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Os almotacéis do bom gosto: a boa poesia no Setecentos português, segundo ela mesma

The inspectors of good taste: the notion of good poetry in Portugal in the 18th Century in the view of poets themselves

RESUMO

Para compreender a poesia árcade produzida em Portugal e na América portuguesa durante a segunda metade do século XVIII e as duas primeiras décadas do XIX, é indispensável conhecer alguns pressupostos que lhe foram contemporâneos, se se quer evitar o anacronismo. Entre esses pressupostos, objeto de intenso debate naquele tempo, está o de “bom gosto”, expressão cujo significado está associado à ideia de “verdade” - tal como, por sua vez, esta era filosoficamente entendida, isto é, como “racional”. Ora, essa racionalidade vai ao encontro da modernização conservadora pombalina - não por acaso, patrocinadora dessa nova prática poética, posteriormente chamada de “arcadismo”.

Palavras-chave:
Arcadismo; Bom gusto; Racionalismo

ABSTRACT

In order to avoid anachronisms, it is imperative to recognize contemporaneous presumptions when analyzing Arcadian poetry penned in Portugal and its American colonies between 1750 and 1820. One of the primary coeval presumptions (and object of heated debate) was “good taste,” an expression whose meaning was associated with the idea of “truth,” which was philosophically understood at the time as “rational”. Such reasoning was consistent with the conservative modernization that marked the prominence of the Pombaline Period (under the Marquis of Pombal) that, not coincidentally, promoted this poetic style later termed Arcadism.

Keywords:
Arcadism; Good taste; Rationalism

[...] vivo senza colore, vago senza artificio, saporoso senza condimento [...]

Gian Vincenzo Gravina, Della ragion poética (1708)

Se, para pensar o ato de ler, “temos de pensar o arbitrário que estrutura o texto e o leitor como sujeito da prática de leitura” (HANSEN, 2013HANSEN, João Adolfo. O que é um livro? São Paulo: SESC São Paulo, 2013., p. 38), talvez seja central, na reconstituição das preceptivas da poesia árcade portuguesa - aquela que vicejou não só em Portugal mas também em sua colônia na América, sobretudo na segunda metade do século XVIII e duas primeiras décadas do XIX -, compreender a noção de “bom gosto”, tão cara aos teorizadores do período, como se pretende demonstrar a seguir. De saída, esse “bom gosto” não deve ser confundido com a acepção que correntemente se lhe atribui, isto é, traço distintivo de certo capital cultural que se construiu ao longo do século XIX como índice de diferenciação e mesmo de superioridade social, em oposição à suposta rudeza das classes mais baixas. Como se verá, “bom gosto”, para esses poetas e intelectuais que se ocuparam do fazer poético, é o “verdadeiro”, ao passo que o “mau gosto” é o “falso”. Tal entendimento é caudatário da prática política pombalina que lhe é contemporânea - e em boa medida, patrocinadora -, já que o “verdadeiro” é o “racional”, assim como a governação do marquês de Pombal. Portanto, a reconstituição dos percursos dessa preceptiva, até sua consolidação, é provavelmente oportuna na recuperação das expectativas coevas de leitura do que depois a história da literatura chamou de “arcadismo”.

O furor da polêmica que se seguiu à publicação, em 1746, do Verdadeiro método de estudar, de Luís Antônio Verney, obscureceu opiniões anteriores que também objetivavam a superação do “gosto” que até então imperava na oratória e na poesia lusas. Em seus Apontamentos para a educação de um menino nobre, publicados em 1734, Martinho de Mendonça de Pina e Proença foi mais além que o célebre padre oratoriano, afirmando uma quase inutilidade das regras e minimizando a relevância da retórica na formação dos jovens (CASTRO, 1973CASTRO, Aníbal Pinto de. Retórica e teorização literária em Portugal: do humanismo ao neoclassicismo. Coimbra, Portugal: Universidade de Coimbra, 1973., p. 384 e 587). A crítica, porém, não deve ser tomada como negação de toda e qualquer observância dos preceitos retóricos, mas como reação aos - entre outros “defeitos” - “sofismas adornados com a elegante pompa de tropos e figuras” (PROENÇA apud CASTRO, 1973, p. 384) de que, em nome do “bom gosto”, a poesia e a oratória do século XVII seriam repetidas vezes acusadas ao longo do Setecentos português. Agora o padre Antônio Vieira é reprovado por cair “em agudezas pueris, e raciocinios falsos e muitos defeitos q facilmente podem enganar a quem não tiver estudado a boa Rhetorica” (QUADROS apud CASTRO, 1973, p. 615); frei Jerônimo Baía, por suas “Jornadas”, é condenado a viajar “de sua casa para o Hospital”, pois “Esta sorte de Poetas são doidos, ainda que não furiosos”, praticando a “parvoíce” de composições fundadas na semelhança de letras, sílabas e palavras (VERNEY, 1950VERNEY, Luís Antônio. Verdadeiro método de estudar. Lisboa: Sá da Costa, 1950. v. 2, 3 e 4., v. 2, p. 217-218); mesmo o “nosso suavissimo Antonio da Fonseca Soares” merece sérios reparos por sua “affectação” - isto é, “ornar com hum estudo forçado as cousas mais do que he licito, e formar conceitos fora dos limites do verosimil” (FREIRE, 1759FREIRE, Francisco José. Arte poética. 2. ed. Lisboa: Oficina Patriarcal de Francisco Luiz Ameno, 1759. 2 t., t. 1, p. 184) -, mal de que padeceram “[...] outros muitos do seculo passado; porque viveraõ no tempo, em que Portugal se vio infestado do pessimo gosto da Poesia, vindo de Hespanha, e protegido por Gongora, Villamediana, Lope da Vega, Quevedo, e outros muitos [...]” (FREIRE, 1759, t. 1, p. 186).

Compreender essa reação não é algo que diga respeito exclusivamente às letras. Ela constitui um dos elementos da sociabilidade letrada preconizada como modelo para toda a sociedade portuguesa pelas reformas promovidas por Pombal. Condenar aquele “pessimo gosto da Poesia”, portanto, significava aderir ao combate a uma sociabilidade que, sob d. José I, seria associado à atuação da Companhia de Jesus, execrada como nefasta e ardilosa. Um documento não datado, mas provavelmente do início do século XVIII - “Caráter dos cortesãos maquiavélicos, e refalsados, descrito por Boileau e por outros escritores” -, localizado e copiado por João Adolfo Hansen, embora não afronte os jesuítas, é bastante representativo da crítica à sociabilidade cortesã que vigorara no século anterior:

É efeito próprio dos Áulicos, para a conservação de sua maior grandeza, o adularem e mentirem uns aos outros em as cortes q frequentam, com sagacíssima dissimulação, pois a mesma urbanidade q exteriormente praticam, desgenera quase sempre em mentira revestida de ua grande aleivosia como notou P. Feijò no Teatro Critico [...]. // Refere, q já Juvenal, que havia frequentado muito a Corte de Roma, e visto praticar a falsa urbanidade dos cortesãos, insinua claramente, q não tinha q esperar em aquela Corte, nem tão pouco q fazer, senão fosse mentiroso e adulador. // quid Roma faciam? Mentire nescio: / Librum / Si malus est, nequeo Laudare, etc. // E q o Abade Boileau, famoso Pregador do Grande Rei Luís 14, em o livro q intitulou = Predicamentos Escolhidos = fizera ua propria pintura da Corte de Paris, mostrando, q as urbanidades da dita corte não só é dissimulação mas aleivosia, porque desonesta maneira: // Quais são as qualidades de um cortesão! Adular a seus inimigos, em quanto os teme, e destruí-los, se pode, aproveitando-se de seus amigos, sempre q necessite deles, e virando-lhe [sic] o rosto quando os não há de mister: buscar Protetores poderosos a quem adora com dissimulação e indústria na aparência, e frequentemente despreza con [sic] p.as, e com secreto. // A urbanidade cortesã consiste na grande fábrica de observar a Lei da dissimulação, e do dolo: de Representar todo o gênero de Personagens, segundo pedirem os próprios interesses, nas ações q se oferecerem. Sofrer com aparente desembaraço, e dissimulação aprazível as desgraças, e os reveses da fortuna, e esperar com pomposa alegria, e inquieta modéstia, os favores da ventura. // Em a Corte, comumente não há nada de sinceridade, tudo é engano: fazer maus ofícios à surdina uns aos outros, fabricar enredos, q nenhum poder humano os possam desenlear; padecer mortais desgostos, debaixo da dissimulação de u semblante risonho; ocultar debaixo de ua aparente modéstia, ua soberba Luciferina. É ação mui propria frequentemente em a Corte preverter os efeitos da mesma natureza, porque não é premetido ousar nela o que se quer, nem fazer o que se deve, nem dizer o q se sente. É necessário ter segredo para saber guardar os próprios sentimentos no que se entender, e facilidade para mudá-los segundo o alheio gosto de quem se lisonjeia com a adulação própria, mas há de Louvar, vituperar, amar, aborrecer, falar, adular, e viver, não segundo o próprio ditame, e o que persuade a reta razão, mas somente segundo o gosto, o desejo, a inteligência, e o capricho alheio. // Quantas são mais as formas de u cortesão Dissimular as injúrias no Estado débil do poder com a dissimulação de q as não entende, ou q as sofre por humilde e sujeição ao maior mando de quem as pratica, e vingá-las quando a fortuna mude as cenas, e corre a satisfação delas pela medida do próprio arbítrio de quem as sofreu; Lisonjear aos inimigos, e sempre com atenção de q não conheçam a treta para q desvanecidos com a adulação, se conservem no engano, e destruí-los na ocasião mais própria do seu descuido, ou infortúnio, para que descabeçados não possam nunca melhorar de forças; prometer muito e ainda tudo para obter os empregos, porque u caminho sem tropeços em as Cortes se alcança com dádivas, o que não pode conseguir comumente o merecimento, e não cumprir depois cousa nenhua em alcançar a pertensão, porque a estimação é o poder da Dignidade, ou do Posto ajudarão a Lograr sem susto o engano; pagar os benefícios com palavras, porque as carícias em a Corte, e a benevolência aparente, equivalem a justa e devida correspondência; satisfazer os serviços, e obséquios; corresponder aos Acredores com ameaças, porque ou o temor os faz esquecer das dívidas, ou a ficção do poder os obriga a esperar ainda mais os prêmios em diversos interesses, q a mesma satisfação. Em a Corte finalmente se adora a fortuna alheia, pela dependência própria, ao mesmo tempo q se amaldiçoa pela inveja cômica; Louva-se o merecimento não como virtude, mas por Adulação, este despreza juntamente, porque se não atende na correspondência do prêmio; escondendo-se a verdade, porque o temor de desagradar funda sempre os alicerces da própria fortuna no discrédito [sic] de quem levemente crê as Lisonjas de ua mentira rebuçada no zelo da conveniência [...] (COIMBRA, s/d, p. 3-4).

