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Os azulejos da Misericórdia: a imagem documento na história da cultura religiosa luso-brasileira

Resumos

Os azulejos portugueses em Portugal e no Brasil são considerados quase sempre como objetos da História da Arte. A proposta deste estudo consiste em abordar os azulejos não como objetos de arte, mas como documentos da história da cultura luso-brasileira. O conceito de imagem documento será desenvolvido por meio da análise de um dos ritos mais importantes da história da cultura religiosa ocidental: a procissão. A atenção do estudo recairá, em especial, sobre a Procissão dos Ossos, que se encontra representada nos painéis de azulejos (séc. XVIII) da Igreja da Misericórdia em Salvador. A Procissão dos Ossos, instituída por D. Manoel em 1498, tinha como objetivo a retirada dos ossos dos justiçados, dando-lhes sepultura. Para a missão, o rei designou a Ordem da Misericórdia. O ato régio se estendeu ao Brasil, quando a primeira Casa da Misericórdia foi fundada na cidade do Salvador, em 1549. O painel, datado do século XVIII, representando a cerimônia, divide o espaço da igreja da Misericórdia com outras duas representações: a procissão do Senhor Morto, introduzida no Brasil (também pelos portugueses), e a Procissão do Fogaréu, introduzida pelos espanhóis. Entre a data da realização da primeira Procissão dos Ossos e o assentamento do painel de azulejos existe um espaço de tempo que permite avaliar a heterogeneidade dos tempos da arte, onde os ritmos diferenciados não coincidem, necessariamente, com os tempos da história.

Arte religiosa; azulejaria; cultura luso-brasileira


Portuguese tiles in Portugal and Brazil are often considered as objects belonging to the History of Art. The purpose of this study is to address the tiles not as objets d'arte but as documents of the history of Luso-Brazilian culture. The concept of an image document will be developed through the analysis of one of the most important rites of the history of Western religious culture: the procession. The study will focus in particular on the Procession of the Bones, which is represented in the panels of the tiles (c. XVIII) of the Church of Mercy in Salvador. The Procession of the Bones, instituted by King Manuel in 1498, was intended for the removal of bones of those brought to justice, and to provide them with a burial. For the mission, the king appointed the Order of Mercy. This Royal act was extended to Brazil when the first House of Mercy was founded in the city of Salvador in 1549. The panel, dating from the eighteenth century, and representing the ceremony, divides the Church of Mercy with two other representations: the Procession of the Dead Lord, introduced in Brazil (also by the Portuguese), and the Procession of the Torches, introduced by the Spanish. Between the date of the first Procession of the Bones and the laying of the panel of tiles, there is a time frame that evaluates the heterogeneity of art periods, where differentiated rhythms do not necessarily coincide with the periods of history.

Religious art; Tiling; Luso-Brazilian culture


Na igreja de Nossa Senhora da Misericórdia, em Salvador (Bahia), quatro painéis de azulejos representam três das principais procissões do cristianismo ibérico: a procissão do Senhor Morto, introduzida no Brasil pelos portugueses; a procissão do Fogaréu, introduzida pelos espanhóis; e a procissão dos Ossos, instituída por D. Manoel, em 1498. Esta última tinha dentre os seus objetivos a retirada anual dos ossos dos justiçados, dando-lhes sepultura cristã. Para a missão, o rei designou a Ordem da Misericórdia, fundada em Lisboa, pela rainha D. Leonor de Lencastre (1458-1525). O ato régio estendeu-se ao Brasil, quando a primeira Santa Casa foi fundada na cidade do Salvador, em 1548. No ano seguinte, a Irmandade fundou, no interior da enfermaria do primeiro hospital, uma capela, que foi vítima dos bombardeios decorrentes da invasão holandesa no início do século XVII (1624/1625). A atual igreja foi erguida em 1653 e passou no início do século XVIII (1722) por reformas importantes que fizeram dela um edifício de grande beleza. Parte dessa beleza deve-se à instalação de azulejos nas paredes e nas naves. Criação de Antônio de Abreu, os ditos azulejos vieram diretamente de Lisboa. O foco deste estudo está voltado para o painel que representa a procissão dos ossos. Recentemente, os painéis passaram por um processo de restauro, cuja precisão da técnica recuperou o frescor e o encanto das peças originais.

De acordo com os arquivos da Santa Casa, "o exercício das funções caridosas da Irmandade começara pela fundação da capela e do hospital" (RIBEIRO,1993, p. 8RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros. Entre o prestígio dos homens e a salvação dos céus: As irmandades de Misericórdia e a Assistência médico-hospitalar da Bahia (séc. XIX). Textos de história, Brasília, n.1, v.1, 1993, p. 1-17.). A Irmandade submetia-se, então, ao Compromisso da Misericórdia de Lisboa, que determinava as 14 obras de misericórdia (sete obras espirituais e sete corporais) que caberiam aos Irmãos. Dentre estas últimas, encontrava-se a de enterrar os mortos. O painel bi-cromado em azul e branco representa três grandes ataúdes de ossos sendo transportados pelos Irmãos em procissão.

