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Comércio, indústria e projeção regional da Diamantina oitocentista: as fragilidades do "grande empório do Norte"

Commerce, industry and regional projection of the nineteenth-century Diamantina: the fragilities of the "North Great Emporium"

RESUMO

Este artigo analisa o comércio atacadista e a indústria de Diamantina no período 1870- 1920, enfatizando sua projeção regional e vinculações com a mineração. São discutidos os fatores que tornaram frágil e provisória a condição de Diamantina como centro polarizador do Norte de Minas. As fontes empregadas são principalmente documentação cartorária e jornais locais.

Palavras-chave:
Comércio; Indústria; Projeção regional; Diamantina; Século XIX

ABSTRACT

This paper analyzes the commerce and industry of the Diamantina in the years 1870-1920, emphasizing its regional projec- tion and their links with the mining. Here are discussed the factors that made fragile and temporary the condition of Diamantina like polarizing center of the North of Minas. The fonts used are mainly registry record and local newspapers.

Keywords:
Commerce; Industry; Regional projection; Diamantina; Nineteenth century

No século XIX e início do século XX, os serviços de mineração de diamante no entorno de Diamantina constituíram o centro dinâmico da economia regional. A cidade integrava a lista dos poucos polos que galvanizavam a vida política e cultural nas terras mineiras, ao lado de Ouro Preto, Juiz de Fora, Barbacena, São João Del Rei e Uberaba (SENNA, 1907SENNA, Nelson de. Anuário Estatístico de Minas Gerais. Belo Horizonte: Imprensa Oficial , 1907., p. 468).

A "economia do diamante" propiciou a formação de circuitos comerciais relevantes, ao mesmo tempo em que possibilitou esforço de diversificação das atividades produtivas. Neste artigo, pretende-se estudar o complexo econômico que se articulava pelo diamante no período 1870-1920, abrangendo grande parte do Norte de Minas. Isso significa identificar os circuitos comerciais comandados pelos negociantes de Diamantina, as firmas locais - mercantis e industriais - e sua atuação no espaço econômico regional. Duas questões nortearão a análise: teria havido uma fração dos homens de negócio em Diamantina que se pudesse caracterizar como um embrião de burguesia, similar à burguesia cafeeira paulista, uma "burguesia do diamante"? Por que Diamantina perdeu sua posição privilegiada como praça comercial e industrial a partir dos anos 1920?

O comércio de Diamantina e sua projeção regional

Na virada do século XIX para o século XX, Diamantina era o destino de negociantes e tropeiros provenientes de diversas áreas do Norte de Minas Gerais. Eles vinham para a cidade vender mantimentos, gado, cachaça, rapadura, algodão, peixe salgado, fumo, solas e, na volta, carregavam produtos manufaturados, remédios, sal, querosene, pólvora, munição, joias. Deslocavam-se pelos sertões de Minas até 50 ou 60 léguas. Para leste, havia os que rumavam a lugares como Peçanha, Guanhães e Teófilo Otoni; ao sul, muitos iam em direção de Conceição do Mato Dentro e Morro do Pilar; a oeste, para lugares como Barra de Guaicuí, Várzea da Palma e Pirapora; no rumo norte, viajavam mercadores de Januária, Montes Claros, Bocaiuva, Grão Mogol, Salinas e Rio Pardo de Minas; e, seguindo a calha do Rio Jequitinhonha, moviam-se tropeiros e lojistas de lugares como Araçuaí, Itaobim e Jequitinhonha. O mapa abaixo representa a área polarizada pelo comércio de Diamantina.

FIGURA 1

Na cidade havia lojas e armazéns para todo tipo de freguês, rico ou pobre, simples ou de gosto refinado. A multiplicidade de interesses do grande capital mercantil diamantinense será evidenciada na análise que se segue dos negócios das firmas Antônio Eulálio & Cia.; Ramos, Guerra, Araújo & Cia.; José Neves Sobrinho & Irmão; Motta & Cia. e Duarte & Irmão.

a) Antônio Eulálio & Cia.

Antônio Eulálio de Souza fez fortuna com mineração, comércio e lapidação de diamantes. Parte dessa fortuna foi empregada na criação de empresa de comércio atacadista e varejista, a firma Antônio Eulálio & Cia. Ela operou uma grande casa de comércio em Diamantina, bem como filiais em Rio Manso e Riacho das Varas. No estabelecimento de Diamantina, vendiam-se tecidos, armarinhos, roupas, louças, chapéus, calçados, perfumes, ferragens, manufaturados etc. Em 1907, data de fechamento do inventário de Antônio Eulálio de Souza, o saldo existente na casa comercial era de 174:320$580 rs.1 1 BAT. Inventário de Antônio Eulálio de Souza, Cartório do 2º Ofício, maço 83, 1907, fls. 8-9.

A Antônio Eulálio & Cia. estabeleceu parcerias com negociantes de outros municípios, estratégia pela qual buscou ampliar sua atuação e influência na região. Acordos desse tipo foram assinados com comerciantes de Curvelo, Montes Claros e do Vale do Jequitinhonha. Um deles envolveu a firma Ribeiro & Ribeiro, de Capelinha, dirigida por Leonardo Antônio Ribeiro e Antônio Paulino Ribeiro. Em 1º de maio de 1898, Antônio Eulálio de Souza e os Ribeiros registraram contrato de associação, com validade prevista até 30 de abril de 1900, objetivando a compra e venda de fazendas, armarinho, ferragens, molhados, louça, sola, cabedais, calçados e gêneros do país, por atacado e varejo. A empresa resultante da associação possuía capital de 31:209$325 rs, sendo 20 contos de réis de Antônio Eulálio & Cia. e 11:209$325 rs de Ribeiro & Ribeiro. A gerência ficava a cargo dos Ribeiros, cabendo o provimento de mercadorias para o estabelecimento de Capelinha a Antônio Eulálio & Cia. Os lucros seriam divididos da seguinte forma: uma terça parte para o sócio diamantinense, duas terças partes para os Ribeiros.2 2 BAT. Livro de Notas n. 23, Cartório do 1º Ofício, maço 43, fls. 36v-37.

b) Ramos, Guerra, Araújo & Cia.

Esta firma, cujo principal sócio era Antônio de Almeida Ramos, atuava no comércio por meio da casa O Primeiro Barateiro, ampla loja situada no centro de Diamantina, na qual eram vendidos gêneros do país e mercadorias importadas da Europa.3 3 Os outros sócios eram Francisco Pinheiro Costa, Antônio Cícero de Menezes e Edgardo Eulálio de Souza.

A empresa atuou na lavra de diamantes, inclusive em sociedade com companhias organizadas no exterior (Companhia Boa Vista) e no Rio de Janeiro (Companhia Brasileira Diamantífera). Os sócios também foram prestamistas. Aqui, cita-se apenas um exemplo. Em 29 de abril de 1915, foi registrada escritura de datio in solutum entre William George Meyer, sua mulher Jane George Meyer e Antônio de Almeida Ramos, para pagamento da quantia de 18:356$000 rs. Tal quantia havia sido emprestada por Almeida Ramos a William Meyer em 5 de setembro de 1910. Para quitar o débito, Meyer hipotecou uma morada de casas em forma de chalé de sobrado, com terreno e água do rego público, bem como o mobiliário existente no imóvel.4 4 BAT. Escritura de dívida, Livro de Notas n. 31, Cartório do 1º Ofício, maço 496, fls. 58-61v.

Na prestação de serviços públicos, a firma estabeleceu contratos tanto em Diamantina quanto em Curvelo. Em 10 de janeiro de 1910, o Coronel Augusto Afonso Caldeira Brant, Agente Executivo de Diamantina, assinou contrato com a empresa para a iluminação elétrica da cidade. A concessão para a companhia era de vinte e cinco anos, podendo ser prorrogada. O governo municipal pagaria à empresa doze contos de réis anuais, com desembolsos trimestrais, além de isentar a firma de impostos municipais. A Câmara também se comprometia a requisitar da União isenção dos impostos alfandegários e de transporte do material elétrico. No prazo de dois meses a contar da assinatura do contrato, a Ramos, Guerra, Araújo & Cia. deveria instalar seis arcos voltaicos de 1.200 velas e cento e sessenta lâmpadas de 32 velas, ligadas desde o escurecer até o clarear do sol.5 5 BAT. Livro de Notas n. 27, Cartório do 1º Ofício, maço 496, p. 82v-85. Por mais de trinta anos, a empresa foi concessionária de eletricidade em Diamantina.

A partir de 1916, a empresa passou a fornecer eletricidade para Curvelo. Para isso, em 8 de julho de 1916, a Ramos, Guerra, Araújo & Cia. arrendou de Nicolino Guimarães Moreira terrenos em Paraúna (município de Diamantina) e Prata (município de Conceição do Serro), benfeitorias, casas de morar e para máquinas, usina elétrica, todas sitas no Paraúna. A empresa se obrigava a construir a linha de transmissão do Paraúna a Curvelo, com postes de madeira de lei, efetuar os serviços de barragem ou reforma do rego com bicame de 1500 metros. A voltagem não poderia ser inferior a 10 mil volts. O prazo do contrato seria de quatro anos. Findo este prazo, a usina com todas as benfeitorias acrescidas e os postes e isoladores da linha de transmissão seriam devolvidos à empresa diamantinense. Para garantia do contrato, no valor de 10 contos de réis, Nicolino Moreira hipotecou a usina de Pirapora, de sua propriedade.6 6 BAT. Livro de Notas n. 32, Cartório do 1º Ofício, maço 496, fls. 90-92v.

c) José Neves Sobrinho & Irmão

A firma José Neves Sobrinho & Irmão começou a funcionar no ano de 1906, com capital de 45 contos de réis. Em 8 de junho de 1921, o capital da firma foi elevado para 100 contos de réis.7 7 BAT. Concordata preventiva de José Neves Sobrinho. Livro de Notas n. 46, Cartório do 1º Ofício, maço 498, 1930, fl. 3. A empresa, além da compra e venda de diamantes, atuou na lapidação de pedras e no comércio atacadista e varejista. No ano de 1915, a firma adquiriu a lapidação da Formação (MARTINS, 2013MARTINS, Marcos Lobato. Estruturas e conjunturas da mineração de diamantes no século XIX em Minas Gerais. Seminário de História Econômica, Hermes & Clio (Grupo de Estudos e Pesquisa em História Econômica), São Paulo, FEA-USP, 20 mar. 2013.). Já no comércio, a firma possuía a casa Cruzeiro do Sul. Na década de 1920, havia duas lojas: a matriz na rua Dr. Joaquim Felício e a filial no Largo do Barão de Guaicuí. Nelas, o freguês encontrava enorme variedade de mercadorias.