A reação antisseiscentista que nas letras corresponde à semelhante postura, longe de banir a retórica das mais diversas formas de discurso ou o seu magistério, buscava resgatá-la do “máo Methodo dos Estudos de Letras Humanas” (“Alvará régio, de 28 de junho de 1759, em que se extinguem todas as Escolas reguladas pelo método dos Jesuítas e se estabelece um novo regime”, apud ANDRADE, 1978ANDRADE, Antônio Alberto Banha de. A reforma pombalina dos estudos secundários no Brasil. São Paulo: Edusp, 1978., p. 178), cujo ensino encontrava-se “decahido daquelle auge, em que se achavão quando as Aulas se confiarão aos Religiosos Jesuitas” (“Alvará régio, de 28 de junho de 1759, em que se extinguem todas as Escolas reguladas pelo método dos Jesuítas e se estabelece um novo regime”, apud ANDRADE, 1978, p. 157) - conforme a ideia corrente e a campanha antijesuítica do reinado de d. José I fizeram crer, associando o suposto declínio da poesia e da oratória lusitanas ao sistema pedagógico adotado nos colégios da Companhia (CASTRO, 1973CASTRO, Aníbal Pinto de. Retórica e teorização literária em Portugal: do humanismo ao neoclassicismo. Coimbra, Portugal: Universidade de Coimbra, 1973., p. 587-588). Tratava-se, portanto, de revigorar a eficácia da retórica dentro da mais estrita observância dos preceitos antigos - tidos como deturpados “no século da ignorância (digo no fim do século XVI de Cristo e metade do XVII)” (VERNEY, 1950VERNEY, Luís Antônio. Verdadeiro método de estudar. Lisboa: Sá da Costa, 1950. v. 2, 3 e 4., p. 210).1 1 O diploma legislativo referendado por d. José significava um retorno à leitura quinhentista dos antigos, uma vez que “preconizava e estabelecia a adopção de um classicismo renascentista renovado e ‘simplificado’, pela necessidade de o adaptar aos tempos modernos e de aproveitar, na constituição de sua doutrina, tudo quanto o progresso da crítica adquirira posteriormente ao século XVI. A força do texto legislativo vinha assim consagrar, no vasto campo do ensino, aquela mesma orientação que, três anos antes, a Arcádia Lusitana escolhera para dar cabal cumprimento à legenda do seu emblema – inutilia truncat –, na procura de uma literatura nova em relação ao adulterado gosto barroco” (CASTRO, 1973, p. 588). A utilidade da retórica, aliás, mereceu especial consideração no documento pombalino que, em 1759, criou cursos regulares da disciplina em Portugal e seus domínios e tornou-a “obrigatória para a inscrição em qualquer das Faculdades universitárias” (CASTRO, 1973, p. 588):

Não há estudo mais util, que o da Rhetorica, e Eloquencia, muito differente do estudo da Gramatica: Porque esta só ensina a falar, e a ler correctamente, e com acerto, e a doutrina dos Termos e das Frases: A Rhetorica porem ensina a falar bem, supondo já a Sciencia das Palavras, dos termos, e das Frases: Ordena os pensamentos, a sua distribuição, e ornato. E com isto ensina todos os meios, e artifícios para persuadir os animos, e atrahir as vontades. He pois a Rhetorica a Arte mais necessaria no Commercio dos Homens, e não só no Púlpito, ou na Advocacia, como vulgarmente se imagina. Nos discursos familiares; nos Negocios públicos; nas Disputas; em toda a occazião em que se trata com os Homens, he precizo conciliar lhes a vontade; e fazer não só que entendão o que se lhes diz; mas que se persuadão do que se lhes diz, e o aprovem: Por consequência, he preciza esta Arte, que o máo Methodo dos Estudos de Letras Humanas tinha reduzido nestes Reinos á intelligencia material dos Tropos, e Figuras que são ou a sua minima parte, ou a que merece bem pouca consideração (“Alvará régio, de 28 de junho de 1759, em que se extinguem todas as Escolas reguladas pelo método dos Jesuítas e se estabelece um novo regime” apud CASTRO, 1973CASTRO, Aníbal Pinto de. Retórica e teorização literária em Portugal: do humanismo ao neoclassicismo. Coimbra, Portugal: Universidade de Coimbra, 1973., p. 178).

Assim, sentencia o Verdadeiro método de estudar, “só depois da Retórica se deve tratar da Poesia, a qual nada mais é que uma Eloquência mais ornada” (VERNEY, 1950VERNEY, Luís Antônio. Verdadeiro método de estudar. Lisboa: Sá da Costa, 1950. v. 2, 3 e 4., p. 200-201).2 2 Mais adiante, sentencia: “para fazer tudo o que pede a arte [da poesia], se requer a boa Retórica” (VERNEY, 1950, p. 246); “quanto mais se examina a Poesia, tanto mais claramente se reconhece a Retórica” (VERNEY, 1950, p. 252). Verney (apud CASTRO, 1973, p. 410) “concede uma deliberada importância à Retórica como fundamento de toda a criação literária e não apenas da eloquência, sagrada ou profana, embora este princípio não fosse exclusivo dele e andasse defendido por outros teorizadores incluindo Lamy [...]. Para ambos, o ensino da Retórica é indispensável, mas deve ser objecto de profunda renovação, de modo a criar nos alunos a noção do que seja ‘bom gosto’”. Verney chega mesmo a reduzir a poesia à retórica:

A Poesia é uma viva descrição das coisas que nela se tratam; outros lhe chamam pintura que fala e imita o mesmo que faria a natureza, e com que agrada aos homens. O artifício da Poesia tem por fim agradar; e por isso só se emprega em dar regras com que se possa ocupar gostosamente um engenho. A isto consagram os Poetas todo o seu engenho e juízo. Se buscam argumento elevado, é para agradar com a ideia de grandeza; se procuram imitar a verdade, é para agradar com a galantaria da imitação; se não dizem coisas contrárias às nossas inclinações, isto é mesmo para agradar; se propõem movimentos apaixonados, com que pintam ao vivo diferentes afectos da alma, também isso é para agradar; de sorte que este é o ídolo do artifício poético. E, como isto não se pode conseguir sem saber procurar pensamentos ou argumentos próprios para mover as nossas paixões, saber servir-se de palavras próprias para pintar aquela coisa que se quer (o que encerra as figuras da voz e do ânimo), fica bem claro que, para fazer tudo o que pede a arte, se requer boa Retórica (VERNEY, 1950VERNEY, Luís Antônio. Verdadeiro método de estudar. Lisboa: Sá da Costa, 1950. v. 2, 3 e 4., p. 243-244).3 3 E, mais adiante, insiste: “E assim a mesma Retórica, que é necessária para regular os nossos discursos na prosa, o é também no poema. Onde vem que a Poesia é uma Retórica mais florida; e a quem falta esta não pode ser bom poeta. Como é possível que o Poeta exprima na elegia a sua paixão, de sorte que mova, se ele não sabe a arte de mover? Como pode nos diálogos exprimir o que cada um quer e deve dizer, se ele não sabe o que deve e como o deve dizer? Torno às Comédias e Tragédias, e delas pergunto o mesmo: – Como pode o Poeta fazer que cada um dos representantes exprima a paixão de que está possuído, se ele não sabe que coisa é paixão, nem como se move? Não pode ser que um homem que ignore isto faça uma comédia boa. Também a Tragédia não consiste sòmente em inventar um argumento nobre; em saber embrulhar uma quantidade de sucessos que causem maravilha quando se desintrigam; mas sobretudo é necessária a propriedade e carácter em cada parte, para mover o ânimo, o que pede particular Retórica” (VERNEY, 1950, p. 249).

O retorno aos mestres gregos e latinos, por outro lado, faz-se urgente em Portugal, onde “o estilo dos Poetas” é “totalmente contrário ao que fizeram os melhores modelos da Antiguidade e ao que ensina a boa razão” (VERNEY, 1950VERNEY, Luís Antônio. Verdadeiro método de estudar. Lisboa: Sá da Costa, 1950. v. 2, 3 e 4., p. 201-202):

É necessário doutrina e entender bem as matérias que se tratam; é necessária a Filosofia, e saber conhecer bem as acções dos homens, as suas paixões, e o seu carácter, para as saber imitar, excitar e adormecer. Aqui entra novamente a Retórica, que supõe todas aquelas coisas; entra uma pouca de História, para não dizer parvoíces; entra a História da Fábula etc.. Tudo isto se mostra manifestamente nos melhores poemas que temos da Antiguidade. Virgílio e Horácio etc. eram homens que entendiam perfeitamente o que tratavam, e sabiam muita coisa que introduziam propriìssimamente nos seus poemas, de que se compõe o ornamento deles. O mesmo digo de outros Poetas modernos e insignes. Onde, quem não tem estes fundamentos, é versejador, mas não Poeta; e necessàriamente há-de dizer muita parvoíce (VERNEY, 1950VERNEY, Luís Antônio. Verdadeiro método de estudar. Lisboa: Sá da Costa, 1950. v. 2, 3 e 4., p. 265-256).

Essa reposição dos antigos, entretanto, não preconizava a imitação indiferenciada de todos os autores da Grécia e de Roma, tal como fizeram os “homens daqueles séculos ignorantes”, que “não observaram nos Antigos o bom, mas o mau” (VERNEY, 1950VERNEY, Luís Antônio. Verdadeiro método de estudar. Lisboa: Sá da Costa, 1950. v. 2, 3 e 4., p. 210).4 4 E, mais adiante: “[...] como nem todos têm juízo para entenderem as coisas, daqui nasce que, neste mesmo século XVII e ainda presente, se acham pessoas que confundem as ditas coisas, e que, se acaso chegam a ler os Antigos, não sabem advertir o que neles se deve imitar os desprezar [...]” (VERNEY, 1950, p. 236). Parte considerável dos esforços argumentativos dos principais teorizadores portugueses que escreveram sobre retórica e poética a partir de meados do século XVIII se empenhará em demonstrar os supostos equívocos do passado recente das letras do reino, elegendo entre os antigos os que concebiam como autênticos exemplos a serem seguidos ou os escoimando daquilo que excedesse ao “bom gosto”: ao “sentencioso Séneca”, ao “conceituoso Tesauro” ou ao “florido Mendonça”, por exemplo, agora se contrapunha a “nobre simplicidade” de Tito Lívio, Cícero ou Virgílio (CASTRO, 1973CASTRO, Aníbal Pinto de. Retórica e teorização literária em Portugal: do humanismo ao neoclassicismo. Coimbra, Portugal: Universidade de Coimbra, 1973., p. 593).5 5 As expressões são do padre José Caetano de Mesquita e Quadros em sua Oração sobre a restauração dos estudos das Bellas Letras em Portugal, Que no dia 30 de Setembro de M.DCC.LIX. Na presença do muito alto, e muito poderoso Rey Fidelissimo D. Jozé I Nosso Senhor, disse [...], citada por Castro (1973). De fato, as artes poéticas, os discursos, as polêmicas, os manuais de retórica, a legislação pedagógica da época estão repletos de instruções quanto ao que se deve apreender e evitar não apenas dos autores da Antiguidade, mas também dos “modernos” - o que permite reconstituir a noção de poesia e eloquência que se forma a partir de então e que se torna vigorosa tanto no reino quanto na América portuguesa até as vésperas do romantismo.

Para tanto, é necessário lembrar, inicialmente, a importância de certo referencial bastante recorrente entre os árcades lusos. Sérgio Buarque de Holanda assevera que:

[...] a influência da França, da civilização, do pensamento, da língua e, enfim, do “bom gosto” franceses, tinha outras possíveis estradas de penetração, que já o próprio prestígio político da monarquia de Luís XIV bastava para abrir em todas as direções. Se é exato que, mesmo e sobretudo entre os países latinos do sul, como a Itália ou a Espanha, aquela influência pôde às vezes suscitar movimentos de despeito e também fundos antagonismos, não é menos certo que os franceses, por seu lado, sabiam vingar-se de tais ressentimentos, menoscabando da linguagem floreada, alambicada ou altissonante de espanhóis e napolitanos (HOLANDA, 1991HOLANDA, Sérgio Buarque de. Capítulos de literatura colonial. São Paulo: Brasiliense, 1991., p. 205).

