bem recebido de todos". E continua dirigindo-se à Virgem Maria: "Fazei, pois, clementíssima Senhora, que no uso e possessão dos miseráveis cativos nos conformemos com os ditames da justiça, que nele se expendem suavizados [quanto foi possível e adaptável] com as modificações da prudência, e equidade. E que em todas as mais ocorrências tomemos sempre pelas vias médias, que são as vossas veredas...".

É na tônica dos ditames da justiça que Ribeiro Rocha vai se firmar. E esses "ditames" - escreve, em Argumento e Razão da Obra - legitimavam naquela época a escravidão sob os "justos títulos" de prisioneiros de guerra justa, punição legal ou a venda dos filhos por parte dos pais, para salvar-se da necessidade extrema. Fora desses "justos títulos" é ilegítima a escravidão. E um desses supostos títulos justos era o de "ventre escravo". Ribeiro Rocha proclama o "ventre livre" como "ditame da justiça". E também como ditame da justiça ele declara que toda ou quase toda a escravidão vigente na Colônia é ilegítima.

Foi na colocação sistemática de tais premissas libertárias que Ribeiro Rocha se constituiu "pioneiro" do abolicionismo. Sua tese envolvia sutilmente certa abolição do sistema escravocrata reinante e o despertar daquilo que o governo colonial tanto temia: a inquietação das consciências. O citado expediente a que Ribeiro Rocha recorre para tonar viável sua tese é o do resgate. Não o "resgate" em que se adquiria o "domínio" sobre o escravo, mas simplesmente aquele em que se adquire temporariamente o seu "penhor". Por outras palavras, os comerciantes e possuidores de escravos poderiam retê-los na qualidade de um "resgate sob penhor", ou seja, poderiam usar seu trabalho como compensação pelo dinheiro investido; mas ao cabo de determinado espaço de tempo o escravo ficaria liberto. Esse espaço de tempo seria de 20 anos, que, sob nossas referências, equivaleriam aos cinco propostos pelo Direito Romano. Com isso, o autor de Etíope Resgatado procura harmonizar as exigências jurídicas com a realidade econômica da Colônia de então.

Nessa tentativa de "harmonização", Ribeiro Rocha se mostra tributário de sua temporalidade. As concessões que ele faz diante das exigências libertárias anteriormente postas, à primeira vista, parecem invalidar seu pioneirismo abolicionista. Há certa falta de coerência lógica entre as premissas que ele lançou e a conclusão pragmática a que ele chega posteriormente. As premissas por ele lançadas levariam logicamente à exigência da libertação real e quase completa dos escravos negros. No entanto, se bem examinamos sua obra podemos perceber que o expediente do resgate sob penhor, embora retardasse a libertação e pudesse ser objeto de manipulação dos senhores de escravos, continuava envolvendo um perigo para o sistema escravocrata colonial. Pois, uma vez lidas as premissas com toda sua força de argumentação, que demolia quase todas as bases jurídicas de nossa realidade escravocrata, o leitor conscientizado da ideia abolicionista talvez não se convencesse do posterior arranjo pragmático, harmonizando-se aquelas exigências jurídicas com a situação econômica vigente. Era o perigo da "inquietação das consciências" e, mais ainda, "da fermentação jurídico-libertária".

Além disso, a solução pragmática de Ribeiro Rocha envolvia uma "subversão" do sistema escravista colonial. Pois, o "não domínio" sobre os escravos resgatados sob penhor mudava profundamente a natureza jurídica da escravidão negra. O escravo já não era uma "propriedade" do patrão, mas simplesmente uma pessoa que "prestaria serviços" compulsoriamente, mas como parceiro de um contrato. Tal "resgate sob penhor" envolvia a transformação de toda a jurisprudência referente aos escravos. A escravidão passaria a ser, de repente, um simples "processo de libertação". E isso representava, de fato, uma subversão da ordem vigente.

Que a atitude pragmática de Ribeiro Rocha não anulava a força de argumentação abolicionista de sua tese vê-se pelas palavras com que seu livro é exaltado por uma série de testemunhas da época. Assim, por exemplo, o Pe. Francisco Gomes do Rego, beneficiado da Sé da Bahia, lhe escreve então uma décima, proclamando-o "libertador do Povo Negro": "Para resgate tão nobre / Fostes, qual Moisés eleito, / Vós o fazeis tão perfeito, / Que libertais todo o povo. / A dizer tanto me movo, / Por ver nesta ocasião, /Que vós com a pena na mão / A todos haveis livrado: /Aos Brancos do pecado, /Aos pretos da escravidão".

Igual testemunho é proclamado por padres jesuítas, que, anonimamente, se pronunciam na introdução a Etíope Resgatado exaltando Ribeiro Rocha como libertador dos escravos negros: "Este povo infeliz, que a crueldade/ Tem por seus interesses cativado, /Por vós fica, ó Ribeiro, resgatado, /Por vós hoje recobra a liberdade. /Até aqui sem respeito à humanidade /Tinha as Leis a cobiça violado, /Mas em vós o Direito restaurado / Faz ceder a ambição hoje à verdade. /Mas que fazeis? Não vedes que os remidos / Da escravidão cruel, que os oprimia /A vossa sujeição ficam rendidos! /Assim é; porém já sem tirania, / Só cativos do amor, e agradecidos, /Todos querem ser vossos à porfia.

E, em mesmo tom, o Pe. Manuel Xavier S.J., professor da Sagrada Teologia, louva o autor de Etíope Resgatado por propor a "redenção das míseras gentes mouras" e proclama que no livro não há "nenhuma página com som de servidão". E num epigrama em latim escrevia: "É o que traduzem a matéria e a excelência do livro de Manuel, / Em perfeita harmonia com sua mente. / É daí que decorre o valor da obra. Talvez perguntes: qual? / É aquele preço com que a liberdade costuma ser vendida". Outro jesuíta, o Pe. Manuel dos Santos S. J., enaltece o autor de Etíope Resgatado: "Por um ato legal, Ribeiro salva / Os negros da Líbia, que a dura sorte / Obrigou a se submeterem ao jugo injusto da escravidão". E seu confrade da Companhia de Jesus, Pe. João Nogueira S. J., na mesma tônica o louva: "Não permitindo mais que continue prevalecendo / Esse jugo pelo qual esteve, como que, / Acorrentada com duros grilhões, depois que Ribeiro / A livrou do abismo...".

Também o Pe. Tomás Honorato S.J. em dois epigramas enaltece Ribeiro Rocha como "libertador dos escravos", aos quais retira com esta sua obra o "jugo servil". Este mesmo ideal de libertação da obra de Ribeiro Rocha é visto pelo Dr. Luiz da Costa Farias, que nas páginas introdutórias dessa obra assim escreve:

Não lamente já mais seu triste estado / O escravo infeliz, e sem ventura; /Não chore não, seu fado e sorte dura / Porque já não será tão desgraçado. /Amparo, proteção, zelo e caridade, / Este livro, ó Ribeiro, lhe assegura; /Porque o engenho vosso aqui se apura, / Até o deixar de todo libertado. /Fazeis que o Africano assaz esquivo /Nunca mais seja escravo de rigor, /Mas sempre de amor fique cativo (ROCHA, 1992, 8-20).

Claro que todos esses elogios a Ribeiro Rocha devem ser vistos na sua formulação poética e retórica. No entanto, uma coisa fica clara: todos eles fizeram a leitura de Etíope Resgatado como obra "libertadora". E o fato de exaltarem, todos, o objetivo libertário do Pe. Ribeiro Rocha nos leva à hipótese anteriormente acenada, ou seja, de que a censura pombalina fez exigências para permitir a publicação dessa obra. E na aceitação dessas exigências estariam as "concessões" feitas por Ribeiro Rocha ao sistema escravocrata. Capitulação? Oportunismo? Ou estratégia para conseguir sutilmente espalhar suas ideias libertárias? E é de lembrar que tais elogios e incentivos libertários, a formar um verdadeiro coral de vozes jesuíticas, representavam "o canto do cisne" dos filhos de Santo Inácio, sobre cujas cabeças pendia a espada da condenação pombalina.

Na licença do Santo Ofício, para a publicação do livro, Frei Lourenço de Sta. Rosa escreve que se trata de "obra tão pia, tão devota e tão douta, ... não faltando as pontualidades do sagrado texto, às regras do Direito Canônico, às Leis do Direito Civil, e das Gentes". Mas, como censor, ele ressalta o subtítulo do livro: "Discurso Teológico-jurídico em que se propõe o modo de comerciar, haver e possuir validamente, quanto a um e outro foro, os pretos cativos africanos, e as principais obrigações que contraem a quem deles se servir". No entanto, apesar de representante da instituição e do poder censório, acrescenta Frei Lourenço: "Acho este opúsculo ponderado", e o vê "introduzindo razonavelmente repreensões azedas aos comerciantes dos escravos".

Ao qualificar Etíope Resgatado de "obra pia, devota e douta" e ao realçar que Ribeiro Rocha censurava asperamente os comerciantes dos escravos, deixava Frei Lourenço uma ambiguidade de leitura de sua aprovação da censura. Pois, essas "azedas repreensões" envolviam uma denúncia de que praticamente todo o comércio de escravos, tal qual vigorava na Colônia, era ilegítimo por não cumprir as exigências da lei. E tais repreensões eram douta e piamente fundamentadas no Direito canônico e na legislação civil. De tal modo que, se Frei Lourenço dá um enfoque no modo proposto por Etíope Resgatado, de "comerciar e haver validamente" os escravos negros, este modo é justamente "o resgate sob penhor". E esse resgate envolveria toda uma transformação do sistema escravocrata em contrato de trabalho por tempo determinado.

Dados biográficos do Padre Ribeiro Rocha

O Pe. Ribeiro Rocha adquire evidência e ao mesmo tempo se apaga, por assim dizer, com Etíope Resgatado. É impressionante o silêncio em torno de seu nome e atividade após a publicação deste livro, em 1758. A primeira impressão que se tem é de uma medida censória, não somente em torno do livro, mas também do seu autor. Na licença de publicação de Etíope Resgatado, dada pelo Santo Ofício em 1757, se diz que o Pe. Manuel Ribeiro Rocha é de Lisboa, domiciliado em Salvador, onde, na qualidade de bacharel formado pela Universidade de Coimbra, exerce a advocacia (ROCHA, 1992, p.18). A data de seu nascimento, segundo José Honório, teria sido o ano de 1687 (RODRIGUES, 1979, p.416-417). Mas é de notar que este confunde o jesuíta Pe. Manuel Ribeiro da Rocha SJ (1687-1745) com o autor de Etíope Resgatado.

Após a formatura em Coimbra, ele viajou para o Brasil. A primeira notícia que nos consta em torno de sua presença na Bahia data do ano de 1724. Fazia ele parte da Academia dos Esquecidos, em Salvador, e assinava como "magister artium". Era membro dessa academia, ao lado de Sebastião da Rocha Pita, Inácio Barbosa Machado e vários outros (CASTELLO, 1969, p.98,175). No ano de 1738, tem-se notícia de seu cargo de advogado na Ordem Terceira de S. Francisco, e em 1742 passa ele a ser também advogado da Santa Casa da Misericórdia (ALVES, 1981). Seu contrato de advogado das causas civis da Santa Casa garantia-lhe o salário anual de 110$000.