Ao longo da história, as práticas sociais de natureza mais diversas têm buscado se fazer representar de forma figurativa. A obra da Misericórdia não constituiu exceção. A necessidade de representação figurativa da procissão dos ossos encontra esclarecimento nas condições socioculturais onde se insere a encomenda dos painéis, em particular por quem encomendou e para que encomendou. Necessário se faz compreender a composição dos grupos sociais que habitavam na cidade. A sociedade baiana setecentista escravocrata era, então, marcada por grande religiosidade e profunda desigualdade social. A cidade de Salvador, cuja topografia constituía-se por ruas estreitas, possuía clima quente e úmido, favorecendo a proliferação de diversas doenças e até mesmo de epidemias (RIBEIRO, 1993, p. 2RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros. Entre o prestígio dos homens e a salvação dos céus: As irmandades de Misericórdia e a Assistência médico-hospitalar da Bahia (séc. XIX). Textos de história, Brasília, n.1, v.1, 1993, p. 1-17.). Tal cenário estimulou as ações sociais caritativas, como ocorrera na Europa do século XIII, cujo crescimento da miséria urbana motivou o desenvolvimento espiritual de base apostólica. As ordens mendicantes e as ordens terceiras estabeleceram-se no além-mar, impulsionadas pelos compromissos mútuos que unem o cristão à Igreja. As Irmandades Terceiras buscavam no cumprimento das boas ações aliviar o sofrimento dos pobres.

O painel de azulejos representando a procissão dos ossos foi encomenda feita pela Irmandade da Misericórdia, a Ordem Terceira de maior prestígio na colônia brasileira. De acordo com o Compromisso da Ordem de Lisboa, os irmãos, "para servir a Deus e a seus pobres com perfeição devida, hão de ter sete condições". A primeira condição estipulava que fosse "limpo de sangue, sem alguma raça de mouro ou judeu, não somente em sua pessoa, mas também em sua mulher". Aproximadamente, um século antes da instalação dos azulejos, no início do século XVII, elaborou-se um novo compromisso. No século seguinte, quando os azulejos já estavam instalados (1775), o Marques de Lavradio, então Provedor da Santa Casa, ordenou que se devia "abrandar, conciliar e riscar em forma que mais se não pudesse ler o parágrafo terceiro, do Capítulo 1 do Compromisso que tratava do número e qualidades que hão de ter os irmãos da Misericórdia" (RIBEIRO, 1993, p.10RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros. Entre o prestígio dos homens e a salvação dos céus: As irmandades de Misericórdia e a Assistência médico-hospitalar da Bahia (séc. XIX). Textos de história, Brasília, n.1, v.1, 1993, p. 1-17.). É provável, por um lado, que tal parágrafo referindo-se à "limpeza de sangue" fosse difícil de ser administrado na colônia, que recebera expressivo número de marranos. Por outro lado, os tempos eram outros e se insistia que os irmãos fossem homens de "boa consciência e fama, tementes a Deus, modestos, caritativos e humildes" (RIBEIRO, 1993, p.10RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros. Entre o prestígio dos homens e a salvação dos céus: As irmandades de Misericórdia e a Assistência médico-hospitalar da Bahia (séc. XIX). Textos de história, Brasília, n.1, v.1, 1993, p. 1-17.). A Ordem da Misericórdia, fiel aos princípios apostólicos da sua origem, buscava concretizar a sua ação baseando-se, diretamente, no Evangelho. A imagem da Virgem Maria com o manto aberto, acolhendo a todos, inspirava os irmãos que compareciam nas procissões, missas e cerimônias de sepultamento.

Como se viu acima, a instalação da Ordem da Misericórdia na Bahia resultou de ato do próprio rei, na época, D. Manoel. As Ordenações Filipinas, que regeram o Brasil a partir de 1603 (quando entraram efetivamente em vigor), enfatizam o papel socioreligioso da Ordem. No que interessa a este estudo - a procissão dos ossos - o Livro V, que trata Do Direito, Processo e Execução das Penas, no Título CXXXVII, Das Execuções das Penas Corporais, referindo-se à execução "de morte com efeito, segundo a sentença for o conteúdo", complementa, "E se no lugar houver Confraria da Misericórdia, seja-lhe notificado, para irem com ele, e o consolarem". Com efeito, do momento da sentença ao da execução, a Irmandade se fazia presente, obedecendo às ordenações que insistiam para que todos os esforços fossem empenhados para que (os justiçados) morressem como bons cristãos. "A execução deveria ser feita pela maneira declarada dando-lhe tempo, para que possa confessar e comungar" (TÍTULO 137). Em última palavra, a Igreja encontrava no poder régio e nas ordens terceiras o apoio necessário à execução dos sacramentos. Cabia como se viu, à Misericórdia, consolar o condenado, isto é, convencê-lo a aceitar a morte com resignação. Na época, embora não se soubesse quando se iria morrer, estar preparado para a morte era parte essencial das preocupações de todos os cristãos. No caso dos condenados que sabiam a que horas e como iam morrer, tal preparação ganhava uma conotação diferente, que demandava tempo: três dias, estipulavam as Ordenações Filipinas, precisando que o terceiro dia não poderia ser um domingo ou um dia santo. Durante este período, o Irmão da Misericórdia deveria consolar o condenado e o capelão era obrigado a conduzi-lo a confessar e ir com eles até o "lugar deputado para a tal Justiça, esforçando-os com palavras com que morram bons cristãos e recebam a morte com paciência" (TÍTULO 137). Dentro deste ritual, onde o momento da morte era extremamente valorizado, tanto o Irmão da Misericórdia quanto o confessor eram investidos de grande responsabilidade. Os manuais de confissão úteis, ao pároco, testemunham das várias fórmulas que se poderia fazer uso, então.