Em 1930, a firma José Neves Sobrinho & Irmão enfrentava sérias dificuldades financeiras, o que a levou a pedir concordata. Nesse momento, os ativos da matriz da Cruzeiro do Sul eram de 209:900$000 rs em mercadorias; a filial tinha ativos de 240:900$000 rs (210:900$000 em mercadorias e 30:000$000 em contas a receber).8 8 BAT. Concordata preventiva de José Neves Sobrinho, fls. 12 e 13-14. José Neves, ao pedir concordata, propunha pagar integralmente os seus débitos e mais os juros de 6% ao ano, no prazo de ano e meio a partir da data de sentença homologatória da concordata. Isso lhe parecia possível, uma vez que as lojas Cruzeiro do Sul tinham vendido, no período de 12 de novembro de 1930 a 9 de janeiro de 1931, 38:782$000 rs.9 9 Conforme relatório apresentado à assembleia dos credores em 9 de janeiro de 1931, pelo comissário da concordata, Sr. Antônio Silvério Beltrão. A informação está na folha 89 da concordata preventiva de José Neves Sobrinho. Os bens do proprietário, por sua vez, alcançavam 271 contos de réis (141 contos em imóveis, 100 contos da lapidação da Formação, 20 contos em ações do Banco de Crédito Real de Minas Gerais e 10 contos em diamantes).10 10 BAT. Concordata preventiva de José Neves Sobrinho, fl. 14. Na relação das contas correntes inventariadas na casa filial Cruzeiro do Sul, havia como clientes em débito moradores nos municípios do Serro, Joaquim Felício, Guanhães, Coluna, Bocaiuva e Monjolos, além da indicação de que a empresa era fornecedora regular do Seminário Arquidiocesano de Diamantina e do 3º Batalhão da Força Pública de Minas Gerais. Na relação de duplicatas a pagar, havia empresas do Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Juiz de Fora, Lafaiete e Diamantina.

O balanço da firma José Neves Sobrinho & Irmão mostrava superioridade dos ativos (407:405$950 rs) sobre os passivos (340:741$250 rs). Os credores, todavia, não acreditaram na viabilidade da proposta do proprietário, pois julgaram que os créditos referentes às contas correntes não seriam recuperados no contexto da crise de 1929 e da Revolução de 1930.11 11 BAT. Concordata preventiva de José Neves Sobrinho, fl. 89. A poderosa firma diamantinense acabou liquidada.

d) Motta & Cia.

Sob a firma social Sampaio Motta & Cia., a empresa foi fundada pelo Coronel Fernando Martins Sampaio e o Comendador João Francisco da Motta. Em 1895, retirou-se o sócio Fernando Martins Sampaio e a firma passou a ser simplesmente Motta & Cia.12 12 BAT. Relatório apresentado pelo síndico Nemísio Leão ao Juiz de Direito, em 10 de dezembro de 1936. Processo de falência de José Neto Motta, Cartório do 2º Ofício, maço 193, 1936, fl. 163. A empresa comandava O Grande Empório do Norte.13 13 BAT. Em O Município , n. 90, de 7 de novembro de 1896, a firma informou que comprara 200 contos de réis no Rio, tanto em 1895 quanto em 1896. No decênio de 1910, ela agrupava uma loja de 1ª classe, um armazém de gêneros alimentícios, um hotel e restaurante, uma farmácia, uma tipografia, uma agência de jornais e revistas e uma alfaiataria, ocupando quatro edifícios no centro de Diamantina.

A concessão de crédito para particulares constituía atividade regular da empresa. Para comprovar essa faceta das atividades de Motta & Cia., apresentam-se somente duas transações creditícias. A primeira é a inscrição n. 351, de 1º de dezembro de 1905. Por esse registro, o Dr. Catão Gomes Jardim, engenheiro, tomou emprestado a Motta & Cia. a quantia de 7:391$500 rs, pelo prazo de dois anos a juros de 6% ao mês, oferecendo como garantia casa com quintal e duas minas de água.14 14 BAT. Livro de Inscrição Especial n. 2, aberto em 31 de maio de 1866, fl. 194. A segunda é a escritura de dívida e hipoteca que fez José Cirilo dos Santos de um sobrado, coberto de telhas, localizado na rua Dr. Francisco Sá, para garantir o empréstimo de vinte contos de réis, realizado no dia 28 de abril de 1927. A operação tinha prazo de dois anos, com juros de 1% ao mês.15 15 BAT. Livro de Notas n. 43, Cartório do 1º Ofício, maço 498, fls. 83-84v. Conforme o relatório do síndico Nemísio Leão, nomeado em 28 de outubro de 1936 para gerir a falência de José Neto Motta, sucessor de Motta & Cia., "sua enorme freguesia depositava-lhe ilimitada confiança. Para seus cofres encaminhavam-se os vencimentos de funcionários públicos, os pagamentos destinados a firmas comerciais, e as economias particulares a juros superiores aos dos institutos oficiais". Por isso, "não seria exagero considerar-se o Grande Empório do Norte uma casa bancária, digna da confiança de seus comitentes".16 16 BAT. Relatório apresentado pelo síndico Nemísio Leão ao Juiz de Direito, em 10 de dezembro de 1936. Processo de falência de José Neto Motta, fl. 164.

A crise de 1929 mergulhou a empresa Motta & Cia. em uma situação de insolvência. No ano de 1936, a situação da firma agravou-se porque um credor, tendo exigido com insistência e alarde o seu pagamento, provocou uma corrida de credores, precipitando o pedido de falência de José Neto Motta no dia 24 de outubro de 1936. Em 28 de outubro, o Juiz de Direito de Diamantina decretou a falência da empresa. Em 19 de outubro, o inventário da firma apresentou as seguintes cifras:

QUADRO 1

Ao contrário do que aconteceu com José Neves Sobrinho & Irmão, a empresa Motta & Cia. viu seus credores, em reunião de 14 de dezembro de 1936, aceitarem sua proposta de concordata. A proposta homologada pelo Juiz de Direito estipulava: 1º) a firma obrigava-se a pagar 60% dos seus créditos na seguinte forma - 15% à vista (valor de 30 contos) e o restante do débito em seis prestações iguais quadrimestrais; 2º) a garantia do acordo seria procuração para administração ou alienação dos imóveis pertencentes a José Neto Motta; 3º) admissão de um fiscal dos credores para acompanhar as atividades comerciais.17 17 BAT. Processo de falência de José Neto Motta, fls. 153-157.

O Grande Empório do Norte, porém, nunca mais recuperou a pujança mercantil que tivera no período dos anos 1890-1910.

e) Duarte & Irmão

Na década de 1890, os irmãos Algemiro Pompoloni e João Gerundino Duarte possuíam um negócio de secos e molhados e participavam dos mercados imobiliário e de crédito. Na lista de contribuintes do imposto de indústrias e profissões, exercício de 1913, a firma Duarte & Irmão aparece como dona de negócio de 1ª classe e de uma filial, que incluía a venda de cachaça e bebidas a varejo, bem como de um estabelecimento de secos e molhados em sociedade com os remanescentes da família Santos, sob a firma Duarte, Irmão & Santos.

Na década de 1920, Duarte & Irmão controlavam inteiramente a Fábrica de Fiação e Tecidos Biribiri e seguiam comprando terras minerais nas margens do Caeté-Mirim e do Pinheiro. A Fábrica de Biribiri foi comprada do Banco Hipotecário do Brasil no ano de 1922. Para isto, a firma diamantinense utilizou parte de crédito no valor de 797:156$800 rs tomado no mesmo banco, em 13 de outubro de 1921, com prazo de quitação até 30 de setembro de 1929 e juro anual de 12%, com a Fábrica de Biribiri como garantia.18 18 BAT. Inscrição n. 530, Livro de Inscrição Especial n. 2, fls. 294-296.

Em plena crise da Grande Depressão, Duarte & Irmão recorreu a empréstimo do Banco de Crédito Real de Minas Gerais, concedido em 12 de março de 1930, no valor de 500 contos de réis, novamente com a Fábrica de Biribiri como garantia.19 19 BAT. Inscrição n. 13, Livro de Inscrição Especial n. 2, fls. 362-368. Essa transação indica, de um lado, a astúcia dos irmãos empresários e, de outro lado, o bom nome da firma no mercado mineiro. No ano do falecimento de Algemiro Duarte - 1933, o balanço da firma trouxe os seguintes dados:

QUADRO 2

O porte da firma a projetava muito além dos limites do município de Diamantina. Seus clientes estavam espalhados por grande parte do Norte de Minas Gerais, principalmente nos municípios de Serro, Minas Novas, Bocaiuva, Montes Claros e Curvelo.

A projeção regional do comércio de Diamantina também é indicada pelos muitos apontamentos de letras e protestos que existem na documentação cartorária da cidade. A seguir, apresentam-se somente três exemplos:

Aos cincos dias do mês de agosto de 1898, nesta cidade de Diamantina, [...] por Miguel de Almeida Teles me foi apresentada para apontar a letra do teor seguinte: Quinhentos mil réis. Da data desta a seis meses precisos, devo que pagarei ao senhor Antônio Coelho de Araújo, comerciante residente em Diamantina, ou a sua ordem, a quantia acima de quinhentos mil réis que recebi do mesmo em mercadorias. [...] Veridiano da Silva Ramos, negociante, residente em Capelinha.20 20 BAT. Livro de Notas n. 23, Cartório do 1º Ofício, maço 43, fls. 43-43v.

Instrumento de protesto de 27 de agosto de 1923. O sr. Mário da Mata Machado, Diretor do Banco de Crédito Real de Minas Gerais, apresentou para ser protestada por falta de pagamento a letra nota promissória no valor de dois contos de réis, com vencimento em 26 de agosto, emitida em Buenópolis, no dia 25 de maio de 1923, pelo negociante Abílio Tibúrcio em favor de João Evangelista Caldeira e Jaime Figueiredo Freitas, comerciantes de Diamantina.21 21 BAT. Livro de Notas n. 39, Cartório do 1º Ofício, maço 497, fls. 187-187v.

Por esta nota promissória obrigo-me a pagar ao sr. José Juca de Araújo, negociante de Diamantina, no dia 4 de janeiro de 1924 a quantia de oito contos de réis, valor recebido em mercadorias. Atanázio Marques de Azevedo, negociante. Várzea da Palma, 24 de outubro de 1923.22 22 BAT. Livro de Notas n. 40, Cartório do 1º Ofício, maço 497, fls. 34-34v.

Como se vê, as elites diamantinenses estavam cobertas de razão ao chamarem sua cidade de o grande empório do Norte. As maiores firmas comerciais diamantinenses dedicaram-se principalmente à redistribuição regional de mercadorias, parte delas importada do Rio de Janeiro, colocando-se no topo de uma rede de empreendimentos mercantis que abrangia todo o Norte mineiro.

Surto industrial no grande empório do Norte

Em Diamantina surgiram, no período 1870-1920, unidades manufatureiras cuja produção foi exportada para o mercado regional. Essa indústria de bens de consumo leves conseguiu concorrer, até a década de 1920, com a produção carioca e paulista no abastecimento de populações das bacias do São Francisco e do Jequitinhonha. Indústria fundada e comandada por homens que fizeram fortuna na mineração.

Este foi o caso do Comendador Serafim Moreira da Silva. Minerador, prestamista e comerciante, Serafim Moreira da Silva investiu na indústria de bebidas, na qual foi pioneiro em Diamantina, como havia sido no ramo da lapidação (MARTINS, 2013MARTINS, Marcos Lobato. Estruturas e conjunturas da mineração de diamantes no século XIX em Minas Gerais. Seminário de História Econômica, Hermes & Clio (Grupo de Estudos e Pesquisa em História Econômica), São Paulo, FEA-USP, 20 mar. 2013.). Tratava-se de pequena fábrica, fundada em 1875, sob a responsabilidade de Jacob Scheneider, alemão fabricante de cerveja em Juiz de Fora. Por contrato de 24 de setembro de 1875, o mestre cervejeiro receberia salário de 100$000 rs mensais nos primeiros seis meses de funcionamento da fábrica; daí em diante, o salário passaria a ser de 150$000 rs. Scheneider teria casa e sustento gratuitamente e obrigava-se a receber na fábrica uma pessoa para aprender a fabricar cerveja, recebendo 500$000 rs de gratificação pelo ensino. No fim do contrato, o Comendador pagaria as despesas do retorno de Scheneider a Juiz de Fora.23 23 BAT. Escritura de contrato e locação de serviços. Livro de Notas n. 9, Cartório do 3º Ofício, maço 162, fls. 19-20v. A cervejaria do Comendador Serafim Moreira da Silva funcionou até o ano de sua morte (1897).