É frequente, pois, a apropriação - explícita ou implícita - de L’Art poétique (1674) de Nicolas Boileau-Despréaux (1979, p. 212-213) - traduzida por Francisco Xavier de Meneses, conde da Ericeira -, onde se ensina que

La plupart, emportés d’une fougue insensée, Toujours loin du droit sens vont chercher leur pensée: Ils croiraient s’abaisser, dans leurs vers monstrueux, S’ils pensaient ce qu’un autre a pu penser comme eux. Évitons ces excès: laissons à l’Italie De tous ces faux brillants l’éclatante folie, Tout doit tendre au bon sens: mais pour y parvenir Le chemin est glissant et pénible à tenir; Pour peu qu’on s’en écarte, aussitôt on se noie. La raison pour marcher n’a souvent qu’une voie. Un auteur quelquefois trop plein de son objet Jamais sans l’épuiser n’abandonne un sujet. S’il rencontre un palais, il m’en dépeint la face; Il me promène après de terrasse en terrasse; Ici s’offre un perron; là règne un corridor; Là ce balcon s’enferme en un balustre d’or. Il compte des plafonds les ronds et les ovales; “Ce ne sont que festons, ce ne sont qu’astragales.” Je saute vingt feuillets pour en trouver la fin, Et je me sauve à peine au travers du jardin. Fuyez de ces auteurs l’abondance stérile, Et ne vous chargez point d’un détail inutile. Tout ce qu’on dit de trop est fade et rebutant; L’esprit rassasié le rejette à l’instant. Qui ne sait se borner ne sut jamais écrire.6 6 Na tradução – em prosa – de Célia Berrettini: “Os autores, na sua maioria, levados por um ímpeto insensato, vão procurar sempre o pensamento longe do bom senso. Acreditar-se-iam rebaixados, nos seus versos estranhos, se pensassem que outro poeta pode pensar como eles. Evitemos tais excessos: deixemos à Itália a deslumbrante loucura de todos esses falsos brilhantes. Tudo deve tender ao bom senso. Mas, para aí chegarmos, o caminho a ser seguido é escorregadio e penoso; logo nos afogamos, por pouco que nos afastemos. A razão, para andar, tem muitas vezes apenas uma via. // Um autor, obcecado às vezes com o objeto de seu trabalho, nunca abandona um assunto sem esgotá-lo. Se encontrar um palácio, pinta-me sua fachada; em seguida, passeia-me de terraço em terraço. Aqui se apresenta uma escadaria; lá reina um corredor; acolá se fecha um balcão numa balaustrada de ouro. Ele conta as superfícies redondas e ovais dos tetos: ‘Não são senão festões, não são senão astrágalos”. Salto vinte folhas para encontrar o final, e só consigo escapar através do jardim. Fuja da abundância estéril desses autores, e não se sobrecarregue com um pormenor inútil. Tudo o que dizemos a mais é insípido e desagradável; o espírito saciado repele instantaneamente o excesso. Quem não sabe moderar-se jamais soube escrever” (BOILEAU-DESPRÉAUX, 1979, p. 16-17).

Conforme lembra Ivan Teixeira, o “ideal de equilíbrio e clareza, vivo no Renascimento italiano”, foi propagado por Boileau. Quanto às suas fontes na L’Art poétique, diz Teixeira,

[...] observe-se que, ao ser acusado de imitar Horácio [...], Boileau, no prefácio da edição de 1674 das Oeuvres Complètes, defendeu-se com a afirmação de que seu trabalho possuía mil e cem versos, dos quais apenas cinqüenta ou sessenta foram conscientemente traduzidos da Epístola aos Pisões. Todavia, sabe-se hoje que sua poética não difere do padrão da poética horaciana, muito reproduzido nos séculos XVI, XVII e XVIII. Com efeito, a Arte Poética de Boileau configura-se como uma compilação mais ou menos impessoal - exceto pela concisão de seus contundentes versos lapidares - dos preceitos de Aristóteles e Horácio, aos quais acrescenta algumas nuanças conceituais, por força de sua interpretação, que decorre também dos esquemas mentais do período. Nesse, como em outros casos, a maior novidade consiste antes na aplicação de princípios antigos do julgamento da poesia sua contemporânea, de cujo âmbito os preceitos tradicionais saem ligeiramente renovados, em conseqüência de seu contato com a experiência coletiva do final do século XVII. Não se pode esquecer que Boileau defendeu a manutenção dos modelos da Antiguidade clássica em La Querelle des Anciens et des Modernes (TEIXEIRA, 1999TEIXEIRA, Ivan. Mecenato pombalino e poesia neoclássica: Basílio da Gama e poesia neoclássica. São Paulo: Edusp, 1999., p. 137-138).

Assim, Verney (1950VERNEY, Luís Antônio. Verdadeiro método de estudar. Lisboa: Sá da Costa, 1950. v. 2, 3 e 4., p. 233-235, grifo do autor), ao repreender a “ridicularia” dos “ditos que chamam agudos” e os “jogos de palavras, que se acham frequentemente nos prosadores e frequentìssimamente nos poetas”, lembra que semelhantes práticas também “Acham-se, é verdade, nos Antigos, muitas e mui insulsas”. Mas em Cícero, por exemplo, “era o seu defeito - ser muito faceto -” e quase todas elas eram “frioleiras e ridicularias, que não merecem nome de pensamento engenhoso”. Neste particular, prossegue o religioso oratoriano, a melhor lição vem de Dionísio Longino, que, “além de filósofo e retórico”, foi “um perfeitíssimo crítico, ensinou no tratado De Sublime Stilo, como se devia julgar nestas matérias, e que coisa se devia chamar Engenho. E todo o mundo douto concordou com ele” (VERNEY, 1950VERNEY, Luís Antônio. Verdadeiro método de estudar. Lisboa: Sá da Costa, 1950. v. 2, 3 e 4., 236, grifo do autor). Contra os que “dizem mil ridicularias e produzem infinitas monstruosidades e despropositadas imaginações” - pecado em que incorrem “não só os modernos e medíocres Poetas” mas “ainda os antigos e grandes homens”, insiste -, Verney propõe o “engenho” compreendido como o “saber unir ideias semelhantes, com prontidão e graça, para formar pinturas que agradem e elevem a imaginação; de sorte que não basta que sejam semelhantes; é necessário que divirtam e arrebatem” (VERNEY, 1950, p. 207).7 7 Aos que escrevem em latim, recomenda: “Os que estimam a bela Latinidade devem escrever como os da idade de oiro ou, quando muito, de prata; e nada mais se deve imitar. Nos fins da idade de prata é que se começaram a introduzir agudezas por culpa de Séneca, Filósofo, e seu sobrinho Lucano, mas principalmente de Marcial, que floresceu pouco depois, motivo por que muitos bons críticos querem que a idade de prata acabe com Nero, no ano 67 de Cristo, vendo quanto, dali para diante, descaiu a Eloquência. Mas ainda nos fins da idade de prata não estava o caso tão arruinado, o que alcanço das inscrições desse tempo. Do tempo dos Antoninos para diante, quero dizer, desde os princípios do segundo século de Cristo, é que totalmente se começou a arruinar, e entraram as subtilezas; mas pior que tudo, desde a metade do dito século para baixo. Finalmente arruinou-se a língua latina com o Império Romano, no quinto século. Daí para diante reinou a ignorância até o meio do décimo quinto século” (VERNEY, 1950, p. 292-293). Para esquivar-se dos abusos que os poetas seiscentistas cometeram,8 8 Alguns casos examinados por Verney (1950, p. 252-66). o Verdadeiro método de estudar ensina que o poeta há de ter também “juízo” para “saber aplicar” aquelas ideias:

Quando o Poeta diz que a garganta da sua amada é branca como a neve, nisto não aparece engenho; se, porém, acrescenta que é igualmente fria, nisto está o engenho. Pelo contrário, o juízo é aquela faculdade da alma que pesa exactamente todas as ideias, separa uma das outras, não se deixa enganar da semelhança, e atribui a cada uma o que é seu. Isto pede uma exacta meditação e prudência fundada; aquilo só pede uma memória cheia de muitas e diferentes ideias (VERNEY, 1950VERNEY, Luís Antônio. Verdadeiro método de estudar. Lisboa: Sá da Costa, 1950. v. 2, 3 e 4., p. 207).9 9 Em outra parte, mais à frente, dirá o “Barbadinho”: “O Poeta perde a naturalidade todas as vezes que procura, com grande estudo, mostrar engenho; e nunca desagrada mais que quando procura agradar muito, porque o conceito há de apresentar-se, e não procurar-se” (VERNEY, 1950, p. 260).

Em 1739, porém, a contenção da metáfora e da alegoria era recomendada na Arte de pregar de frei Jacinto de São Miguel, na certeza de que o abuso desses tropos tornava o discurso indecoroso e obscuro. Mais que isso, afirma o religioso, “a metaphora he ordinariamente occasião da racionação falsa”, ao passo que a “allegoria he tambem outra causa de racionação falsa, quando se falla de hum sugeito com termos, que significão outro”. O autor justifica semelhante censura com o respeito ao “natural”:

[...] sem desprezar a allegoria, e a metaphora, que tem certamente grandes bellezas, e que Longino assegura serem mui uteis para o patético, e o sublime, digo que se deve usar dellas com discrição, principalmente em o nosso seculo, que se preza entre outras coizas de huma grande formalidade, e que affecta seguir o bom gosto. // Para as coisas raras, e extraordinárias, podemos servir-nos de metaphoras e allegorias, porque o uso não tem termos sufficientemente fortes. Mas nos discursos, que devem encaminhar à practica, he sahir do natural e fazer apparecer os objectos de outro modo, que são. (Jacinto de São Miguel apud CASTRO, 1973CASTRO, Aníbal Pinto de. Retórica e teorização literária em Portugal: do humanismo ao neoclassicismo. Coimbra, Portugal: Universidade de Coimbra, 1973., p. 519).

E conclui sugerindo uma equilibrada proporção no emprego dos recursos discursivos: “Consiste pois todo o artificio em dizer sòmente, o que he precizo para ser entendido e para persuadir; porque se se diz mui pouco fica escuro, se se diz muito com o pézo se abate; se se repete causa fastio” (Jacinto de São Miguel apud CASTRO, 1973CASTRO, Aníbal Pinto de. Retórica e teorização literária em Portugal: do humanismo ao neoclassicismo. Coimbra, Portugal: Universidade de Coimbra, 1973., p. 519-521, inclusive notas 20 e 22).10 10 Contudo, mesmo a “naturalidade” deve ser equilibrada, diz o frade: “nem por isso canonizo a humildade do estylo nascido de uma affectada naturalidade, que em lugar de adorno he desassêo. O ser humilde serà virtude das Orações santas; mas não das Rhetoricas [...] Não se ha de seguir tanto a naturalidade, que degenere em vulgaridade sem viveza, e sem energia” (Jacinto de São Miguel apud CASTRO, 1973, p. 544).

A mesma moderação será prescrita vinte anos depois por Francisco José Freire (membro professo da Congregação de São Filipe de Néry) - ou Cândido Lusitano, codinome árcade pelo qual ficou mais conhecido - na segunda edição de sua Arte poetica, quando trata da “fantasia”:11 11 “Todo o objecto, que se representa aos olhos, aos ouvidos, e aos outros sentidos, lança hum compendio, huma imagem, huma similhança de si mesmo, a qual sendo recebida pelos sentidos, passa pelos nervos, e orgaõs corporeos, até que chega a imprimirse em o nosso cerebro. A potencia, ou faculdade da alma, que aprehende, e conhece estes objectos sensíveis, ou para melhor dizer, as suas imagens, he a fantasia, ou imaginativa, a qual porque está (segundo o nosso modo de entender) na parte inferior da alma, lhe poderemos chamar de aprehensiva inferior. Tem a nossa alma outra aprehensiva das cousas, a que podemos dar o nome de superior; porque está collocada na parte superior, e racional da alma, e commumente lhe chamamos entendimento. O officio da fantasia naõ he propriamente o inquirir, e entender se as cousas saõ falsas, ou verdadeiras. Porém para meditar, e formar pensamentos, unem-se entre si estas duas potencias, administrando a inferior á superior as imagens dos objectos, que lhe communica sem se valer dos sentidos; porque já em si as tem. Tambem póde a potencia inferior per si mesma valerse destes objectos para imaginar as cousas já aprehendidas, ou para fabricar outros objectos; porque também ella tem força para conceber novas imagens”. (FREIRE, 1759, t. 1, p. 85-86, grifos do autor).