Consta que, em Lisboa, os condenados à morte vão à forca do Campo de Santa Bárbara e a Misericórdia vai buscá-los uma vez por ano. Na colônia, nenhum corpo podia permanecer suspenso no lugar da execução. Nos casos dos justiçados, a morte por falsificação de moeda, se deveria, inclusive, queimar o cadáver. Em 1696, o governo metropolitano fez um acordo com a Misericórdia para o sepultamento dos corpos abandonados mediante o pagamento de 400 réis. Tratava-se de corpos que não eram reclamados por ninguém e entre eles, naturalmente, se encontravam os corpos dos condenados. Segundo afirma João José Reis (REIS,1991, p.172REIS, João José. A morte é uma festa - Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.), até as duas primeiras décadas do século XVIII, o cemitério do Campo da Pólvora não era ainda administrado pela Santa Casa, mas pela Câmara. Dentre os corpos que ninguém reclamava, eram enterrados no Campo da Pólvora: os escravos africanos mortos por ocasião do desembarque dos navios negreiros, os condenados a morte e outros esquecidos pela sociedade. Tão ignorados que eram os funcionários da limpeza pública que deles se ocupavam. Lembre-se que, na época, os corpos abandonados podiam permanecer dias até serem sepultados na mais completa indiferença. As evidências apontam que o cemitério que os recebia não era um campo santo, logo, não cabia qualquer tipo de ritual religioso. Enterrados em valas comuns e rasas, ficavam "à mercê de animais famintos" (REIS, 1991, p.172REIS, João José. A morte é uma festa - Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.). Cabia à Santa Casa recolher os despojos dos condenados anualmente, momento em que a Irmandade preparava os ossos para a procissão. O ritual da morte de um condenado possuía, assim, vários atos, cujo epílogo viria um ano depois com a procissão seguindo pelas ruas, com os ataúdes carregados pelos irmãos. É com razão que, referindo-se à execução como "espetáculo", "lição", enfim a "morte triunfal", Michel Vovelle conclui que a morte barroca é intensamente vivida (VOVELLE, 1974, p. 85VOVELLE, Michel. Mourir autrefois. Paris: Gallimard/Julliard, 1974.). São exatamente esses aspectos - espetáculo, lição e triunfo - da morte que o painel da Misericórdia expõe, exteriorizando a própria vivência dos participantes (vivos e mortos) da procissão.

Fig.1
- Procissão dos Ossos. Fonte: Cortesia da Santa Casa de Misericórdia da Bahia.

Sabe-se que as cerimônias em torno de acontecimentos extraordinários remontam à Antiguidade e passaram para a Idade Média como mais uma das muitas apropriações que o medievo fez da civilização romana. Tais cerimônias no mundo antigo eram movidas tanto pela celebração de uma vitória, ocasião em que se entrava em Roma em desfile triunfal, fazendo tremular o estandarte da grande águia, símbolo maior do poder romano, e/ou, simplesmente, enaltecer a figura do próprio imperador. No decorrer da Idade Média, as procissões e os cortejos "esvaziaram" o conteúdo pagão, substituindo-o pela sacralidade cristã, fosse ela estritamente religiosa, ou em homenagem ao rei, por ocasião de algum evento extraordinário. A partir do século XVII, na França de Luís XIV, as procissões e cortejos levaram a celebração da monarquia ao apogeu conquistado pelo Rei Sol. O Estado Nacional Absolutista exibia o seu vigor por meio de cerimônias em que a tradição romana era invocada na figura divina do monarca, assumindo conteúdo cristão. O propalado esplendor da corte de Versalhes conquistou as demais cortes europeias, penetrando em Portugal e alastrando-se, naturalmente, pelas colônias. As celebrações dos séculos XVII e XVIII, as celebrações barrocas em particular, assumiram aspectos dramáticos e de excesso ornamental. Em Lisboa e nas demais cidades e vilas do reino, as cerimônias eram encenadas com toda a pompa e rigor que a ocasião exigia. Transplantadas para a colônia americana, não se tratou apenas de imitar a metrópole, o que era praxe naquela época. Tratava-se da transladação de uma tradição de longa duração histórica. As cerimônias constituíam acontecimentos extraordinários e, por isso mesmo, embora algumas tenham sido fruto do desembarque no Brasil de artistas e artífices; outras impuseram-se nas principais vilas brasileiras, por ato régio. Foi o caso, como mencionado, da procissão dos ossos.

O painel com a representação da procissão está situado do lado direito da entrada da nave. No lado esquerdo, a procissão do fogaréu é o primeiro painel. A proximidade com o púlpito e o altar indica a importância atribuída à procissão conduzida pelos Irmãos e representada na Igreja erguida pela Ordem e consagrada a Nossa Senhora da Misericórdia.