Na década de 1910, Diamantina possuía duas pequenas fábricas de cerveja. Uma delas era a Cervejaria Tijucana, pertencente a Teófilo Batista de Melo Brandão. A outra era a Fábrica de Cerveja Barbieri, de Roberto Barbieri. Esta foi vendida, em 16 de maio de 1922, para João Ferreira Paulino, negociante residente em Grão-Mogol, pela quantia de quatro contos de réis. O contrato do negócio mostra o tipo de instalações que essas cervejarias diamantinenses possuíam: casa coberta de telhas, três máquinas de arrolhar (uma para cápsulas e duas para rolhas), uma máquina de engarrafar automática, três tonéis alemães, três pipotes grandes, duas caldeiras para ferver cevada de 500 l cada, um moinho grande para cevada, uma máquina para chopp, uma balança decimal para até 100 kg; uma máquina para gelo até 50 g.24 24 BAT. Livro de Notas n. 38, Cartório do 1º Ofício, maço 497, fls. 92v-93v.

A produção de vinho também alcançou destaque. A cidade ficava atrás apenas de Andradas na produção da bebida no estado. Os jornais traziam anúncios das vinícolas locais, dos quais se apresentam aqui dois exemplos, ambos do jornal A Idéa Nova. Em 1º de junho de 1909, noticiava-se a fabricação de vinho na Quinta do Palácio Episcopal, onde o preço do barril era de 40$000 rs e, da garrafa, 1$300 rs. Em 11 de setembro de 1910, o anúncio era do vinho fabricado na quinta de Sebastião Rabelo, sob a supervisão de Pedro Orlandi, imigrante italiano. Nesta quinta, o barril de vinho tinto vendia-se a 35$000 rs, a garrafa de vinho tinto a 1$000 rs, o barril de vinho branco a 55$000 rs e a garrafa de vinho branco a 1$500 rs. Conforme Nelson de Senna (1913SENNA, Nelson de. Anuário corográfico, estatístico e histórico do Estado de Minas Gerais 1913. Belo Horizonte: Imprensa Oficial , 1913., p. 397), em 1912 a produção vinícola no distrito da cidade já era bem grande. O principal produtor era o Seminário, com média anual de 14 mil garrafas. Outros destacados produtores foram Sebastião Ferreira Rabelo, J. E. Coutinho e, em Gouveia, Leonel Alves Ferreira (JACOB, 1911JACOB, Rodolpho. Minas Geraes no XXº século. Rio de Janeiro: Gomes, Irmão & Cia., 1911. v. 1., p. 312).

A produção diamantinense de cerveja e vinho foi exportada nas caravanas de muares para lugares como Serro, Curvelo, Bocaiuva, Montes Claros, Minas Novas e Araçuaí.

Outro capitão de indústria local foi Antônio Moreira da Costa, o Barão de Paraúna. Impulsionado pelos negócios pedristas, o Barão se associou aos Mata Machado no empreendimento da Fábrica de Tecidos Santa Bárbara. Ele fundou duas indústrias em Diamantina: uma de chapéus e outra de álcool. A Moreira & Cia. usava maquinário a vapor para produzir chapéus de pelo de lebre e de lã. O capital era de trinta contos de réis. Após a morte do Barão, a fábrica foi comprada pela Companhia Chapelaria Norte de Minas, que transferiu o maquinário e a sede da empresa para o distrito de Santo Antônio da Gouveia, em 1º de julho de 1893.25 25 BAT. Contrato de sociedade da Cia. Chapelaria Norte de Minas. Livro de Notas n. 21, Cartório do 1º Ofício, maço 43, fls. 46-50. Conforme Rodolpho Jacob (1911JACOB, Rodolpho. Minas Geraes no XXº século. Rio de Janeiro: Gomes, Irmão & Cia., 1911. v. 1., p. 312), os chapéus de feltro fabricados pela Companhia Chapelaria Norte de Minas rivalizavam na região com os similares oriundos do Rio de Janeiro.

No distrito de São Gonçalo do Rio Preto, Antônio Moreira da Costa, em parceria com os irmãos Mata Machado, fundou, em 8 de fevereiro de 1893, a empresa Companhia Industrial Rio Pretana, com capital social de 50 contos de réis. A companhia operou sistema aperfeiçoado de engenho e destilaria, destinado à produção de álcool e açúcar, e beneficiava algodão, com o emprego de descaroçadores.26 26 As informações sobre a Companhia Industrial Rio Pretana são tiradas de Fernando da Mata Machado (2006, p. 37). Em 1896, o jornal O Município publicou anúncio da empresa nos seguintes termos:

Esta companhia, dispondo de aperfeiçoados aparelhos de destilação, acaba de iniciar a fabricação de superior álcool de 32 a 40 graus, igual ao que é importado do Rio, podendo favorecê-lo por preços relativamente muito inferiores ao deste. Espera, portanto, que os srs. comerciantes e industriais, tanto deste município como do Norte, darão preferência aos seus produtos realizando assim suas compras com grande vantagem.27 27 BAT. O Município , ano 3, n. 81, 21 de agosto de 1896.

Em viagem pela região, o Segundo Secretário da Legação Britânica no Rio de Janeiro, H. D. Beaumont, visitou as instalações da companhia. Beaumont escreveu, em 1899, que ficara muito bem-impressionado com as lavouras de algodão e cana-de-açúcar existentes na fazenda da companhia e na região de Rio Preto. Porém, notara que o maquinismo do engenho estava deteriorado, fato que atribuiu a erros verificados na operação do equipamento pelos empregados, levando a paralisações constantes e demoradas.28 28 BAT. O Município , 16 de junho de 1900.

Dois negociantes de diamantes, Anselmo Pereira de Andrade e Daniel do Nascimento Lima formaram uma sociedade industrial no ano de 1912. Eles se juntaram a Nelson Fernandes, minerador residente em São João da Chapada, na firma Andrade, Lima & Fernandes, com fundo social de trinta contos de réis. A empresa objetivava explorar a marcenaria e a serraria a vapor, bem como instalar dezesseis rodas de lapidação (três para pedras preciosas e as demais para diamantes). Cada sócio entrou com dez contos de réis, e ambos ficaram encarregados da direção, gerência e trabalhos da fábrica de móveis e da lapidação. A marcenaria fazia confecção de mobílias, aparelhamento de madeiras, tabuados e dormentes. A firma também fazia compra e venda de madeiras e materiais acessórios, construção e reconstrução de casas. Para a montagem da serraria em Monjolos, o sócio Anselmo Pereira de Andrade entrou com mais dezesseis contos de réis. No que se refere à lapidação, a unidade beneficiava por conta própria topázios, esmeraldas e águas-marinhas. A lapidação de diamantes era feita pelo sistema de aluguel das rodas.29 29 BAT. Escritura de contrato de sociedade. Livro de Notas n. 29, Cartório do 1º Ofício, maço 496, fls. 46v-49.

Para garantir o fornecimento de madeira à empresa, em 18 de junho de 1913 o Major Anselmo Pereira de Andrade comprou de Dona Ana Vieira Leite terras das fazendas de Santa Paula (Santo Hipólito), Saguim e Monjolos (sitas no distrito de Nossa Senhora do Glória) pela quantia de 2:628$596 rs.30 30 BAT. Escritura de venda. Livro de Notas n. 29, Cartório do 1º Ofício, maço 496, fls. 74v-77v.

As máquinas da serraria foram adquiridas no Rio de Janeiro, na casa Schill & Comp. - um torno velox para metal com adaptação para o torneio de madeira, máquina de furar, máquina combinada universal com serra circular para cortar toras de madeira de lei e motor de 40 hp. Havia ainda ferraria completa e um moinho de fubá com capacidade de 80 litros. A lapidação contava com motor de 15 hp.31 31 BAT. A Idéa Nova , ano 7, n. 317, 12 de maio de 1912. A empresa Andrade, Lima & Fernandes operou por mais de quinze anos. Não resistiu à crise de 1929.

O setor industrial mais importante em Diamantina no período 1870-1920 foi o têxtil. O impulso originário foi lançado pelo Bispo de Diamantina, Dom João Antônio dos Santos, em documento enviado à Câmara Municipal, em 1874, propondo medidas para enfrentar a crise da mineração. Em 1911, havia as fábricas de Biribiri, Perpétua, São Roberto e Santa Bárbara. Em Biribiri, a produção anual era de cerca de 1.200.000 m de tecidos; na Santa Bárbara, a produção anual era de 1.000.000 m de tecidos. A Fábrica de São Roberto produzia anualmente 900.000 m de americanos e riscados. A da Perpétua estava parada (JACOB, 1911JACOB, Rodolpho. Minas Geraes no XXº século. Rio de Janeiro: Gomes, Irmão & Cia., 1911. v. 1., p. 274). O quadro abaixo apresenta dados sobre essas fábricas no ano de 1908:

QUADRO 3

A sociedade Alves, Ribas, Ribeiro & Cia., fundada em 24 de julho de 1887, com capital de 120 contos de réis, construiu e operou por mais de quarenta anos a Fábrica de Fiação e Tecidos de São Roberto. O principal responsável pela iniciativa foi Quintiliano Alves Ferreira, fazendeiro, minerador e comerciante de diamantes, residente em Gouveia, que se tornaria o Barão de São Roberto. A empresa, uma sociedade de ações por comandita, teve sócios de localidades pertencentes aos municípios de Diamantina, Serro e Conceição do Serro.32 32 BAT. Registro de contrato mercantil, Livro de Notas n. 20, maço 43, fls. 38v-45. Conforme o documento de constituição da Alves, Ribas, Ribeiro & Cia., a Fábrica teria um fundo de reserva com recursos de 5% do lucro líquido (até a importância de 20 contos de réis), empregado para suprir desfalque de capital, melhoramento e aumento do maquinismo. Esse fundo deveria ser posto a juros pelo presidente em estabelecimento de sua confiança.

Em 22 de abril de 1894, a Assembleia Geral dos Sócios e Acionistas da empresa deliberou aumentar o capital de 120 para 210 contos de réis, por meio dos lucros suspensos existentes.33 33 BAT. Registro da ata da assembleia de Alves, Ribas, Ribeiro & Cia., Livro de Notas n. 22, maço 43, fls. 22v-24v. Em 10 de abril de 1895, registraram-se os Estatutos da Companhia Fiação e Tecidos São Roberto, fazendo-se a transformação em sociedade anônima. Nessa ocasião, os bens inventariados da empresa alcançavam 450:763$288 rs (300 contos de capital social e 158:763$288 rs para solver compromissos da firma antecessora). Na diretoria da Companhia houve o acréscimo de novo posto: o de agente comercial, a quem competiria providenciar a venda dos produtos em todo o Norte de Minas.34 34 BAT. Registro de Estatutos, Livro de Notas n. 22, Cartório do 1º Ofício, maço 43, fls. 53v-59v.