He a fantasia como um cavallo muy fogoso, o qual para naõ ser desenfreado, he preciso, que se sujeite ás regras da Arte. A mesma desordem, que ha, faltando esta ao bruto, se experimenta na fantasia, quando as suas imagens, por naõ serem dirigidas pelo entendimento, naõ tem a sua devida proporçaõ, e fundamento, para naõ serem tidas por excessivas, atrevidas, ou improprias. Estas circunstancias faltaõ certamente em muitas obras de Poetas, que tem conseguido grande nome; porque floreceraõ em seculo, em que reinava hum gosto estragado, naõ só em Portugal, e Hespanha, mas ainda por Italia e França (FREIRE, 1759FREIRE, Francisco José. Arte poética. 2. ed. Lisboa: Oficina Patriarcal de Francisco Luiz Ameno, 1759. 2 t., t. 1, p. 121).12 12 Mais adiante, no capítulo XXVI, criticando “Extremos viciosos dos estylos” como “contrapostos, equivocos, paranomasias, allusões, e outras pestes condemnadas” e culpando os italianos, diz Freire (1759, p. 203) que “Naõ se póde negar, que esta peste de contrapostos, equivocos de vozes &c. veyo de Italia no principio do seculo decimosexto, segundo a authoridade de Mons. Boileau insigne Criticio Francez”.

Dom frei Manuel do Cenáculo Vilas Boas, autor de umas Memórias históricas do ministério do púlpito (1776), reconhece a validade do emprego do sentido alegórico, porém adverte que, no recurso à metáfora e à alegoria, “a sobriedade, o fim louvavel, a expressão, e a occurrencia natural fazem o preço do seu uso” (VILAS BOAS apud Castro, 1973CASTRO, Aníbal Pinto de. Retórica e teorização literária em Portugal: do humanismo ao neoclassicismo. Coimbra, Portugal: Universidade de Coimbra, 1973., p. 579).

O padre José Caetano de Mesquita e Quadros, escrevendo em suas Instruções da retórica e eloquência dadas aos seminaristas do patriarcado, publicadas em 1795, dizia que “Hum Sermão cheio de Anthitezes de agudezas, e d’outros semelhantes ornatos, he como huma Igreja feita no gosto Gótico” (QUADROS apud Castro, 1973CASTRO, Aníbal Pinto de. Retórica e teorização literária em Portugal: do humanismo ao neoclassicismo. Coimbra, Portugal: Universidade de Coimbra, 1973., p. 624, nota).

Outro religioso - o beneditino Bernardo da Conceição - asseverava, num escrito de 1786 (A mocidade instruída na arte de bem falar ou diálogo sobre a eloqüência, em que se trata com clareza as regras e preceitos da retórica, para uso das pessoas que não freqüentaram as aulas), que “A eloquencia moderna he fundada nas regras e preceitos da Rhetorica e a antiga [isto é, a do século XVII] tinha por fundamento o capricho, a lizonja, e a prezunção” (CONCEIÇÃO apud Castro, 1973CASTRO, Aníbal Pinto de. Retórica e teorização literária em Portugal: do humanismo ao neoclassicismo. Coimbra, Portugal: Universidade de Coimbra, 1973., p. 661).13 13 As invectivas dos teorizadores portugueses contra o “seiscentismo” lembram Gian Vincenzo Gravina, que em sua Della ragion poetica (1708) reprovava os poetas do século anterior por se fundarem nos autores da “decadência latina” (GRAVINA apud MONCARELLO, 1953, p. 109-110 [nota]).

Ao depreciarem desse modo o estilo agudo dos autores do século XVII e o dos que, ainda no XVIII, permaneciam fiéis a ele, esses teorizadores partiam de uma nova leitura de Aristóteles - que, embora não de todo negado, sofreu diversas restrições, em contraste com o prestígio que gozou nas letras seiscentistas - e da revalorização “das fontes consideradas mais puras de Horácio, na Poética, ou de Cícero e Quintiliano (sobretudo o segundo), na Retórica”14 14 Sobre Quintiliano, lembra Castro (1973, p. 598), em nota na mesma página, que “as Institutiones Oratoriae transformaram-se, a partir de 1759, num verdadeiro código da teoria da prosa, graças a numerosas traduções, adaptações e reedições”; e que, ainda em 1817, Francisco Coelho de Castro publicava uma coletânea de preceptivas recolhidas da obra desse autor latino. Ao distinguirem o “mau gosto” anterior do “bom gosto” que agora buscavam instaurar (CASTRO, 1973CASTRO, Aníbal Pinto de. Retórica e teorização literária em Portugal: do humanismo ao neoclassicismo. Coimbra, Portugal: Universidade de Coimbra, 1973., p. 598),15 15 Aníbal de Castro registra que a veemência com que Verney e Cândido Lusitano defendiam essa nova noção levou o padre Francisco Duarte a apelidá-los de “almotacéis do bom gosto” (CASTRO, 1950, p. 490, nota). eram esses os referenciais que os adeptos deste último tinham em mente:

Homero é grande, é natural, tem pensamentos elevadíssimos, e excede nisto a Virgílio; contudo, este, que escreveu depois, ainda que tenha menos natureza, mostra mais arte que Homero, pois soube evitar um defeito que frequentemente se acha em Homero, que é amontoar supérfluos epítetos, e às vezes insulsos, como também as digressões e colóquios insípidos, sem necessidade alguma. Cícero, no seu livro De Claris Oratoribus, em que censura tudo o que houve de bom na Antiguidade, traz belíssimas reflexões sobre os defeitos de alguns oradores; e bem procurou, nas suas obras, fugir dos tais defeitos. Contudo, Quintiliano, que floresceu um século e meio depois, ainda que muitos furos abaixo do merecimento de Cícero, advertiu coisas que a Cícero tinham fugido (VERNEY, 1950VERNEY, Luís Antônio. Verdadeiro método de estudar. Lisboa: Sá da Costa, 1950. v. 2, 3 e 4., p. 235-236).

Sobre Cícero e Quintiliano, sentencia Mesquita e Quadros (apud Castro, 1973CASTRO, Aníbal Pinto de. Retórica e teorização literária em Portugal: do humanismo ao neoclassicismo. Coimbra, Portugal: Universidade de Coimbra, 1973., p. 612)

Nelles como nas fontes da antiguidade se devem beber as idéas puras, e sans para saber bem solidamente o que he Rhetorica, ou Eloquencia. Eu o confesso assim. Disserão elles tudo o que havia melhor sobre esta Arte, e disserão-no excellentemente. // Estabelecerão todos os principios verdadeiros, e parece (fallando em geral) que pelo que toca a estes princípios, ha seguramente poucas cousas que accrescentar ao que elles escreverão.

Para Francisco José Freire (1759FREIRE, Francisco José. Arte poética. 2. ed. Lisboa: Oficina Patriarcal de Francisco Luiz Ameno, 1759. 2 t., t. 2, p. 222-223, grifo do autor), escrevendo sobre a épica grega e latina,

Virgilio he sem controversia o Principe dos Epicos Latinos, como Homero dos Gregos. O merecimento do seu Poema he muy distincto; porque ainda que elle seja huma machina levantada sobre os fundamentos da Iliada, e Odissea, com tudo naõ se tem decidido até agora quem ha de levar a preferencia. Em quanto se naõ julga esta causa, que talvez nunca se sentenciará, podemos seguir o juizo, que destes dous sublimes Poetas fez Quintiliano, dizendo no liv. 10 cap. 1. que Homero tem mais viveza, e mayor naturalidade, e Virgilio mais arte, e mayor trabalho.

Enfim, conforme sintetiza Vilas Boas (apud Castro, 1973CASTRO, Aníbal Pinto de. Retórica e teorização literária em Portugal: do humanismo ao neoclassicismo. Coimbra, Portugal: Universidade de Coimbra, 1973., p. 581, nota), “Seja solícito, e insista na lição dos Antigos; e escolha dos Modernos os que achar de melhor reputação, para saber regular-se no que depender, ou pela materia, ou pelos tempos, de advertencias distintas das Regras invariaveis”.

“Simplicidade”, “clareza”, “naturalidade”, “harmonia”, “verossimilhança”, “facilidade”, “proporção” são agora critérios de eleição que conduzem a escolha dos antigos a serem emulados - ou daquilo que neles pode ser seguido -, tendo em vista a máxima horaciana - Omne tulit punctum, qui miscuit utile dulci, / Lectorem delectando, pariterque monendo - de que “o Poeta com a boa imitaçaõ ha de ser util, e deleitavel” (FREIRE, 1759FREIRE, Francisco José. Arte poética. 2. ed. Lisboa: Oficina Patriarcal de Francisco Luiz Ameno, 1759. 2 t., t. 2, p. 29).16 16 Os versos de Horácio, extraídos da “Epístola aos Pisões” (ou “Arte poética”), encontram-se citados na mesma página, de onde foram extraídos. Uma tradução dos mesmos, em português, de Antônio Luís de Seabra: “Quem souber aliar o util e o grato, / O leitor instruindo e deleitando, / Terá todos os votos” (HORÁCIO, 1941, p. 313). Outra, em prosa, de Jaime Bruna: “Arrebata todos os sufrágios quem mistura o útil e o agradável, deleitando e ao mesmo tempo instruindo o leitor” (HORÁCIO, 1992, p. 65). Esses atributos, entretanto, não devem ser compreendidos como decorrência da emanação espontânea de virtudes intrínsecas ao caráter do poeta ou orador, mas como qualidades técnicas postas a serviço de uma concepção de poesia segundo a qual “o principal fim” dessa arte é “o ensinar o povo, e servir lhe de utilidade” (FREIRE, 1759, t. 1, p. 26). Na Arte poetica, Cândido Lusitano, recorrendo ao tratado Della perfetta poesia italiana, de Ludovico Antonio Muratori, não deixa dúvidas quanto à utilidade “civil” da poesia, explicitando sua sujeição à “Filosofia moral, ou Politica”:

Póde-se dizer, que a Poesia, ou a Poetica, em quanto he Arte imitadora, e compositora de Poemas, tem por fim o deleitar; e que em quanto he Arte subordinada á Filosofia moral, ou Politica, tem por fim o utilizar a alguem. Com esta doutrina, que he do insigne Muratori, se vê, que a mesma cousa considerada de differente maneira tem dous fins diversos; isto he, a utilidade, e o deleite. A Poesia considerada em si mesma procura causar seu deleite, e considerada como Arte sujeita á faculdade civil toda se emprega em causar utilidade. E como quer que esta faculdade seja a que encaminha todas as Sciencias, e Artes á felicidade eterna, á temporal, e ao bom governo dos póvos, por isso a verdadeira, e perfeita Poesia deveria sempre igualmente deleitar, que utilizar a huma Republica. Quem com a boa imitaçaõ Poetica naõ deleita, pecca propriamente contra huma intençaõ da Poesia; e quem imitando, e deleitando, naõ he igualmente causa de que o povo se aproveite, e se instrûa, pecca gravemente contra outra precisa obrigaçaõ desta Arte [...] (FREIRE, 1759FREIRE, Francisco José. Arte poética. 2. ed. Lisboa: Oficina Patriarcal de Francisco Luiz Ameno, 1759. 2 t., t. 1, p. 29-30).17 17 Antes, no primeiro capítulo (“Da origem, progressos, e essencia da Poesia”) do “Livro I”, referindo-se à passagem da Poética em que Aristóteles afirma “que a Lyrica e a Satyra saõ as duas especies mais antigas desta Arte”, Freire infere “que a intençaõ, e fim da Poesia foy desde aquelles primeiros tempos, e ainda actualmente he, de cantar os louvores da virtude, e dos virtuosos, ou o vituperio dos viciosos; para que aprenda a gente a conhecer, que odio devem ter a estes, e amor áquella: e por consequencia saibamos, que a Poesia naõ he outra coisa mais, que huma filha da Filosofia moral, ou para melhor dizer, he a Poesia, e a Filosofia huma mesma cousa, ainda que expressada com dous differentes nomes” (p. 11). Prosseguindo com seu elenco de “autoridades”, Freire lembra que “O mesmo prova Estrabo no I. liv. Da Geografia para mostrar contra o parecer de Erastotenes, que a Poesia fora inventada, naõ só para deleitar, mas igualmente para instruir; como largamente se póde ler em Muratori na sua estimadissima obra da Perfeita Poesia tom. I. pag. 33” (FREIRE, 1759, t. 1, p. 12). Ver também Moncarello (1953, p. 112, 152, 174-175).