Até o século XVII as confrarias haviam se contentado com simples capelas. A partir do século seguinte, começaram a erguer as próprias igrejas. As construções com o tempo foram se tornando cada vez mais ambiciosas, devido, em parte, à rivalidade que se instalou entre as Irmandades Terceiras. Tal competição é revelada por cada detalhe do edifício religioso. Tanto a fachada externa, quanto o interior. No altar mor, a riqueza da talha dourada chama até hoje atenção dos que visitam esses templos. De acordo com Germin Bazin, em obra que se tornou uma referência sobre o barroco, "a situação social do Brasil, assim como a de outras regiões da América Latina, era especialmente favorável ao desenvolvimento de uma arte religiosa. A sociedade civil, ao menos durante os dois primeiros séculos, é a reprodução daquilo que ela foi na Europa nos primeiros tempos da Idade Média" (BAZIN,1983, p. 25BAZIN, Germain. A arquitetura religiosa barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1983. v. 1.).

Fig.2
- Altar Mor. À direita, painel de azulejos representa a Procissão dos Ossos. Fonte: Cortesia da Santa Casa de Misericórdia da Bahia.

Em formato retangular, os painéis em azul e branco exportados para o Brasil correspondem a um novo momento da azulejaria portuguesa. Com efeito, a partir do final do século XVII, os azulejos passaram a ser caracterizados pela pintura azul, "cor conotada com a prestigiosa porcelana da China - que os portugueses foram os primeiros a trazer para a Europa em grandes quantidades - e adotada por influência da azulejaria holandesa" (HENRIQUES, 2005, p. 96HENRIQUES, Paulo. Lisbonne avant le Tremblement de terre. Le panneau du musée de l´Azulejo. Paris: Editions Chandeigne, 2005.). Na mesma época, as igrejas e palácios portugueses, conheciam uma importante renovação decorativa. Foi a partir daí, como assinala Paulo Henriques, que "o azulejo vai ser avidamente procurado por uma sociedade com novas necessidades de representação, impondo a sua presença em composições monumentais" (HENRIQUES, 2005, p. 96HENRIQUES, Paulo. Lisbonne avant le Tremblement de terre. Le panneau du musée de l´Azulejo. Paris: Editions Chandeigne, 2005.). Pode-se deduzir que, com os azulejos que compunham os painéis, a Ordem da Misericórdia na Bahia importava também, da metrópole, "a necessidade de representação".

O painel representativo da procissão dos ossos é emoldurado por barras retas com motivos nitidamente barrocos, como os enrolamentos de acanto e figuras mitológicas colocadas no centro da parte superior. Na parte inferior, o número de figuras cresce de dois para quatro, intercaladas sempre, harmoniosamente, pelos enrolamentos de acanto. Abaixo do painel, um outro painel se estende, repetindo a mesma moldura constituída pelos enrolamentos de acanto. Os azulejos que preenchem o painel inferior, com a "figura avulsa", inspiração nitidamente holandesa, são assim denominados porque cada azulejo contém uma imagem autônoma. Os motivos repetem pequenas flores e aves. Geralmente este tipo de azulejo era usado "para espaços secundários, como corredores, cozinhas e sacristias, substituindo o azulejo de padrão que era pouco produzido no período" (HENRIQUES, 2005, p. 111HENRIQUES, Paulo. Lisbonne avant le Tremblement de terre. Le panneau du musée de l´Azulejo. Paris: Editions Chandeigne, 2005.). O seu uso na nave da igreja, conforme se percebe, complementa a azulejaria na parte inferior do painel e ao mesmo tempo evidencia o valor estético da grande composição que representa a procissão. Este tipo de azulejo surgiu no último quartel do século XVII e teve grande utilização na primeira metade do século XVIII. Para alguns, esses azulejos foram obra de jovens aprendizes (HENRIQUES, 2005, p. 111HENRIQUES, Paulo. Lisbonne avant le Tremblement de terre. Le panneau du musée de l´Azulejo. Paris: Editions Chandeigne, 2005.).

Convém lembrar que, desde os finais do século XVII, em Portugal, o azulejo português foi beneficiado pelo trabalho de pintores que recomeçam a assinar as suas obras. Os historiadores da arte em Portugal referem-se a este período como "Ciclo dos Mestres". Neste momento, a pintura dos artistas era concebida visando o revestimento de paredes, abóbadas e cúpulas. As molduras possuíam, em geral, programas iconográficos definidos. A partir do século XVIII, a fabricação de azulejos aumentou, dentre outras razões, para atender as construções do Brasil. Iniciou-se um novo período na história da azulejaria portuguesa, que foi denominado de "Grande Produção".

Tomando como referência a entrada da nave da igreja, vê-se o início da procissão formada pelo primeiro grupo de Irmãos da Misericórdia em número de cinco. Os dois primeiros empunham as varas com velas acesas, precedendo o irmão, que traz o estandarte da Ordem, provável representação de Nossa Senhora da Misericórdia. Tanto as varas quanto o estandarte são, ao mesmo tempo, símbolos e insígnias de direito da Santa Casa em suas funções públicas, diferenciando os seus membros das demais ordens terceiras. As insígnias desde a Antiguidade desempenharam papel importante. Tanto em tempo de guerra, diferenciando os exércitos, quanto em tempos de paz, quando distinguiam os diferentes grupos de acordo com a função política e/ou religiosa que exerciam (PASTOUREAU, s/d, p. 40-44). São, portanto, signos de valor e hierarquia que ganham imensa importância em sociedades caracterizadas por fortes diferenças sociais e de baixa ou inexistente, mobilidade dos grupos.