Neste documento, existe uma relação dos ativos da Companhia, a saber: terras de cultura e de criar da fazenda Cachoeira; edifício da fábrica; um moinho; casa grande de escritório; depósito de tecidos; dois depósitos de algodão; duas casas para diretores; um armazém; um rancho de tropas; uma oficina de ferreiro; vinte e cinco moradas para operários; completo maquinismo com sobressalentes, fabricado na Inglaterra e suficiente para preparar linhas para 46 teares. Dentre os teares, havia um largo para pano enfestado, dois para tecidos em xadrez, dois para xadrezes e fantasias, seis para trançados e trinta e cinco para algodões lisos, tudo movido a água canalizada em rego de um quilômetro.

Duas observações importantes a respeito do funcionamento da Fábrica São Roberto devem ser feitas. Os operários compravam mantimentos no armazém da própria fábrica. No fim do mês, o envelope do salário era riscado. Quando sobrava algum saldo em favor do empregado, este era dado na forma de "vale-compras". Por outro lado, quando a fábrica enfrentava falta de algodão, havendo paralisação mais longa dos trabalhos, a crise era superada por meio da concessão temporária de garimpos para alguns funcionários.35 35 BAT. Depoimento de Manoel Alves Costa, publicado no Jornal da ACIASGO , n. 1, outubro de 2003. Manoel Alves Costa, nascido em 1926, foi operário da Fábrica São Roberto desde garoto e nela trabalhou por 35 anos. ACIASGO é a Associação Comercial, Industrial, Agropecuária e de Serviços de Gouveia. O que eles tiravam desses garimpos nas terras da Companhia era o que lhes servia para o sustento, pois a fábrica não pagava salários durante a crise.

Em março de 1910, o jornal A Estrela Polar publicou o balanço geral da Companhia:

QUADRO 4

Chama a atenção o número de devedores da Fábrica São Roberto. A empresa tinha a receber créditos que correspondiam a 34, 3% dos seus ativos, constituídos por transações numerosas, miúdas, a prazo. Créditos de morosa e difícil recuperação, exemplificados pelo protesto de 8 de janeiro de 1918 contra um comerciante de Bocaiuva.36 36 "O sr. Juscelino Pio Fernandes, Diretor da Fábrica Fiação e Tecidos São Roberto de Gouveia, apresentou para ser protestada, por falta de pagamento no dia do vencimento, a letra de Nota Promissória, no valor de 2:500$000, emitida por Francisco Minervino dos Anjos Fróes, residente em Bocaiúva. A letra fora emitida em 8 de janeiro de 1916, para vencimento em 8 de janeiro de 1918". BAT. Livro de Notas n. 34, Cartório do 1º Ofício, maço 497, fls. 18v-19. Este fato, comum nos balanços da empresa, fragilizava sua capacidade de resistir a abalos financeiros repentinos.

Após a morte do Barão de São Roberto, a direção da Companhia passou para Juscelino Pio Fernandes, fazendeiro e grande minerador. Sob o seu comando a empresa ficou até a crise de 1929, que provocou o fechamento da fábrica. Levada a leilão no Fórum de Diamantina, a Fábrica São Roberto foi arrematada por investidores liderados pelo Dr. Alexandre Diniz Mascarenhas.

A sociedade Oliveira Neves & Cia., fundada em 1893, explorou, no lugar denominado Perpétua, uma fábrica de tecidos. A empresa teve capital inicial de 30 contos de réis, integralizados pelos sócios João de Souza Neves (gerente), Albino de Oliveira Cunha, José Teixeira de Souza Neves e João Teixeira de Souza Neves, portugueses residentes em Diamantina.37 37 BAT. Contrato de sociedade, Livro de Notas n. 22, Cartório do 1º Ofício, maço 43, fls. 24v-25v. Os irmãos Souza Neves negociavam ouro e diamantes e confeccionavam joias. A fábrica, modesta, produzia casimiras inglesas. Seu funcionamento foi irregular, marcado por dificuldades financeiras e operacionais. Em 1899, sobreveio a paralisação em função do processo de execução da empresa movido por Guilhermina Cândida Dayrell e Henry Rogers Sons & Comp. No auto de penhora, vê-se que a Fábrica da Perpétua compreendia as seguintes instalações: edifício da fábrica, dormitório para as operárias, casa de telhas com cômodo de negócios, depósito de fazendas, rancho de tropas, duas casas para operários, um moinho, um rancho de capim e parte de terras na fazenda da Felizarda, no Angu-Duro. Os principais equipamentos eram: 18 teares, uma engomadeira, uma caldeira, 36 lançadeiras, uma carretelheira com acessórios, uma turbina, uma urdideira com acessórios, uma caneleira e uma prensa hidráulica.38 38 BAT. Processo de execução, Cartório do 1º Ofício, maço 121, fls. 2v-3v.

A avaliação dos bens penhorados alcançou 72:520$000 rs.39 39 BAT. Processo de execução, Cartório do 1º Ofício, maço 121, fl. 9. No mês de abril de 1899, houve leilão desses bens, arrematados pelos executantes no valor de 52:336$000 rs. Em dezembro do mesmo ano, os executantes transferiram a Fábrica aos senhores João Francisco da Motta e Cosme Alves do Couto. Mas a poderosa empresa mercantil Motta & Cia. não promoveu a sua recuperação efetiva. Em 1901, a Fábrica da Perpétua voltou a funcionar por período curto, até 1906.

Um mapa feito pelo engenheiro David Jardim mostra que nela se combinavam atividade industrial, mineração e agricultura.40 40 Arquivo Público Mineiro. Coleção de Documentos Cartográficos. Mapa do terreno da Fábrica de Tecidos da Perpétua - Firma Motta, Leite Couto & Cia. APM-022. Datado de 30 de março de 1903, o mapa assinalou nos terrenos da empresa escavações e regos de mineração, terrenos cultivados, moinhos para milho, tanque para irrigação, currais, pastos para bovinos e ovinos, rancho de tropa, casas de curtume e de ferreiro. As instalações fabris incluíam casa de turbina, tanque da turbina, casa de caldeira e casa dos pilões para a trituração de cascas.

a) Os Felício dos Santos e a Fábrica de Tecidos de Biribiri

A família Felício dos Santos transferiu-se do Serro para Diamantina no início do século XIX. Antônio José dos Santos, casado com Maria Jesuína da Luz, foi encarregado da Real Fundição de Ouro da Vila do Príncipe. O casal teve seis filhos: João Antônio dos Santos (1818-1905), o primeiro bispo de Diamantina; Antônio Felício dos Santos (1815-1897), comerciante de diamantes, revolucionário de 1842;41 41 O Major Antônio Felício dos Santos foi pai do Dr. Antônio Felício dos Santos (1843-1931), médico, deputado geral diversas vezes, presidente da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional e presidente do Banco do Brasil. Joaquim Felício dos Santos (1828-1895), autor das Memórias do Distrito Diamantino e do Projeto do Código Civil, advogado, jornalista, deputado geral e senador; Maria Silvana, casada com Josefino Vieira Machado, Barão de Guaicuí (1814-1879); Silvana Maria, consorte de Pedro de Alcântara Machado, revolucionário de 1842, deputado e mais tarde diretor do Banco do Brasil; e Feliciano Amador dos Santos, explorador de diamantes.

Quando sobreveio a crise internacional de preços do diamante, Dom João Antônio dos Santos defendeu a ideia de que a saída para a crise seria o fomento do setor industrial. O Bispo de Diamantina incitou seus irmãos a fundar uma tecelagem. Em 1876 surgiu a empresa Santos & Cia., cujos sócios eram: Major Antônio Felício dos Santos, Dr. Joaquim Felício dos Santos, Dr. Antônio Felício dos Santos (médico) e Capitão João Felício dos Santos, ambos sobrinhos do Bispo Dom João. O capital inicial da empresa era de 30 contos de réis (COUTO, 2002COUTO, Soter Ramos. Vultos e fatos de Diamantina. 2. ed. Belo Horizonte: Armazém de Ideias, 2002., p. 302).

A maquinaria para montagem da Fábrica de Tecidos de Biribiri foi adquirida em Massachusetts (EUA) e começou a funcionar em 6 de janeiro de 1877 (NEVES, 1960NEVES, José Teixeira. Aspectos do século XIX na vida de um prelado mineiro. Revista do Livro, Rio de Janeiro, ano 5, n. 20, p. 49-59, dez. 1960., p. 55). Nos primeiros anos, Biribiri ocupou 63 operários (nove homens, 36 moças e 18 meninos), que manobravam 80 teares. Depois, a fábrica passou a trabalhar com 110 teares e 210 operários, sendo 180 moças. A situação da firma deteriorou-se no contexto do Encilhamento e da crise econômica que a ele se seguiu.

No clima de euforia da inauguração da República, a empresa tomou vultosos empréstimos bancários. Em 9 de janeiro de 1889, Santos & Cia. solicitou ao Banco do Comércio, no Rio de Janeiro, empréstimo no valor de 100 contos de réis, a juros de 8% ao ano pagos semestralmente. O vencimento da operação era o ano de 1903. A garantia apresentada foi a Fábrica de Biribiri. Este empréstimo foi quitado em outubro de 1891.42 42 BAT. Escritura de empréstimo, Livro de Inscrição Especial n. 2, inscrição n. 247, fls. 132-133.

Neste documento há uma descrição das instalações da Fábrica de Biribiri em 1888, que se transcreve abaixo:

O edifício da fábrica de fiação e tecidos tem 58 teares filatórios, cordas, alandra e todos os mais acessórios movida por uma turbina de força de 150 cavalos, diversos maquinismos para mover os trinta teares com o peso de 4.630 arrobas. Há outro com uma tinturaria a vapor com todos os seus acessórios [...], uma casa de carpintaria com serra circular, também movida pelo motor da fábrica de tecidos, um forno de fundição de ferro [...], uma casa de oficina de ferreiro com dois tornos de ferro, máquina de furar e aplainar ferro, movida pelo motor da fábrica. A duzentos metros da mesma fábrica há um outro edifício com fábrica de lapidação de diamantes, tendo 42 rodas. A quatrocentos metros há uma fundição de bronze e uma pequena fundição por meio de cadinhos para as peças pequenas da fábrica. Uma grande casa de depósito para algodão em rama, outra de depósito de tecidos. Três grandes casas de morada dos diretores, uma do diretor da lapidação, uma dos operários, um refeitório grande, etc. Um grande armazém para mantimentos e um moinho de pedra para milho. A área da fábrica contava sete léguas quadradas de terras de plantar e campos. Todos os bens estimados no valor de 550 contos de réis.

Rotineiramente, para satisfazer suas necessidades de capital de giro e crédito, a empresa recorreu a aportes feitos por pessoas como Antônio Felício dos Santos e Luiz de Rezende. Em 21 de novembro de 1898, a empresa recorreu a empréstimo do Banco Hipotecário do Brasil no valor de 165 contos de réis, com juros de 8% ao ano e prazo até 1º de janeiro de 1904. Novamente, a Fábrica foi dada como garantia.43 43 BAT. Escritura de empréstimo, Livro de Inscrição Especial n. 2, inscrição n. 298, fl. 168. Dessa vez, porém, a operação não foi quitada. No quadro recessivo do ajuste conduzido pelo Ministro da Fazenda Joaquim Murtinho, a Fábrica de Biribiri não conseguiu gerar recursos suficientes para saldar a dívida. Caiu, então, no controle da instituição financeira carioca. No ano de 1922, Biribiri foi vendida para os irmãos Duarte. Biribiri produziu panos de algodão até a década de 1960, quando foi definitivamente desativada.

b) Família Mata Machado e negócios modernos

A fortuna da família Mata Machado também foi formada nas lavras diamantinas. O patriarca, João da Mata Machado, prosperou como minerador e negociante de diamantes a partir de 1845. A atividade de prestamista contribui para ampliar sua fortuna, dando-lhe meios de educar seus filhos: João da Mata Machado Júnior (1850-1901), Álvaro da Mata Machado (1853-1925), Pedro da Mata Machado (1865-1944), Maria Amélia, Virgínia Amélia e Amélia Senhorinha.