Assim, o “bom gosto” pode ser apreendido não apenas no âmbito meramente técnico da produção de determinados efeitos discursivos, mas também e, sobretudo, como componente de uma intervenção política que se pretende exercer por intermédio da arte. Assim como no século XVII a agudeza foi padrão distintivo dos “melhores”, no XVIII o “bom gosto” evidencia a civilidade dos que têm “juízo”. Civilidade necessariamente antijesuítica, sob Pombal - cuja meta a ser alcançada, na reforma das letras, será exatamente o “bom gosto”. Na época pombalina, o “bom gosto” é, ao mesmo tempo, ideal a ser atingido e índice de distinção do letrado adepto das mudanças promovidas pelo ministro de d. José I. Não é uma casualidade, pois, o fato de que o empenho de Freire em instituir um novo padrão de legibilidade e produção de poesia secunde a legislação pedagógica pombalina (CASTRO, 1973CASTRO, Aníbal Pinto de. Retórica e teorização literária em Portugal: do humanismo ao neoclassicismo. Coimbra, Portugal: Universidade de Coimbra, 1973., p. 610). Afinal, “reformar a Poesia, purificar a língua portuguesa, restaurar a arte de orar, estabelecer um sistema de bom gosto, pelo meio de uma prudente crítica” (Pedro Antônio Correia Garção apud Castro, 1973CASTRO, Aníbal Pinto de. Retórica e teorização literária em Portugal: do humanismo ao neoclassicismo. Coimbra, Portugal: Universidade de Coimbra, 1973., p. 608), conforme reivindicava Pedro Joaquim Antônio Correia Garção na sessão de 30 de junho de 1759 da Arcádia Lusitana - empregando verbos que supõem a ruína (“reformar”, “restaurar”) e a contaminação (“purificar”) das letras -, significava aderir, naquele momento, ao projeto de governação do ministro de d. José I - “marcado pela austeridade e funcionalidade” que se observa ainda tanto “na arquitetura da nova Lisboa” quanto no discurso sobre o ensino da medicina, por exemplo (TEIXEIRA, 1999TEIXEIRA, Ivan. Mecenato pombalino e poesia neoclássica: Basílio da Gama e poesia neoclássica. São Paulo: Edusp, 1999., p. 45-46). Ao definir o “bom gosto” - numa “tradução parafrásica” de De la manière d’enseigner et d’étudier les belles-lettres, de Rollin (CASTRO, 1973, p. 613) -, Mesquita e Quadros busca sintetizar exatamente esse pressuposto funcional, que em termos de retórica - cujas relações com a poética “considera muito estreitas e importantes” (CASTRO, 1973, p. 614) - representava negar os “hábitos mentais do Seiscentismo” e propor uma arte que “jamais deveria desrespeitar os limites da verossimilhança e do decoro” (TEIXEIRA, 1999, p. 142).18 18 Algo que já havia sido proposto por Gravina em Della rargion poetica (1708). Ver Moncarello (1953, p. 108-109). Observe-se, nas suas Instruções da retórica, a apologia da “clareza” e da “facilidade” como meios de alcançar um discurso que ensine a distinguir o bem do mal:

O bom gosto segundo nós entendemos em materia de Estudos, compoziçoens, e lição de Authores, não he outra couza mais do q o distinguirmos, e sentirmos, viva, clara, e preciozamente a formozura, a verdade, e bom ajuste dos pensamentos, provas, razoens, e palavras de que se compoem a nossa Oração, ou tãobem [sic] a facilidade de sentir, o q he bom, e o q he máo, ou o que he mediocre, e distinguir tudo isso com certeza. Ele dá a conhecer o que ha nas obras, e he conforme ao decoro de cada huma, próprio do seu caracter, e acomodado a todas as suas diversas circunstancias, conhecendo por um senso fino, e delicado as graças, o modo de dizer, as palavras, e pensamentos excellentes; tão bem conhece claramente os q produzem efeito contrario: descobre em que consistem precizamente estes defeitos, e ate onde se apartão das verdadeiras regras da Arte, e do que a natureza dicta a cada hum (QUADROS apud Castro, 1973CASTRO, Aníbal Pinto de. Retórica e teorização literária em Portugal: do humanismo ao neoclassicismo. Coimbra, Portugal: Universidade de Coimbra, 1973., p. 613).19 19 Ver Moncarello (1953, p. 154, nota).

Como é possível constatar neste e em outros teorizadores da época, e como já se pôde indicar aqui, “bom gosto” é frequentemente compreendido como a sujeição do delectare dos tropos e figuras ao docere e ao movere que agora passam a ser o objetivo primordial da poética e da oratória20 20 Aníbal de Castro observa semelhante postura ao comentar Verney (CASTRO, 1973, p. 424). - e que Mesquita e Quadros verifica, com uma abrangência bem mais ampla, já na Antiguidade: “Assim todas estas Artes [a Música, a Dança, a Eloquência e a Poesia] debaixo da apparencia do gosto continhão os mais sérios designios entre os Antigos, quanto à Moral, à Religião” (QUADROS apud Castro, 1973CASTRO, Aníbal Pinto de. Retórica e teorização literária em Portugal: do humanismo ao neoclassicismo. Coimbra, Portugal: Universidade de Coimbra, 1973., p. 618, nota). O repúdio à “afetação” seiscentista implicava a adesão a um estilo vincadamente didático, conduzido pela “razão fautora da verdade e denunciadora do erro” (QUADROS apud CASTRO, 1973, p. 435). Somente o discurso “racional” - isto é, despido daquilo que agora passava a ser considerado abusivo, excessivo, inútil, enfim, de “mau gosto” - era “verdadeiro”.

Não por acaso, no “Prologo” de sua Arte poetica, Francisco José Freire faz o elogio da racionalidade de suas preceptivas, calcadas nos autores gregos e latinos: “se se achar, que as regras, que expendo, saõ conformes à razaõ, e provadas com authoridades classicas, façase-me a justiça, que merecer” (FREIRE, 1759, t. 1, p. [XX]). Fundado, pois, na tradição, Cândido Lusitano remonta aos egípcios para demonstrar que estes já possuíam esse “thesouro da Poesia”, “explicando-a” não apenas pelos livros, mas também “pelo sinzel em marmores, ou pelo pincel em taboas”, com o que introduziram em suas colônias “os costumes da sua naçaõ”. A afluência de “muitos Gregos ao Egypto, como Orfeo, Museo, e Homero, levados da fama, que adquiriraõ estes Sacerdotes”, trouxe para a Grécia “toda a doutrina daquelles Sabios occulta ainda nos mesmos véos; isto he, nos escuros enigmas das Fabulas, e imagens”. Atribuindo à obscuridade desses textos a corrupção dos costumes, Freire faz operar, então, a ideia de que somente o discurso inteligível é útil à propagação da boa moral, encontrando já nos antigos a opção por formas mais simples e, consequentemente, didáticas de discurso:

Porém observando alguns Filosofos, que estas escuridades eraõ muy prejudiciaes aos povos; porque naõ penetravaõ pela sua ignorancia aquellas artificiosas invenções, e que em lugar de se aproveitarem com ellas, se radicavaõ na idolatria; resolveraõ-se a compor livros de sentenças, e preceitos moraes em lugar de Fabulas, e imagens, para melhor regularem os bons costumes. Assim o fizeraõ Hesiodo, Theognides, Phocilides, e outros muitos (Freire, 1759FREIRE, Francisco José. Arte poética. 2. ed. Lisboa: Oficina Patriarcal de Francisco Luiz Ameno, 1759. 2 t., t. 1, p. 12-13).

Afinal, se “naturalmente qualquer amante sempre se encaminha ao fim da bemaventurança; isto he, ao que elle imagina ser sua felicidade”, não se “póde chegar a este fim sómente pelo caminho do deleitavel, mas sim do util; porque naquelle póde ser enganado, e neste nunca póde haver engano” (Freire, 1759FREIRE, Francisco José. Arte poética. 2. ed. Lisboa: Oficina Patriarcal de Francisco Luiz Ameno, 1759. 2 t., t. 1, p. 28).

“Bom gosto” e “verdade”, portanto, tornam-se indissociáveis, como fica evidente, por exemplo, em frei Manuel da Epifania, autor de um Verdadeiro método de pregar (1759), para quem o “bom gosto” é “huma satisfação, que resulta na nossa alma, da posse do conhecimento da verdade conforme à natureza dessas obras”. Resumindo o postulado de frei Manuel, Aníbal de Castro afirma que, nesse autor, apenas a “verdade do objecto conhecido” é “a verdadeira fonte do bom gosto”, pois

[...] só quando a inteligência atinge o conhecimento da natureza das obras do espírito, a alma se ilumina com a luz daí resultante, para gozar uma satisfação plena motivada pela posse da verdade apreendida. É certo que, muitas vezes, a alma sentia “satisfação e complacencia na posse do falso, como verdadeiro”. Isso, porém, não era bom gosto, porque “assim como o gosto de huma cousa, que de si não he amavel, he gosto desordenado, também o gosto, ou complacencia da posse daquillo, que em si não he verdadeiro, he huma satisfação e gosto corrompido” (CASTRO, 1973CASTRO, Aníbal Pinto de. Retórica e teorização literária em Portugal: do humanismo ao neoclassicismo. Coimbra, Portugal: Universidade de Coimbra, 1973., p. 547).

Em seus ainda hoje inéditos Apontamentos sobre o estudo da retórica, datáveis da década de 1760 (CASTRO, 1973CASTRO, Aníbal Pinto de. Retórica e teorização literária em Portugal: do humanismo ao neoclassicismo. Coimbra, Portugal: Universidade de Coimbra, 1973., p. 610, nota), ao escrever sobre a restauração do “bom gosto” na prosa e na poesia portuguesas - para o que indica a retórica como o caminho mais seguro -, Mesquita e Quadros (apud Castro, 1973CASTRO, Aníbal Pinto de. Retórica e teorização literária em Portugal: do humanismo ao neoclassicismo. Coimbra, Portugal: Universidade de Coimbra, 1973., p. 622, nota) diz, sustentando a universalidade desse mesmo “bom gosto”, que

Este gosto que he universal, pois consiste naquilo q em todo o tempo julgarão todos os homens sabios q era bom, e excellente em materia de estudos, e a ele encaminhárão todo o seu estudo, e deligencia, [...] he sempre o mesmo e traz consigo sempre um caracter de verdade, e de natureza, q logo se faz sentir a quem tem discernimento.