A importância destes signos de poder era tão grande que, em 1760, a Irmandade da Santa Casa da Misericórdia denunciou à Coroa ter tido suas insígnias usurpadas por outras duas irmandades: a de Nossa Senhora dos Martírios (formada de pretos ou crioulos) e a do Senhor da Cruz (constituída de pardos e mulatos). Na petição feita pelos Irmãos, o tom da indignação pela usurpação das insígnias é esclarecedor. Os argumentos baseavam-se, entre outros, no fato de que aqueles a quem cabe, por natureza, a condição servil, buscavam imitar ao grande. Fundamentando-se na concessão real que tinha seus direitos protegidos por bulas papais, a Irmandade expunha a olho nu o paradoxo da própria sociedade em que viviam: cabia aos grandes manifestar a sua compaixão aos mais humildes, conforme o próprio ensinamento de Cristo, mas não cabia de forma alguma aos "humildes" tentarem ser "grandes" copiando publicamente os seus atos (MENDES, 2001, p. 109). Em outras palavras, cada um devia ficar no seu lugar.

Após o primeiro grupo, três ataúdes contendo os ossos dos justiçados e cobertos por mantas frangeadas, próprias a cerimônias fúnebres, e tendo no centro a cruz latina, eram carregadas por quatro Irmãos respectivamente. Como se sabe, a cruz latina, crux immissa, é a cruz da paixão. Ela volta a aparecer de forma mais explícita, com a própria imagem do Cristo crucificado, no final da procissão. A mensagem não poderia ser mais clara: invocava-se, assim, a remissão dos pecados e a ressureição. Todos os Irmãos vestem-se com as mesmas capas e estão calçados com sapatos de fivela. Não é possível identificar se as capas são bordadas, conforme o uso da época, ou se as fivelas dos sapatos eram de ouro ou prata e os botões de metais preciosos. Todos trazem perucas com cachos soltos nas cabeças. Existe alguma controvérsia quanto ao uso das perucas. Embora no Brasil colonial ela fosse atributo dos magistrados, consta que alguns homens que aspiravam uma certa nobreza também a usavam. De qualquer forma, a peruca assim como todo o vestuário marcava a distinção social.

A posição hierárquica que os irmãos possuem no interior da Irmandade pode ser identificada de acordo com o lugar que ocupam na procissão. A função do primeiro grupo que abre o cortejo, em especial daquele que sustenta o estandarte da Ordem, não pode ser a mesma dos quatro irmãos que carregam os três ataúdes, tampouco dos que se colocam em número de dois, entre os ataúdes. Após o terceiro ataúde, aparecem os representantes do clero com suas vestes eclesiásticas exibindo a tonsura nas cabeças nuas. Dentre eles, um ergue o crucifixo para o alto, colocando-o aproximadamente na mesma altura das varas pretas. Existe uma relação sagrada entre o estandarte que representa a Virgem Maria, Nossa Senhora da Misericórdia, que abre a procissão, e o crucifixo levantado no final representando o seu filho crucificado. Maria representa a própria misericórdia, aquela que intervém a favor dos condenados, junto ao seu filho, Jesus Cristo. Dentro dos ataúdes, os ossos dos pecadores aguardam sepultura santa, enquanto as almas esperam pela remissão dos pecados e a concretização da promessa de salvação invocada no sacrifício de Cristo. Nada indica que a procissão ocorra em cenário urbano, embora o urbanismo do século XVIII na Bahia pudesse implicar a ausência de calçamento e de partes da cidade com passagens desertas e sem construções. Porém, o cenário e a composição da cena dos painéis guardam grande semelhança, conforme se constata no painel em frente, representando a procissão do Fogaréu.

Fig.3
- Procissão do Fogaréu, painel à esquerda do altar mor. Fonte: Cortesia da Santa Casa de Misericórdia da Bahia.

Ora, deve-se considerar que Antônio de Abreu, pintor dos azulejos, os confeccionou em Lisboa e, além de não ter a menor ideia do que seria a Salvador setecentista, não recebera a incumbência de representar a cidade e, sim, a procissão. E foi o que fez. Assim, os azulejos, independente do que representam, encontram-se enquadrados antes de tudo no estilo português em voga na época. Os artistas portugueses, assim como os demais artistas no restante da Europa, recorriam à gravura que na época, em Portugal, era majoritariamente holandesa. Os holandeses influenciaram também a cor (o azul), o tratamento gráfico e a disposição das cenas dos painéis.

O prestígio dos holandeses, ao mesmo tempo que os influenciava, levou-os também a buscar vencer a concorrência, procurando artistas formados na academia, que dominavam a pintura de cavalete. Os azulejos, tais como os quadros, possuem moldura. A moldura é retilínea tal como nos azulejos da Santa Casa. Esta fase, caracterizada pelo aumento da produção de azulejos em Portugal, provocada, dentre outros fatores, pela demanda brasileira, tornou-se conhecida também por seus grandes pintores. O aumento da produção, afirma a historiografia da arte portuguesa, conduziu à repetição iconográfica em espaços diferentes, e as cenas submeteram-se à moldura. Constata-se que os três painéis da Misericórdia repetem a mesma iconografia, substituindo apenas o objeto maior da procissão, no caso da procissão dos ossos, os ataúdes. A repetição da iconografia concentrada no tema do azulejo, submetida ao modelo do século XVIII, pode explicar a ausência de referência à paisagem urbana e também o vestuário dos personagens, que certamente era português, mas que, no caso da representação, incorporou a peruca, cujo uso no Brasil não é assegurado pelos historiadores.