Em 1757, exercia o cargo de Notário Apostólico na Cúria Arquidiocesana de Salvador. Diogo Barbosa Machado, no 4º tomo de sua Biblioteca Lusitana, escreve em 1759 que ele era formado em Cânones pela Universidade de Coimbra e que, na cidade de Salvador, exercia o cargo de advogado das causas forenses. Acentua Barbosa Machado que ele era muito instruído nos Santos Padres e Autores Ascéticos. Não cita, porém, Etíope Resgatado, mas, sim, duas outras obras publicadas no mesmo ano de 1758: "Socorro dos Fiéis aos Clamores das Almas santas excitado por meio de Estímulos doutrinais práticos, com que se renovam os Danos do Descuido dos Vivos, e se promove o alívio das Penas dos Defuntos", Lisboa, 1758; e "Nova Prática dos Oratórios particulares, e na Vida Cristã competente ao seu mais reto, e proveitoso Uso", Lisboa, 1758 (MACHADO, 1935, 224).

É sintomático que Barbosa Machado omita Etíope Resgatado, levado a lume no mesmo ano das obras citadas. É estranha essa omissão sobre uma obra tão importante, quando ele cita obras de valor bem menor. Além disso, Ribeiro Rocha era companheiro de Academia do seu irmão, Inácio Barbosa Machado, na Bahia. O autor da Biblioteca Lusitana tinha uma ligação bem próxima com o Pe. Ribeiro Rocha. Pois ambos eram de Lisboa e podem ter sido companheiros de estudos na Universidade de Coimbra, onde Barbosa Machado, nascido em 1682, estudou a partir de 1708 (MACHADO, 1930, 620-621). Senão Diogo, pelo menos Inácio Barbosa Machado pode ter sido companheiro de estudos do Pe. Ribeiro Rocha. Inácio formou-se em Direito no ano de 1716. Além disso, exerceria o cargo de juiz de fora em Salvador e seria companheiro de Ribeiro Rocha na Academia dos Esquecidos, de 1724 a 1725 (CASTELLO, 1969, 125-128). Retornando a Portugal, ordenou-se presbítero em 1754, por ocasião da morte de sua esposa. Dedicou-se à História militar portuguesa (MACHADO, 1931, 488-489). Tudo isso torna mais inexplicável a omissão de Etíope Resgatado pelo autor da Biblioteca Lusitana. Sua omissão leva, como dissemos, à conclusão lógica de tratar-se de uma proibição censória à obra de Ribeiro Rocha.

É sintomático que a publicação de Etíope Resgatado se dê no desenlace final da questão jesuítica, às vésperas do sequestro de seus bens e de sua expulsão do Brasil. Terá o Pe. Ribeiro Rocha assumido posição de defesa jurídica dos jesuítas, como o fez seu Arcebispo D. José Botelho de Mattos? Como se sabe, o Arcebispo da Bahia fora encarregado pelo Cardeal Saldanha de assumir a "Reforma" da Companhia de Jesus em sua Arquidiocese. Após uma investigação conscienciosa, D. José Botelho enviou à Corte "um sincero atestado" com assinatura de 80 pessoas, das mais eminentes da Bahia, que negava as acusações referentes ao comércio dos jesuítas. Pombal respondeu-lhe com uma punição severa, forçando-o à renúncia e deixando-o sem rendimento algum da mitra, entregue praticamente à caridade pública, na avançada idade de 80 anos.

O Pe. Ribeiro Rocha estaria envolvido na defesa dos jesuítas? Lembremos que vários jesuítas da Bahia, na oportunidade da publicação de Etíope Resgatado, o aplaudem como "libertador" do povo negro, oprimido pela crueldade humana. E o P. Paulo Amaro S.J., ao dar aprovação a esta obra, aplaude o livro, por ele buscar a libertação dos negros escravizados, "como se não fossem almas remidas com o sangue de Jesus Cristo" (ROCHA, 1992, 21). É de salientar que uns anos antes, no processo de elaboração da lei pombalina de 1755, que restituía a liberdade aos índios, apresentava-se toda uma catilinária contra os jesuítas (e demais religiosos), acusando-os de monopólio do braço escravo indígena, razão por que - argumentava Pombal - se opunham eles à libertação dos índios. Uma possível resposta jesuítica, aplaudindo a forma de libertação dos negros, propugnada pelo Pe. Ribeiro Rocha viria exasperar, sem dúvida alguma, o Marquês, que contava com o braço escravo dos negros para suprir a mão de obra dos indígenas, então libertados.

Tudo isso nos leva à hipótese de que a obra do Pe. Ribeiro Rocha, juntamente com seu autor, deve ter sofrido restrições, ou mesmo proibição, por parte da censura pombalina. E podemos acrescentar que, com muita probabilidade, o Pe. Ribeiro Rocha estava envolvido no processo jesuítico. Pois quando Bento XIV nomeou "Reformador" da Companhia de Jesus em Portugal o Cardeal de Lisboa, Francisco Saldanha, por meio do Breve de 1º de abril de 1758, também nomeou o Arcebispo da Bahia "Comissário" nas partes da Bahia. Em agosto de 1758, o Desembargador José Mascarenhas, juntamente com os Magistrados Manuel Estêvão de Almeida Vasconcelos Barberino e Antônio de Azevedo Coutinho, formou um tribunal, ao lado do Arcebispo da Bahia, para julgamento dos jesuítas. Mas logo esse tribunal foi dissolvido por ter-se constatado a inocência dos inacianos. Pombal, além disso, "depôs" o Arcebispo e afastou o Desembargador José Mascarenhas, ordenando arbitrariamente o sequestro dos bens dos jesuítas e sua expulsão da Bahia e do Brasil (CAMARGO, 1955, 246-250; LEITE, 1945, 103-104).

Teria sido o Pe. Ribeiro Rocha - que então era o Notário Apostólico da Câmara Eclesiástica e advogado das causas forenses da Santa Casa da Misericórdia - o assessor jurídico do Arcebispo nesse mencionado processo? Depois da publicação de Etíope Resgatado, como dissemos anteriormente, cessam as notícias sobre o Pe. Ribeiro Rocha. Quando ele escrevia Etíope resgatado alegava que "sem talento, e quase já sem alento escrevi" (p. 2). E o Pe. Francisco Gomes do Rego, beneficiado na Sé da Bahia, em suas décimas de louvor, afirmava que Ribeiro Rocha "padecendo penosa enfermidade por mais de vinte anos, ainda assim compôs este livro" (p.16). No ano de 1761, um viúvo de nome Francisco Ribeiro Rocha, falecido a 25 de abril, foi sepultado no Convento dos Franciscanos, de acordo com o Livro de Óbitos da Sé (1734-1762); e o Livro de Óbitos da mesma Freguesia, iniciado em 1778, menciona (segundo a leitura de Marieta Alves) o dia da morte do Pe. Ribeiro Rocha como 31 de março de 1779. Compulsamos o referido livro de óbitos, mas seu estado não permitia uma leitura do conteúdo da referida anotação. Marieta Alves, depois de citar a data de 31 de março de 1779, acrescenta: "Nada mais podemos acrescentar a seu respeito pelo estrago da página em que foi lançado o assento de óbito" (Livro de óbitos da Freguesia da Sé, 1778, p.90). Paulo Suess (Etíope, p. XXV-XXVI) a partir de pesquisa no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, aventa a hipótese de que o Pe. Manuel Ribeiro da (sic) Rocha tenha retornado a Portugal, onde veio a falecer depois de 9 de junho de 1781. Tudo indica tratar-se de uma confusão com um quase homônimo do autor de Etíope Resgatado.

Contexto eclesiástico de "Etíope resgatado"

Ribeiro Rocha situa-se em pleno "Século das Luzes". Era uma época de profunda fermentação ideológica em praticamente todos os países da Europa. Até mesmo Portugal não estava imune às ideias iluministas, que iam sorrateiramente penetrando na Universidade de Coimbra. E a própria Igreja de Roma experimentava um sopro de abertura humanista, sob o papado de Bento XIV. Mas no mesmo Portugal as forças reacionárias iam se mancomunando contra os inimigos do "trono e do altar". E, contra esse vírus ameaçador, procurava-se criar todo um sistema de patrulhamento ideológico. Sobretudo quando os ideais desses "subversivos" eram uma ameaça ao regime escravista e a todo o sistema econômico do Brasil Colônia.

Etíope Resgatado situa-se no contexto da Igreja do pontificado de Bento XIV (1740-1758). O papado estava sob forte pressão das Potências Católicas, que reivindicavam direitos e regalias ante a Igreja de Roma. Bento XIV procurou manter uma política de equilíbrio e tolerância, face às ditas Cortes, para não dividir as forças, que ele considerava "aliados internos", contra os "inimigos externos" da Igreja. Esta sua atitude de tolerância procedia também de sua formação "iluminista". Ele até foi classificado com o título sugestivo de "Papa iluminista". Não só no domínio da Filosofia e das Ciências empíricas se distinguia ele, como também no Direito Canônico e na Teologia. Como homem da Ilustração, procurou "propagar as luzes do novo saber", fundando em Roma quatro diferentes Academias para o estudo da história Antiga e Eclesiástica, bem como dos Concílios Ecumênicos, além de uma Academia de Direito Canônico, sob seu aspecto histórico.

O que talvez diga respeito mais de perto ao contexto de Etíope Resgatado, seja sua bula Immensa Pastorum, dirigida em 1741 aos Bispos do Brasil, sobre a liberdade dos índios. Embora Bento XIV não fizesse nenhuma referência (CARVALHO, 1985, 45-46) direta à liberdade dos escravos negros, ele repisava o argumento de que não se devia descarregar maus tratos e escravidão sobre os pagãos, pois isso redundaria em prejuízo de sua conversão ao Cristianismo. Tal argumento poderia levar aplicações libertárias também aos negros africanos. A escravidão dos índios, chamada de "desumana" pelo Papa, poder-se-ia, consequentemente, estender com a classificação de "desumana" igualmente à escravidão negra.

A Igreja do Portugal de então

Afirma Fortunato de Almeida, em sua História da Igreja em Portugal, que "o rompimento de relações com a Santa Sé, em 1760, foi procurado e provocado, para mais livremente se exercer uma larga ditadura do poder temporal, em matérias eclesiásticas". Leis vexatórias aos direitos da Igreja foram nesse período promulgadas. Além disso, o governo de Pombal abriu as portas para todos os ataques à ordem eclesiástica estabelecida e à hierarquia católica. Pombal afirmava, em alto e bom som, a supremacia do poder temporal sobre o poder eclesiástico; e, sob a sua complacência, "por uma série inumerável de providências se procurava levar ao espírito público a convicção de que a classe eclesiástica era o maior inimigo do Estado" (ALMEIDA, 1970, 255).

O Marquês de Pombal procurou tornar atribuição exclusiva do Estado a aprovação de livros e serem impressos. Declarava-se, então, que "nem o clero [tem] algum direito para nos impedir a lição dos livros que nos parecem bons, havendo sido publicados com autoridade do soberano" (ALMEIDA, 1970, 338). Este conflito de jurisdição, estabelecido entre a autoridade eclesiástica e a civil, sobre a censura de livros facilitava "a invasão da literatura ímpia e revolucionária, que na França causava os maiores estragos, subvertendo a ordem social e atacando as doutrinas religiosas" (ALMEIDA, 1970, 350). O mais espantoso desta atitude regalista do Marquês de Pombal foi a posição de subserviência de grande parte da Igreja hierárquica desse tempo. O Marquês conseguiu curvar à sua vontade despótica dignitários da Igreja, como o Cardeal Saldanha, que se prestou ao triste papel de "secretário de ordens" do governo pombalino, para a execução de seu plano de condenação dos religiosos da Companhia de Jesus.