“Discernimento” que caberia à retórica propiciar: “He pois a Rhetorica huma Arte q ensina a descobrir o q pode persuadir os homens, isto he, o bem e a verdade, e propo-lo de modo que elles se possão persuadir”. Diferentemente da lógica e da moral, que também buscam “o bem e a verdade”, a retórica objetiva, conforme Mesquita e Quadros, “persuadir, e fazer q huma e outra couza se ame e se abrace”. Se, contudo, à retórica cabe representar ambas a fim de comover e persuadir os ouvintes, a poética “pinta, e reprezenta a verdade e o bem não como elle he, mas como poderia ou deveria ser, afim de imitar a Natureza, e dar gosto aos homens, enchendolhes a fantasia de agradaveis imagens” (Mesquita e Quadros apud CASTRO, 1973CASTRO, Aníbal Pinto de. Retórica e teorização literária em Portugal: do humanismo ao neoclassicismo. Coimbra, Portugal: Universidade de Coimbra, 1973., p. 617-618).21 21 A ideia, porém, já se encontra na Della ragion poetica, de Gravina. Ver Moncarello (1953, p. 110-111).

Daí a necessidade de a poesia guardar sempre a proporção e a verossimilhança, sob o risco de tornar-se desagradável ao entendimento, conforme assevera Verney ao analisar um soneto de frei Antônio das Chagas “feito a um pé pequeno de uma Dama”:

Não consiste a beleza de uma figura em ter um ponto por pé, antes isto é deformidade; consiste em ter um pé proporcionado, e, nas mulheres, a sua proporção é que o pé seja mais pequeno. E eu entendo que a Dama ficaria mais contente de ter um pé grande, do que de não ter pés e necessitar de muletas (VERNEY, 1950VERNEY, Luís Antônio. Verdadeiro método de estudar. Lisboa: Sá da Costa, 1950. v. 2, 3 e 4., p. 258).22 22 (A íntegra do soneto encontra-se na p. 257.) Logo em seguida, ensina: “Dir-me-á V. P. que o Poeta deve fingir e inventar alguma coisa para louvar. Concedo. Mas não devem ser semelhantes parvoíces que, em vez de agradar, fazem náusea. Podem-se dizer muitas coisas daquele pé: mostrar que, para o complemento da beleza, não há proporção melhor que um pé pequeno; que nisto excede ela muito todas as mais senhoras; que a sua brancura e delicadeza é inimitável; que tem toda a graça que se pode imaginar em semelhante parte do corpo. Isto, quanto ao sério. Passando ao burlesco, podem-se dizer mil outras coisas, e pode o Poeta inventar alguma coisa galante com que adorne estes conceitos” (VERNEY, 1950, p. 258-259). Antes, na p. 236, comenta um poeta que, “observando as desprezantes maneiras de olhar da sua dama, e convencido, no mesmo tempo, da eficácia que os seus olhos tinham para inspirar-lhe amor, os considera como espelhos ustórios, feitos de caramelo; mas, podendo ele viver nos maiores ardores que o abrasavam, conclui que a zona tórrida é habitável. Quando a sua dama tem lido a carta, que lhe escreveu com sumo de limão, posta ao calor do fogo, lhe pede que a torne ler à luz das chamas de amor. Quando ela chora, deseja que um suave calor, excitado pelo amor, faça destilar aquelas lágrimas, passadas pelo alambique de seu coração. Quando ela está ausente, acha-se além do oitentésimo grau de latitude, quero dizer, quarenta graus mais vizinho do Polo, do que quando se acha com ela. O seu amor ambicioso é um fogo que sobe naturalmente para cima; o seu amor afortunado parece-se com os raios do Sol e o seu amor desafortunado assemelha-se às chamas do inferno. Quando o amor lhe tira o sono, é uma chama de que não sai fumo; e, quando a prudência o combate, é um fogo assoprado pelo vento. O seu coração é um Etna que, em vez da oficina de Vulcano, oculta aquela de Cupido. Às vezes, o coração do Poeta acha-se nevado no peito de todas as belas; outras vezes assado na vizinhança dos seus olhos. Umas vezes, afoga-se dentro das lágrimas, e, no mesmo tempo, arde entre os braços de amor, semelhante a estes foguetes de nova invenção, que ardem e estoiram debaixo da água. Em todo este discurso vê V. P. que o Poeta supõe que o amor é verdadeiro fogo de cozinha; e que une estas duas ideias – fogo e amor – para delas deduzir todos os seus conceitos, a que ele chama subtis e engenhosos. Isto agrada ao comum dos homens, não obstante que seja uma fantasia imprópria e extravagante. Porém já eu lhe perdoara este engenho misto, se usassem dele com moderação; o que não posso sofrer é que sem prudência o introduzam por tudo, e nos queiram persuadir que é grande engenho chamar a uma coisa com diverso nome; e que a dita coisa é tal como a pintam” (VERNEY, 1950, p. 236-238, grifos do autor).

Do mesmo modo, há um decoro próprio regendo a adequação das formas poéticas às paixões que se quer retratar. Assim, instrui o autor do Verdadeiro método de estudar,

Neste particular, acho um notável defeito em alguns Poetas, que querem fazer do soneto elegia, e, afectando um só conceito final, mostram tanto estudo, que destruem a ideia da elegia. Uma paixão não se desafoga em 14 versos; pede composição mais comprida e livre de afectações, acrescentando a isto que nem menos o verso os ajuda. Mas ainda o lírico, se se compõe de discursos separados, como são as décimas, não permite liberdade da expressão para desafogar a paixão. Também não aprovo os quartetos líricos, porque mostram afectação. Com efeito, muitas que eu vi nestes dois géneros cuido que mais moviam as Damas a riso que a compaixão (VERNEY, 1950VERNEY, Luís Antônio. Verdadeiro método de estudar. Lisboa: Sá da Costa, 1950. v. 2, 3 e 4., p. 298-299).23 23 Ao criticar Os lusíadas, Verney repara que, nas invocações que Camões “faz a El-Rei D. Sebastião”, o poeta usa “palavras que nada significam e causam confusão em quem lê. Nasce também de certas alusões forçadas e trazidas de longe, que frequentemente usa. A 6a. e 7a. estância, em que começa o cumprimento ao dito Rei, é tão obscura, que não se pode entender sem comentário; e o mesmo podia dizer de quase toda a invocação. Isto acha-se frequentemente em todo o poema, o que, unido com a negligência do verso, faz, como disse um homem douto, que cada estância seja um mistério, o que é um considerável defeito em um poema épico, cuja dicção deve ser (ainda que nobre) natural, clara, inteligível” (VERNEY, 1950, p. 316-317).

O primeiro compromisso do poeta é, pois, com o “verdadeiro”. Mais que isso, sentencia Cândido Lusitano, este é “o fundamento da belleza poetica” - embora “aquelle, que melhor sabe fingir, e mentir, esse he o melhor Poeta” (Freire, 1759FREIRE, Francisco José. Arte poética. 2. ed. Lisboa: Oficina Patriarcal de Francisco Luiz Ameno, 1759. 2 t., t. 1, p. 71). A aparente contradição, todavia, é resolvida por Freire com a ideia - buscada na Poética de Aristóteles - de que “De duas especies he o verdadeiro na Natureza”). Uma diz respeito ao que “he, ou foy”, e a outra, ao que “verosimilmente foy, e tambem podia, ou devia ser, segundo as forças da natureza”. Repondo a proposição aristotélica - citada em nota no capítulo anterior deste trabalho -, o autor conclui:

O primeiro verdadeiro buscaõ os Theologos, os Mathematicos, os Historiadores, e outras sciencias. O segundo pertence aos Poetas, que saõ os que principalmente o buscaõ. Do conhecimento do primeiro vem a sciencia, e do segundo a opiniaõ. Hum póde-se chamar verdadeiro, necessario, ou evidente, ou moralmente certo. [...] Outro póde-se chamar verdadeiro, possível, provável, e crível, que vulgarmente se diz verosimil [...] (Freire, 1759FREIRE, Francisco José. Arte poética. 2. ed. Lisboa: Oficina Patriarcal de Francisco Luiz Ameno, 1759. 2 t., t. 1, p. 72, grifos do autor).

Em contrapartida, adverte o frade oratoriano,

Onde o entendimento naõ descobrir na séria, e nobre Poesia, e em qualquer das suas partes, ou o primeiro verdadeiro, ou o segundo; he certo, que a tal composiçaõ naõ causará deleite, nem parecerá bella, ainda que se encontre o novo, e o maravilhoso; porque nos ha de causar o falso hum grande desagrado, como cousa impossivel, incrivel, e inverosimil (Freire, 1759FREIRE, Francisco José. Arte poética. 2. ed. Lisboa: Oficina Patriarcal de Francisco Luiz Ameno, 1759. 2 t., t. 1, p. 74).

Poesia, verossimilhança e utilidade tornam-se, no âmbito dessa preceptiva, absolutamente inseparáveis.24 24 A ideia pode ser encontrada já em Muratori, para quem, na Della perfetta poesia italiana, as imagens da poesia devem conter “il vero necessario, avvenuto o reale, o il vero possibile o credibile”. Se a poesia é “figliola e ministra della morale filosofia”, “in quanto è arte subordinada alla filosofia morale o politica ha per fine il giovare altrui”, inspirando amor à virtude e ódio ao vício. E, se o belo da poesia “altro non è se non un lume e un aspetto risplendente del vero”, o deleite desse produto é “fondato sopra il vero e l’utilità si produce dal buono congiunto col vero stesso” (MURATORI apud MONCARELLO, 1953, p. 153). Afinal, insiste Freire, o poeta “que he nobre, e sério” é sempre verossímil, “causando deste modo, ou sciencia, ou opiniaõ em o nosso entendimento”. Por isso, reforça, os “successos possiveis” que ele representa não são “falsos”,

[...] porque ainda que seja evidente o naõ serem elles realmente verdadeiros, tambem he claro, que elles podiaõ, ou pódem verdadeiramente succeder; e o Poeta com elles faz, que o entendimento alheyo aprehenda hum verdadeiro, naõ real, e succedido, mas sim possivel, e verosimil, que antes naõ era conhecido (Freire, 1759FREIRE, Francisco José. Arte poética. 2. ed. Lisboa: Oficina Patriarcal de Francisco Luiz Ameno, 1759. 2 t., t. 1, p. 74).

Daí a importância do conceito de “imitação” - termo tão recorrente não só na Arte poetica como também em outros teorizadores25 25 Em Della perfetta poesia italiana, é o intelecto que regula a boa imitação e é “colla buona imitazione” que o poeta “ha da giovare e dilettare”. O fim da poesia é “dilettare coll’imitazione”, “per esser buon poeta basta l’essere eccellente nella maniera dell’imitare, non essendoci necessità che sempre la materia o il suggetto sia meraviglioso, nuovo e bello per se stesso” (MURATORI apud MONCARELLO, 1953, p. 167). Ver também Moncarello (1953, p. 169-170). -, que reproduz a definição platônica do Sofista, classificando-a em “fantástica” e “icástica”, e que Cândido Lusitano didaticamente esclarece com o seguinte exemplo:

Quiz Zeuxis pintar a singular formosura de Helena, e naõ se contentou de copiar a imagem formosa de alguma particular mulher. Deu na idea de ajuntar todas as que eraõ bellas, e de cada huma foy tomando aquella parte, que lhe pareceo mais perfeita; e assim formou o retrato de Helena, ou para melhor dizer retratou nesta mulher a mesma belleza. Eisaqui [sic] nesta pintura um exemplo da imitaçaõ fantastica, em que a imitaçaõ he objecto; porèm, se Zeuxis retratara a formosura de Helena como ella em si era, e naõ pela idea, e capricho, segundo o verosimil, fazia entaõ huma imitaçaõ icastica, pois tinha por objecto a verdade (Freire, 1759FREIRE, Francisco José. Arte poética. 2. ed. Lisboa: Oficina Patriarcal de Francisco Luiz Ameno, 1759. 2 t., t. 1, p. 36).