João da Mata Machado Júnior, o Conselheiro Mata, foi pioneiro da indústria da lapidação de diamantes ao fundar, em 1875, a lapidação da Formação (MARTINS, 2013MARTINS, Marcos Lobato. Estruturas e conjunturas da mineração de diamantes no século XIX em Minas Gerais. Seminário de História Econômica, Hermes & Clio (Grupo de Estudos e Pesquisa em História Econômica), São Paulo, FEA-USP, 20 mar. 2013.). Os irmãos Mata Machado foram sócios de empresas industriais instaladas no vasto município de Diamantina. Uma delas foi a Companhia Industrial Rio Pretana, examinada anteriormente. O investimento dos Mata Machado nessa companhia indica a preocupação deles com o abastecimento regular de matérias-primas necessárias aos demais empreendimentos que comandavam. Os dirigentes das fábricas têxteis do Norte de Minas procuravam fazer acordos com fazendeiros para obter o algodão de que precisavam. Assim agiram, por exemplo, a Companhia Cedro e Cachoeira dos irmãos Mascarenhas e a Santos & Cia., dos irmãos Felício dos Santos. Nesse sentido, a participação dos Mata Machado na Companhia Industrial Rio Pretana configurou uma novidade em termos de estratégia empresarial, hoje denominada de integração vertical da cadeia produtiva.

Os Mata Machado quiseram agregar capitais dispersos, colocá-los a serviço de atividades integradas numa única estrutura de gestão, transporte, financiamento e comercialização, centrada em Diamantina. Assim surgiu a Companhia Indústria e Comércio do Norte de Minas, por esforço do Dr. Álvaro da Mata Machado. Criada em 1891 e sediada no Rio de Janeiro, era um holding reunindo empreendimentos espalhados pela região.

O capital inicial da Companhia somou dois mil contos de réis. A empresa atuaria na mineração, criação de gado, produção de charque, comércio de animais, cultura da uva e indústria vinícola, pesca e indústria pesqueira, indústria de velas, ceras, curtumes, solas, borracha de mangabeira, cultivo de cacau, café e baunilha, exploração de matas e na colonização e assentamento de "classes pobres".44 44 BAT. O Serro , n. 2, 1891. Sua área de atuação compreendia Guanhães, Peçanha, Minas Novas, Itamarandiba, Montes Claros, Bocaiúva, Curvelo, Santo Hipólito.

Embora encontrasse muitas dificuldades para funcionar, pois não recebeu a esperada resposta das "classes conservadoras", a Companhia realizou alguma coisa. Por sua iniciativa surgiram parreirais no Rio Preto, Diamantina, Datas, Gouveia e Serro. Os vinhedos próprios da Companhia alcançaram a cifra de 35 mil, mas havia carência de pessoal habilitado para a viticultura.45 45 BAT. Acervo José Teixeira Neves, Caderno 3, Caixa 2. Centenas de alqueires de milho foram plantados no Serro.46 46 BAT. O Município , n. 89, 1895. Suas fazendas do Bananal e do Capão Grosso ficaram famosas por suas lavouras de café e seus rebanhos bovinos. Numa chácara a seis quilômetros de Gouveia, a Companhia instalou uma "fábrica de curtume" de couros, que, em pleno funcionamento, entrou como parte das garantias oferecidas pela firma na ocasião da tomada de empréstimo, em 1895, no Banco de Crédito Real do Brasil, no valor de setenta e cinco contos de réis.47 47 BAT. Livro de Inscrição Especial n. 2, inscrição n. 280, de 1º de novembro de 1895, fl. 168. A seção bancária da Companhia chegou a fornecer pequenos créditos aos moradores de Diamantina, como ilustram os seguintes registros:

Inscrição n. 259, 15 de junho de 1891. Devedores: Maria Josefina da Silva, Tereza Josefina da Silva, Francisco Antônio da Silva, Júlia Augusta da Silva e Luiz Antônio da Silva. Valor do empréstimo: 500$000. Prazo: 18 meses. Juros: 10% ao ano. Garantia: casa com quintal, pasto e água de mina.48 48 BAT. Livro de Inscrição Especial n. 2, fl. 144.

Inscrição n. 262, 13 de outubro de 1891. Devedor: Antônio Augusto de Queiroga. Valor: 500$000. Prazo: um ano. Juros: 10% ao ano. Garantia: casa baixa coberta de telhas.49 49 BAT. Livro de Inscrições Especial n. 2, fl. 148.

Inscrição n. 263, 16 de outubro de 1891. Devedor: José Martins de Oliveira. Valor: 200$000. Não consta prazo. Sem juros. Garantia: cômodo de negócios situado no Beco do Mota.50 50 BAT. Livro de Inscrições Especial n. 2, fl. 148.

Inscrição n. 266, 5 de agosto de 1893. Devedor: Joaquim José Pedro Lessa. Valor: 4:300$000. Prazo: dois anos. Juros: 10% ao ano. Garantia: cinco casas.51 51 BAT. Livro de Inscrição Especial n. 2, fl. 150.

Em Diamantina, a Companhia possuía um Depósito Geral e Armazém, onde realizava a comercialização de fazendas, móveis, utensílios e "gêneros do país". No ano de 1894, o Depósito e o Armazém foram vendidos para a Sociedade Mercantil Libano & Francelino.52 52 BAT. Livro de Notas n. 22, Cartório do 1º Ofício, maço 43, fls. 19v-21v.

O mais conhecido empreendimento dos irmãos Mata Machado foi a Companhia de Santa Bárbara, fábrica de tecidos construída no distrito de Curimataí. A Fábrica de Tecidos de Santa Bárbara foi iniciativa liderada pelo Conselheiro João da Mata Machado Júnior. Fundada em 1886, a Companhia foi organizada sob a espécie de comandita simples, com capital inicial de 160 contos de réis. A sociedade Mata Machado, Moreira & Cia. levou dois anos para construir as instalações e adquirir os equipamentos. Em 22 de maio de 1888, a Fábrica começou a funcionar com 60 teares. A 2 de dezembro de 1889 transformou-se em sociedade anônima, com o nome de Companhia de Fiação e Tecidos Santa Bárbara, com capital elevado para 500 contos de réis. Em agosto de 1895, a fábrica possuía 72 teares, dos quais 60 para algodão liso e trançado, 10 para xadrez e dois para Jacquard (MATA MACHADO, 2006MATA MACHADO, Fernando da (org.). A Companhia de Santa Bárbara: um caso da indústria têxtil em Minas Gerais. Rio de Janeiro: Topbooks, 2006., p. 29-45).

Sobre o projeto da fábrica, em 1885 o Conselheiro Mata Machado publicou no Rio de Janeiro opúsculo intitulado Fábrica de Tecidos de Algodão em Santa Bárbara (Vale do Rio das Velhas). Seu objetivo era duplo: anunciar o projeto empresarial da família e estimular capitalistas da Corte a investirem nele. O Conselheiro iniciou o texto discutindo o cenário mineiro que ele julgava promissor para a indústria têxtil, pois diversos fatores contribuiriam para a rentabilidade dos cotonifícios na província: a ampla disponibilidade de matéria-prima; o porte razoável do mercado mineiro (cerca de três milhões de habitantes); o "largo e forçado" consumo de algodão. Nas Minas, escreveu o Conselheiro, os salários eram inferiores em 50% aos da Corte e havia "meios de subsistência obtidos a preços ínfimos". Mais importante: no Norte de Minas existia "uma grande massa de povo moralizado e trabalhador" para mão de obra das fábricas. Os preços baixos dos terrenos e das aguadas para os motores e a barateza das construções contribuíam para reduzir os investimentos iniciais. O Conselheiro ainda se referiu à crise da economia do diamante, fator que forçaria a realocação de capitais e mão de obra em outros setores econômicos. Finalmente, João da Mata Machado Júnior escreveu que existia uma "circunstância que protegia a indústria de fiação naquela zona": o custo elevado do transporte de cargas para o Norte de Minas, causador de sobrelevação de preço do pano importado do Rio de Janeiro em pelo menos 15 ou 20%. Seria hora, portanto, de investir em cotonifícios na região, para o que convinha "despertar nos capitalistas da Corte a ideia de aplicarem alguma pequena parte de seus fundos" nesses investimentos.53 53 Ainda que, no momento da fundação da Companhia, o apelo do Conselheiro não fosse ouvido, ele surtiu efeito depois. Na assembleia geral extraordinária de 4 de julho de 1892, fizeram-se presentes os sócios cariocas Francisco Rodrigues do Nascimento, José Alves Ferreira Chaves, Luís Felipe Freire de Aguiar e Joaquim Pereira de Queiroz Cattoni.

Os sócios fundadores da Companhia Santa Bárbara foram nove: o Conselheiro João da Mata Machado Júnior, Augusto da Mata Machado, Álvaro da Mata Machado, Pedro da Mata Machado, Francisco Correa Ferreira Rabelo, João Antônio Lopes de Figueiredo, Pedro José Versiani, José da Silva Machado e Antônio Moreira da Costa. Como Francisco Rabelo, João Antônio de Figueiredo e Pedro Versiani eram casados com as irmãs Mata Machado; apenas o Barão de Paraúna era sócio estranho ao núcleo familiar.

O edifício da fábrica foi construído pelo engenheiro Catão Gomes Jardim, baseado em planta do engenheiro Bonjean, presidente da Companhia Brasil Industrial. O maquinismo foi encomendado na Inglaterra. Trabalhadores da região serviram na Fábrica, de início sob a supervisão de dois mestres ingleses, John Kirch e Thomas Moore.

Visando, de um lado, garantir o abastecimento da povoação da Fábrica e, de outro lado, escoar a produção, a Companhia firmou contrato com casas comerciais da região. Assim, por exemplo, em 16 de setembro de 1903, a Companhia assinou com Antônio Augusto Machado e Antônio Eulálio & Cia. contrato que previa o direito desses últimos estabelecerem casa de comércio de gêneros da terra, fazendas, ferragens e molhados dentro da povoação de Santa Bárbara, utilizando o armazém e o rancho de tropas pertencentes à Fábrica, livre de aluguéis. Durante a vigência do contrato, cujo prazo era de três anos, nenhuma outra pessoa poderia estabelecer casa de comércio dentro das terras da Companhia e as vendas a retalho dos tecidos da Fábrica passaram a ser exclusividade daquela sociedade. O contrato ainda especificava que os fornecimentos e as despesas dos empregados seriam pagos pela Santa Bárbara em tecidos, pelos preços correntes. Pelo direito de acesso privilegiado aos tecidos da Companhia, Antônio Eulálio e Antônio Augusto Machado pagaram a importância de 2:869$822 réis (equivalentes ao balanço do armazém da Fábrica no momento da assinatura do contrato) e destinaram à indústria 20% dos lucros líquidos verificados nos balanços anuais da sociedade mercantil.54 54 BAT. Livro de Notas n. 25, Cartório do 1º Ofício, maço 496, fls. 168-169v.