Era esse o clima reinante nas esferas da Cúria romana e na política eclesiástica da Corte portuguesa. Na Bahia, os destinos da Arquidiocese eram dirigidos por Dom José Botelho de Mattos, que regeu a Igreja baiana de 1741 a 1759. Foi sob seu governo que o Pe. Ribeiro Rocha elaborou e publicou "Etíope Resgatado". Não se tem pesquisado ainda suficientemente sobre sua atividade à frente da Igreja da Bahia. Na capital do Brasil de então, dizia-se figurar o clero mais erudito do Brasil. Os jesuítas desenvolveram, até o final de sua administração, uma grande atividade nos estudos e na formação dos futuros padres. Aliás, D. Botelho de Mattos demonstrou uma coragem ímpar na defesa dos jesuítas, ao enfrentar as iras e o despotismo do Marquês de Pombal. Nomeado comissário da "Reforma" da Companhia de Jesus pelo Cardeal Saldanha, recusouse a condenála, como exigia Pombal. Por essa razão, foi pressionado a pedir demissão em 1759, passando a residir nos arrabaldes de Salvador, em Itapagipe, à mercê da caridade de amigos. Veio a falecer em 1761, com mais de 80 anos (CALDERON, 1970, 97-98).

É bastante provável que o Pe. Ribeiro Rocha tenha estado envolvido de perto com esse mesmo problema que atingiu seu Arcebispo. Pois seu sentimento de equidade haveria de solidarizarse com os jesuítas, flagrantemente injustiçados pelo despotismo de Pombal. Ele, que tinha admiradores e amigos jesuítas. Ele, que desde seus estudos estava unido, de modo todo especial, aos Padres da Companhia de Jesus. Ele, que desempenhava o cargo de advogado da Santa Casa da Misericórdia e era o Protonotário Eclesiástico, lidando de perto com os problemas jurídicos que envolviam a Igreja. Dele, portanto, era de esperar uma solidariedade especial à causa jesuítica, quando até comerciantes ricos se tinham solidarizado e Ordens religiosas se tinham mobilizado em mutirão de ajuda e de orações comuns, em prol dos inacianos perseguidos injustamente.

Contexto jurídico de "Etíope resgatado"

Ribeiro Rocha situa-se num contexto de fermentação das leis pelo movimento liberal, que o Iluminismo e o Enciclopedismo iam introduzindo em Portugal. A Legislação portuguesa terá certa ressonância dos ideais iluministas, porém enquanto não interferirem negativamente no econômico. Assim, por exemplo, o problema da escravidão terá uma decisão legislativa diferente no que se refere a Portugal ou Brasil. Pois o Brasil não se podia sustentar economicamente sem a escravidão, como se afirmava. Dois pontos fermentam de modo especial a atividade legiferante: a dignidade da pessoa humana e a teoria da sociedade. Mas haverá todo um sistema de concessões à sociedade em detrimento da pessoa humana, conforme a ideologia dos legiferantes.

Em meados do século XVIII, época em que o Pe. Ribeiro Rocha publicava seu "Etíope Resgatado", havia em Portugal uma verdadeira invasão da assim chamada "literatura ímpia e revolucionária". Um dos principais focos atingidos por esse contagiante "vírus" era a intelectualidade, sobretudo da Universidade de Coimbra. Liase com avidez, procurandose escapar do olhar inquisitorial dos censores, toda uma literatura procedente da França que, como escreve Fortunato de Almeida, vinha "subvertendo a ordem social e atacando as doutrinas religiosas" (ALMEIDA, 1970, 350). Punhamse no crivo da reavaliação científica, sob o prisma do "novo saber", as bases mesmas da ordem social, sua organização, seu aparato jurídico. Era o bruxulear do "Século das Luzes". Eram as ideias da Ilustração que, procurando afirmar a razão humana e a autonomia do homem diante dos institucionalismos desumanizantes, aplicavam também um acento especial ao problema da escravidão. Submetiam-se a julgamento científico as próprias bases da escravatura. Para deter essa onda "subversiva" que ameaçava a ordem estabelecida em Portugal, a Corte régia procurou se armar dos instrumentos adequados. Como cérebro da estratégia de guerra contra a subversão da ordem social e das doutrinas religiosas foi encarregado o Intendente de Polícia Diogo Inácio de Pina Manique (ALMEIDA, 1970, 255). E o governo pombalino procurou avocar para si, em caráter privativo, a censura aos livros importados ou a se publicarem em Portugal.

Ao tempo de Etíope Resgatado, se ia enfocando a escravidão, principalmente a partir do Direito Natural. Entre outros argumentos com que se procurava destruir as bases jurídicas da escravidão vigente estava, em primeiro lugar, a "dignidade humana". A escravidão feria fundamentalmente essa dignidade do homem, "por aniquilar-lhe todos os direitos, toda a sua personalidade... aquilo que de mais elevado recebeu do Criador, que o fez à sua imagem, degradando-a por essa forma à condição dos irracionais" (MALHEIRO, 1976, 72). E a partir de Montesquieu, ou melhor, do seu "Espírito das Leis" (1748), atacavam-se diretamente todos os argumentos básicos, sobre os quais se erigia a escravidão. É bastante provável que Ribeiro Rocha tenha tomado conhecimento de tal obra. Ali se negava categoricamente um Direito, que decorresse da Natureza, de reduzir o prisioneiro de guerra ao estado de escravidão, ainda mais se essa fosse perpétua. Refutava-se o argumento de que os governantes tinham o direito a condenar alguém, qualquer que fosse o crime, à escravidão perpétua. Também se sustentava que a Lei Natural não dava o direito a que alguém fizesse um contrato de "se vender" em perpétua escravidão. Mas, sobretudo, partindo-se da dignidade da pessoa humana, se afirmava que a desigualdade natural entre os homens nunca poderia servir de argumento para legitimar a escravidão (MALHEIRO, 1976, 72). Uma coisa, porém, contra a qual investia Montesquieu, e que talvez tenha exercido influência indireta sobre o Pe. Ribeiro Rocha, foi aquilo que ele considerava inversão jurídica, ou seja, que a Religião e os costumes "se venerem em lugar das leis". Sobretudo a Religião, que "constitui uma espécie de repositório e permanência", servindo por isso de embasamento das leis. Tal inversão jurídica levava normalmente ao despotismo (MONTESQUIEU, 1759).

É de notar que o peso da argumentação do Pe. Ribeiro Rocha não estava na Religião, mas, sim, no Direito. Montesquieu reformulou a conceituação de Lei rejeitando o sentido de "mandamento proveniente de uma vontade legisladora". Para ele, a Lei derivava da natureza das coisas, numa normatividade intrínseca aos seres. Mas essa normatividade não se deduzia das essências abstratas e, sim, da realidade concreta, em que cada ser específico tinha suas leis próprias (MONTESQUIEU, 1759, 2, 25). Foi esse particularismo de cada realidade concreta que levou Montesquieu a afirmar: "Não escrevo para censurar o que está estabelecido em qualquer país. Cada nação encontrará nesta obra as razões de suas máximas" (MONTESQUIEU, 1759, 19). Montesquieu, portanto, inaugurou uma nova perspectiva na abordagem dos problemas sociais e políticos, excluindo os conceitos religiosos ou morais e rejeitando as teorias abstratas ou dedutivas (MONTESQUIEU, 1759, capa). Era, antes de tudo, da "constituição do nosso ser" que decorria o fundamento da lei, e não das determinações positivas dos legisladores.

Referindo-se à escravidão, sustentava Montesquieu: "A escravidão por sua natureza não é boa" (MONTESQUIEU, 1759, 213), pois, "como todos os homens nascem iguais, cumpre dizer que a escravidão é contrária à natureza..." (MONTESQUIEU, 1759, 216). E passava ele a desfazer os argumentos com que então se legitimava juridicamente a escravidão: o resgate de prisioneiros de guerra justa, a punição legal e autovenda dos devedores. Diz ele, categoricamente, que "esses motivos dos jurisconsultos não são razoáveis". Pois alegar a legitimidade do resgate de prisioneiros de guerra pelo fato de este salvar da morte o prisioneiro seria reconhecer a legitimidade do extermínio dos prisioneiros de guerra. E "se um prisioneiro de guerra não pode ser reduzido à escravidão, com muito menos razão os seus filhos" (MONTESQUIEU, 1759, p.213). Quanto ao argumento da autovenda, retrucava Montesquieu: "Não é verdade que um homem livre possa vender-se".

Há, no entanto, nessa condenação de Montesquieu à escravidão, duas afirmações que poderiam "inquietar as consciências" cristãs, como a do Pe. Ribeiro Rocha. É quando ele afirma que "o direito da escravidão surge do desprezo que uma nação tem por outra, desprezo baseado na diferença de costumes" (MONTESQUIEU, 1759, 214). E, sobretudo, quando ele assim se expressa: "Gostaria também de dizer que a religião dá aos que a professam um direito de reduzir à servidão os que não a professam, a fim de trabalhar mais facilmente por sua propagação" (MONTESQUIEU, 1759, 214). Ora, era mais ou menos esse ao argumento em voga no que tocava à escravização dos negros da África, argumento oficializado de modo especial por Nicolau V, em 1454. Foi precisamente essa justificativa que o Pe. Ribeiro Rocha procurou, em grande parte, desmontar mediante a autoridade do Pe. Luiz Molina S.J.

Uma fermentação "subversiva" da ordem social e jurídica, então vigente, tinha seu foco especial na Universidade de Coimbra. Ali, professores e alunos se entregavam avidamente à leitura dos livros "heréticos e subversivos", importados sub-repticiamente da França (ALMEIDA, 1970, 350). Essa fermentação iluminista que agitava a Universidade de Coimbra será instrumentalizada por Pombal, a partir da Lei de 18 de agosto de 1769, referente à reforma dos Estatutos da Universidade, reforma essa que se concretizará a partir da Lei de 28 de agosto de 1772. Estes Estatutos proclamavam a excelência das leis pátrias sobre as romanas, o que tocava o nativismo português quanto à influência subversiva vinda de fora. Insistiase na história do povo português e de sua "peculiar legislação" (MARTINS JUNIIOR, 1979, 3). Aceitavase o "novo saber", as ideias do "século das luzes", mas com a salvaguarda de peculiaridade da Nação portuguesa e de sua História, concretizada nos domínios de AlémMar. Nesse aspecto de "peculiaridade nacional", podiase muito bem inserir a escravidão negra como algo que fazia parte da própria história do povo português.

A Legislação portuguesa tinha, no seu processo originário, legitimado a escravidão dos africanos em decorrência do conflito com os maometanos, que escravizavam os prisioneiros cristãos (MARTINS JUNIIOR, 1979, 23). Ao lado desse fato bélico, houve uma fundamentação jurídica, que já vinha de tempos bem anteriores. O argumento mais invocado era o do "resgate dos prisioneiros de guerra justa". Estes prisioneiros, supostamente condenados à morte, encontrariam sua salvação no "resgate", ou em sua compra na qualidade de escravos. Esse fundamento jurídico estava envolto numa atividade comercial, o que lhe daria um grande incentivo, pois o escravo passava a ser uma "mercadoria" rendosa.