Freire admite as duas espécies na poesia - muito embora não ignore opiniões divergentes, que “dizem, que a Icastica pertence aos Historiadores, e a Fantastica aos Poetas” ou que “o Poeta só he tal, quando cria com o seu engenho, e fantasia novas fabulas, e naõ quando refere as cousas já inventadas por outros” (FREIRE, 1759, t. 1, p. 37) -, porque a “Icastica” não mais que particulariza a “idea universal”:

[...] segundo o sabio Muratori, todas as cousas dos tres Mundos, celeste, material, e humano pódem ser objecto da Poesia. Pódem-se estas considerar, ou como em si saõ, e em cada individuo, ou tambem como saõ naquella idéa universal, que formamos das cousas; e esta vem a ser hum original de quem saõ copias os individuos, ou particulares (Freire, 1759FREIRE, Francisco José. Arte poética. 2. ed. Lisboa: Oficina Patriarcal de Francisco Luiz Ameno, 1759. 2 t., t. 1, p. 38, grifos do autor).26 26 “Nesse sentido, a grande diferença entre a imitação e a icástica consiste em que a segunda retira suas tópicas (matérias), não do costume literário, mas da tradição dos textos históricos, que antes os registrou como dados colhidos da experiência singular de pessoas concretas, mas que, em rigor, também se perpetuam conforme esquemas do gênero historiográfico. Em ambos os casos, não se pode ignorar a mediação retórica dos signos, responsáveis pela conversão da natureza e da prática humana em escritura” (TEIXEIRA, 1999, p. 251).

A “natureza” que se deve “imitar poeticamente” e cujas “differentes verdades” podem “ser o objecto, e o sujeito da Poesia” está contida em “tres mundos”, conforme a distinção teológica:27 27 A constatação de que essa distinção dos “tres mundos” na Arte poetica de Freire pertence à teologia encontra-se na página 183. A apropriação do conceito de “natureza”, porém, é bastante ampla e até mesmo contraditória nessa época, como lembra Sérgio Buarque de Holanda: “O aceno à lei natural, à lição da Natureza, com maiúscula, não é válido, agora, como simples e caprichoso convite erótico, mas corresponde, em verdade, a uma atmosfera dominante através de todo o século XVIII, que impregna suas manifestações mais diversas e mesmo antitéticas, desde a plácida poesia e a poética dos ‘pastores’ da Arcádia rediviva, até à Declaração dos Direitos do Homem – ‘o objeto de toda sociedade política é a preservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem’ – ou ainda, ao lado oposto do Oceano, a da Independência dos Estados Unidos: ‘assumir entre as potências da terra o lugar distinto e o posto de igualdade que lhe é atribuído pelas leis da Natureza e do Deus da Natureza’ (‘the separate and equal station to which the laws of Nature and of Nature’s God entitle them’)” (HOLANDA, 1991, p. 198, grifos do autor). o “celeste” ou “superior” - que compreende Deus, toda a hierarquia celeste e “as Almas separadas dos corpos” - o “material” ou “inferior” - constituído por “tudo o que he formado de materia, ou corpo” - e o “humano” ou “mundo do meyo” - que, “participando do superior, e do inferior, comprehende, e abraça tudo o que he corpo, e juntamente alma racional” (Freire, 1759FREIRE, Francisco José. Arte poética. 2. ed. Lisboa: Oficina Patriarcal de Francisco Luiz Ameno, 1759. 2 t., t. 1, p. 31-32, grifo do autor). Mas, prossegue Cândido Lusitano, se é certo que “a Mathematica, a Theologia, e a Filosofia moral tem por objecto estas verdades”, é igualmente correto que aquelas “sciencias” destas se ocupam separadamente, conforme o seu caráter, enquanto “a Poesia trata, e comprehende todas as verdades destes tres mundos” (FREIRE, 1759, t. 1, p. 33).28 28 Na Lettera a Francesco Solla (de 12 de janeiro de 1729), Vico constata uma relação intrínseca entre a poesia e a verdade revelada por Deus. Ver Moncarello (1953, p. 174-175).

Assim, não apenas em Freire, mas também em Verney, permanece a concepção aristotélica de “verdade” poética, que resultaria da imitação do universal, em oposição ao discurso histórico, que imitaria o particular. Para a reconstituição da noção de “bom gosto” na poesia árcade, entretanto, não é preciso ir mais além, bastando ressaltar o alinhamento político que a adesão a esse conceito implica, no contexto da modernização conservadora capitaneada pelo marquês de Pombal. É certo que a percepção dessa preceptiva não foi uniforme ou unívoca entre os poetas árcades. Porém, somente a leitura dessa poesia poderá evidenciar, efetivamente, o alcance dos almotacéis do bom gosto.

Referências

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  • VERNEY, Luís Antônio. Verdadeiro método de estudar. Lisboa: Sá da Costa, 1950. v. 2, 3 e 4.