Portugal, desde o século XVI, tinha codificado a profissão dos artesãos. Tarefa que coube a Duarte Nunes de Leão, segundo consta no Livro dos Regimentos dos Oficiais Mecânicos de Mui Nobre e sempre Leal Cidade de Lisboa (BAZIN, 1983, p. 41-42BAZIN, Germain. A arquitetura religiosa barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1983. v. 1.). Os ofícios eram regidos pela Casa dos Vinte e Quatro (onde cada profissão era representada por um juiz eleito). Esta instituição não existiu no Brasil Colonial. Aqui, os ofícios eram regidos pelos juízes e controlados pela Câmara Municipal. Inicialmente, organizaram-se em confrarias. Posteriormente, de acordo com as afinidades, submeteram-se a uma divisão regulamentada pela carta régia de 3 de dezembro de 1771.

A construção de uma igreja exigia pedreiros, entalhadores de pedra, rebocadores em pedra e gesso, carpinteiros, marceneiros ou ebanistas. Faziam-se necessários, igualmente, escultores, ferreiros, serralheiros e, ainda, os oleiros, ladrilheiros e telheiros. Convém ressaltar que estes ofícios, no Brasil Colonial, não eram separados com o mesmo rigor das corporações medievais. Devido, provavelmente, à carência e má formação profissional, faltavam artesãos e não era raro que o mesmo indivíduo desempenhasse mais de um ofício (BAZIN, 1983, p. 42-43BAZIN, Germain. A arquitetura religiosa barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1983. v. 1.). Tal situação permite compreender porque o material e os artesãos vinham da metrópole. Dentre o material que aqui desembarcou, encontravam-se os azulejos.

Ainda assim, os artesãos, independente da função que exerciam, eram mal pagos. No caso da nova igreja da Misericórdia, erguida no séc. XVIII, como a construção era patrocinada pelos irmãos, cujo fervor religioso não acompanhava o ritmo das carências diárias de profissionais experientes, estes profissionais, provavelmente, não escaparam da má remuneração. Afinal, o objetivo maior da Irmandade consistia na construção de um edifício que marcasse a paisagem urbana da cidade. O emprego dos materiais de qualidade assegurava a beleza na conclusão do edifício, porém, ainda assim, nem sempre era suficiente. Cada Ordem ou Irmandade, desejava que a sua construção fosse a mais bela da cidade. No caso das igrejas das Ordens Terceiras, e em particular os Irmãos da Misericórdia, na medida em que os irmãos não eram santos e não podiam ser representados no altar, nada mais justo do que exibir a si mesmos e às suas obras, próximo ao lugar de maior sacralidade e importância da igreja.

A associação da forma e conteúdo dos painéis, os materiais (a qualidade fina da pasta) e as cores (o azul da porcelana chinesa), a técnica (aprimorada pela presença holandesa) e o desenho, a composição da cena e os personagens que dela participam não oferecem apenas "um espetáculo" agradável pelo seu valor estético, ao olhar. A composição dos painéis permite ir além da simples representação. O painel é portador de um significado que ultrapassa o que é visto. A grande importância da azulejaria lusa talvez consista no fato de que foi integrada à arquitetura, criando assim condições que permitiram a metamorfose cenográfica graças à disposição dos espaços. Nos conventos e igrejas, as representações figurativas se tornaram cada vez mais frequentes. Mas, na medida em que os painéis não tinham a mesma proporção da gravura, modificou-se a perspectiva, repetindo-se as figuras, distinguidas unicamente pela indumentária e insígnias. Enfim, o artista copiou da gravura, apenas o essencial. Consequentemente, o desenho não buscava, nem poderia buscar, devido à distância que separava o artista dos Irmãos, a representação individual de cada um. Indicava, sim, a partir do vestuário e do lugar que ocupavam na procissão o status que possuíam, dentro da sociedade local e, consequentemente, dentro da própria Ordem.

Se retornarmos aos estatutos da Santa Casa de Misericórdia, podemos perceber que pertencer a Ordem Terceira implicava possuir prestígio social. Logo, parece legítimo que os Irmãos, ao patrocinarem a construção da nova igreja no século XVIII, tenham buscado perpetuar parte da sua obra por meio da representação de três importantes procissões.

A procissão dos ossos, assim como todas as procissões da colônia, estava amparada no direito canônico e nas leis e ordenações do Reino. Embora a procissão dos ossos se devesse a um decreto do próprio rei, a igreja não abria mão de reclamar para si o que julgava ser o seu direito de acordo com o Título XIII das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia de 1707, que definia a procissão como "uma oração feita a Deus publicamente, por um grupo de fiéis" (MENDES, 2011, p. 29MENDES, Ediana Ferreira. Festas e procissões reais na Bahia colonial. Dissertação (Mestrado em História Social) - Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011.). O Arcebispado guardava igualmente para si o direito de regulamentar estes

atos de verdadeira Religião e Divino culto, com os quais reconhecemos a Deus como o Supremo Senhor de tudo e distribuidor de todos os bens e por isso nos sujeitamos a ele esperando da sua Divina clemência as graças e favores que lhe pedimos para salvação de nossas almas, remédio dos corpos e de nossas necessidades (MENDES, 2011, p. 30).