Em pleno século XVIII, quando começava a fervilhar todo um mundo de ideias referentes ao valor e à dignidade da pessoa humana, em Portugal eram estabelecidas leis, como a de 3 de março de 1741, que mandavam marcar com ferro quente um F no escravo fugitivo; se ele tornasse a fugir, que então se lhe cortasse uma orelha (MARTINS JUNIIOR, 1979, 35). E, em 24 de janeiro de 1756, um Alvará determinava que os escravos negros do Brasil que fossem encontrados com facas e armas proibidas, em vez da pena de 10 anos de galés teria a punição de 100 açoites ao pelourinho, repetidos por 10 dias alternados (SILVA, 1830, 502). Essa última determinação vinha causar profunda decepção face à expetativa, após a Lei de 6 de junho de 1755, de que, decretando-se a liberdade dos índios excetuavam-se os negros, mas que havia certa esperança, conforme as palavras do Rei: "Enquanto Eu não der outra providência sobre esta matéria". A referida determinação penal de 1756 demonstrava que "providências", relativas à liberdade dos escravos negros do Brasil não estavam na mente do Rei de Portugal, ou, mais precisamente, na do Marquês de Pombal.

É de lembrar que a lei de 6 de junho de 1755 estabelecia certas premissas libertárias que podiam ser também aplicadas aos negros. Pois se dizia que tal lei "restituía" aos índios do Brasil sua liberdade em vez de se falar em "concedê-la". Argumentavase que esta "restituição" se fundamentava na "planíssima [prova] que a seu favor resulta da presunção de Direito Divino, Natural, e Positivo, que está pela liberdade..." E acrescentava que a escravidão dos índios não tivera outra "razão, que a cobiça, e a força dos que os cativaram, e a rusticidade, e fraqueza dos chamados cativos". E concluía o Rei com palavras, que levavam, como dissemos, a uma expectativa de algo semelhante a ser decretado referente aos negros: "Desta geral disposição excetuo somente os oriundos de pretas escravas, os quais serão conservados no domínio dos seus atuais senhores, enquanto Eu não der outra providência sobre esta matéria" (SILVA, 1830, 369-376).

O espírito libertário que transparecia dessa Lei muito bem podia aplicar-se aos negros, pois o Rei não declarava extinta a escravidão como tal. O instituto da escravidão continuaria em seu vigor jurídico. O que o Rei fazia era declarar autoritariamente que as bases jurídicas da escravização dos índios eram ilegítimas. E isso porque não tinha legitimidade jurídica a dupla razão em que se fundamentava a escravização indígena: A "rusticidade" dos índios e a "cobiça" dos colonos. Ora, não era praticamente a mesma a situação dos escravos negros?... Por detrás da palavra "cobiça", inepta para fundamentar juridicamente a escravização, não estavam sintetizados os argumentos econômicos para a escravização dos negros? E por detrás da palavra "rusticidade" não estava implícito o pretenso direito de escravizar os negros por causa de uma suposta inferioridade, decorrente de sua negritude?

Se foi decepcionante a expectativa de que surgissem "providências" de 1ibertação dos negros do Brasil, quanto aos negros escravos de Portugal, surgiram logo algumas "providências" positivas. Havia certa esperança de que tais providências, mais cedo ou mais tarde, se estenderiam também ao Brasil. O Alvará de 19 de setembro de 1761 determinava que todos os escravos negros, trazidos para Portugal, ficassem libertos e forros, "sem necessidade de outra alguma Carta de manumissão e alforria, nem de outro algum Despacho, além das Certidões dos Administradores e Oficiais das Alfândegas dos lugares onde aportarem". Era a proibição expressa do tráfico negreiro para Portugal. E esta lei concluía com a ameaça de severas punições a quem a desrespeitasse, aplicando-se aos transgressores "as penas que por Direito se acham estabelecidas, contra os que fazem cárceres privados". E ia mais longe este Alvará de 1761 ao declarar que os transgressores eram passíveis de penas de Direito, reservadas aos que "sujeitam a Cativeiro os Homens, que são livres" (SILVA, 1830, 811-812).

Tal afirmação de que era ilegal, nos termos do referido Alvará, escravizar os negros, pois não se pode escravizar "homens livres", levaria a deduções bem maiores que a simples determinação dessa Lei. Sobretudo, quando ela soava no contexto das ideias da Ilustração, impugnando, como fizera Montesquieu, a escravidão em nome da dignidade do homem, e proclamando que não se pode escravizar o homem, que é livre por natureza. É também de destacar nessa lei a discriminação quanto à inferioridade que ela estabelecia em relação aos Domínios portugueses, no caso, o Brasil, face à metrópole lusitana. O referido Alvará de 1761 argumentava que o transporte de escravos negros para Portugal era chocante, diante das "leis e costumes de outras Cortes polidas", mas que nos Domínios portugueses elas eram necessárias para a agricultura e mineração (SILVA, 1830, 811-812).

A lei antitráfico de l76l foi complementada pelo Alvará de 16 de janeiro de 1775, que podia ser considerado a Lei da Abolição da escravatura em Portugal. O Rei argumentava que, apesar da lei de 1761 que procurava impedir "perpetuar nele [Reinos de Portugal e Algarves] a escravidão dos Homens pretos", "existem ainda algumas Pessoas tão faltas de Humanidade, e de Religião, que guardando nas suas casas Escravas, para pela repreensível propagação delas perpetuarem os Cativeiros por um abominável comércio de pecados, e de usurpações das liberdades dos miseráveis nascidos daqueles sucessivos, e lucrosos concubinatos, debaixo do pretexto de que os ventres das Mães Escravas não podem produzir Filhos livres, conforme o Direito Civil". Esta lei envolvia não apenas a declaração de "ventre livre" para os nascidos em Portugal, mas, até certo ponto, a negação da perpetuidade jurídica do "ventre escravo". Pois se argumentava que foi aplicado abusivamente o princípio jurídico do "fructus sequitur ventrem", tornando cativos "aos Descendentes dos Escravos, em que não há mais culpa, que a da sua infeliz condição de cativos". A "infâmia do Cativeiro" não pode se estender além do termo da correspondente infâmia com que são punidos os descendentes dos "mais abomináveis Réus dos atrocíssimos crimes de lesa Majestade Divina, ou Humana".

Postas estas premissas, o Rei determina que, a partir de então, todos os nascidos de mães escravas em Portugal serão livres e "hábeis para todos os ofícios, honras e dignidades, sem a nota distintiva de Libertos". Havia, porém, na fundamentação jurídica desse Alvará uma determinação de que a "infâmia do cativeiro" não podia passar além do bisneto. Era um precedente jurídico que poderia aplicarse muito bem ao Brasil; sobretudo quando o Rei concluía com a argumentação de que a distinção infamante de libertos era incompatível com "a União Cristã, e a Sociedade Civil faz hoje intolerável no Meu Reino, como o tem sido em todos os outros da Europa" (SILVA, 1830, 639-640). Toda essa argumentação que era jurídica - e que considerava uma desumanidade a escravidão e incompatível com o Cristianismo nos Reinos de Portugal e Algarves - por que deixaria de o ser no Brasil?

Se a argumentação subjacente nas leis da extinção da escravidão dos índios, em 1755, e a abolição do tráfico negreiro para Portugal levavam a conclusões favoráveis à libertação dos negros, o governo pombalino procurou salvaguardar-se de tais conclusões pela Lei da Boa Razão, de 18 de agosto de 1769. Essa lei interpretava a determinação das Ordenações do Reino [L.III.t.64], as quais diziam que "onde a Lei, estilo ou costume de nossos Reinos dispõem, cessem todos as outras Leis e Direitos..." (MARTINS JUNIIOR, 1979, 78). Por tal Lei se declarava que a Boa Razão, além dos primitivos princípios, fundamenta o Direito Romano e o Direito das Gentes, também "aquela boa razão que se estabelece nas Leis Políticas, Econômicas, Mercantis e Marítimas..." (MARTINS JUNIIOR, 1979, 79); e nessa Boa Razão as Nações Cristãs têm fundamentado suas Leis com "manifesta utilidade do aumento dos cabedais dos povos".

Sustenta Isidoro Martins Júnior que esta Lei da Boa Razão revolucionou o Direito Português "pela intervenção do elemento críticofilosófico na interpretação e aplicação das leis" (MARTINS JUNIIOR, 1979, 81). No que se refere à justificação da escravidão negra, eu diria que esta Lei da Boa Razão encontrou no expediente da "razão econômica" um álibi para todos os argumentos críticofilosóficos que, baseados na dignidade da pessoa humana, pudessem abalar os alicerces jurídicos da escravidão negra.

A publicação de "Etíope Resgatado" situase no auge do desfecho do processo de sequestro dos bens dos jesuítas e da sua expulsão. O Pe. Ribeiro Rocha devia, como dissemos atrás, estar envolvido nesses acontecimentos e, muito provavelmente, estaria ao lado dos jesuítas injustiçados. E terá fundamento a hipótese de que ele deve ter sido atingido pela onda de punições, que Pombal fez desencadear na Bahia contra os que não subscreveram servilmente suas ordens de sequestro e expulsão dos padres da Companhia de Jesus. Assim foram punidos por Pombal o Arcebispo D. Botelho de Mattos, o Desembargador Dr. José de Mascarenhas, o Secretário de Estado Dr. José Pires de Carvalho e Albuquerque e vários outros (NOTÍCIAS HISTÓRICAS, 1964, p.130).

A formação jurídica do Pe. Ribeiro Rocha em Coimbra, como grande parte de sua atividade, deve concretizarse sob o reinado de D. João V. Há, então, um "predomínio do poder real", enquanto que "o perfume da liberdade dos juristas desaparece" ao mesmo tempo que o "servilismo mais vulgar ocupa posição". E se alguma liberdade existe é para se escrever contra as pretensões jurídicas da Santa Sé, face aos Direitos reais (MARTINS JUNIIOR, 1979, 76). No período pombalino (17501777) que se segue, o que prevalece é o discricionarismo do Marquês de Pombal. Mas, por outro lado, sustenta Martins Júnior que Pombal fez "o enorme serviço de afastar delas [da monarquia e da civilização] os tentáculos perigosos da teocracia e da oligarquia aristocrática" (MARTINS JUNIIOR, 1979, 75-77).

Até ao mundo intelectual da Bahia deviam chegar também, sub-repticiamente, as obras "heréticas e subversivas", vindas da França. Em 1748, sai a lume "L'Esprit des Lois", de Montesquieu. Raymond S. Sayers estabelece certa relação entre a publicação de "Etíope Resgatado" e "L'Esprit des Lois" (SAYER, 1958, 98-100). Sustenta ele que o Pe. Ribeiro Rocha, embora não chegando a negar a validade jurídica de uma escravidão baseada no resgate dos prisioneiros de guerra "justa", como o faz Montesquieu, ataca as bases jurídicas da escravidão ao sustentar a injustiça das supostas guerras "justas", de onde provinham nossos escravos negros. Ele classifica tais pretensas guerras "justas" como, simplesmente, "atos de assalto e pirataria". E mesmo quando o Pe. Ribeiro Rocha chega à concessão de que "a escravidão negra é necessária à economia do reino", parece ter ele também se inspirado em Montesquieu, que admite que as leis podem "pôr os escravos em condições de comprar sua liberdade" e ao mesmo tempo "favorecer o pecúlio". Não podemos com argumentos comprobatórios, mostrar uma dependência, ou mesmo influência direta de Montesquieu sobre o P. Ribeiro Rocha. Em seu "Etíope Resgatado", na série de autores citados não figura, por razões peculiares, o autor de "L'Ésprit des Lois". Um ano antes da publicação do "Etíope Resgatado", saía a lume, em 1757, a obra do beneditino Domingos do Loreto Couto, "Desagravos do Brasil e Glória de Pernambuco". É de notar que Loreto Couto, ao falar do mulato Calabar, sustentava a igualdade dos homens, cujo valor deve se medir por suas virtudes, e não por sua origem.