A trajetória da Fábrica de Santa Bárbara foi atribulada: dificuldade financeira, deficiente suprimento de água e de algodão, má qualidade do tecido, falta de mão de obra especializada. Segundo o Diretor, Dr. Pedro da Mata Machado, as dificuldades financeiras da companhia começaram em 1891 e teriam sido agravadas pela perda dos mestres John Kirch e Thomas Moore, os quais foram substituídos por práticos sem as necessárias habilitações técnicas. Desde então, a Fábrica teria entrado em período de franco declínio. Chegou até a sofrer paradas mais ou menos prolongadas, que se sucederam até 1900.55 55 BAT. Acervo Pedro da Mata Machado. Relatório aos srs. Acionistas e Credores da Companhia Santa Bárbara, p. 6-7, maio de 1904.

Neste ano, estavam em operação apenas 40 teares, o capital para movimentar os serviços era insignificante e havia uma dívida hipotecária avultada. Por isso, a empresa entrou em moratória de três anos, após acordo com o Banco Hipotecário do Brasil.56 56 Eram dez prestações de empréstimos vencidas e não pagas. O acordo baseava-se na condição de a Fábrica pagar as parcelas que fossem vencendo naquele prazo, no valor de 33:484$620 rs, e teria que amortizar outros 76:320$488 rs (Relatório aos srs. Acionistas e Credores, p. 11-12). Para gerar recursos e honrar o acordo, o Dr. Pedro da Mata Machado contratou o mestre inglês James Winders. Este conseguiu elevar para 65 o número de teares em operação no ano de 1903. Contudo, os problemas de produção continuaram:

A linha produzida era de qualidade inferior, insuficiente e inconstante, não mantinha uniformemente o mesmo peso. Ocorriam perdas consideráveis de matéria-prima. Por isso, os filatórios produziam pequena quantidade de linha e grande quantidade de estopa. Como consequência, apenas uma das duas urdideiras da fábrica trabalhava o dia todo e os filatórios não davam para mais de quarenta teares.57 57 BAT. Acervo Pedro da Mata Machado. Relatório aos srs. Acionistas e Credores da Companhia Santa Bárbara, p. 10, maio de 1904.

Segundo o Diretor, a captação deficiente de água determinava, nos meses de estiagem, a paralisação dos serviços por um terço do dia; as dificuldades com o suprimento constante de algodão, por sua vez, obrigavam, em várias ocasiões, operações onerosas de importação de algodão do Rio de Janeiro.58 58 BAT. Acervo Pedro da Mata Machado. Relatório aos srs. Acionistas e Credores da Companhia Santa Bárbara, p. 8-9, maio de 1904. A Fábrica de Santa Bárbara recebia boa parte do algodão dos sertões da Bahia. As grandes secas de 1898 e 1899 paralisaram os trabalhos por muitos meses. No ano de 1898, a empresa comprou, no Rio de Janeiro, uma partida de algodão avaliada em 60 contos de réis.

Enredada neste novelo inextrincável de problemas, a Companhia de Santa Bárbara não superou os problemas financeiros que a afligiam desde o ajuste recessivo de Campos Sales. O Banco Hipotecário do Brasil expediu à Comarca de Diamantina carta precatória em 4 de dezembro de 1903. Os bens da empresa foram penhorados. Em 7 de maio de 1904, estes bens foram a leilão, na capital federal. Por esse ato, a Fábrica acabou encampada pelo Banco Hipotecário do Brasil.

As fábricas de Biribiri e Santa Bárbara exprimem características da indústria mineira do período (OLIVEIRA, 2002OLIVEIRA, Maria Teresa Ribeiro de. Indústria têxtil mineira do século XIX. In: SILVA, Sérgio; SZMRECSÁNYI, Tamás (orgs.). História econômica da Primeira República. 2. ed. São Paulo: Hucitec/Edusp/Imprensa Oficial, 2002. p. 235-260.). Elas empregavam matéria-prima e mão de obra originárias do Norte de Minas. O tamanho das unidades fabris era relativamente pequeno. O financiamento do empreendimento dependeu dos aportes de economias realizados por reduzidos grupos de parentes e amigos. Na força de trabalho das fábricas predominaram mulheres e crianças. O reinvestimento do lucro era fator crucial para a ampliação das empresas. Mais genericamente, as pequenas indústrias diamantinenses resultaram de processos de empresariamento no âmbito de pequeno número de famílias que tiveram múltiplos negócios, incluindo a prática mercantil e prestamista.59 59 Sobre as origens sociais e econômicas dos empresários pioneiros de Minas Gerais, ver Sérgio de Oliveira Birchal (1998). A marcha real desse processo foi marcada pela presença de diversas racionalidades:

A preservação do envolvimento com a mineração de diamantes, baseada em processos de lavra rotineiros e em relações de trabalho tradicionais - mineração que alimentou o capital mercantil e supriu as indústrias, ainda que parcialmente.

O acúmulo e a manutenção de propriedades urbanas e de títulos da Dívida Pública, o que permitia o aval para a obtenção de crédito e a preservação da própria unidade familiar como centro de articulação dos interesses econômicos.

O efetivo ingresso no setor produtivo industrial, destacando-se as opções pelo ramo têxtil e pela lapidação, que abriam possibilidades de aproveitamento de matérias-primas regionais.

O emprego de recursos tecnológicos disponíveis no país na época para a operação dos empreendimentos industriais.

Alguma utilização moderna do crédito fornecido por bancos sediados no Rio de Janeiro e Juiz de Fora, fazendo as empresas "cavalgarem sobre suas dívidas".

O zelo com a "moralidade", que deveria organizar as firmas e era vista como ativo fundamental, porque seria o instrumento para formar redes de relações no Rio de Janeiro e em Minas Gerais, necessárias ao bom desdobramento das atividades empresariais.

Portanto, o moderno e o tradicional, o impessoal e o familiar, o racional e o afetivo, o industrial e o mercantil mesclaram-se na conduta dos empresários diamantinenses.

Os revezes das empresas abertas pelos irmãos Mata Machado e Felício dos Santos tiveram importante efeito sobre os homens de negócio de Diamantina e sua vasta área de influência. Efeito paralisador, na medida em que o insucesso dos industriais pioneiros favoreceu a inércia da maioria dos homens de negócio locais, reforçando o apego ao garimpo e ao comércio baseado numa rede pulverizada de pequenos estabelecimentos. A maioria dos agentes econômicos da região interpretou esse insucesso como argumento de que a riqueza antiga - acumulada na forma de terras de cultura e de pastagem, lotes diamantinos, casas de comércio e estoques de mercadorias, dinheiro sonante e dívidas de terceiros - era mais condizente com as "vocações" da região.60 60 Aqui, os conceitos de riqueza antiga e riqueza nova são tomados de Zélia Cardoso de Mello (1990). Por conseguinte, os capitais do Norte fugiram das aplicações novas, das combinações que rompem com o "fluxo circular" da economia (SCHUMPETER, 1982SCHUMPETER, Joseph A. A teoria do desenvolvimento econômico. São Paulo: Abril Cultural, 1982.).

Algumas observações sobre o crédito na Diamantina oitocentista

Durante o período em tela, a circulação do crédito entre os agentes econômicos do município de Diamantina se fazia predominantemente pelas escrituras de dívida e hipoteca, transações de caráter pessoal, firmadas entre indivíduos ligados por laços familiares ou de amizade, com vencimentos em prazos curtos. Mercado de crédito com destacada presença dos prestamistas,61 61 Os registros de hipoteca diamantinenses mostram que firmas mercantis e industriais instaladas no município, mesmo as maiores, como a Fábrica de Tecidos Biribiri, recorreram a prestamistas locais e até do Rio de Janeiro. cujas operações eram fundadas na confiança e na reputação.

Há numerosos registros de créditos hipotecários nos livros de notas dos cartórios diamantinenses. A tabela abaixo traz o volume nominal de crédito hipotecário de alguns quinquênios, comparando as cifras de Diamantina e Juiz de Fora, a partir do cotejamento com o trabalho de Anderson Pires (2008PIRES, Anderson. Complexo cafeeiro e estrutura financeira: uma observação sobre a economia da Zona da Mata de Minas Gerais (1889/1930). Locus, Juiz de Fora, v. 14, n. 1, p. 231-259, 2008.):

TABELA 1

Em primeiro lugar, deve-se observar que os montantes de crédito que circularam em Diamantina são reduzidos, insuficientes para financiar empreendimentos de maior envergadura. Pode-se depreender que o crédito era, sobretudo, ligado ao consumo de famílias, aquisição de imóveis, consolidação de dívidas e a capital de giro.

Em segundo lugar, pode-se aventar a hipótese de que o recurso ao crédito hipotecário tendia a aumentar justamente nos momentos de maior dificuldade do comércio de diamantes. Esse foi o caso do quinquênio 1871-1875, que corresponde ao primeiro e forte impacto da crise internacional de preços do diamante provocado pela superprodução das minas sul-africanas. Em menor escala, situação similar se verifica no quinquênio 1911-1915, que abrange o início da Primeira Grande Guerra, evento que esfriou temporariamente o mercado internacional de pedras. Nos quinquênios em que o comércio de diamantes fluía bem, como os períodos 1860-1864, 1900-1904 e 1919-1923, os montantes de crédito que circularam em Diamantina foram bastante baixos. Esse padrão de oscilação talvez se explique pela generalizada participação dos agentes econômicos locais nos negócios minerários: as catas desempenharam o papel de "fornecedoras de créditos" nos momentos de pujança da mineração diamantífera.

Essa característica da "economia do diamante" certamente contribuiu para inibir a emergência de um segmento financeiro-bancário na região, à maneira do que preconizava a Companhia Indústria e Comércio Norte de Minas. Seu braço bancário pretendia captar a poupança regional e distribuí-la na forma de empréstimos de prazo mais longo. A falência da companhia, por volta de 1897, abortou a tentativa de criação de um banco regional que seria instrumento de captação e retenção de recursos gerados no espaço da "economia do diamante". Vale assinalar que as características do mercado hipotecário de Diamantina terminaram por limitar sua abrangência geográfica. Isso porque quanto menor a dimensão espacial do mercado, maior a facilidade de contatos pessoais e de transmissão de informações e, portanto, da concretização de acordos entre devedores e credores.

Tem sentido falar em "capital diamantino"?

Na historiografia brasileira está bem assentada a tese da vinculação entre o processo de industrialização e o desenvolvimento do complexo agroexportador, embora existam diferentes maneiras de interpretar esses vínculos (DEAN, 1971DEAN, Warren. A industrialização de São Paulo. São Paulo: Difel, 1971.; SILVA, 1976SILVA, Sérgio. Expansão cafeeira e origens da indústria no Brasil. São Paulo: Alfa-Omega, 1976.). Mas as relações entre exportação de café e indústria seriam contraditórias, já que as crises da economia cafeeira produziam simultaneamente efeitos positivos e negativos sobre a indústria.62 62 Para uma discussão sintética das diferentes interpretações sobre a relação entre exportações e indústria, ver o artigo de Flávio Saes (1989).