Morrer, no século XVIII, não implicava tão somente deixar a vida, passando para os herdeiros a tarefa de execução do testamento e inventário dos bens conquistados pelo morto. A salvação da alma constituía a mais importante das metas a ser alcançada. Desde o século XVII a elaboração dos preparativos para a morte constituíra-se em tarefa que se devia pensar com antecipação. Apoderar-se da morte "para melhor a dominar, reinserindo-a na perspectiva da salvação", tal era a dimensão que a Igreja buscava imprimir ao inevitável. Porém, no lugar de a negar, colocava-a no centro da vida (VOVELLE, 1974, p. 57VOVELLE, Michel. Mourir autrefois. Paris: Gallimard/Julliard, 1974.). Nos países europeus católicos, pensar na morte implicava pensar no testamento, que deveria ser feito com antecedência, fazendo constar os pedidos de realização de missas, ao qual se seguiam a devolução dos bens que tivessem sido adquiridos de forma ilícita e o pagamento das dívidas. A preocupação com a morte adquiria, assim, uma dimensão material, atrelando a salvação da alma aos bens conquistados em vida. No Brasil, na regra da determinação do testamento, este nem sempre era feito na juventude, era adiado para a velhice ou se a ocasião se apresentasse devido a uma enfermidade grave.

A morte do outro poderia também constituir matéria de meditação da própria morte. Esqueletos, ossos, em particular o crânio, e o crucifixo são motivos frequentes nas pinturas, oferecendo elementos concretos para o diálogo com o invisível. Não é à toa que os manuais de preparação para a morte colocam os testamentos no mesmo nível dos exercícios espirituais. Na consulta deste tipo de documento, as fórmulas elaboradas no século XVII podem ser, facilmente, identificadas. A importância destas fórmulas foi tão grande que a sua prática se estendeu, no Brasil, até meados do século XX (RODRIGUES; DILLMANN, 2013, p. 2RODRIGUES; DILMANN. Desejando por a minha alma no caminho da salvação. Modelos católicos de testamentos no século XVIII. História Unisinos, n. 17, 1, jan./abr., 2013, p.1-11.).

Foi um jesuíta que introduziu na colônia portuguesa as fórmulas testamentárias. A primeira foi obra do Padre Estevam de Castro e tinha como título, Breve aparelho e modo fácil para ensinar a bem morrer o Cristão. Inicialmente publicado em Portugal, em 1621, teve tanto sucesso que foi reeditado onze vezes. Outros manuais sucederam-se no século seguinte. Os testamentos podiam ser redigidos pelo próprio interessado ou, no caso dos Irmãos da Misericórdia, a redação podia ser feita por um outro membro da Irmandade. As Ordenações Filipinas, Livro 4. Títulos 80/85, proibiam que os familiares redigissem ou testemunhassem a redação do testamento; considerando, à lógica da época, que estes seriam os herdeiros/beneficiários dos bens do testador. Os testamentos setecentistas não eram escritos por notários, o que evidencia que a preocupação maior do testador estava voltada para a salvação da sua alma (RODRIGUES; DILLMANN, 2013, p. 3RODRIGUES; DILMANN. Desejando por a minha alma no caminho da salvação. Modelos católicos de testamentos no século XVIII. História Unisinos, n. 17, 1, jan./abr., 2013, p.1-11.).

Rodrigues e Dilmann chamam atenção, com apoio na historiografia brasileira, para a repercussão que a fórmula testamentária de João Franco teve no Brasil a partir, aproximadamente, de 1759. Isto é, bem depois da fixação dos painéis da Misericórdia. O que interessa aqui é a produção iconográfica do final da idade média, época a que João Franco se remete ao ensinar como se deve morrer. É possível detectar, em João Franco, a sobrevivência de crenças medievais em pleno século XVIII (RODRIGUES; DILLMANN, 2013, p. 4RODRIGUES; DILMANN. Desejando por a minha alma no caminho da salvação. Modelos católicos de testamentos no século XVIII. História Unisinos, n. 17, 1, jan./abr., 2013, p.1-11.). Tais crenças conduziam a representação frequente das almas dos condenados como parte do tema do Juízo Final. Este tema, que ganhou destaque nas fachadas exteriores das catedrais românicas e góticas dos séculos XII e XIII, foi amplamente divulgado pela pintura e gravura italiana e flamenga dos séculos XIV, XV e início do XVI. A expressão plástica destas pinturas é portadora de uma mensagem pedagógica que exibe as torturas do inferno, as quais o purgatório oferece a possibilidade de escapar.