Projeto abolicionista do Padre Ribeiro Rocha

Etíope Resgatado envolve, como dissemos, um projeto abolicionista. Um projeto, que se fundamenta no argumento jurídico. E por isso sofre as limitações do sistema jurídico de então, que legitimava o instituto da escravidão. Mas Ribeiro Rocha traz um algo mais, como ideia libertária, na reinterpretação das leis vigentes. E esse algo mais é, sobretudo, a aplicação do Tratado De Justitia, da Teologia Moral, ao domínio da escravidão.

A argumentação do Pe. Ribeiro Rocha, na sua investida contra a escravidão negra então vigente, começa pela referência à dignidade da pessoa humana. Essa investida se situa no contexto das ideias da Ilustração (Iluminismo), que conferia um acento todo especial à autonomia do homem e a seu valor ímpar em todo o domínio da Natureza. Lendo-se o Pe. Ribeiro Rocha, nesse apelo à condição humana, vilipendiada pela escravidão, vêm à mente as palavras de Montesquieu, então em vigor nos meios intelectuais: "Antes de todas essas leis, existem as da natureza, assim chamadas porque decorrem unicamente da constituição do nosso ser" (MONTESQUIEU, 1759, 216), e "como todos os homens nascem iguais, cumpre dizer que a escravidão é contrária à natureza". Afirma o Pe. Ribeiro Rocha que "a maior infelicidade a que pode chegar a criatura racional neste mundo, é a da escravidão; pois com ela lhe vêm adjacentes todas aquelas misérias, e todos aqueles incômodos, que são contrários e repugnantes à natureza, e condição do homem" (ROCHA, 1992, 4)

Montesquieu, em seu Espírito das Leis, procurara, como vimos anteriormente, eliminar o recurso ao argumento religioso, pois sustentava que a Religião, ao servir de embasamento às leis, termina tomando o lugar dessas e facilmente degenera em despotismo. O Pe. Ribeiro Rocha, no entanto, recorre à Religião para dar maior realce a essa "Natureza do Homem", da qual devem brotar as leis. Afirma ele que, sendo o homem "pouco menos que o Anjo, pela escravidão tanto desce, que fica sendo pouco mais do que o bruto" e "nascendo para dominar, e possuir, pela escravidão fica possuído, e dominado" (ROCHA, 1992, 8-20). Mas o argumento do autor de Etíope Resgatado vai mais longe, quando ele sustenta que o homem "sendo livre, pela escravidão fica sujeito". Era a afirmação categórica do Século das Luzes, de que todos os homens são, por natureza, livres.

Tal apelo do Pe. Ribeiro Rocha à dignidade da pessoa humana comoveu o próprio censor, Pe. M. Paulo Amaro S.J., que lastima, em suas palavras de aprovação, que os escravos negros sejam vendidos "como se não fossem almas remidas com o sangue de Jesus Cristo, tanto como as suas [dos patrões]". É a partir dessa dignidade humana, elevada pelo Batismo à dignidade de filiação de Deus e fraternidade em Jesus Cristo, que o Pe. Ribeiro Rocha assume as palavras do jesuíta Fernando Rebello, estabelecendo uma exigência fundamental. Essa exigência passa quase despercebida por vir em língua latina. Talvez de propósito a tenha citado em latim, diante do inusitado que ela envolvia. Apelando ao próprio Sumo Pontífice e ao Rei de Portugal, só os entendedores da língua latina iriam compreender sua afirmação: "Expediret maxime, non solum Summus Pontifex, sed etiam Rex Catholicus, praefatam legem favore fidei pro tota conquisitione Lusitana, quam primum ferrent, ad tollendas injurias, quae propter avaritiam fiunt in quamplurimis infidelibus in servitutem injustam redigendis" (75). (Seria de máxima conveniência que não somente o Sumo Pontífice, mas também o Rei Católico, o mais breve possível promulgassem a mencionada lei em favor da Fé para toda a Conquista portuguesa, a fim de afastar as injúrias que, por causa da avareza, se fazem em tão grande número de infiéis que estão sendo reduzidos à escravidão injusta). A "mencionada lei" de que se fala é que qualquer pagão, tendo recebido "o sagrado Batismo, fique livre da escravidão".

Ora, tal lei envolveria na prática a abolição da escravidão negra! Mas é aí que o Pe. Ribeiro Rocha faz concessão à realidade política e econômica da Colônia, ao afirmar que tal disposição legal, embora atingindo o objetivo sobredito, "prejudicava a subsistência, e continuação do comércio, aliás útil, e necessário ao Reino", o que tornaria tal lei difícil de ser estabelecida na prática (ROCHA, 1992, 49). Será que o autor faz tais concessões por serem a única via para conseguir a publicação de sua obra? O que ele afirma a seguir parece contraditório com o que ele irá argumentar, ao se referir à legitimação da escravatura, que não pode ser o "preço" para os africanos aceitarem o Cristianismo. O Pe. Ribeiro Rocha sustenta que sem o comércio do resgate dos escravos se prejudicava "o Reino, e conquistas no temporal, e no espiritual, prejudica o serviço de Deus, e bem das almas" (ROCHA, 1992, 50). E mais paradoxalmente arremata que "a fé, que se recebe no Batismo, faz o servo mais pronto, e fiel no serviço do seu senhor..." (ROCHA, 1992, 62).

Concessões semelhantes também fazia Montesquieu, procurando harmonizar o ideal de libertação com o "pecúlio", e para tal propõe a alforria mediante diversas modalidades de pagamentos. Coisa semelhante fará o Pe. Ribeiro Rocha no seu projeto de libertação, mediante o sistema de "resgate sob penhor". Nesta busca de harmonização entre a dignidade do homem e o fator econômico, o Pe. Ribeiro Rocha parece repetir o argumento tradicional, ao afirmar que por esta via do resgate "sob penhor" "estes miseráveis gentios trazidos a terras de Cristandade, recebem a santa Fé, e o sagrado Batismo com o que se livram da infame escravidão do demônio" (ROCHA, 1992, 119). Só que no argumento do Pe. Ribeira Rocha o Batismo é uma circunstância vantajosa concomitante.

Apesar dessa ambiguidade entre a exigência da libertação para o escravo ao ser batizado e a impossibilidade econômica de tal lei, o Pe. Ribeiro Rocha parece pender mais para a opinião do jesuíta Luiz Molina. Pois, diz aquele que os comerciantes do seu tempo iriam se opor a tal exigência de libertação, como se opunham ao tempo de Molina, "por se capacitarem de ser muito santa, e louvável caridade esta de conduzir infiéis, para receberem a Fé, e o Batismo, e andarem nutridos nas nossas terras" (ROCHA, 1992, 51).

A falta de lógica interna na argumentação do autor do Etíope Resgatado leva à hipótese de uma imposição da censura pombalina, no sentido de ser intercalada a opinião acima. Pois logo após recorre o Pe. Ribeiro Rocha ao jesuíta Fernando Rebello, para desfazer o argumento em voga, não só no mundo dos comerciantes, mas também em meios eclesiásticos. Cita ele o Pe. Rebello, ao sustentar "que por meio de injustiças não quer Deus a conversão dos infiéis... e que não pode haver maior iniquidade, do que vender a cada um deles a redução á Fé, e a recepção do sagrado Batismo, a troco de uma injusta, e perpétua escravidão" (ROCHA, 1992, 52).

O Pe. Ribeiro Rocha retoma a argumentação da repugnância da escravidão à natureza do homem quando trata da igualdade de todos os homens. Sustenta ele que a natureza constituiu os escravos no mesmo grau de igualdade com os patrões (ROCHA, 1992, 52). E cita ainda Sêneca, ao lembrar aos patrões: "Adverte que estes miseráveis, que a fortuna meteu debaixo de tua sujeição, escravos são, mas também são homens". Portanto, "olha que esse a quem chamas teu escravo, nasceu da mesma sorte, que também tu, sendo senhor, nasceste; goza do mesmo Céu, da mesma respiração, e da mesma vida que tu gozas; e enfim hás de ter a mesma morte, que também ele terá" (ROCHA, 1992, 95-96).

Nesta citação de Sêneca, apresenta o Pe. Ribeiro Rocha uma formulação muito mais expressiva da igualdade humana que a de Montesquieu. E mais uma vez parece desfazer o argumento deste, de que a Religião ao fundamentar as leis pode facilmente levar ao despotismo. E por isso Pe. Ribeiro Rocha arremata com essas palavras: "Somente lhe faltou [a Sêneca] dizer: que tem o mesmo Pai do Céu, e teve o mesmo Redentor, e com o preço do mesmo sangue de Jesus Cristo, tu, e ele foram libertados da infame escravidão de Satanás" (ROCHA, 1992, 96).

Do argumento retirado a Sêneca, ele passa para o depoimento dos próprios escravos negros do seu tempo, os quais manifestavam uma consciência de igualdade, sobretudo à luz do seu Cristianismo. Cita ele como os escravos, ao serem humilhados pelos patrões mediante palavras que expressavam sua inferioridade, "alegam a seu favor, que também têm alma como os brancos, e que Cristo Senhor nosso também padeceu, e morreu por eles; e que nas Igrejas, senhores, e escravos, todos comungam na mesma mesa" (ROCHA, 1992, 96). O Pe. Ribeiro Rocha, como dizíamos atrás, se é um pioneiro do abolicionismo paga, no entanto, o tributo de sua temporalidade. Toda a ordem jurídica de então admitia a legitimidade da escravidão, em determinadas circunstâncias especificadas pela lei.

Também no domínio do Direito eclesiástico, era a escravidão admitida a partir do Direito Natural, do Direito das Gentes, do Direito Romano, de determinada leitura bíblica, da praxe eclesiástica, de bulas pontifícias, etc. Costumavase especificar toda uma série de argumentos legitimadores da escravidão, mas que o Pe. Ribeiro Rocha deixa de lado, limitandose apenas a três argumentos legitimadores, aceitos pela ordem jurídica em vigor. Estes argumentos diz ele derivar do "direito natural e das gentes". Primeiramente, guerra justa, ou seja, os prisioneiros de tais guerras, que ao invés de serem mortos seriam poupados, se bem que reduzidos à servidão. Uma guerra para legitimar a escravidão devia ter o caráter jurídico e moral de "justa", conforme a especificação da lei, mas também devia ser "pública e verdadeira", envolvendo os governantes dos povos em conflito.