Notas

  • 1
    O diploma legislativo referendado por d. José significava um retorno à leitura quinhentista dos antigos, uma vez que “preconizava e estabelecia a adopção de um classicismo renascentista renovado e ‘simplificado’, pela necessidade de o adaptar aos tempos modernos e de aproveitar, na constituição de sua doutrina, tudo quanto o progresso da crítica adquirira posteriormente ao século XVI. A força do texto legislativo vinha assim consagrar, no vasto campo do ensino, aquela mesma orientação que, três anos antes, a Arcádia Lusitana escolhera para dar cabal cumprimento à legenda do seu emblema – inutilia truncat –, na procura de uma literatura nova em relação ao adulterado gosto barroco” (CASTRO, 1973, p. 588).
  • 2
    Mais adiante, sentencia: “para fazer tudo o que pede a arte [da poesia], se requer a boa Retórica” (VERNEY, 1950, p. 246); “quanto mais se examina a Poesia, tanto mais claramente se reconhece a Retórica” (VERNEY, 1950, p. 252). Verney (apud CASTRO, 1973, p. 410) “concede uma deliberada importância à Retórica como fundamento de toda a criação literária e não apenas da eloquência, sagrada ou profana, embora este princípio não fosse exclusivo dele e andasse defendido por outros teorizadores incluindo Lamy [...]. Para ambos, o ensino da Retórica é indispensável, mas deve ser objecto de profunda renovação, de modo a criar nos alunos a noção do que seja ‘bom gosto’”.
  • 3
    E, mais adiante, insiste: “E assim a mesma Retórica, que é necessária para regular os nossos discursos na prosa, o é também no poema. Onde vem que a Poesia é uma Retórica mais florida; e a quem falta esta não pode ser bom poeta. Como é possível que o Poeta exprima na elegia a sua paixão, de sorte que mova, se ele não sabe a arte de mover? Como pode nos diálogos exprimir o que cada um quer e deve dizer, se ele não sabe o que deve e como o deve dizer? Torno às Comédias e Tragédias, e delas pergunto o mesmo: – Como pode o Poeta fazer que cada um dos representantes exprima a paixão de que está possuído, se ele não sabe que coisa é paixão, nem como se move? Não pode ser que um homem que ignore isto faça uma comédia boa. Também a Tragédia não consiste sòmente em inventar um argumento nobre; em saber embrulhar uma quantidade de sucessos que causem maravilha quando se desintrigam; mas sobretudo é necessária a propriedade e carácter em cada parte, para mover o ânimo, o que pede particular Retórica” (VERNEY, 1950, p. 249).
  • 4
    E, mais adiante: “[...] como nem todos têm juízo para entenderem as coisas, daqui nasce que, neste mesmo século XVII e ainda presente, se acham pessoas que confundem as ditas coisas, e que, se acaso chegam a ler os Antigos, não sabem advertir o que neles se deve imitar os desprezar [...]” (VERNEY, 1950, p. 236).
  • 5
    As expressões são do padre José Caetano de Mesquita e Quadros em sua Oração sobre a restauração dos estudos das Bellas Letras em Portugal, Que no dia 30 de Setembro de M.DCC.LIX. Na presença do muito alto, e muito poderoso Rey Fidelissimo D. Jozé I Nosso Senhor, disse [...], citada por Castro (1973).
  • 6
    Na tradução – em prosa – de Célia Berrettini: “Os autores, na sua maioria, levados por um ímpeto insensato, vão procurar sempre o pensamento longe do bom senso. Acreditar-se-iam rebaixados, nos seus versos estranhos, se pensassem que outro poeta pode pensar como eles. Evitemos tais excessos: deixemos à Itália a deslumbrante loucura de todos esses falsos brilhantes. Tudo deve tender ao bom senso. Mas, para aí chegarmos, o caminho a ser seguido é escorregadio e penoso; logo nos afogamos, por pouco que nos afastemos. A razão, para andar, tem muitas vezes apenas uma via. // Um autor, obcecado às vezes com o objeto de seu trabalho, nunca abandona um assunto sem esgotá-lo. Se encontrar um palácio, pinta-me sua fachada; em seguida, passeia-me de terraço em terraço. Aqui se apresenta uma escadaria; lá reina um corredor; acolá se fecha um balcão numa balaustrada de ouro. Ele conta as superfícies redondas e ovais dos tetos: ‘Não são senão festões, não são senão astrágalos”. Salto vinte folhas para encontrar o final, e só consigo escapar através do jardim. Fuja da abundância estéril desses autores, e não se sobrecarregue com um pormenor inútil. Tudo o que dizemos a mais é insípido e desagradável; o espírito saciado repele instantaneamente o excesso. Quem não sabe moderar-se jamais soube escrever” (BOILEAU-DESPRÉAUX, 1979, p. 16-17).
  • 7
    Aos que escrevem em latim, recomenda: “Os que estimam a bela Latinidade devem escrever como os da idade de oiro ou, quando muito, de prata; e nada mais se deve imitar. Nos fins da idade de prata é que se começaram a introduzir agudezas por culpa de Séneca, Filósofo, e seu sobrinho Lucano, mas principalmente de Marcial, que floresceu pouco depois, motivo por que muitos bons críticos querem que a idade de prata acabe com Nero, no ano 67 de Cristo, vendo quanto, dali para diante, descaiu a Eloquência. Mas ainda nos fins da idade de prata não estava o caso tão arruinado, o que alcanço das inscrições desse tempo. Do tempo dos Antoninos para diante, quero dizer, desde os princípios do segundo século de Cristo, é que totalmente se começou a arruinar, e entraram as subtilezas; mas pior que tudo, desde a metade do dito século para baixo. Finalmente arruinou-se a língua latina com o Império Romano, no quinto século. Daí para diante reinou a ignorância até o meio do décimo quinto século” (VERNEY, 1950, p. 292-293).
  • 8
    Alguns casos examinados por Verney (1950, p. 252-66).
  • 9
    Em outra parte, mais à frente, dirá o “Barbadinho”: “O Poeta perde a naturalidade todas as vezes que procura, com grande estudo, mostrar engenho; e nunca desagrada mais que quando procura agradar muito, porque o conceito há de apresentar-se, e não procurar-se” (VERNEY, 1950, p. 260).
  • 10
    Contudo, mesmo a “naturalidade” deve ser equilibrada, diz o frade: “nem por isso canonizo a humildade do estylo nascido de uma affectada naturalidade, que em lugar de adorno he desassêo. O ser humilde serà virtude das Orações santas; mas não das Rhetoricas [...] Não se ha de seguir tanto a naturalidade, que degenere em vulgaridade sem viveza, e sem energia” (Jacinto de São Miguel apud CASTRO, 1973, p. 544).
  • 11
    “Todo o objecto, que se representa aos olhos, aos ouvidos, e aos outros sentidos, lança hum compendio, huma imagem, huma similhança de si mesmo, a qual sendo recebida pelos sentidos, passa pelos nervos, e orgaõs corporeos, até que chega a imprimirse em o nosso cerebro. A potencia, ou faculdade da alma, que aprehende, e conhece estes objectos sensíveis, ou para melhor dizer, as suas imagens, he a fantasia, ou imaginativa, a qual porque está (segundo o nosso modo de entender) na parte inferior da alma, lhe poderemos chamar de aprehensiva inferior. Tem a nossa alma outra aprehensiva das cousas, a que podemos dar o nome de superior; porque está collocada na parte superior, e racional da alma, e commumente lhe chamamos entendimento. O officio da fantasia naõ he propriamente o inquirir, e entender se as cousas saõ falsas, ou verdadeiras. Porém para meditar, e formar pensamentos, unem-se entre si estas duas potencias, administrando a inferior á superior as imagens dos objectos, que lhe communica sem se valer dos sentidos; porque já em si as tem. Tambem póde a potencia inferior per si mesma valerse destes objectos para imaginar as cousas já aprehendidas, ou para fabricar outros objectos; porque também ella tem força para conceber novas imagens”. (FREIRE, 1759, t. 1, p. 85-86, grifos do autor).
  • 12
    Mais adiante, no capítulo XXVI, criticando “Extremos viciosos dos estylos” como “contrapostos, equivocos, paranomasias, allusões, e outras pestes condemnadas” e culpando os italianos, diz Freire (1759, p. 203) que “Naõ se póde negar, que esta peste de contrapostos, equivocos de vozes &c. veyo de Italia no principio do seculo decimosexto, segundo a authoridade de Mons. Boileau insigne Criticio Francez”.
  • 13
    As invectivas dos teorizadores portugueses contra o “seiscentismo” lembram Gian Vincenzo Gravina, que em sua Della ragion poetica (1708) reprovava os poetas do século anterior por se fundarem nos autores da “decadência latina” (GRAVINA apud MONCARELLO, 1953, p. 109-110 [nota]).
  • 14
    Sobre Quintiliano, lembra Castro (1973, p. 598), em nota na mesma página, que “as Institutiones Oratoriae transformaram-se, a partir de 1759, num verdadeiro código da teoria da prosa, graças a numerosas traduções, adaptações e reedições”; e que, ainda em 1817, Francisco Coelho de Castro publicava uma coletânea de preceptivas recolhidas da obra desse autor latino.
  • 15
    Aníbal de Castro registra que a veemência com que Verney e Cândido Lusitano defendiam essa nova noção levou o padre Francisco Duarte a apelidá-los de “almotacéis do bom gosto” (CASTRO, 1950, p. 490, nota).
  • 16
    Os versos de Horácio, extraídos da “Epístola aos Pisões” (ou “Arte poética”), encontram-se citados na mesma página, de onde foram extraídos. Uma tradução dos mesmos, em português, de Antônio Luís de Seabra: “Quem souber aliar o util e o grato, / O leitor instruindo e deleitando, / Terá todos os votos” (HORÁCIO, 1941, p. 313). Outra, em prosa, de Jaime Bruna: “Arrebata todos os sufrágios quem mistura o útil e o agradável, deleitando e ao mesmo tempo instruindo o leitor” (HORÁCIO, 1992, p. 65).
  • 17
    Antes, no primeiro capítulo (“Da origem, progressos, e essencia da Poesia”) do “Livro I”, referindo-se à passagem da Poética em que Aristóteles afirma “que a Lyrica e a Satyra saõ as duas especies mais antigas desta Arte”, Freire infere “que a intençaõ, e fim da Poesia foy desde aquelles primeiros tempos, e ainda actualmente he, de cantar os louvores da virtude, e dos virtuosos, ou o vituperio dos viciosos; para que aprenda a gente a conhecer, que odio devem ter a estes, e amor áquella: e por consequencia saibamos, que a Poesia naõ he outra coisa mais, que huma filha da Filosofia moral, ou para melhor dizer, he a Poesia, e a Filosofia huma mesma cousa, ainda que expressada com dous differentes nomes” (p. 11). Prosseguindo com seu elenco de “autoridades”, Freire lembra que “O mesmo prova Estrabo no I. liv. Da Geografia para mostrar contra o parecer de Erastotenes, que a Poesia fora inventada, naõ só para deleitar, mas igualmente para instruir; como largamente se póde ler em Muratori na sua estimadissima obra da Perfeita Poesia tom. I. pag. 33” (FREIRE, 1759, t. 1, p. 12). Ver também Moncarello (1953, p. 112, 152, 174-175).
  • 18
    Algo que já havia sido proposto por Gravina em Della rargion poetica (1708). Ver Moncarello (1953, p. 108-109).
  • 19
    Ver Moncarello (1953, p. 154, nota).
  • 20
    Aníbal de Castro observa semelhante postura ao comentar Verney (CASTRO, 1973, p. 424).
  • 21
    A ideia, porém, já se encontra na Della ragion poetica, de Gravina. Ver Moncarello (1953, p. 110-111).
  • 22
    (A íntegra do soneto encontra-se na p. 257.) Logo em seguida, ensina: “Dir-me-á V. P. que o Poeta deve fingir e inventar alguma coisa para louvar. Concedo. Mas não devem ser semelhantes parvoíces que, em vez de agradar, fazem náusea. Podem-se dizer muitas coisas daquele pé: mostrar que, para o complemento da beleza, não há proporção melhor que um pé pequeno; que nisto excede ela muito todas as mais senhoras; que a sua brancura e delicadeza é inimitável; que tem toda a graça que se pode imaginar em semelhante parte do corpo. Isto, quanto ao sério. Passando ao burlesco, podem-se dizer mil outras coisas, e pode o Poeta inventar alguma coisa galante com que adorne estes conceitos” (VERNEY, 1950, p. 258-259). Antes, na p. 236, comenta um poeta que, “observando as desprezantes maneiras de olhar da sua dama, e convencido, no mesmo tempo, da eficácia que os seus olhos tinham para inspirar-lhe amor, os considera como espelhos ustórios, feitos de caramelo; mas, podendo ele viver nos maiores ardores que o abrasavam, conclui que a zona tórrida é habitável. Quando a sua dama tem lido a carta, que lhe escreveu com sumo de limão, posta ao calor do fogo, lhe pede que a torne ler à luz das chamas de amor. Quando ela chora, deseja que um suave calor, excitado pelo amor, faça destilar aquelas lágrimas, passadas pelo alambique de seu coração. Quando ela está ausente, acha-se além do oitentésimo grau de latitude, quero dizer, quarenta graus mais vizinho do Polo, do que quando se acha com ela. O seu amor ambicioso é um fogo que sobe naturalmente para cima; o seu amor afortunado parece-se com os raios do Sol e o seu amor desafortunado assemelha-se às chamas do inferno. Quando o amor lhe tira o sono, é uma chama de que não sai fumo; e, quando a prudência o combate, é um fogo assoprado pelo vento. O seu coração é um Etna que, em vez da oficina de Vulcano, oculta aquela de Cupido. Às vezes, o coração do Poeta acha-se nevado no peito de todas as belas; outras vezes assado na vizinhança dos seus olhos. Umas vezes, afoga-se dentro das lágrimas, e, no mesmo tempo, arde entre os braços de amor, semelhante a estes foguetes de nova invenção, que ardem e estoiram debaixo da água. Em todo este discurso vê V. P. que o Poeta supõe que o amor é verdadeiro fogo de cozinha; e que une estas duas ideias – fogo e amor – para delas deduzir todos os seus conceitos, a que ele chama subtis e engenhosos. Isto agrada ao comum dos homens, não obstante que seja uma fantasia imprópria e extravagante. Porém já eu lhe perdoara este engenho misto, se usassem dele com moderação; o que não posso sofrer é que sem prudência o introduzam por tudo, e nos queiram persuadir que é grande engenho chamar a uma coisa com diverso nome; e que a dita coisa é tal como a pintam” (VERNEY, 1950, p. 236-238, grifos do autor).
  • 23
    Ao criticar Os lusíadas, Verney repara que, nas invocações que Camões “faz a El-Rei D. Sebastião”, o poeta usa “palavras que nada significam e causam confusão em quem lê. Nasce também de certas alusões forçadas e trazidas de longe, que frequentemente usa. A 6a. e 7a. estância, em que começa o cumprimento ao dito Rei, é tão obscura, que não se pode entender sem comentário; e o mesmo podia dizer de quase toda a invocação. Isto acha-se frequentemente em todo o poema, o que, unido com a negligência do verso, faz, como disse um homem douto, que cada estância seja um mistério, o que é um considerável defeito em um poema épico, cuja dicção deve ser (ainda que nobre) natural, clara, inteligível” (VERNEY, 1950, p. 316-317).
  • 24
    A ideia pode ser encontrada já em Muratori, para quem, na Della perfetta poesia italiana, as imagens da poesia devem conter “il vero necessario, avvenuto o reale, o il vero possibile o credibile”. Se a poesia é “figliola e ministra della morale filosofia”, “in quanto è arte subordinada alla filosofia morale o politica ha per fine il giovare altrui”, inspirando amor à virtude e ódio ao vício. E, se o belo da poesia “altro non è se non un lume e un aspetto risplendente del vero”, o deleite desse produto é “fondato sopra il vero e l’utilità si produce dal buono congiunto col vero stesso” (MURATORI apud MONCARELLO, 1953, p. 153).
  • 25
    Em Della perfetta poesia italiana, é o intelecto que regula a boa imitação e é “colla buona imitazione” que o poeta “ha da giovare e dilettare”. O fim da poesia é “dilettare coll’imitazione”, “per esser buon poeta basta l’essere eccellente nella maniera dell’imitare, non essendoci necessità che sempre la materia o il suggetto sia meraviglioso, nuovo e bello per se stesso” (MURATORI apud MONCARELLO, 1953, p. 167). Ver também Moncarello (1953, p. 169-170).
  • 26
    “Nesse sentido, a grande diferença entre a imitação e a icástica consiste em que a segunda retira suas tópicas (matérias), não do costume literário, mas da tradição dos textos históricos, que antes os registrou como dados colhidos da experiência singular de pessoas concretas, mas que, em rigor, também se perpetuam conforme esquemas do gênero historiográfico. Em ambos os casos, não se pode ignorar a mediação retórica dos signos, responsáveis pela conversão da natureza e da prática humana em escritura” (TEIXEIRA, 1999, p. 251).
  • 27
    A constatação de que essa distinção dos “tres mundos” na Arte poetica de Freire pertence à teologia encontra-se na página 183. A apropriação do conceito de “natureza”, porém, é bastante ampla e até mesmo contraditória nessa época, como lembra Sérgio Buarque de Holanda: “O aceno à lei natural, à lição da Natureza, com maiúscula, não é válido, agora, como simples e caprichoso convite erótico, mas corresponde, em verdade, a uma atmosfera dominante através de todo o século XVIII, que impregna suas manifestações mais diversas e mesmo antitéticas, desde a plácida poesia e a poética dos ‘pastores’ da Arcádia rediviva, até à Declaração dos Direitos do Homem – ‘o objeto de toda sociedade política é a preservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem’ – ou ainda, ao lado oposto do Oceano, a da Independência dos Estados Unidos: ‘assumir entre as potências da terra o lugar distinto e o posto de igualdade que lhe é atribuído pelas leis da Natureza e do Deus da Natureza’ (‘the separate and equal station to which the laws of Nature and of Nature’s God entitle them’)” (HOLANDA, 1991, p. 198, grifos do autor).
  • 28
    Na Lettera a Francesco Solla (de 12 de janeiro de 1729), Vico constata uma relação intrínseca entre a poesia e a verdade revelada por Deus. Ver Moncarello (1953, p. 174-175).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    04 Mar 2017
  • Aceito
    11 Ago 2017
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