A literatura destaca o papel do capital cafeeiro na decolagem industrial em São Paulo e na efetivação da transição capitalista em terras paulistas (CANO, 1998CANO, Wilson. Desequilíbrios regionais e concentração industrial em São Paulo. Campinas: UNICAMP, 1998.; PERISSINOTTO, 2001PERISSINOTTO, Renato Monseff. Estado, capital cafeeiro e política tributária na economia paulista exportadora, 1889-1930. Latin American Research Review, v. 36, n. 1, p. 151-169, 2001.; MELLO, 2009MELLO, João Manuel Cardoso de. O capitalismo tardio. São Paulo: Editora Unesp, 2009.). Conforme Wilson Cano (1998CANO, Wilson. Desequilíbrios regionais e concentração industrial em São Paulo. Campinas: UNICAMP, 1998., p. 49), esse capital,

embora dominantemente mercantil, [...] adquire conotações dinâmicas diferenciadas dada a excepcional oportunidade histórica que tem de se transformar: é o capital que, ao mesmo tempo, é lucro do fazendeiro, recursos em poder do banqueiro, renda do estado, capital físico de um novo industrial, ou estoque do comerciante.

Ora, esse tipo de agente econômico com horizontes mais largos também surgiu na Diamantina oitocentista. Nesse sentido, não constitui absurdo falar-se na existência de uma "burguesia do diamante", cuja acumulação tinha como fundamento os serviços de lavra, mas cujo capital também foi aplicado expressivamente em negócios comerciais, industriais e nos serviços. Para além da questão da escala, não há diferença de natureza. Houve uma "burguesia do diamante", diminuta, é verdade, mas parecida com a "burguesia cafeeira" até mesmo na sua opção republicana. A questão é: por que essa "burguesia do diamante" não conseguiu se reproduzir, promover e comandar a modernização capitalista do Norte de Minas?

A resposta, que parece residir em boa medida na fragilidade do processo regional de acumulação, pode ser delineada a partir da consideração do que Albert Hirschman (1985HIRSCHMAN, Albert. Desenvolvimento por efeitos em cadeia: uma abordagem generalizada. In: SORJ, Bernard; CARDOSO, Fernando Henrique; FONT, M. Economia e movimentos sociais na América Latina. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 7-44.) chamou de efeitos de encadeamento. Esse autor via o desenvolvimento econômico como uma "cadeia de desequilíbrios". Nos países subdesenvolvidos, a principal fonte de desenvolvimento seria dada por atividades com alto potencial de gerar encadeamentos, principalmente encadeamentos para trás - os estímulos para setores que fornecem insumos requeridos por uma determinada atividade. Os "encadeamentos para frente" correspondem às induções do estabelecimento de novas atividades que utilizam o produto da atividade do "setor-chave". Hirschman defendia a ideia de que, nos latecomers, alcançar níveis elevados de rendimentos exigiria desenvolver centros regionais nos quais ocorresse a concentração do investimento. O crescimento desses centros desencadearia forças de mercado geradoras de pressões, tensões e coerções que induziriam o crescimento de regiões próximas, por meio de encadeamentos. Ora, tal concepção implica que "o problema fundamental do desenvolvimento consistia em gerar e canalizar energias humanas na direção desejada" (HIRSCHMAN, 1965HIRSCHMAN, Albert. The strategy of economic development. New Haven: Yale University Press, 1965., p. 25).

A partir de Hirschman, as fragilidades e os limites da economia regional comandada por Diamantina ficam mais evidentes. A "economia do diamante" mostrou-se limitada no que se refere à formação de condições suficientes para processo mais vigoroso de acumulação de capital e efetiva transição capitalista, porque seu núcleo exportador ensejou insuficientes efeitos de encadeamento que sustentassem a diversificação setorial, a consolidação de uma "capital regional" e a transformação capitalista das relações sociais.

Enquanto a indústria paulista começou respondendo à expansão cafeeira, a indústria de Diamantina praticamente não respondeu a demandas diretas da mineração oitocentista. A extração de diamantes permaneceu atividade manual, que empregava ferramentas simples, fabricadas em minúsculas forjas e tendas de ferreiros espalhadas pela região. O fracasso das companhias de mineração nacionais e estrangeiras e das fábricas de lapidação inibiu inteiramente a demanda por máquinas e motores, a qual poderia propiciar o surgimento de siderúrgicas, metalúrgicas e indústrias do setor mecânico. Dessa forma, os efeitos retrospectivos da "economia do diamante" foram ínfimos.

A mineração de diamantes também não gerou expressivos encadeamentos fiscais. A informalidade do garimpo, a histórica evasão fiscal e o contrabando de partidas de diamante tornaram o fluxo de tributos obtidos pelo estado relativamente diminuto. Por isso, a parcela de tributos sobre a mineração regional que poderia retornar à economia local, na forma de obras de infraestrutura e concessão de crédito, foi pouco expressiva. A tabela seguinte contém as cifras oficiais dos impostos arrecadados sobre o diamante entre 1919 e 1928:

TABELA 2

Embora a mineração diamantífera empregasse diretamente, em média, cerca de trinta mil pessoas no período em estudo, e atraísse para Diamantina boa parte das exportações dos municípios do Norte de Minas, a Coletoria Estadual da cidade, em 1928, arrecadou pouco mais do que a de Curvelo e metade do que arrecadou a de Teófilo Otoni.63 63 Conforme o relatório do Secretário de Finanças referente ao ano de 1928, a Coletoria de Diamantina arrecadou 341:151$506 rs; a de Curvelo, 315:435$718 rs; a de Teófilo Otoni, 630:627$803 rs. Em termos da arrecadação total de Minas Gerais, a contribuição de Diamantina representou apenas 1,9%. Deve-se ressaltar também que, no Norte de Minas, não havia outros subespaços alimentados por robustas rendas geradas por exportações. Diferentemente da Zona da Mata mineira, onde a Juiz de Fora (o empório regional) se juntaram dezenas de municípios exportadores de café, Diamantina ficava praticamente sozinha na produção de mercadoria exportável de alto valor, uma vez que os municípios vizinhos dedicavam-se aos gêneros de abastecimento interno, em grande parte absorvidos pela própria Diamantina. Nesse sentido, o balanço de pagamentos da região de Diamantina - por assim dizer, suas "contas internacionais" - não se caracterizava por saldos tão expressivos, constituindo, pois, base mais modesta da prosperidade da cidade e de seus empresários.

Por outro lado, a mineração colocou obstáculos à formação do mercado de trabalho regional. Desde 1870, nas lavras da região o trabalhador livre nacional predominou amplamente, mas seu serviço era organizado no "sistema de praça e meia-praça": uma relação de trabalho não assalariado que deixava os homens da mineração a maior parte do ano sem acesso a dinheiro e que estimulava, no período de paralisação do garimpo (a estação chuvosa), a transformação temporária de muitos mineradores em camponeses. Assim, a massa de trabalhadores participava esporadicamente do mercado de consumo e não assimilou as disposições e hábitos típicos da economia moderna.

Ademais, esse contingente de trabalhadores - que conservou a posse de meios rústicos de produção e acesso à terra - estava disperso em numerosos povoados, distantes entre si, mal ligados por vias de transporte e comunicação. Por isso, a região articulada pela "economia do diamante" não constituiu mercado de consumo de massas. O problema não é a falta de imigrantes, tão associados ao interior paulista, nem a dimensão reduzida da população regional,64 64 Conforme o Atlas Chorographico Municipal de Minas Gerais de 1920 , a população do município de Diamantina e seus vizinhos (Montes Claros, Minas Novas, Bocaiuva, Grão Mogol, Curvelo, Serro, Conceição, Pirapora, São João Batista/Itamarandiba, Capelinha, Guanhães, Araçuaí e Teófilo Otoni) ultrapassava os 800 mil habitantes. mas o fato de que o garimpeiro, o vaqueiro e o camponês - os trabalhadores típicos do Norte de Minas - conservaram estratégias de sobrevivência pouco dependentes, seja do mercado de consumo, seja do mercado de trabalho. Logo, não ocorreu no domínio da "economia do diamante" a monetização generalizada das transações. Portanto, os efeitos de encadeamento de consumo gerados pela "economia do diamante" foram muito modestos.

Isto traz à baila o papel do comércio. É sabido que o capital comercial é muito relevante na constituição dos complexos econômicos, inclusive porque, no seu processo de acumulação e reprodução, o capital mercantil contribui para a formação do capital industrial. Em Diamantina, firmas comerciais investiram em plantas industriais. Porém, uma fragilidade importante da "economia do diamante" era o fato de que a estrutura de comercialização externa do produto principal sempre esteve fora do espaço da produção. Os grandes pedristas locais sujeitavam-se a firmas instaladas no Rio de Janeiro, as quais controlavam a exportação para a Europa e os Estados Unidos (MARTINS, 2013MARTINS, Marcos Lobato. Estruturas e conjunturas da mineração de diamantes no século XIX em Minas Gerais. Seminário de História Econômica, Hermes & Clio (Grupo de Estudos e Pesquisa em História Econômica), São Paulo, FEA-USP, 20 mar. 2013.). Isso significou que uma parcela considerável da renda potencial gerada pelas lavras vazava para a praça carioca e para o exterior.

Enfim, essas características do complexo regional da "economia do diamante" concorreram para derruir a posição da cidade como entreposto urbano e centro industrial. Reencontra-se, dessa forma, a discussão sobre condições sociais da industrialização levada a cabo por Fernando Henrique Cardoso (1960CARDOSO, Fernando Henrique. Condições sociais da industrialização: o caso de São Paulo. Revista Brasiliense, São Paulo, n. 28, p. 31-46, mar.-abr. 1960.). Em Diamantina e no Norte de Minas, não alcançaram desenvolvimento agudo as novas relações de trabalho, a generalização das trocas monetizadas e a complexificação da estrutura ocupacional. E, na linha de análise de Hirschman, a "economia do diamante", geradora de modestos efeitos de encadeamento, não potencializou a transformação urbano-industrial da região. A posição de Diamantina como capital regional do Norte de Minas tinha pés de barro.