Em segundo lugar, era também fundamento jurídico para a escravidão a punição por delito grave e "proporcionado à pena de privação da liberdade". E, em terceiro lugar, o contrato de venda, que ele assim especifica: "Aquele, a quem seu pai, por suma indigência, e necessidade extrema vendeu, na falta de outro remédio, para suster os alentos vitais que às violências da fome se estavam finalizando" (ROCHA, 1992, 104-105). Limitandose apenas a estes três "títulos justos", o Pe. Ribeiro Rocha deixa de lado outros argumentos jurídicos em voga, como a necessidade do bem comum, o direito de propriedade, a origem escrava, o direito de autovenda, etc. Os três títulos a que ele se limita são, em suma, a privação da liberdade ao invés da privação inevitável da vida. Só a vida é que seria um bem maior que a liberdade. O célebre argumento religioso, tão em voga desde a bula de Nicolau V "Romanus Pontifex" (1454), de que o se tornar cristão era um bem maior a justificar a escravidão dos gentios, o Pe. Ribeiro Rocha não o aceita como argumento legitimador, mas apenas o tolera como consequência decorrente da servidão dos pagãos africanos pelos cristãos europeus.

Ilegitimidade da escravidão em vigor

É afirmação categórica do Pe. Ribeiro Rocha que a escravidão, tal qual ela existia em nossa realidade brasileira, era ilegítima, pois não se concretizavam os fundamentos jurídicos que a legitimariam. Não se tratava, portanto, de "guerras justas", mas de simples "assaltos e atos de pirataria", já que "os milhares de Pretos Africanos [eram], barbaramente cativados por seus próprios compatriotas, por furtos, por piratarias, por falsidades, por embustes, e por outros semelhantes modos..." Esta realidade é tão corriqueira que, em caso de dúvida sobre se determinados escravos eram "bem cativados", a presunção deveria estar pela injustiça de tais escravidões (ROCHA, 1992, p.intro). Esta injustiça era tanto maior quando se pretendia fazer a permuta da recepção do Batismo "a troco de uma injusta e perpétua escravidão" (ROCHA, 1992, 38).

Diante desta constatação, a exigência do Pe. Ribeiro Rocha é clara: deve-se restituir a liberdade roubada aos negros africanos. Ele faz, no caso, a aplicação do tratado da Teologia Moral, De Justitia, no que se refere ao dever de restituição, vulgarmente orientada às coisas e valores monetários. Ele aplica também o dever de restituição à "liberdade usurpada". E continua especificando, pelo casuísmo moral vigente, as diversas modalidades de restituição. E exige também o ressarcimento dos danos causados pelo roubo da liberdade dos negros africanos. Nestas exigências de restituição, estabelece ele uma distinção minuciosa das várias classes de donos de escravos: os de "má fé", os "em dúvida", os de "boa fé", os em "estado de ignorância". Por fim, faz também uma distinção minuciosa entre traficantes, vendedores e compradores, além dos possuidores (ROCHA, 1992,52-53).

Tese de grande importância é a que estabelece o Pe. Ribeiro Rocha negando a legitimidade do princípio "fructus sequitur ventrem" (o fruto segue o ventre), ou seja, filho de escrava é escravo. Nega ele categoricamente que a escravidão se possa transmitir de mãe para filho. E diz expressamente que é um absurdo jurídico o fato de que, para os escravos, "sendo do sexo feminino, se transfunda a escravidão em todos os seus descendentes" (ROCHA, 1992,27-28). Daí que as exigências da restituição da liberdade usurpada envolvem a restituição dos "partos das escravas", mesmo que os filhos tenham nascido quando o patrão ou possuidor estava em ignorância e boa fé (ROCHA, 1992, 29-30).

O Pe. Ribeiro Rocha justifica a sua tese, afirmando que "os frutos das escravas são os seus serviços, e não os seus partos" (ROCHA, 1992, p.intro). Esta argumentação ele a coloca no contexto real, em que o patrão tem o "penhor" e não o "domínio". Nesse contexto, "sendo escravas, os seus partos nascem ingênuos e livres de toda sujeição" (ROCHA, 1992, 46). Faz, porém, o autor de Etíope Resgatado certa concessão prática, ou seja, admite que "fiquem [os filhos das escrava] servindo, e obedecendo a seus patronos (!), até terem a idade de catorze, ou quinze anos; não por escravidão, nem por penhor, e retenção, senão somente por recompensa e gratificação do benefício da criação, e educação, que deles receberam" (ROCHA, 1992, 48).

Se os filhos de escravas aprendem algum ofício sob a tutela do seu "patrono", ficarão sob tutoria até 25 anos, como recompensa. O autor de Etíope Resgatadorelembra nessa argumentação o princípio vigente de que "assim como por Pai, e Mãe, não somente se entendem os que o são naturalmente por via de geração, senão também os que o são civicamente por via de possessão; e assim, e do mesmo modo, por filhos não somente se entendem os gerados, senão também os possuídos" (ROCHA, 1992, 53).

Teria o Pe. Ribeiro Rocha sofrido influência da leitura de Montesquieu, que nega categoricamente o principio jurídico legitimante da escravidão dos filhos das escravas: "fructus sequitur ventrem"? Aliás, a legislação portuguesa irá especificar melhor esse princípio da transfusão da escravidão, via sexo feminino, no Alvará de 16 de janeiro de 1775. Determinará este que é inadmissível a perpetuidade da transfusão da escravidão, quando aquela "infâmia" não era determinada como punição dos crimes mais atrozes, como os de lesa Majestade Divina e Humana. Por isso, determinará o Rei que a "infâmia da escravidão" não possa passar aos netos. E no que toca ao dito Alvará, foi ele a "lei de ventre livre" para Portugal, um século antes que fosse aplicada no Brasil (SILVA, 1830, 639-640). O sentimento humanitário que se escondia atrás desse Alvará, aplicado tão somente em Portugal, não teria, infelizmente, sua ressonância em nossa realidade brasileira.

Premissas de uma libertação maior

Há uma falta de lógica entre as premissas libertárias postas pelo Pe. Ribeiro Rocha e a conclusão a que ele chega. Esperarseia muito mais dos argumentos que ele lança para condenar a escravidão vigente, caracterizada como "pirataria e roubo". Esperarseia também uma conclusão muito mais corajosa de quem, logo de início, declara a escravidão incompatível com a dignidade do homem. No entanto, mister se faz não esquecer a temporalidade em que se enquadra o Pe. Ribeiro Rocha. Vejamos sinteticamente estas premissas libertárias, postas pelo autor do "Etíope Resgatado":

a) A escravidão vai de encontro à dignidade da pessoa humana, que por seu Criador foi constituído senhor de toda a criação e colocado pouco abaixo dos anjos; a liberdade é uma expressão típica dessa dignidade, conforme expõe Rocha no Argumento introdutório. Embora admitindo, em alguns casos excepcionais, a legitimidade do instituto escravocrata, no entanto, a escravidão existente entre nós não satisfaz os requisitos básicos para sua legitimidade, e por isso é ilegal. Reduz-se a uma usurpação manifesta da liberdade alheia [p. 3-4 do Etíope].

b) A lei em vigor não dá direito à perpetuidade da escravidão, através da via do parto, ou seja, pela via feminina. E, portanto, na escravidão concreta que vigora entre nós não se aplicaria tal infâmia da servidão. E, em suma, esta transfusão não tem fundamento de legitimidade na natureza das coisas [p.75].

c) Diante desses pressupostos, a escravidão vigente no Brasil deve ser tratada como os crimes de assalto, roubo e pirataria. Não há outra qualificação para a escravidão tal qual ela se processa, a principiar de sua origem na África [p. 15].

d) E ao se tomar em consideração a ordem cristã, em que se insere a nossa escravidão dos negros no Brasil, pode-se afirmar que ela vai de encontro à redenção universal de Jesus Cristo. Na comunidade cristã não deveria haver barreiras de diferenciação entre patrões e escravos [p. 64-65 e p.72-73].

e) Na escravidão existente no Brasil, concretiza-se o que os tratados De Justitiaqualificam de negociação com coisa alheia, ou seja, com a liberdade dos negros [p.15].

f) Os traficantes e negociadores de escravos não têm escusa de estarem de "boa fé", pois, excetuados um ou outro caso de "ignorância invencível e total", eles estão na sua globalidade em "má fé" [p,13,61-62].

g) Admitida esta "má fé", pode-se afirmar que tais traficantes e comerciantes estão em pecado mortal e em estado de condenação [p.12-13].

h) Traficantes e negociadores estão obrigados, sob pecado grave, a se absterem deste comércio de escravos, uma vez que se faz impossível averiguar a legitimidade de tal escravização [p. 21].

i) Além disso, os comerciantes têm a obrigação grave de restituir a liberdade injustamente usurpada aos negros da África. Tal restituição envolveria não somente a liberdade usurpada aos negros, mas também "os partos das escravas" [p. 17-18; 56-57 e 61].

j) E não basta a simples restituição da liberdade roubada, pois traficantes e comerciantes têm a obrigação igualmente grave de ressarcirem os danos causados aos negros injustamente escravizados [p. 17-18].

k) E por fim, os próprios compradores de escravos, se estão de "má fé", quanto à legitimidade de tal escravização, ou se estão em dúvida sobre a sua justiça, têm também obrigação grave de restituir a liberdade a tais escravos assim comprados [p.23].

Todos esses princípios estabelecidos pelo Pe. Ribeiro Rocha não eram, nada mais, nada menos que os princípios do tratado da Teologia Moral De Justitia, referentes ao furto e ao roubo de coisas materiais, aplicados ao caso dos escravos injustamente roubados em sua liberdade. Daí, o perigo da tese levantada pelo Pe. Ribeiro Rocha. Ninguém poderia acusá-lo de ideias heréticas e subversivas. E a sua argumentação se fundava não em citações de Montesquieu ou de outros autores tidos como "subversivos", mas sim nos autores indiscutivelmente aceitos na esfera da Teologia e do Direito, como o Pe. Luiz Molina S.J., o Pe. Fernando Rebello S.J., Mendes Arouca, João Azor e tantos outros. Os livros desses autores tinham recebido todas as aprovações da censura eclesiástica e governamental, e tinham peso de autoridade na Universidade de Coimbra. Se era citado algum autor fora desses, era justamente Sêneca, que escapava de qualquer pecha de subversivo.

Resgate dos escravos sob penhor

O Ribeiro Rocha das mencionadas premissas corajosas não parece o mesmo da conclusão que se segue. Tem-se, à primeira vista, a impressão de concessões ilógicas ou enxertos sob pressão de censores, para viabilizar a publicação do seu livro. Em todo caso, convém situar o Pe. Ribeiro Rocha no seu tempo, ou seja, nos meados do século XVIII. Toda a ordem jurídica da época admitia a legitimidade do instituto-escravidão. Além disso, ele tinha sob os olhos o contexto econômico da Colônia, pelo que era simplesmente inadmissível excogitar-se uma agricultura e mineração sem o braço escravo. Além disso, o próprio braço escravo era uma mercadoria rendosíssima para o comércio da colônia.