O purgatório, além de constituir um terceiro lugar na cartografia do Além, introduzia a figura do intercessor, aquele que advogaria a favor das almas dos pecadores. Ao longo do século XVII, os santos foram convocados para o exercício desta função em boa parte da Europa. No entanto, na Península Ibérica, sobretudo na Espanha, a corte celeste, presente na iconografia do final do medievo, guardou o seu prestígio com Maria, Virgem Piedosa ou a Virgem das Sete Dores. Ao mesmo tempo, as imagens da Virgem, exibindo o seio que nutriu Jesus ou da Virgem da Misericórdia abrigando os fiéis sob o seu manto, diminuíram significativamente. No entanto, este quase desaparecimento explícito da imagem da Virgem enquanto intercessora, junto a seu filho, não significa quebra da sua presença na iconografia do purgatório. Ao contrário, "a intervenção da virgem irá doravante manifestar-se pela via de uma pedagogia indireta, que incita às práticas" (VOVELLE, 2008, p. 171). No caso da Misericórdia, tais práticas estavam determinadas, conforme se viu, no próprio Compromisso da ordem e amparada pela legislação do reino. Não que esta figuração indireta fosse a única de Maria. A imagem da Virgem ajoelhada aos pés do filho, exibindo a cruz goza, também, de grande divulgação na época.

Desde o século XVII e, principalmente, no século XVIII, a Europa católica fez uso da imagem figurada para divulgar a crença no purgatório. É evidente que a referência à Europa Católica corresponde a um espaço muito amplo. É necessário pensar na crença no purgatório em Portugal e em que condições ela chegou ao Brasil. Convém considerar que a penetração dos temas da pastoral pós-tridentina, partindo de Milão e de Roma, não repercutiu da mesma forma em todos os reinos europeus. Aos soberanos, cabia também expandir a crença salvacionista. Em Portugal os monarcas empenharam-se bem na tarefa. Na época em que tratamos, D. João V (1707-1750), desde o início do seu reinado, demonstrou uma ardente devoção à libertação das almas do purgatório, realizando importantes investimentos. Na metrópole, como é sabido, as relações do rei com a Misericórdia eram muito intensas e, neste sentido, os irmãos da Misericórdia dos dois lados do Atlântico mantinham uma relação muito íntima e muitas vezes até familiar. Embora a crença tenha sido introduzida no Brasil pelos Jesuítas e pelos Franciscanos, o papel das Irmandades Terceiras, no período que se trata, foi também de grande importância.

No painel da Misericórdia, representando a procissão dos ossos, são vários os atores: o artista que executou os painéis, a igreja que difunde o modelo da imagem em revezamento, com as ordens e os fiéis, representados pela confraria que fez a encomenda. A crença no purgatório está implícita nos painéis e para compreender o significado da imagem fez-se necessário conhecer o testamento dos Irmãos. Mas, ainda assim, não será possível reencontrar a autenticidade de uma crença, naquilo que resultou de um compromisso entre os diferentes parceiros. O que os painéis nos revelam são apenas rastros, porém rastros significativos de uma crença. A leitura da narrativa, que a imagem da procissão dos ossos figura, permite apenas concluir que se trata da exibição pública dos Irmãos da Ordem da Misericórdia que, sob o controle da Igreja, buscam perpetuar o prestígio social nos painéis que representam as três procissões. Todavia, trata-se também dos que estão vivos e contemplam os painéis. Para além da presença indireta da virgem da Misericórdia, que motiva o ato, simbolicamente representada no estandarte que abre a procissão, o purgatório invisível na imagem é virtualmente uma alusão ao acesso possível ao paraíso.

Nesse sentido, a procissão dos ossos traz de volta o macabro, tão visível na idade média, mas que a procissão esconde dentro dos ataúdes: os ossos dos condenados. Note-se que o macabro em outras representações contemporâneas está presente na figuração do crânio, dos ossos cruzados ou até no esqueleto figurando a própria morte, conforme aparece na dança macabra medieval. Os ossos, que tal como o purgatório não estão figurados, oferecem uma reflexão sobre a morte. Nas igrejas da Bahia setecentista, a tradição ganha novos significados por meio de uma categoria que é o próprio paradoxo das artes visuais: o invisível.

Referências

  • BAZIN, Germain. A arquitetura religiosa barroca no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 1983. v. 1.
  • COMPROMISSO da Misericórdia de Lisboa. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Lisboa, 1598.
  • HENRIQUES, Paulo. Lisbonne avant le Tremblement de terre. Le panneau du musée de l´Azulejo. Paris: Editions Chandeigne, 2005.
  • MENDES, Ediana Ferreira. Festas e procissões reais na Bahia colonial. Dissertação (Mestrado em História Social) - Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011.
  • REIS, João José. A morte é uma festa - Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
  • RIBEIRO, Maria Eurydice de Barros. Entre o prestígio dos homens e a salvação dos céus: As irmandades de Misericórdia e a Assistência médico-hospitalar da Bahia (séc. XIX). Textos de história, Brasília, n.1, v.1, 1993, p. 1-17.
  • RODRIGUES; DILMANN. Desejando por a minha alma no caminho da salvação. Modelos católicos de testamentos no século XVIII. História Unisinos, n. 17, 1, jan./abr., 2013, p.1-11.
  • TÍTULO 137: Das execuções das penas corporais. In: Ordenações Filipinas. Livro 5. Disponível em: http://www1.ci.uc.pt/proj/filipinas/15p1314.htm. Consultado em 19 dez. 2014.
    » http://www1.ci.uc.pt/proj/filipinas/15p1314.htm
  • VOVELLE, Michel. As almas do Purgatório ou o trabalho de luto. São Paulo: UNESP, 2010.
  • VOVELLE, Michel. Mourir autrefois. Paris: Gallimard/Julliard, 1974.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    05 Jan 2015
  • Aceito
    25 Fev 2015
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