Referências

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  • CARDOSO, Fernando Henrique. Condições sociais da industrialização: o caso de São Paulo. Revista Brasiliense, São Paulo, n. 28, p. 31-46, mar.-abr. 1960.
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  • MATA MACHADO, Fernando da (org.). A Companhia de Santa Bárbara: um caso da indústria têxtil em Minas Gerais. Rio de Janeiro: Topbooks, 2006.
  • MELLO, João Manuel Cardoso de. O capitalismo tardio. São Paulo: Editora Unesp, 2009.
  • MELLO, Zélia Cardoso de. Metamorfoses da riqueza: São Paulo, 1845-1895. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1990.
  • NEVES, José Teixeira. Aspectos do século XIX na vida de um prelado mineiro. Revista do Livro, Rio de Janeiro, ano 5, n. 20, p. 49-59, dez. 1960.
  • OLIVEIRA, Maria Teresa Ribeiro de. Indústria têxtil mineira do século XIX. In: SILVA, Sérgio; SZMRECSÁNYI, Tamás (orgs.). História econômica da Primeira República. 2. ed. São Paulo: Hucitec/Edusp/Imprensa Oficial, 2002. p. 235-260.
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  • RELATÓRIO apresentado ao Presidente do Estado pelo Dr. Gudesteu de Sá Pires, Secretário das Finanças, referente ao exercício de 1928. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1929. v. II.
  • SAES, Flávio A. M. de. A controvérsia sobre a industrialização na Primeira República. Estudos Avançados, São Paulo, v. 3, n. 7, p. 20-39, set.-dez. 1989.
  • SCHUMPETER, Joseph A. A teoria do desenvolvimento econômico. São Paulo: Abril Cultural, 1982.
  • SENNA, Nelson de. Anuário corográfico, estatístico e histórico do Estado de Minas Gerais 1913. Belo Horizonte: Imprensa Oficial , 1913.
  • SENNA, Nelson de. Anuário Estatístico de Minas Gerais. Belo Horizonte: Imprensa Oficial , 1907.
  • SILVA, Sérgio. Expansão cafeeira e origens da indústria no Brasil. São Paulo: Alfa-Omega, 1976.
  • 1
    BAT. Inventário de Antônio Eulálio de Souza, Cartório do 2º Ofício, maço 83, 1907, fls. 8-9.
  • 2
    BAT. Livro de Notas n. 23, Cartório do 1º Ofício, maço 43, fls. 36v-37.
  • 3
    Os outros sócios eram Francisco Pinheiro Costa, Antônio Cícero de Menezes e Edgardo Eulálio de Souza.
  • 4
    BAT. Escritura de dívida, Livro de Notas n. 31, Cartório do 1º Ofício, maço 496, fls. 58-61v.
  • 5
    BAT. Livro de Notas n. 27, Cartório do 1º Ofício, maço 496, p. 82v-85.
  • 6
    BAT. Livro de Notas n. 32, Cartório do 1º Ofício, maço 496, fls. 90-92v.
  • 7
    BAT. Concordata preventiva de José Neves Sobrinho. Livro de Notas n. 46, Cartório do 1º Ofício, maço 498, 1930, fl. 3.
  • 8
    BAT. Concordata preventiva de José Neves Sobrinho, fls. 12 e 13-14.
  • 9
    Conforme relatório apresentado à assembleia dos credores em 9 de janeiro de 1931, pelo comissário da concordata, Sr. Antônio Silvério Beltrão. A informação está na folha 89 da concordata preventiva de José Neves Sobrinho.
  • 10
    BAT. Concordata preventiva de José Neves Sobrinho, fl. 14.
  • 11
    BAT. Concordata preventiva de José Neves Sobrinho, fl. 89.
  • 12
    BAT. Relatório apresentado pelo síndico Nemísio Leão ao Juiz de Direito, em 10 de dezembro de 1936. Processo de falência de José Neto Motta, Cartório do 2º Ofício, maço 193, 1936, fl. 163.
  • 13
    BAT. Em O Município , n. 90, de 7 de novembro de 1896, a firma informou que comprara 200 contos de réis no Rio, tanto em 1895 quanto em 1896.
  • 14
    BAT. Livro de Inscrição Especial n. 2, aberto em 31 de maio de 1866, fl. 194.
  • 15
    BAT. Livro de Notas n. 43, Cartório do 1º Ofício, maço 498, fls. 83-84v.
  • 16
    BAT. Relatório apresentado pelo síndico Nemísio Leão ao Juiz de Direito, em 10 de dezembro de 1936. Processo de falência de José Neto Motta, fl. 164.
  • 17
    BAT. Processo de falência de José Neto Motta, fls. 153-157.
  • 18
    BAT. Inscrição n. 530, Livro de Inscrição Especial n. 2, fls. 294-296.
  • 19
    BAT. Inscrição n. 13, Livro de Inscrição Especial n. 2, fls. 362-368.
  • 20
    BAT. Livro de Notas n. 23, Cartório do 1º Ofício, maço 43, fls. 43-43v.
  • 21
    BAT. Livro de Notas n. 39, Cartório do 1º Ofício, maço 497, fls. 187-187v.
  • 22
    BAT. Livro de Notas n. 40, Cartório do 1º Ofício, maço 497, fls. 34-34v.
  • 23
    BAT. Escritura de contrato e locação de serviços. Livro de Notas n. 9, Cartório do 3º Ofício, maço 162, fls. 19-20v.
  • 24
    BAT. Livro de Notas n. 38, Cartório do 1º Ofício, maço 497, fls. 92v-93v.
  • 25
    BAT. Contrato de sociedade da Cia. Chapelaria Norte de Minas. Livro de Notas n. 21, Cartório do 1º Ofício, maço 43, fls. 46-50.
  • 26
    As informações sobre a Companhia Industrial Rio Pretana são tiradas de Fernando da Mata Machado (2006, p. 37).
  • 27
    BAT. O Município , ano 3, n. 81, 21 de agosto de 1896.
  • 28
    BAT. O Município , 16 de junho de 1900.
  • 29
    BAT. Escritura de contrato de sociedade. Livro de Notas n. 29, Cartório do 1º Ofício, maço 496, fls. 46v-49.
  • 30
    BAT. Escritura de venda. Livro de Notas n. 29, Cartório do 1º Ofício, maço 496, fls. 74v-77v.
  • 31
    BAT. A Idéa Nova , ano 7, n. 317, 12 de maio de 1912.
  • 32
    BAT. Registro de contrato mercantil, Livro de Notas n. 20, maço 43, fls. 38v-45.
  • 33
    BAT. Registro da ata da assembleia de Alves, Ribas, Ribeiro & Cia., Livro de Notas n. 22, maço 43, fls. 22v-24v.
  • 34
    BAT. Registro de Estatutos, Livro de Notas n. 22, Cartório do 1º Ofício, maço 43, fls. 53v-59v.
  • 35
    BAT. Depoimento de Manoel Alves Costa, publicado no Jornal da ACIASGO , n. 1, outubro de 2003. Manoel Alves Costa, nascido em 1926, foi operário da Fábrica São Roberto desde garoto e nela trabalhou por 35 anos. ACIASGO é a Associação Comercial, Industrial, Agropecuária e de Serviços de Gouveia.
  • 36
    "O sr. Juscelino Pio Fernandes, Diretor da Fábrica Fiação e Tecidos São Roberto de Gouveia, apresentou para ser protestada, por falta de pagamento no dia do vencimento, a letra de Nota Promissória, no valor de 2:500$000, emitida por Francisco Minervino dos Anjos Fróes, residente em Bocaiúva. A letra fora emitida em 8 de janeiro de 1916, para vencimento em 8 de janeiro de 1918". BAT. Livro de Notas n. 34, Cartório do 1º Ofício, maço 497, fls. 18v-19.
  • 37
    BAT. Contrato de sociedade, Livro de Notas n. 22, Cartório do 1º Ofício, maço 43, fls. 24v-25v.
  • 38
    BAT. Processo de execução, Cartório do 1º Ofício, maço 121, fls. 2v-3v.
  • 39
    BAT. Processo de execução, Cartório do 1º Ofício, maço 121, fl. 9.
  • 40
    Arquivo Público Mineiro. Coleção de Documentos Cartográficos. Mapa do terreno da Fábrica de Tecidos da Perpétua - Firma Motta, Leite Couto & Cia. APM-022.
  • 41
    O Major Antônio Felício dos Santos foi pai do Dr. Antônio Felício dos Santos (1843-1931), médico, deputado geral diversas vezes, presidente da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional e presidente do Banco do Brasil.
  • 42
    BAT. Escritura de empréstimo, Livro de Inscrição Especial n. 2, inscrição n. 247, fls. 132-133.
  • 43
    BAT. Escritura de empréstimo, Livro de Inscrição Especial n. 2, inscrição n. 298, fl. 168.
  • 44
    BAT. O Serro , n. 2, 1891.
  • 45
    BAT. Acervo José Teixeira Neves, Caderno 3, Caixa 2.
  • 46
    BAT. O Município , n. 89, 1895.
  • 47
    BAT. Livro de Inscrição Especial n. 2, inscrição n. 280, de 1º de novembro de 1895, fl. 168.
  • 48
    BAT. Livro de Inscrição Especial n. 2, fl. 144.
  • 49
    BAT. Livro de Inscrições Especial n. 2, fl. 148.
  • 50
    BAT. Livro de Inscrições Especial n. 2, fl. 148.
  • 51
    BAT. Livro de Inscrição Especial n. 2, fl. 150.
  • 52
    BAT. Livro de Notas n. 22, Cartório do 1º Ofício, maço 43, fls. 19v-21v.
  • 53
    Ainda que, no momento da fundação da Companhia, o apelo do Conselheiro não fosse ouvido, ele surtiu efeito depois. Na assembleia geral extraordinária de 4 de julho de 1892, fizeram-se presentes os sócios cariocas Francisco Rodrigues do Nascimento, José Alves Ferreira Chaves, Luís Felipe Freire de Aguiar e Joaquim Pereira de Queiroz Cattoni.
  • 54
    BAT. Livro de Notas n. 25, Cartório do 1º Ofício, maço 496, fls. 168-169v.
  • 55
    BAT. Acervo Pedro da Mata Machado. Relatório aos srs. Acionistas e Credores da Companhia Santa Bárbara, p. 6-7, maio de 1904.
  • 56
    Eram dez prestações de empréstimos vencidas e não pagas. O acordo baseava-se na condição de a Fábrica pagar as parcelas que fossem vencendo naquele prazo, no valor de 33:484$620 rs, e teria que amortizar outros 76:320$488 rs (Relatório aos srs. Acionistas e Credores, p. 11-12).
  • 57
    BAT. Acervo Pedro da Mata Machado. Relatório aos srs. Acionistas e Credores da Companhia Santa Bárbara, p. 10, maio de 1904.
  • 58
    BAT. Acervo Pedro da Mata Machado. Relatório aos srs. Acionistas e Credores da Companhia Santa Bárbara, p. 8-9, maio de 1904. A Fábrica de Santa Bárbara recebia boa parte do algodão dos sertões da Bahia. As grandes secas de 1898 e 1899 paralisaram os trabalhos por muitos meses. No ano de 1898, a empresa comprou, no Rio de Janeiro, uma partida de algodão avaliada em 60 contos de réis.
  • 59
    Sobre as origens sociais e econômicas dos empresários pioneiros de Minas Gerais, ver Sérgio de Oliveira Birchal (1998).
  • 60
    Aqui, os conceitos de riqueza antiga e riqueza nova são tomados de Zélia Cardoso de Mello (1990).
  • 61
    Os registros de hipoteca diamantinenses mostram que firmas mercantis e industriais instaladas no município, mesmo as maiores, como a Fábrica de Tecidos Biribiri, recorreram a prestamistas locais e até do Rio de Janeiro.
  • 62
    Para uma discussão sintética das diferentes interpretações sobre a relação entre exportações e indústria, ver o artigo de Flávio Saes (1989).
  • 63
    Conforme o relatório do Secretário de Finanças referente ao ano de 1928, a Coletoria de Diamantina arrecadou 341:151$506 rs; a de Curvelo, 315:435$718 rs; a de Teófilo Otoni, 630:627$803 rs. Em termos da arrecadação total de Minas Gerais, a contribuição de Diamantina representou apenas 1,9%.
  • 64
    Conforme o Atlas Chorographico Municipal de Minas Gerais de 1920 , a população do município de Diamantina e seus vizinhos (Montes Claros, Minas Novas, Bocaiuva, Grão Mogol, Curvelo, Serro, Conceição, Pirapora, São João Batista/Itamarandiba, Capelinha, Guanhães, Araçuaí e Teófilo Otoni) ultrapassava os 800 mil habitantes.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2016

Histórico

  • Recebido
    04 Abr 2015
  • Aceito
    28 Jan 2016
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