Os autores "heréticos e subversivos" da época, que negavam a legitimidade da escravidão de modo absoluto, não poderiam ser invocados, pois inviabilizariam a publicação de sua tese. Além disso, apoiar-se em autores "subversivos" era o mesmo que incorrer no crime de subversão. É dentro deste contexto que ele tira uma conclusão, em que procuraharmonizar suas premissas corajosas com uma realidade aparentementeintocável. Não se há de negar que ele tenha feito concessões, mas mesmo assim sua conclusão, aliada às premissas colocadas, são revolucionárias para a época. Abalavam de fato os fundamentos jurídicos da escravidão reinante e envolviam uma séria ameaça de diminuição do comércio escravista. Estabelece ele o seguinte expediente para harmonizar a libertação dos negros e o comércio do resgate dos escravos. Admite que, diante das premissas lançadas, "se não podem comerciar, haver e possuir estes Pretos Africanos por título de permutação, ou compra, com aquisição de domínio". Porém, admite também a possibilidade de um resgate [compra] em vista de uma libertação paulatina. Por este resgateou redenção, só se adquiria o direito de penhor e retenção, não de domínio. Tal resgate se orientava a uma libertação, a partir de determinado tempo de serviços ou de compra da liberdade por dinheiro [p. 68-69 e 75]. Quanto ao tempo de serviço para compensar mediante trabalho o seu resgate, Pe. Ribeiro Rocha, citando o Direito Romano, escreve que este determinava cinco anos. Mas comenta que "estes anos não sejam cinco, como esta lei [romana] determinou nas circunstâncias daqueles tempos, e lugares do Império Romano, em que os nativos eram brancos, e muito avantajados os seus serviços" [p.80]. Sustenta ele que este tempo de serviço "pode chegar a vinte anos, mas os não pode exceder" [p.98].

Tal espaço de tempo de serviço envolve uma concessão ao comércio escravocrata, pois, acrescenta ele, que "não sendo assim, não faz conveniência dar cem mil réis, e mais de cem mil réis, como vulgarmente se dão por cada um" [p. 99-100]. É realmente uma concessão pouco lógica, porque ele escreve que o jornal (pagamento diário) de um pedreiro, de um carpinteiro, de um lavrador livre era um tostão, ou seja, cem réis [p. 310-311]. E este preço ele arbitra como base do trabalho diário do escravo, para gratificação "competente", que "se lhe deve meter nas mãos, ao fim do seu tempo de serviço" [p. 309-311]. Ora, sendo 100 réis a diária de um escravo colocado ao nível dos outros trabalhadores correspondentes, seu ganho anual, sem contar com os domingos, seria de mais de 30 mil réis. E, portanto, uns vinte anos de serviço seriam 600 mil réis. Por outras palavras, bastavam três anos e alguns meses para perfazerem os ditos 100 mil réis. Descontados, é bem verdade, os direitos alfandegários e os vários impostos, as perdas sofridas com os escravos mortos, os lucros dos traficantes e comerciantes, os custos da viagem, o sustento do escravo pelo patrão, o ensino de ofícios aos escravos - mesmo com todos estes descontos, os 20 anos ainda constituem uma concessão ao comércio escravista.

Outra modalidade de libertar os escravos era a compra da alforria, através de determinada soma de dinheiro,que Ribeiro Rocha não determina, parecendo deixar como termo de referência o que as leis vigentes arbitravam. Esta compra da alforria, dispondo o escravo do dinheiro correspondente, era um direito sagrado que o patrão deveria respeitar e atender. Afirma ele: "Todo o tempo, que oferecerem o seu valor, ao preço do seu resgate, se lhe deve aceitar, e dar liberdade, e a isso podem os seus possuidores, se renuírem, ser compelidos pela justiça" [p.75-76]. O que, porém, nos parece de maior importância é o fato de que por este expediente do Pe. Ribeiro Rocha o escravo se constitui autor direto de sua própria libertação. Esta não lhe será concedida como um favor, mas sim como uma exigência de justiça. O escravo passa a ser detentor de um direito que o coloca praticamente no nível dos que, então, eram classificados como" jornaleiros".

Obrigações especiais dos patrões

Três obrigações básicas estabelece o Pe. Ribeiro Rocha para o patrão, ao libertar os seus escravos: não libertar os escravos de mãos vazias, não lançar ao desamparo o escravo enfermo ou idoso, e declarar livres os escravos por ocasião da morte do patrão. Após o tempo de serviço requerido para sua libertação, "repartiremos com ele algum dinheiro, ou outra coisa, conforme nossas possibilidades, de sorte que não saiam de nossa casa totalmente com as mãos vazias..." [p.305]. Esta "gratificação", como denomina o Pe. Ribeiro Rocha, decorre de um dever de justiça, pois ele a compara com o "salário" dos trabalhadores livres: "assim como se não pode despedir o jornaleiro, sem se lhe pagar o merecido jornal no fim do seu trabalho, assim também se não deve despedir o escravo no fim de sua servidão, sem lhe meter nas mãos o competente agradecimento" [p.309].

Um dever especial que vincula os patrões é o de não lançarem na rua da amargura e ao desamparo "os escravos enfermos e velhos que completarem seu tempo de serviço". É um dever e não apenas um conselho: "E se o escravo se achar enfermo, ou estiver já velho ... com muito maior razão o devemos conservar" [p.315]. Como jurista, ele apela mais para as exigências de justiça que para os conselhos de caridade. Por fim, há uma recomendação toda especial referente à libertação dos escravos: "não deixar plenamente livre por sua morte [do patrão] oescravo bom, que lhe foi fiel; isso seria, além de obrigação de caridade, faltar também às obrigações de justiça, não lhe pagando o que rigorosamente lhe deve, e defraudando-o do que por direito lhe compete" [p.323]. Mas este dever se estende também a qualquer outro "dos que o servem na forma comum e ordinária", como um ato de benevolência, benignidade, amor fraterno "que se deve a qualquer próximo" [p.322-323].

Ribeiro Rocha, um "abolicionista" ou um "reformista"?

Toda leitura histórica está condicionada ao "lugar" do historiador e à sua ótica pessoal. Julgo-me no mesmo "lugar" de leitura histórica de Paulo Suess, ou seja, no "lugar" dos oprimidos e esmagados. Mas nossa ótica de leitura, como já dissemos atrás, apresenta uma diferença fundamental. É que Paulo Suess faz uma leitura perfeccionista, ou seja, raciocina a partir da exigência básica de perfeição total, para Etíope Resgatadopoder ser considerada "abolicionista". Como Ribeiro Rocha fez concessões ao sistema escravista da época, ele o qualifica simplesmente de "reformista".

A leitura "reformista" de Paulo Suess

Deve-se a Paulo Suess, como dissemos atrás, a reedição de Etíope Resgatado(Ed. Vozes, Petrópolis, 1992), que é, aliás, a primeira reedição dessa obra a partir de sua edição princeps(Lisboa.,1758). Escreve ele que conseguiu localizar apenas cinco exemplares desse livro em todo o mundo: Em The British Library (Londres), na Brasilienbilbiotek(Stutgart, Alemanha), na Biblioteca Nacional de Lisboa (2 exemplares) e na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Aliás, em todo o Brasil foi o único exemplar que ele conseguiu localizar (p. VIII). Mas menciona Suess que em tempos passados havia no Brasil alguns outros exemplares: no Mosteiro de S. Bento e no Convento de S. Antônio, no Rio de Janeiro, além do exemplar da Biblioteca Imperial (p. XX). Na Introdução crítica à mencionada reedição, Suess rejeita categoricamente a atribuição de "abolicionista" conferida a Ribeiro Rocha. Para ele, o autor de Etíope Resgatadonão passou de um simples "reformista". A classificação de Ribeiro Rocha como "revolucionário" foi feita por "muitos que não tiveram oportunidade de ler a obra e deixaram-se seduzir por seu título programático" (p. .XI-XII). Ao contrário desse mito abolicionista, "o Etíope Resgatado não representou um grito de consciência e Manuel Ribeiro Rocha não era nenhum profeta" (p. XLII). Faz ele exceção para Ronaldo Vainfas, que "é provavelmente um dos poucos que se debruçou sobre o texto" e que nega a Ribeiro Rocha a classificação de "abolicionista" (p. XXV). E passa Suess a desfilar seus argumentos em defesa de tal tese:

a) Ribeiro Rocha apresenta a "proposta de uma escravidão temporária que garante os mesmos lucros, e, portanto, não assusta os senhores da Casa Grande" (p. XI).

b) Sua obra tão somente acrescenta "um fundamento jurídico de um título legal" (ib.).

c) A "libertação" proclamada pelo Etíope Resgatado "é precedida de 20 anos de trabalho que garantem, através do lucro do senhor, a continuidade da obra salvacionista da escravidão" (p. XII). Libertar os escravos depois de 20 anos, ao invés de 5 de serviço, equivalia para os patrões o lucro de 3 escravos com essa concessão. (p. XLV). Tal libertação, sugerida por Rocha, está na categoria da lei dos sexagenários, ou seja, na vantagem de fugir à responsabilidade para com os escravos velhos (p. XLVI).

d) Ribeiro Rocha declara que a "escravidão da maior parte dos cativos é injusta", mas, logo depois, esvazia tal declaração, "por sofismas jurídicos e oportunistas" (p. XII).

e) A própria lei de ventre livre, proposta por Rocha (I, 57), não foi acompanhada da exigência de "proibição de tráfico negreiro" (p. XIII).

f) O autor do Etíope Resgatado faz a exigência jurídica de libertação para os escravos batizados e, apesar disso, o autor tenta mostrar, para o foro interno, o modo válido de negociação da propriedade sobre o cativo" (p. XIV).

g) O expediente de mudar a escravidão em regime de serviço sob penhor envolve toda uma série de argumentos oportunistas. "O comprador precisa apenas alterar a intenção". Ao invés do propósito de "comprar e adquirir o domínio" dos escravos, o comerciante basta mudar o intuito para a aquisição e retenção dos cativos, "no seu serviço e em penhor" (p. XIV).

h) A única transformação que Rocha introduz é a "mudança de título injusto de domínio em título justo de penhor, e a mudança da escravidão perpétua em servidão temporal" (p. XV).

i) Suess vai além, entrando na intenção de Ribeiro Rocha ao escrever Etíope Resgatado: "O propósito do autor não era de escrever um manual que ensinasse aos escravos a conquista de sua liberdade, mas uma catequese de comiseração" (p. XVIII).

j) Diante de tais premissas, sentencia Paulo Suess: o Etíope Resgatado não foi uma obra revolucionária "e seu autor tampouco um profeta" ( p. XIX). Rocha não propõe a abolição do tráfico negreiro, mas tão somente uma "via média". Sua bandeira do resgate"era uma arma ideológica já experimentada há séculos para declarar a escravatura uma tarefa humanitária, um serviço a Deus e ao Rei" (p. XXVI). Rocha, com todo um aparato jurídico a fundamentar sua tese, apenas teve a pretensão de "provar com erudição escolástica e lógica jurídica" (p. XXVII).

k) E passa Paulo Sues a demolir toda a fundamentação bíblica, patrística, teológica e jurídica de Etíope Resgatado. As citações bíblicas demonstram que "Revelação, tradição e razão, as três fontes clássicas da teologia cristã, não são inocentes", elas podem degenerar em "ideologia das classes dominantes " (p. XXVIII). A atitude de Rocha, tranquilizando os senhores de escravos, não representa "a ética bíblica e sua opção pelos pobres e outros" (p. XXIX). E acrescenta Suess: "o bom tratamentodo escravo como amortização a longo prazoestá dentro da lógica comercial e não pode ser confundido com ética cristã" (ib.). E no que se refere à citação dos Padres da Igreja, ela "é um exercício escolástico de erudição e legitimação".

l) Além disso, Rocha manipula suas fontes. "O argumento de Ribeiro Rocha não emerge de suas fontes. As fontes estão oportunisticamente a serviço dos seus argumentos" (ib.) Suess elencou mais de 100 nomes de autores citados por Rocha.

m) Um fato histórico a que recorre Suess em favor de sua tese é a circunstância de Ribeiro Rocha ter "silenciado" tantos defensores da causa dos escravos oprimidos (Ib.). E acrescenta: que "as ausências significativas dos que não se conformaram com a escravidão, merecem um trabalho sobre a ideologia e profecia num regime escravocrata à parte" (p, XXX).

n) E não vê ele, na raridade de Etíope Resgatado, um sinal de atitude pombalina de "ostracismo" da obra de Ribeiro Rocha, mas atribui tal raridade ao possível fato de que "toda, ou a maior parte da edição, fosse transportada para o Brasil, onde estavam de maneira especial os interessados (p. XX). Escreve ele que, em Lisboa, não encontrou nenhuma menção a Rocha nas seções da Real Mesa Censória e do Desembargo do Paço. Mas disso não tira nenhuma conclusão sobre uma possível atitude governamental de "silenciar" tal obra.

o) Para ele, Etíope Resgatado"não chegou a exercer qualquer impacto na opinião púbica ou nos meios governamentais" (p. XXIV). Como também "em meados do século XVIII não se ouviu nenhuma voz profética em defesa dos escravos negros que complicasse a relação entre o poder temporal e espiritual do Brasil (p. XLII).

p) E conclui Suess que a ideia de Ribeiro Rocha ter sido um "abolicionista" foi um mito que resistiu por muito tempo "contra o próprio texto" (p. XXIV). E citando J. Hoeffner, ao referir-se a Molina, aplica Suess suas palavras também a Rocha, o qual embora lamentasse a triste situação dos escravos, no entanto, procurou tranquilizar as consciências dos seus senhores: "Estamos assistindo a uma capitulação muito duvidosa diante do peso dos fatos consumados" (XXIX). E arremata: "Num discurso que é ao mesmo tempo idealista e prático, Ribeiro Rocha tentou ampliar o espaço da legalidade e traçou horizontes de uma consciência possível no interior do sistema colonial e escravocrata" (p. XLVII).

Por que uma leitura "abolicionista" do Etíope resgatado ?

Lembremos que a nossa leitura "abolicionista" de Etíope Resgatado se situa nessa visão de "um ideal embrionário", que traz em si o germe de sua plenificação. Aliás, essa diversidade de leituras da obra de Ribeiro Rocha faz-me recordar a historiazinha dos dois homens que estavam tomando cerveja em um bar. Os dois copos estavam com 50% de bebida. O primeiro olhou para o copo e lastimou que ele "já estava meio vazio". Enquanto o outro retrucou: Qual nada, "o copo está meio cheio". Foram duas leituras diversas de uma mesma realidade. O que distinguia os dois era "a ótica" sob que se leu. A leitura "reformista", feita a partir de uma análise da obra de Ribeiro Rocha, se fundamenta no mesmo texto real da "abolicionista". O que faz a diferença entre ambas é o critério adotado.

Mas passemos a nossa conclusão "abolicionista". Ao longo da exposição, já demonstramos o porquê dessa nossa leitura "libertária". Igualmente já demonstramos o outro lado da obra de Ribeiro Rocha. Concluímos que o autor de Etíope Resgatadofez uma série de "concessões táticas" para que sua obra passasse pela censura do governo pombalino, bem como se tornasse "viável". E tais concessões, dentro de tal hipótese, não partiam do intuito de favorecer os comerciantes de escravos em sua ambição de lucros, com a tranquilização de suas consciências e perpetuação do regime jurídico escravocrata.

Ao contrário de Paulo Suess, somos de opinião de que Ribeiro Rocha teve uma atitude "revolucionária" ao postular, apoiado no jesuíta português P. Fernando Rebello: "seria da máxima conveniência que não só o sumo pontífice mas também o rei católico propusessem o mais rápido possível a referida lei [de libertação dos escravos batizados] em favor da fé para toda a jurisdição lusitana, a fim de obstar as injustiças que por causa da avareza são cometidas contra grande número de infiéis ao serem reduzidos à escravidão" (Etíope, p. 49). Esta atitude pode ser tida como "revolucionária" porque, para a época, era ela considerada ofensiva à Majestade Real e à intocabilidade de Sua Santidade, o Papa. Pois ninguém julga o Rei, muito menos, o Sumo Pontífice, admitia-se pacificamente. As leis procediam das "piíssimas intenções" d'el Rei Nosso Senhor, ou dos sábios e santos intuitos de Sua Santidade. E Ribeiro Rocha estava como que declarando uma omissão dos supremos legisladores - o Rei nosso Senhor, e Sua Santidade, o Papa - ao sugerir que tomassem providências para "obstar as injustiças" do tráfico negreiro. E, sobretudo, quando "moralmente falando, não há outra via, por onde se atalhem todos aqueles excessos nesta matéria" (ib.).

Diante da "impossibilidade moral" desses dois supremos legisladores de providenciarem tal lei e da impraticabilidade de uma tal abolição, Rocha vai intentar o expediente do "serviço sob penhor", do qual já falamos detalhadamente atrás. Foi essa atitude uma capitulação? De alguma maneira, sim. Uma capitulação diante de "um ideal impossível". Mas sua capitulação não envolveu a atitude de depor as armas, mas sim de contornar a situação em busca de um horizonte "possível" de esperança. Sua meta final não será "a perpetuação do regime escravocrata", mas, sim, a "libertação" dos escravos negros.

E ainda mais. Ribeiro Rocha, ao dispor a abolição do instituto do ventre escravo, propunha uma via de limitar a perpetuação do regime escravista. O autor de Etíope Resgatadonão invoca, propriamente, a promulgação de uma lei de "ventre livre", pois a praxe do "ventre escravo" não tinha para ele base jurídica sustentável. O que ele defende é o reconhecimento desse absurdo jurídico: os partos não são frutos das escravas; os frutos jurídicos destas sãos seus serviços, e não os seus filhos. A proclamação da nulidade jurídica da lei de do ventre escravo foi também uma atitude "revolucionária" de Ribeiro Rocha. E ele não apresentou um "alibi" para substituir o princípio de que "o fruto segue o ventre" (fructus sequitur ventrem). Igualmente sua proposta de transformar o regime da escravidão em contrato de trabalho foi uma atitude revolucionária e inovadora. Pois, no sistema de "contrato de trabalho", o escravo, de certo modo, perdia sua condição de escravopara se tornar parceiro de um contrato de trabalho com seu patrão. O escravo já não seria uma "propriedade" de seu senhor, mas uma "parte contratante". E esse contrato não se regeria simplesmente pelo arbítrio do patrão, mas pelos ditames das leis que regiam tais contratos. Além disso, a limitação de tempo de serviço levaria a um término, que era a "libertação".

Os patrões, sem dúvida alguma, poderiam manipular essa lei em seu favor. Mas, daí, querer concluir que a lei em si era um engodo é ir além do que as premissas permitem. Realmente, Ribeiro Rocha, em seu expediente de "resgate sob penhor", fez concessões ao sistema escravista. Mas, mesmo admitindo tais concessões, mostramos anteriormente como tal "resgate sob penhor" envolvia uma "revolução no sistema escravocrata", alterando a própria natureza da escravidão.

  • ALMEIDA, F. História da Igreja em Portugal v.III. Porto/Lisboa: Livraria Civilização-Editora, 1970.
  • ALVES, M. A Escravidão e a Campanha Abolicionista. In: ANAIS do Arquivo do Estado da Bahia. v.45. 1981.
  • BOXER, C. R. Relações Raciais no Império Colonial Português Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967.
  • BREVE Apostólico de 1757. Breves de Graças (1674-1860). Arquivo da Cúria Arquidiocesana de Salvador (ACAS).
  • CALDAS, J. A. Notícia geral de toda esta capitania da Bahia, desde o seu descobrimento até o presente ano de 1759. In: Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia (1931) Salvador, 1951.
  • CALDERÓN, V. Biografia de um Monumento: o antigo convento de Santa Teresa da Bahia Salvador: UFBA / Departamento Cultural da Reitoria, 1970.
  • CAMARGO, P. F. S. História Eclesiástica do Brasil. Petrópolis: Vozes, 1955.
  • CARVALHO, J. G. V. A Igreja e a escravidão: Uma análise documental. Rio de Janeiro: Presença, 1985.
  • CASTELLO, J. A. O Movimento Academicista no Brasil. 16 v. São Paulo: Secretaria da Cultura, Esporte e Turismo, 1969-79.
  • JUSTIFICAÇÕES de Óbito (1731-1867) n.3. Arquivo da Cúria Arquidiocesana de Salvador (ACAS).
  • LEITE, S. História da Companhia de Jesus no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1938-1949.
  • LIVRO de Óbitos da Freguesia da Sé (Iniciado em 1778). Arquivo da Cúria Arquidiocesana de Salvador (ACAS).
  • MACHADO, D. B. Biblioteca Lusitana v.I. Lisboa, 1930.
  • _____. Biblioteca Lusitana v.II. Lisboa, 1931.
  • _____. Biblioteca Lusitana. v.IV. Lisboa, 1935.
  • MALHEIRO, A. M. P. A Escravidão no Brasil: ensaio histórico, jurídico, social. Petrópolis: Vozes, 1976.
  • MARTINS JUNIIOR, I. História do Direito Nacional. Brasília: Editora da UNB, 1979.
  • MONTESQUIEU. O espírito das leis. In: WEFFORT, F. C. (org) Os clássicos da política São Paulo: Ática, 1989.
  • NOTÍCIAS HISTÓRICAS de Portugal e Brasil (1751-1800). v.II. Coimbra, 1964.
  • ROCHA, M. R. O etíope resgatado, empenhado, sustentado, corrigido, instruído, libertado: discurso teológicojurídico sobre a libertação dos escravos no Brasil. (1758). (Introd. e notas) Paulo Suess. Petrópolis: Vozes; São Paulo: CEHILA, 1992.
  • RODRIGUES, J. H. História da História do Brasil São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979. (Brasiliana, Tomo 1)
  • RUSSELL-WOOD, A. J. R. Fidalgos e filantropos: a Santa Casa da Misericórdia da Bahia, 1550-1755. Brasília: Ed. da UnB, 1981.
  • SAYERS, R. S. O negro na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Trad. Antonio Houaiss. Rio de Janeiro: Edições O Cruzeiro, 1958.
  • SCRITTURA riferite nei Congressi. America Meridionale (1745-1766). v.III. Arquivo da S. C. da Propaganda Fidei.
  • SILVA, A. D. Coleção da Legislação Portuguesa: 1750-1762 Lisboa, 1830.
  • _____.. Coleção da Legislação Portuguesa: 1763-1774 Lisboa, 1830.
  • VAINFAS, R. Ideologia e Escravidão Petrópolis: Vozes, 1986.
  • VILLOSLADA, R. G; LLORCA, B. Historia de la Iglesia Católica. v.II. Madrid: BAC, 1953.
  • _____. Historia de la Iglesia Católica. v.III. Madrid: BAC, 1957.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2013
  • Data do Fascículo
    Dez 2012
Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquita Filho Faculdade de Ciências e Letras, UNESP, Campus de Assis, 19 806-900 - Assis - São Paulo - Brasil, Tel: (55 18) 3302-5861, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, UNESP, Campus de Franca, 14409-160 - Franca - São Paulo - Brasil, Tel: (55 16) 3706-8700 - Assis/Franca - SP - Brazil
E-mail: revistahistoria@unesp.br